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LUIZ FELIPE PONDÉ CONTRA MELHOR UM MUNDO ensaios do afeto

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LUIZ FELIPE PONDÉ

CONTRA

MELHOR UM MUNDO

ensaios do afeto

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Para Danit, minha mulher, Noam e Dafna, meus fi lhos, que fazem minha vida melhor do que eu seria capaz de fazer por mim mesmo, e minhas irmãs, Eliane e Mônica, que tornaram minha infância melhor do que teria sido sem elas. E aos

meus alunos, que fazem a minha vida profi ssional ter sentido.

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Imperfeição1

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DETESTO A VIDA PERFEITA. E mais, com o passar do tempo, tornei-me um preguiçoso. Da preguiça facilmente se pas-sa à tristeza. Resisto como posso porque minha fi siologia ainda está do meu lado. Como dizia Jorge Luis Borges, prefi ro escrever textos curtos, falta-me a paciência necessária para textos longos. Claro que existem razões fi losófi cas para essa opção. A primeira delas é a pre-guiça enquanto tal, um vício, um pecado, algo que se deve evitar – tema amplamente tratado pela fi losofi a. E reconheço-me no pecado. Segundo alguns sábios, a preguiça seria uma espécie de ceticismo da matéria, do corpo. Nestes ensaios e fragmentos, a preguiça me per-segue: quero ser rápido assim como quem rouba, assim como quem conhece a si mesmo e sabe que desgraçadamente cansa rápido de tudo que faz e quer. Minha inspiração dura pouco. Outra razão? Não confi o mais em sistemas de pensamento organizados, não por-que acredite nessa bobagem que hoje em dia os “idiotas” (de que nos falava Nelson Rodrigues nos anos de 1960) cultuam como uma ver-

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dade última: o caos inteligente. Não. Acho que a vida provavelmen-te não tem nenhum sentido, apesar de que é na sua forma profunda um movimento que busca a ordem. Em matéria de sentido, prefi ro os antigos: Deus, a fi delidade, a castidade, a culpa, a disciplina, a família, o medo, Shakespeare, a Bíblia, a Ilíada. Rejeito todos os no-vos sentidos: a democracia como religião moderna, a revolução se-xual, que não passa de puro marketing de comportamento (continua-mos a mentir sobre o sexo e a ser infelizes), a sustentabilidade (nova grife para o ambientalismo), a cidadania, a igualdade entre os ho-mens, uma alimentação balanceada, o fascismo dos direitos huma-nos, enfi m, tudo o que os idiotas contemporâneos cultuam em seu grande cotidiano. Aliás, aqui também tenho um parceiro ilustre: o fi ló-sofo romeno Émil Cioran (século XX), para quem só um mau-caráter ou a alma arrogante fazem sistemas em fi losofi a. O ceticismo (que, quando se instala em alguém como um modo da respiração, como em mim, ganha força de uma segunda natureza) não se delicia tanto em torturar almas religiosas, mas sim encontra seu maior gozo em humilhar almas científi cas, racionalistas e bem resolvidas. Se você se acha uma pessoa equilibrada, dessas que respeitam o parceiro no amor, que creem na igualdade entre os sexos como adorno na sua cama de casal, que comem apenas comida saudável, que conversa com plantas porque se julgam mais consciente, que se julgam sensí-vel e honesta, que reciclam lixo, feche este livro. Todas as poucas palavras que você encontrará aqui são contra você. Não acredito em você. Você é um mentiroso, ou uma mentirosa. Chego a ter pesade-los nos quais o mundo se tornou sua casa e em que homens e mulhe-res só respiram o que acham correto. Dedico horas do meu dia a pensar em formas variadas de fazer gente como você sofrer. E isso em mim também é um vício. Por mais que eu tente aceitar suas men-tiras que enchem os fi lmes, os jornais, as novelas, os livros, as salas de aula, os tribunais, mais fracasso. Não consigo escrever ou pensar uma linha se não sai assim como um grito. Mas, se você for mesmo

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esse mentiroso e ainda quiser continuar a ler este livro, esteja à von-tade. Talvez ele seja um paliativo para sua hipocrisia. Cansei da fi lo-sofi a, por isso comecei a escrever para não fi lósofos, porque a uni-versidade, antes um lugar de gente inteligente, se transformou num projeto contra o pensamento. Todos são preocupados em construir um mundo melhor e suas carreiras profi ssionais. E como quase to-das são pessoas feias, fracas e pobres, sem ideias e sem espírito in-quieto, nada nelas brota de grandioso, corajoso ou humilde. Eu não acredito num mundo melhor. E não faço fi losofi a para melhorar o mundo. Não confi o em quem quer melhorar o mundo. É isso mes-mo: acho um mundo de virtuosos (principalmente esses virtuosos modernos que acreditam em si mesmos) um inferno. Um bom cha-ruto, cachimbo ou cigarro pode ser uma boa companhia na leitura destes ensaios. Ou uma mulher gostosa do seu lado, ou um homem charmoso. Depois do sexo – e do cigarro –, leia um desses ensaios, quem sabe a quatro mãos. Se acompanhados por uma música clássi-ca, melhor ainda. Enfi m, se você não tiver nenhum vício, daquele tipo de compulsão fora de controle que esmaga sua vontade, aí não há qualquer esperança para você. Vire budista. Esboço uma fi losofi a do cotidiano. O que é uma fi losofi a do cotidiano? É uma fi losofi a que acompanha você no trabalho, na cama, entre as pernas, no car-ro, no hospital, no cemitério, no celular, no avião, no free shop, no amor, no ódio, no ciúme, na inveja, na gratidão. Uma fi losofi a ideal em meio ao cotidiano deveria caber numa frase que pode ser dita ao ouvido de alguém numa festa quando você passa por ela. E por que uma fi losofi a do cotidiano? Porque o cotidiano é rasgado, na espes-sura das suas horas, por questões fi losófi cas clássicas. E como não temos tempo, não vemos isso com frequência. Quando enterra al-guém que ama, diante do pó você sente o peso do vazio de seu cor-po e de sua alma (creia nela ou não, você não escapará desse senti-mento); quando adoece gravemente, é de novo o mesmo pó que em você estremece. Quando ama, teme a inviabilidade do amor ou a

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infi delidade inevitável. Quando tem fi lhos, sente o cheiro do aban-dono. Medos, medos e medos essenciais. Devemos nós nos dedicar apenas a bens materiais ou valemos pelo que somos? Seria essa ques-tão o divisor de águas entre a ingenuidade romântica e a dureza da idade adulta? Somos capazes de escolher nossos valores, ou a vida e a sociedade nos esmagam nos fazendo engolir valores sem qualquer escolha? Somos livres? E se formos, pagamos pela liberdade o alto preço da solidão e da insegurança? E, afi nal, diante daquele pó de onde viemos e para onde retornaremos (aquele mesmo pó do qual você sente o cheiro quando chove, e a terra fi ca molhada à sua volta), quem somos? Seremos mais do que este pó? Essa questão, tão fi lo-sófi ca, o acompanha ao médico, quando você vai ouvir resultados de exames de laboratório ou quando morre alguém que estudou na sua classe há apenas 20 anos. Tudo isso é concreto como uma pe-dra. A fi losofi a nasceu na Grécia com gente como Tales de Mileto, Sócrates, Platão e Aristóteles, uns 2.500 anos atrás, como uma ten-tativa de responder a questões assim, querendo fugir do mito, mas não conseguiu escapar plenamente do mito porque ele nos é visceral como uma pele. A ideia era compreender a vida apenas lançando mão de nossa capacidade de pensar e de observar o mundo naquilo que nele é visível. Há quem diga que fracassamos nessa tentativa, há quem diga que devemos sempre tentar. Pessoalmente, digo que nun-ca saberemos tudo, por isso sempre poderemos crer e dialogar com o invisível, e que a história dos últimos séculos nos provou que, quando deixamos de acreditar em Deus, sempre acabamos acredi-tando em qualquer bobagem como “História, natureza, ciência, energias, política, em si mesmo, tanto faz” (como dizia o escritor inglês Chesterton no começo do século XX). Para mim, Deus per-manece uma ideia mais elegante. Saltará aos seus olhos o fato de que não sou neutro na exposição dos problemas. Falo em primeira pes-soa. Para falar em primeira pessoa, antes tive que viver o tédio da “profi ssão” de fi lósofo acadêmico (embora ainda permaneça sendo

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um deles) e seus rituais de aniquilamento da coragem intelectual em favor da banalidade profi ssional. Como disse Nelson Rodrigues, sou um “ex-covarde”. Ou, parodiando o fi lósofo francês e cético Montaigne (século XVI), “esta é minha metafísica”. Não a de ninguém mais, ainda que fale na companhia de muitos outros com quem concordo ou discordo. Assim sendo, os pequenos ensaios que você tem em mãos foram escritos por um fi lósofo de carreira, que cumpriu todos os rituais exigidos e que fi nalmente os recusou. Hoje, os vejo como vazios de sentido. Alguém que passou pela faculdade de medicina, trabalhou como voluntário num necrotério, formou-se em psicanálise e cada vez mais está interessado no que pessoas comuns perguntam, como disse certa feita o fi lósofo judeu-alemão Franz Rosenzweig (sé-culo XX), e cada vez menos interessado no que a universidade quer. E o que ela quer? Como comecei a dizer acima, ela quer burocratas medíocres que se escondam atrás de grandes teorias para não con-fessar sua insegurança diante da temida falta de sentido da vida e de sua matéria concreta, o envelhecimento. Não controlamos a vida. Grandes planos podem dar em nada, ter fé pode levar você ao fra-casso, acreditar em si mesmo pode levá-lo a erros defi nitivos, esco-lher fi car rico pode ou não dar certo, ter muito dinheiro pode sim garantir pessoas ao seu redor amando-o (Nelson Rodrigues dizia que dinheiro só compra amor verdadeiro...) ou pode levá-lo à soli-dão – enfi m, não há garantias. É por isso que o normal é ser insegu-ro, mentiroso, covarde, e não santo ou corajoso. Cuidado, a leitura destes ensaios pode trazer efeitos colaterais: dúvidas, insegurança, insônia, raiva. Se isso acontecer, e você não gostar do que está sen-tindo, leia livros de autoajuda, tome remédios, faça meditação por cinco minutos. Mas não me entenda mal, caro leitor, pois não quero dizer que ser covarde é bonito ou louvável porque, enfi m, a vida é dura e não parece ter sentido, e por isso valeria a pena ler livros de autoajuda. Acho que essa literatura não vale a pena, melhor sofrer sendo gente do que sorrir sendo uma pedra burra. Quero dizer que,

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ainda que a vida não tenha sentido, o mal vença, a mentira impere, foi exatamente o vício pela fi losofi a na sua busca incansável pela verdade que me trouxe aqui e que me levou a querer falar com você, aí na sua cama, ao lado dessa pessoa que você não sabe mais se ama (ou se ela ama você), mas morre de medo de pensar nisso, ou no seu trabalho, esse lugar onde você difi cilmente repousa ou confi a em alguém, ou seja, no ínfi mo lugar que você ocupa nesse oceano de pedras e silêncio no qual nascemos e no qual morreremos. Outra coisa: os ensaios foram pensados num tamanho que dê para você ler pelo menos um a cada dia. Mas, como tudo nesta coletânea é assis-temático, os tamanhos variam, alguns beiram a miséria de conteúdo por ser meros fragmentos de pensamento, como “migalhas fi losófi -cas”, nos termos do grande dinamarquês Kierkegaard (século XIX). Entretanto, o melhor é que leia todos, pouco importa a ordem, por-que juntos eles comunicam de forma mais clara minha visão do in-ferno. Certa feita, o fi lósofo alemão Peter Sloterdikj (em atividade) me disse, em meio a uma conversa regada a charutos, cachimbos e vinho, que, numa época em que a covardia impera como lei da alma, em busca frenética de felicidade, o pensamento tende a se refugiar na forma de migalhas que têm a mesma missão da guerrilha, comba-ter em fl ashes e se esconder. Adorno (século XX) disse a mesma coi-sa, de forma diferente: assim como Simmel (sociólogo alemão do início do século XX), devemos pensar com o lápis, isto é, fazer ras-cunhos, esboços, leves e efêmeros como forma de resistência a um mundo obcecado pela felicidade. O grande crítico e pensador Otto Maria Carpeaux (século XX) disse certa feita que um ensaísta é um escritor sério cujo texto é transfi gurado por um raio de poesia. Não tenho poesia em meu sangue, mas tenho muita tortura e a partilho com você. E por fi m: você deve ter percebido que citei o Nelson Rodrigues algumas vezes neste pequeno ensaio. Sim. Ofereço a ele estes ensaios. Hoje, faltam homens como ele: homens que não têm medo. Assim como ele, não acredito num mundo melhor e direi isso

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de várias formas diferentes até morrer. Nos últimos séculos, acredi-tar num mundo melhor se transformou na pior prisão para o pensa-mento e para a alma. No limite, uma falha de caráter.

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A ruína2

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O CETICISMO ME ARRUINOU. Começou com exer-cícios de linguagem, observando suas incongruências na defi nição dos objetos e dos tempos verbais, depois comparando teorias sobre a vida após a morte, a existências da alma e de Deus (coisas às vezes sem mui-ta importância, dependendo da hora do dia ou da idade que você tem), para fi nalmente atingir a respiração, e aí talvez o dano seja irreparável, porque você se torna quase desumano. A falta de fé (em qualquer coisa) pode dar falta de ar. O mundo fi ca distante. Há algo na condição do ser humano que demanda certa ingenuidade ao olhar do cético. Não é humano saber que a vida é sustentada numa ilusão contínua. Pagamos um preço. Outro risco: pensamos que a dúvida, esse ácido do espírito, só afeta as ideias; mas não, ele também afeta a alma, o corpo, o desejo, os gestos, a capacidade de sonhar à noite. Os céticos gregos já sabiam disso: chamavam o efeito da dúvida sistemática sobre os afetos de