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CONTRATO E MUDANÇA SOCIAL Revista dos Tribunais | vol. 722 | p. 40 - 45 | Dez / 1995 Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 2 | p. 1311 - 1320 | Jun / 2011 DTR\1995\602 Paulo Luiz Netto Lôbo Doutor e Mestre em Direito. Professor de Direito Civil na UFAL e no Curso de Doutorado da UFPE. Área do Direito: Civil Sumário: 1.Sentido evolutivo do contrato. - 2.Liberdade e autonomia na concepção do contrato. - 3.Paradigma tradicional do contrato: o modelo liberal. - 4.Paradigma do passado: o modelo romano. - 5.Paradigma do presente: os direitos sociais e econômicos. - 6.Morte do contrato. - 7.Declínio do contrato tradicional na sociedade de massas. - 8.Transformações gerais 1. Sentido evolutivo do contrato. É quase um lugar comum a afirmação de que o contrato ou o direito contratual é a parte do direito menos afetada pela mudança social. Atribui-se ao direito das obrigações (especialmente o contratual) uma certa estabilidade milenar, porque, mais que os outros ramos juscivilísticos, perpetuaria os princípios que nos legaram os romanos, assegurando a raiz comum do grande sistema jurídico romano-germânico. Com efeito, o contrato jurisdiciza o fenômeno mais freqüente do cotidiano das pessoas, em todas as épocas. Na sociedade atual, a cada passo, o cidadão ingressa em relações negociais, consciente ou inconscientemente, para satisfação de suas necessidades e desejos e para adquirir e utilizar os bens da vida e os serviços. A sociedade de massa, neste final de século XX, multiplicou a imputação de efeitos negociais a um sem número de condutas, independentemente da manifestação de vontade dos obrigados. O contrato é, pois, fenômeno onipresente na vida de cada um. Até mesmo quando se está dormindo, consome-se bens ou serviços fornecidos em massa. O contrato, no entanto, não é e nem pode ser de categoria abstrata e universalizante, de características inalteradas em face das vicissitudes históricas. Em verdade, seus significado e conteúdo conceptual modificaram-se profundamente, sempre acompanhando as mudanças de valores da humanidade. 2. Liberdade e autonomia na concepção do contrato. O direito contratual que se toma como paradigma, tanto para a formação como para a prática dos operadores do direito, é o que se desenhou durante a hegemonia do Estado liberal, corporificando nas codificações a concepção iluminista da autonomia da vontade. No Estado liberal, o contrato converteu-se em instrumento por excelência da autonomia da vontade, confundida com a própria liberdade, ambas impensáveis sem o direito de propriedade privada. Liberdade de contratar e liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmãs siamesas. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, em 1789, proclamou a sacralidade da propriedade privada ("Art. 17. Sendo a propriedade um direito sagrado e inviolável..."), tida como exteriorização da pessoa humana ou da cidadania. Emancipada da rigidez estamental da Idade Média, a propriedade privada dos bens econômicos ingressou em circulação contínua, mediante a instrumentalização do contrato. Autonomia da vontade, liberdade individual e propriedade privada, transmigraram dos fundamentos teóricos e ideológicos do Estado liberal para os princípios de direito, com pretensão de universalidade e intemporalidade. Considere-se o mais brilhante dos pensadores da época, Kant, especialmente na Fundamentação da CONTRATO E MUDANÇA SOCIAL Página 1

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CONTRATO E MUDANÇA SOCIAL

Revista dos Tribunais | vol. 722 | p. 40 - 45 | Dez / 1995Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 2 | p. 1311 - 1320 | Jun / 2011

DTR\1995\602

Paulo Luiz Netto LôboDoutor e Mestre em Direito. Professor de Direito Civil na UFAL e no Curso de Doutorado da UFPE.

Área do Direito: CivilSumário:

1.Sentido evolutivo do contrato. - 2.Liberdade e autonomia na concepção do contrato. - 3.Paradigmatradicional do contrato: o modelo liberal. - 4.Paradigma do passado: o modelo romano. - 5.Paradigmado presente: os direitos sociais e econômicos. - 6.Morte do contrato. - 7.Declínio do contratotradicional na sociedade de massas. - 8.Transformações gerais

1. Sentido evolutivo do contrato.

É quase um lugar comum a afirmação de que o contrato ou o direito contratual é a parte do direitomenos afetada pela mudança social. Atribui-se ao direito das obrigações (especialmente ocontratual) uma certa estabilidade milenar, porque, mais que os outros ramos juscivilísticos,perpetuaria os princípios que nos legaram os romanos, assegurando a raiz comum do grandesistema jurídico romano-germânico.

Com efeito, o contrato jurisdiciza o fenômeno mais freqüente do cotidiano das pessoas, em todas asépocas. Na sociedade atual, a cada passo, o cidadão ingressa em relações negociais, consciente ouinconscientemente, para satisfação de suas necessidades e desejos e para adquirir e utilizar os bensda vida e os serviços.

A sociedade de massa, neste final de século XX, multiplicou a imputação de efeitos negociais a umsem número de condutas, independentemente da manifestação de vontade dos obrigados.

O contrato é, pois, fenômeno onipresente na vida de cada um. Até mesmo quando se está dormindo,consome-se bens ou serviços fornecidos em massa.

O contrato, no entanto, não é e nem pode ser de categoria abstrata e universalizante, decaracterísticas inalteradas em face das vicissitudes históricas. Em verdade, seus significado econteúdo conceptual modificaram-se profundamente, sempre acompanhando as mudanças devalores da humanidade.2. Liberdade e autonomia na concepção do contrato.

O direito contratual que se toma como paradigma, tanto para a formação como para a prática dosoperadores do direito, é o que se desenhou durante a hegemonia do Estado liberal, corporificandonas codificações a concepção iluminista da autonomia da vontade.

No Estado liberal, o contrato converteu-se em instrumento por excelência da autonomia da vontade,confundida com a própria liberdade, ambas impensáveis sem o direito de propriedade privada.Liberdade de contratar e liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmãs siamesas.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, em 1789, proclamou asacralidade da propriedade privada ("Art. 17. Sendo a propriedade um direito sagrado e inviolável..."),tida como exteriorização da pessoa humana ou da cidadania. Emancipada da rigidez estamental daIdade Média, a propriedade privada dos bens econômicos ingressou em circulação contínua,mediante a instrumentalização do contrato.

Autonomia da vontade, liberdade individual e propriedade privada, transmigraram dos fundamentosteóricos e ideológicos do Estado liberal para os princípios de direito, com pretensão deuniversalidade e intemporalidade.

Considere-se o mais brilhante dos pensadores da época, Kant, especialmente na Fundamentação da

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Matafísica dos Costumes1 onde distingue o que entende por autonomia de heteronomia. Aautonomia é o campo da liberdade, porque os seres humanos podem exercer suas escolhas eestabelecerem regras para si mesmos, coletivamente ou interindividualmente. A heteronomia, porseu turno, é o campo da natureza cujas regras o homem não pode modificar e está sujeito a elas.2

Assim, o mundo ético, em que se encartaria o direito, seria o reino da liberdade dos indivíduos,enquanto tais, porque a eles se dirige o princípio estruturante do imperativo categórico kantiano. Nafundamentação filosófica kantiana, a autonomia envolve a criação e aplicação de todo o direito.Posteriormente, os juristas deram feição dogmática estrita ao princípio da autonomia, significando oespaço de auto-regulação dos interesses privados, de onde emerge o contrato.

Como se vê, ao longo da história, a liberdade saiu do espaço coletivo (sentido positivo) para oindividual (sentido negativo) Em famoso discurso proferido em 1819, Benjamin Constant intuiu adistinção que se tornou célebre entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, título aliás como setornou conhecido o discurso.3Em uma, a liberdade dos modernos, que ele valoriza, é entendida comonão impedimento à ação individual, enquanto a dos antigos, que não conheceram a liberdade nadimensão individual, era o status político ou ação política, ou seja, o poder de governar e decidir ares publica, ou a vida privada dos cidadãos.4

Os não livres não eram cidadãos: eram escravos ou "alieni juris". Assim, para os antigos, a idéia deautonomia individual era incogitável.

Mas afinal, o que estas variações históricas e ideológicas têm a ver com a evolução do contrato?3. Paradigma tradicional do contrato: o modelo liberal.

Entendo ser impossível pensar o sentido e a função do contrato, em nossa atual sociedade demassas, e mais ainda, segundo a experiência do Estado social, que se consolidou neste século XX,sem uma análise rigorosa do paradigma contratual que o nosso direito, ou melhor, o senso comumdos juristas, insiste em ter como invariável.

Refiro-me ao contrato estruturado no esquema clássico da oferta e da aceitação, do consentimentolivre e da igualdade formal das partes. O contrato assim gerado passa a ser lei entre as partes, naconhecida dicção dos Códigos Civis francês e italiano, ou então sintetizado na fórmula pacta suntservanda. O contrato encobre-se de inviolabilidade, inclusive em face do Estado ou da coletividade.Vincula-se o contratante ética e juridicamente; vínculo que tanto é mais legítimo quanto fruto de sualiberdade e autonomia. Esta visão idílica da plena realização da justiça comulativa, que não admitiaqualquer interferência do Estado-juiz ou legislador, pode ser retratada na expressiva petição deprincípio da época: quem diz contratual, diz justo.

Os paradigmas do passado e do futuro desmentem a concepção universalizante do modelo liberal docontrato.4. Paradigma do passado: o modelo romano.

O direito romano não conheceu o contrato como categoria geral, até porque inexistia o direitosubjetivo como os modernos desenvolveram. A tipicidade romana das actiones não comportava umafigura genérica a que se conduzissem, por subsunção, as espécies contratuais. Se o pretor nãoadmitia a actio para determinadas convenções, elas simplesmente não existiam como contratos;eram pactos nus (pacta nuda).

O consentimento, que é o elemento nuclear do contrato moderno, apenas foi admitido ulteriormente,pelo jus gentium, em certos tipos de contratos celebrados com estrangeiros, mediante açãoconcedida pelo pretor peregrino. Os contratos formais (reais, verbais e literais) desconsideravam oconsentimento e obrigavam, apesar ou contra ele. E mesmo os contratos inominados, que depoispassaram a ser admitidos, dependiam da concessão da actio praeseriptis verbis.

Portanto, não se conforta a teoria moderna ou liberal do contrato com autoridade do direito romano, oque bem demonstra que é fruto do dever histórico.

Esta é a compreensão clara que se deve ter do contrato, como de resto de qualquer categoria ouinstituto jurídico, sob pena de instituir como ciência o que não passa de conservantismo ideológico

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de um determinado modelo que prevaleceu enquanto existiu historicamente o Estado liberal. Osjuristas são vítimas freqüentes destas armadilhas, mercê do hábito tendencial de atuar e refletirsobre o que já se realizou, o sistema jurídico positivo, mais que divisá-lo no processo histórico e datransformação da sociedade.5. Paradigma do presente: os direitos sociais e econômicos.

O modelo liberal do contrato também não resiste ao paradigma que se desenvolveu no futuroimediato, e se desenvolve na atualidade, principalmente por conta de dois macrofatores: o Estadosocial e a sociedade de massas.

Agora, as referências para o contrato não são mais nem o pater familias ou sui juris romano nem oindivíduo proprietário da burguesia liberal; nem a liberdade coletiva dos antigos nem a liberdadeindividual desempedida dos modernos; nem o formalismo nem a autonomia de vontade.

O Estado social (welfare state) caracteriza-se justamente pela função oposta à cometida ao Estadoliberal mínimo. O Estado não é mais apenas o garantidor da liberdade e da autonomia contratual dosindivíduos; vai além, intervindo profundamente nas relações contratuais, ultrapassando os limites dajustiça comutativa para promover não apenas a justiça distributiva mas a justiça social.

O Estado liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração,5 especialmente a liberdade, avida e a propriedade individuais. O Estado social foi impulsionado pelos movimentos populares quepostulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos dohomem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais. O contrato de trabalho passa a serprotegido, afastando-se da ilusão da liberdade formal dos contratantes.

Liberdade ilusória, sim, fazendo irrespondível a afirmação atribuída a Lacordaire, de que entre o fortee o fraco é a liberdade que escravisa e a lei que liberta. A liberdade contratual transformou-se nasmãos dos poderosos em instrumento iníquo de exploração do hipossuficiente.

A Constituição garantista das liberdades formais converte-se na Constituição dirigente, para apromoção da justiça social. Além das funções de organização do Estado, delimitando o poderpolítico, e da garantia das liberdades individuais decorrentes, a Constituição do Estado socialincorpora outra função, que a identificará: a de reguladora da ordem econômica e social.

A regulação da atividade econômica afeta diretamente o contrato, que por sua vez se delimita pelafunção social. O art. 170 da Constituição brasileira adota como princípio estruturante da atividadeeconômica justamente a justiça social, que por sua vez matriza os princípios específicos decorrentes,em especial os da redação das desigualdades sociais e regionais e da proteção do consumidor.6. Morte do contrato.

Assim, é absolutamente imprestável e inadequado o modelo liberal do contrato, porque incompatívelcom uma função que ultrapassa a autonomia e o interesse dos indivíduos contratantes. Muito menoscom uma legislação que tende a intervir na relação contratual, para proteger uma das partes, atémesmo contra sua vontade.

A transformação dos pressupostos do contrato, segundo o modelo que nos legou o Estado liberal,causou uma rica discussão entre os juristas, nos últimos anos, havendo quem prenunciasse a mortedo contrato.6

Contudo, parafraseando a tradição inglesa, é mais rigoroso afirmar-se: o contrato está morto; viva ocontrato!

Morto por consumpção e senectude ou caído no letargo que precede a morte, e ainda não percebidopor muitos juristas, é o paradigma liberal do contrato, que não consegue ressuscitar apesar doadmirável esforço realizado pelos pandectistas de ontem e de hoje. A escola pandectista,especialmente a alemã, desenvolveu a figura abstrata do negócio jurídico. Reflexo do espírito daépoca, de ter a liberdade contratual formal como um bem em si mesmo, o negócio jurídico é a teoriacientífica da forma e da estrutura, aplicada aos atos negociais, sem qualquer preocupação com oconteúdo material ou com os figurantes.

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A teoria do negócio jurídico, enquanto exclusivamente forma e estrutura, adapta-se residual elimitadamente apenas aos contratos em que há igualdade efetiva de bargain power entre as partes,mas é completamente imprópria para os contratos de massa ou dirigidos e protegidos pelolegislador, como, por exemplo, nas relações de consumo, que absorve quase todas as atividadeseconômicas de relevo.

O esforço dos novos pandectistas, ao insistir na prevalência intemporal e universal da teoria donegócio jurídico, em ambiente sócio-econômico inteiramente diferente e oposto ao de séculopassado, só se consegue em prejuízo dos pressupostos fundantes da teoria, especialmente o daautonomia da vontade. A ampliação da categoria para absorver realidades e exigências diferentesdesfigura-a e a torna inútil.

Que utilidade haveria a compreensão das complexas relações negociais de nossa época, a disputaque envolveu tantos espíritos de escol entre a teoria da vontade e a teoria da declaração, se aprópria manifestação da vontade é desconsiderada largamente, imputando-se efeitos negociais acondutas sociais típicas?7

7. Declínio do contrato tradicional na sociedade de massas.

O cerco à cidadela do contrato tradicional começou muito antes. Quando o formalismo pandectistaparecia inabalável, a eqüidade, expulsa pelo individualismo liberal (o nosso Código Civil ignora-acompletamente), retornou com insistência, na legislação e na doutrina pela via da boa-fé, da lesão,da "cláusula rebus sic stantibus" (e suas derivações: teorias da imprevisão, da pressuposição, dabase negocial), da onerosidade excessiva, do enriquecimento ilícito.

O avanço maior deu-se pelo crescente dirigismo jurídico do contrato, intervindo o legislador emvários setores da atividade negocial, utilizando-se principalmente de uma tríplice técnica de limitaçãoda liberdade contratual, a saber:

I - limitação da liberdade de escolha do outro contratante, sobretudo nos setores de fornecimento deserviços públicos (água, luz, telefone, transporte etc.), ou monopolizados;

II - limitação da liberdade de escolha do tipo contratual, quando a lei estabelece os tipos contratuaisexclusivos em determinados setores, a exemplo dos contratos de licença ou cessão, no âmbito da leide software, e dos contratos de parceria e arrendamento no âmbito do direito agrário;

III - limitação da liberdade de determinação do conteúdo do contrato, parcial ou totalmente, quando àlei define o que ele deve conter de forma cogente, como no exemplo do inquilinato, dos contratosimobiliários, do contrato de turismo, do contrato de seguro.8. Transformações gerais

O maior golpe foi desferido quando entrou em cena os direitos de terceira geração, de naturezatransindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassa os dos figurantes concretos da relaçãonegocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogênios. A experiência que mais avança nestaárea é a dos direitos do consumidor. Nestes casos, a teoria tradicional do contrato foi desprezada,não por modismo mas porque seus pressupostos são distintos e inadequados.

Nos contratos de consumo abandonam-se ou relativizam-se os princípios da intangibilidadecontratual (pacta sunt servanda), da relatividade subjetiva, do consensualismo, da interpretação daintenção comum, que são substituídos pelos de modificação ou revisão contratual, de equilíbriocontratual, de proteção do contratante débil, de interpretação contra stipulatorum, de boa-fécontratual.

Talvez uma das maiores características do contrato, na atualidade, seja o crescimento do princípioda equivalência das prestações. Este princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual,seja para manter a proporcional idade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir osdesequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem serprevisíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da formacomo foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para umadas partes e onerosidade excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras daexperiência ordinária.

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Outro interessante campo de transformação da função dos contratos é o dos contratos, negociaçõesou convenções coletivas, já amplamente utilizadas no meio trabalhista. À medida que a sociedadecivil se organiza, o contrato coletivo se apresenta como um poderoso instrumento de solução eregulação normativa dos conflitos transindividuais. O Código de Defesa do Consumidor, porexemplo, prevê a convenção coletiva para regular os interesses dos consumidores e fornecedores,através de entidades representativas.

Na perspectiva do pluralismo jurídico, acordos são firmados estabelecendo regras de convivênciacomunitária, desfrutando de uma legitimidade que desafia a da ordem estatal.

Na economia oligopolizada existente em nossas sociedades atuais, o contrato, em seu modelotradicional, converte-se em instrumento de exercício de poder, que rivaliza com o monopóliolegislativo do Estado. As condições gerais dos contratos, verdadeiros códigos normativos privadossão predispostos pela empresa a todos os adquirentes e utentes de bens e serviços, constituindo emmuitos países o modo quase exclusivo das relações negociais. A legislação contratual clássica éincapaz de enfrentar adequadamente estes problemas, o que tem levado todos os paísesorganizados, inclusive os mais ricos, a editarem legislações rígidas voltadas à proteção docontratante débil, apesar da retórica neoliberal.

Em suma, o sentido e o alcance do contrato reflete sempre e necessariamente as relaçõeseconômicas e sociais praticadas em cada momento histórico. O modelo liberal e tradicional, inclusivesob a forma e estrutura do negócio jurídico, é inadequado aos atos negociais existentes naatualidade, porque são distintos os fundamentos, constituindo obstáculo às mudanças sociais. Oconteúdo conceptual e material e a função do contrato mudaram, inclusive para adequá-lo àsexigências de realização da justiça social, que não é só dele mas de todo o direito.

NOTAS

1. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Lisboa:Edições 70.

2. Em suas próprias palavras (p. 94): "A necessidade natural era uma heteronomia das causaseficientes; pois todo o efeito era só possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse àcausalidade a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois a liberdade da vontade senãoautonomia, isto é a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?

3. "De la liberté des anciens comparé a celle des modernes", Paris, 1819, donde se extrai o seguintee expressivo trecho: "le droit de choisir son industrie et de l'exercer; de disposer de sa proprieté, d'enabuser même".

4. Em nossa época, Hannah Arendt (Entre o passado e o futuro,S. Paulo, 1979, p. 188-220) retomaessa interessante temática, para demonstrar que o campo original da liberdade era o âmbito dapolítica, entre os antigos; livre era o titular da ação política, entendida como fato da vida cotidiana;era o governante entre governantes, movendo-se entre iguais. A liberdade interior, como livrearbítrio, surgiu depois com os medievais, preparando o caminho para a liberdade dos modernos. Agrande antinomia reside no fato de que a liberdade, enquanto relacionada à política, não é umfenômeno da vontade. Observa Arendt que o liberalismo, não obstante o nome, colaborou para aeliminação da noção de liberdade no âmbito político.

5. Sobre a evolução histórica dos direitos do homem, na escatologia dos direitos de primeira(liberdades individuais), de segunda (direitos sociais), de terceira (direitos transindividuais) e dequarta (direitos em face das manipulações biológicas) gerações, v. o excelente "Aera dos direitos",deNorberto Bobbio, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1992, "passim".

6. Cf. Grant Gilmore, ''The death of contract", Columbus: Ohio State University Press, 1974, "passim",especialmente a parte conclusiva, que reflete criticamente a evolução do específico elemento docontrato no direito de "common law",a "consideration",e a tendência da unificação do ilícito contratual

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e do ilícito extracontratual ("tort"),prenunciando um tipo unitário: o "contort".

7. Cf. Karl Larenz, "Derecho de Obligationes", trad. Jaime Santos Briz, Madrid: Ed. Rev. de Der.Privado, 1958, p. 57 e segs.

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