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Horizontes, Bragança Paulista, v. 22, n. 1, p. 71-107, jan./jun. 2004 71 Contribuição crítica à discussão acerca da participação da história e da epistemologia da matemática na investigação em educação matemática Antonio Miguel * Resumo O propósito deste artigo é discutir e problematizar algumas formas de participação da epistemologia e da história da matemática na atividade de investigação contemporânea em educação matemática, centradas em duas perspectivas teóricas bastante difundidas: a perspectiva estrutural-construtivista operatória, desenvolvida por Jean Piaget e Rolando García, e a perspectiva evolutiva descontínua, desenvolvida por Gaston Bachelard. Para isso, examina-se criticamente a noção piagetiana de “mecanismos de passagem” e a noção bachelardiana de “obstáculos epistemológicos”, presentes nos trabalhos de vários pesquisadores em educação matemática da atualidade, os quais enfatizam a importância do que costumam chamar de análise epistemológica da história da matemática para a investigação em educação matemática. Palavras-chave: Educação matemática; Epistemologia e pesquisa em educação matemática; História e pesquisa em educação matemática; Obstáculos epistemológicos; Mecanismos de passagem. Critical contribution to discussion about the participation of history and epistemology of mathematics in investigation on mathematical education Abstract The purpose of this article is to discuss and to problematize some ways how history and epistemology of mathematics have been used in contemporary mathematical education researches. These ways are based on two theoretical perspectives: the structural-constructivist operative perspective, developed by Jean Piaget and Rolando García, and the discontinuous evolutionary Perspective, developed by Gaston Bachelard. To that purpose, the Piagetian notion of “mechanisms of passage” and the Bachelardian notion of “epistemological obstacles” are critically examined. These notions are present in several researchers’ works in mathematical education of the present time, where the importance of epistemological analysis of the history of mathematics for the investigation in mathematical education is emphasized. Keywords: Mathematical education; Epistemology and mathematical education research; History and mathematical education research; Epistemological obstacles; Mechanisms of passage. Introdução O propósito central deste artigo é discutir duas perspectivas teóricas sobre as quais se assentam os pontos de vista de alguns pesquisadores da atualidade que vêm atribuindo um papel de destaque à participação da história e da epistemologia da matemática (ou, como costumam dizer, das análises epistemológicas da história da matemática) na atividade de investigação acadêmica em educação matemática. Se foi possível localizarmos, desde pelo menos meados do século XVIII, discussões e contribuições, ainda que isoladas, acerca da importância da partici- pação da história da matemática em diversas áreas da educação matemática – tais como: na formação de professores de matemática; no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem em diferentes níveis; na produção de textos didáticos; no desenvolvimento da pesquisa em educação matemática, etc. –, o mesmo não podemos dizer a respeito da percepção de uma eventual importância da participação da epistemologia da matemática na educação matemática. Parece ter sido somente a partir do início dos anos 80 do século XX que a epistemologia da matemá- tica passou a ser vista como um campo no qual tanto a prática pedagógica em matemática quanto a pesquisa em educação matemática em seu sentido estrito poderiam buscar algum tipo produtivo de inspiração e de apoio. Entretanto, defenderemos aqui o ponto de vista de que, em ambos os casos, não teria sido a participação da epis- temologia da matemática propriamente dita, enquanto um campo autônomo de investigação, que teria despertado inicialmente o interesse dos investigadores em educação matemática, mas sim certas formas particulares de apropriação ou leitura da produção epistemológica, formas estas que se caracterizariam por conceber a Endereços para correspondência: * E-mail: [email protected]

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Contribuição crítica à discussão acerca da participação da história e da epistemologiada matemática na investigação em educação matemática

Antonio Miguel*

ResumoO propósito deste artigo é discutir e problematizar algumas formas de participação da epistemologia e da história damatemática na atividade de investigação contemporânea em educação matemática, centradas em duas perspectivasteóricas bastante difundidas: a perspectiva estrutural-construtivista operatória, desenvolvida por Jean Piaget eRolando García, e a perspectiva evolutiva descontínua, desenvolvida por Gaston Bachelard. Para isso, examina-secriticamente a noção piagetiana de “mecanismos de passagem” e a noção bachelardiana de “obstáculosepistemológicos”, presentes nos trabalhos de vários pesquisadores em educação matemática da atualidade, os quaisenfatizam a importância do que costumam chamar de análise epistemológica da história da matemática para a investigaçãoem educação matemática.Palavras-chave: Educação matemática; Epistemologia e pesquisa em educação matemática; História e pesquisa emeducação matemática; Obstáculos epistemológicos; Mecanismos de passagem.

Critical contribution to discussion about the participation of history and epistemology ofmathematics in investigation on mathematical education

AbstractThe purpose of this article is to discuss and to problematize some ways how history and epistemology ofmathematics have been used in contemporary mathematical education researches. These ways are based on twotheoretical perspectives: the structural-constructivist operative perspective, developed by Jean Piaget and RolandoGarcía, and the discontinuous evolutionary Perspective, developed by Gaston Bachelard. To that purpose, thePiagetian notion of “mechanisms of passage” and the Bachelardian notion of “epistemological obstacles” arecritically examined. These notions are present in several researchers’ works in mathematical education of the presenttime, where the importance of epistemological analysis of the history of mathematics for the investigation inmathematical education is emphasized.Keywords: Mathematical education; Epistemology and mathematical education research; History and mathematicaleducation research; Epistemological obstacles; Mechanisms of passage.

Introdução

O propósito central deste artigo é discutir duasperspectivas teóricas sobre as quais se assentam ospontos de vista de alguns pesquisadores da atualidadeque vêm atribuindo um papel de destaque à participaçãoda história e da epistemologia da matemática (ou, comocostumam dizer, das análises epistemológicas da história damatemática) na atividade de investigação acadêmica emeducação matemática.

Se foi possível localizarmos, desde pelo menosmeados do século XVIII, discussões e contribuições,ainda que isoladas, acerca da importância da partici-pação da história da matemática em diversas áreas daeducação matemática – tais como: na formação deprofessores de matemática; no desenvolvimento doprocesso de ensino-aprendizagem em diferentes níveis;na produção de textos didáticos; no desenvolvimento

da pesquisa em educação matemática, etc. –, o mesmonão podemos dizer a respeito da percepção de umaeventual importância da participação da epistemologiada matemática na educação matemática.

Parece ter sido somente a partir do início dosanos 80 do século XX que a epistemologia da matemá-tica passou a ser vista como um campo no qual tanto aprática pedagógica em matemática quanto a pesquisa emeducação matemática em seu sentido estrito poderiambuscar algum tipo produtivo de inspiração e de apoio.Entretanto, defenderemos aqui o ponto de vista de que,em ambos os casos, não teria sido a participação da epis-temologia da matemática propriamente dita, enquanto umcampo autônomo de investigação, que teria despertadoinicialmente o interesse dos investigadores em educaçãomatemática, mas sim certas formas particulares deapropriação ou leitura da produção epistemológica,formas estas que se caracterizariam por conceber a

Endereços para correspondência:* E-mail: [email protected]

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epistemologia da matemática intimamente conectadacom a história da matemática. Essas formas particularesde apropriação da produção epistemológica passaram,de uma maneira geral, a ser denominadas análiseshistórico-epistêmicas da matemática ou análises epistemológicasda história da matemática. Subjacente a esses projetoshistórico-epistêmicos, parece subsistir a crença de quequalquer conexão direta entre a epistemologia damatemática e a prática pedagógica em matemática e/oua pesquisa em educação matemática se revelaria inócua,ou mesmo ilegítima, se não vier acompanhada da defesade um ponto de vista, na maioria das vezes de naturezaespecular, acerca da relação entre história epistêmica damatemática e cognição matemática, ou entre históriaepistêmica da matemática e didática da matemática.Nesse sentido, a importância da participação da filosofiae, mais particularmente, da epistemologia da matemáticano terreno da educação matemática só poderia ser vistacomo legítima caso pudéssemos postular e (mais do queisso) verificar experimentalmente, a presença de algumelemento que atuasse de forma reiterada, tanto no nívelda produção histórica das idéias matemáticas quanto noplano da produção individual, escolarizada ou não, dosaber matemático.

Pelo menos duas parecem ter sido as pers-pectivas teóricas que constituíram as fontes inspiradorasdesses projetos de percepção da importância daparticipação da epistemologia da matemática no terrenoda educação matemática: a obra Psicogênese e história daciência, de Jean Piaget e Rolando García (Piaget; García,1982), publicada na década de 80 do século XX, e a obraA formação do espírito científico: contribuição para umapsicanálise do conhecimento objetivo (Bachelard, 1996), deGaston Bachelard, publicada pela primeira vez em 1938.

De fato, a maior parte dos trabalhos publicadosem educação matemática que conseguimos levantar, cujosautores fazem, de algum modo, apelo à epistemologiada matemática ou àquilo que denominam análisesepistemológicas de tópicos específicos do conhecimento matemático,fundamentam-se e/ou referem-se, invariavelmente, auma ou a ambas dessas perspectivas, apropriando-sesobretudo de duas noções básicas que nelas aparecem,as quais supostamente estariam atuando reiterada esimultaneamente nos planos da produção histórica eindividual do saber matemático: a noção piagetiana demecanismos de passagem e a noção bachelardiana deobstáculos epistemológicos.

Tendo em vista o fato de o foco para o qualpretendemos dirigir a nossa atenção, neste artigo, incidirmenos sobre a análise detalhada e profunda dessasproduções em si mesmas do que sobre as perspectivasteóricas nas quais elas se assentam – e nas quais buscaminspiração para a constituição e defesa de formas de se

conceber a participação da história e da epistemologiada matemática na educação matemática –, optamos pororganizar a exposição de nossos pontos de vista daseguinte maneira: após esta breve introdução, faremos,na segunda seção, alguns comentários acerca de algumaspesquisas em educação matemática inspiradas na pers-pectiva estrutural-construtivista operatória de Piaget eGarcía; na terceira, examinaremos criticamente determi-nados aspectos dessa perspectiva com o propósito deexplicitar o modo como nela se concebe a relação entrea análise epistemológica da história da matemática e acognição matemática. Na quarta seção, examinaremoscriticamente determinados aspectos da perspectivaevolutiva descontínua de Gaston Bachelard; na quinta,faremos uma exposição sumária e comentários acercado modo como a noção de obstáculos epistemológicos foiapropriada, principalmente, por alguns pesquisadoresfiliados à escola francesa contemporânea de didática damatemática, a fim de se pôr em evidência a função quealguns desses investigadores atribuem à participação doque chamam de análise epistemológica da história da mate-mática na pesquisa em educação matemática. Finalmente,numa sexta e última seção, faremos algumas consi-derações acerca da relação mais geral entre história,filosofia e educação matemática.

Comentários acerca de algumas pesquisas emeducação matemática inspiradas no referencial

teórico de Piaget e García

Ainda que, como veremos na seção seguinte, sejamcontrovertidos e contestáveis os pressupostos sobre osquais se assenta a forma de Piaget e García conceberem arelação entre história, epistemologia e cognição matemática,vários trabalhos de investigação em educação matemáticatêm sido realizados, total ou parcialmente, à luz dessa pers-pectiva, tais como os de: (Sfard, 1991); (Sfard; Linchevski,1994); (Waldegg, 1993, 1996); (Moreno, 1996); (Moreno;Waldegg, 1991); (Barnett, 1996).1 A título de exemplo,faremos referência aqui, de modo breve, a três deles.

O primeiro é o relato de pesquisa elaboradopor Luiz Moreno, pesquisador Departamento de Mate-mática Educativa do Cinvestav – IPN, México, que seencontra na referência (Moreno, 1996) e que foi apre-sentado no Congresso História e Educação Matemáticaocorrido em Braga, Portugal, no período de 24 a 30 dejulho de 1996. Esse relato aparece nos Anais dessecongresso sob o título Cálculo: história e cognição.

A tese central em favor da qual Moreno procuraargumentar nesse relato é a da existência, tanto no planofilogenético quanto no psicogenético, de mecanismos depassagem de um nível de menor organização do conheci-mento matemático para um outro de maior organização.

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Para Piaget e García, mecanismos de passagem seriamcoisas do tipo: natureza dos raciocínios empregadospelos sujeitos; observação inferencial dos objetos, isto é,observação não-neutra ou interpretativa dos objetos porparte dos sujeitos; processos de diferenciações eintegrações que permeiam todo o progresso cognitivo;busca das razões dos êxitos e dos fracassos no processode construção do conhecimento e ordem das etapas dosprogressos cognitivos.

No caso particular da pesquisa realizada porMoreno, os mecanismos de passagem que, segundo ele,estariam sendo conservados em ambos os domínios,restringir-se-iam aos tipos de raciocínios empregados porparte dos sujeitos, nomeadamente, a abstração (empíricae reflexiva)2 e a generalização (extensiva e completiva).3

Além disso, Moreno utiliza uma linguagempessoal para se referir aos níveis de menor e maiororganização do conhecimento matemático. Denominaos níveis de menor e maior organização de concepções econceitos formais, respectivamente, e parte do pressupostode que entre as estruturas cognitivas das concepções eas estruturas cognitivas conceituais (estruturas lógicas)interpor-se-ia um outro tipo de estrutura cognitivamediadora ou intermediadora.

Já no artigo intitulado A evolução conceptual danoção matemática de infinito atual, publicado em 1991 narevista Educational Studies in Mathematics, Moreno eWaldegg se propõem a defender a tese central de que oconceito de infinito atual se manifestaria entre osestudantes que cursam o equivalente ao nosso EnsinoMédio, no mesmo nível, no máximo, em que esseconceito é concebido no trabalho intitulado Osparadoxos do Infinito de Bernard Bolzano.

Destacamos a palavra “nível” porque o seuemprego por parte desses autores evidencia dois dospressupostos nos quais a investigação por eles realizadase baseia. O primeiro, sugere que os conceitos matemá-ticos passariam, desde as suas primeiras manifestaçõeshistóricas, por uma evolução trifásica. A primeira faseou estágio, denominada intra-objetal, seria seguida poruma outra, que lhe seria epistemologicamente superior edenominada interobjetal; esta última, denominada trans-objetal, seria seguida por uma terceira e última fase, epis-temologicamente superior às duas que lhe antecedem.O segundo pressuposto sugere que também o desenvol-vimento conceptual humano e o processo de aprendi-zagem dos estudantes poderiam ser caracterizados comoum processo evolutivo que compreenderia as mesmasetapas descritas anteriormente para o desenvolvimentode conceitos matemáticos na história. Como os autoresargumentam que o trabalho citado de Bolzano poderiaser incluído na primeira etapa dessa evolução, também oprocesso de conceptualização dos estudantes investigados

apresentaria características intra-objetais.Além dessa tese central, os autores intencionam

ainda argumentar que o trabalho desenvolvido pelomatemático alemão Georg Cantor poderia ser incluídona segunda etapa do processo histórico-conceptual evo-lutivo. Os autores acreditam ainda que, à luz das com-clusões da investigação, as idéias piagetianas deveriamser reconsideradas, em educação matemática.

Finalmente, vamos considerar com mais detalheso artigo de autoria de Guillermina Waldegg, tambémpesquisadora do Cinvestav – IPN, México, no qual essaautora procura dar destaque exclusivo ao papel desempe-nhado pelo mecanismo da abstração reflexiva (na verdade,em vez de abstração reflexiva, Waldegg utiliza a expressãoabstração simbólica) no plano da filogênese.

O artigo intitula-se A noção de número antes doestabelecimento da ciência analítica (Waldegg, 1993). Nele, aautora intenciona mostrar que, com base no aparatoconceitual proporcionado pelo referencial teórico dePiaget e García, seria possível olhar com outros olhos ostrabalhos do matemático flamengo Simon Stevin de Bruges(1548-1620). Com isso, ela está querendo assinalar que seriapossível mostrar que, a despeito do fato de a concepçãode número de Stevin (ao contrário do seu trabalho deintrodução da notação decimal dos números na culturaocidental) nunca ter sido suficientemente valorizada peloshistoriadores da matemática, ela teria sido, na realidade,uma contribuição decisiva para se chegar a um conceitoanalítico de número. Segundo Moreno (1996, p. 297), semum tal conceito analítico de número teria sido impossível osurgimento do cálculo diferencial e, de acordo com ambos– Moreno e Waldegg –, a operação de abstração reflexivater-se-ia mostrado necessária e indispensável para aconstituição histórica de um tal conceito.

A fim de pôr em evidência a ruptura episte-mológica – ou salto qualitativo – representada pelaconcepção de número de Stevin, Waldegg a confrontacom uma outra que estava profundamente enraizada natradição platônico-aristotélico-euclidiana. Desse confronto,Waldegg chega às seguintes conclusões:

1. Com base na operação de divisão, a concepçãoplatônico-aristotélico-euclidiana estabelecia uma distin-ção entre duas classes disjuntas de quantidades: asquantidades discretas, também chamadas “números”, e asquantidades contínuas, também chamadas “grandezas”.Uma outra distinção decorria desta primeira: a da sepa-ração entre o domínio da geometria, que estudava asgrandezas, e o da aritmética, que estudava os números,sendo que o domínio da aritmética não estabelecia como primeiro qualquer tipo de ligação. Contrariamente aessa tradição, ao negar a descontinuidade do númerocomo algo que fizesse parte da essência dessa noção, a

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abordagem de Stevin iria estabelecer um tratamentounificado das quantidades contínuas e discretas; a partirde então, o número não mais estaria associado apenasàs grandezas discretas, mas a ambos os tipos degrandezas (Waldegg, 1993, p. 116-117).2. Ao definir o número como “aquilo pelo qual seexplica a quantidade de alguma coisa”, diferentementede Aris-tóteles, que o concebia como uma quantidade ouuma de duas classes em que as quantidades podiam serclas-sificadas, Stevin teria dado um salto conceitual, pois,embora ambos concebessem igualmente a quantidadecomo um conceito abstrato situado em um primeiro emesmo nível de abstração, isto é, obtido mediante aoperação mental de abstração empírica das demaispropriedades dos objetos físicos, Aristóteles situa onúmero (e também a grandeza) neste primeiro nível, aopasso que Stevin, pelo fato de conceber o número nãopropriamente como uma quantidade, mas como algoque explica a quantidade, o situa em um segundo nível derepresentação (Waldegg, 1993, p. 116-117).3. A concepção de Stevin, ao conferir ao número umaexistência operatória – isto é, na qual as operações(concebidas como reflexo das operações físicas que sepodem fazer com os objetos físicos) que se podem comeles realizar é que determinam a sua natureza –, teriasuperado um obstáculo posto pela concepção aristoté-lica, o qual se expressava em termos da confusão ou daindistinção entre número e quantidade nomeada. Dessaforma, ao definir “número puro” ou “número aritmético”como aquilo que se obtém após a operação de abstraçãoda quantidade, Stevin teria aberto a possibilidade de serealizar operações com os números independentementedas quantidades às quais eles se referem (Waldegg,1993, p. 118-120).4. Pode-se inferir da abordagem feita por Stevin da noçãode número que ele o concebe como algo abstraído dasações sobre os objetos e não apenas como algo abstraídodas propriedades dos objetos como o fazia Aristóteles. Ecomo os resultados das ações sobre os objetos físicosnão mudam a quantidade total de matéria que intervémno processo, Waldegg conclui que, subjacente àabordagem de Stevin, manifesta-se a noção piagetiana deconservação, a qual se refletiria no plano dos objetosmatemáticos como conservação da lei de composiçãointerna na manipulação dos símbolos numéricos. Nessesentido, argumenta que, enquanto a concepção aristotélica,ao deter-se num primeiro nível ou grau de abstração(passagem do nível propriamente empírico de ações con-cretas sobre os objetos físicos no nível da abstraçãoempírica de ações interiorizadas sobre as quantidades), vê aconservação da quantidade como um reflexo da conser-vação da matéria, a concepção de Stevin, ao atingir umsegundo nível ou grau de abstração (passagem do nível

da abstração empírica de ações interiorizadas sobre asquantidades ao nível da abstração simbólica deoperações algébricas sobre os símbolos numéricos), vê aconservação da lei de composição interna do domínionumérico como um reflexo da conservação daquantidade (Waldegg, 1993, p. 119-120).

A seguir, passamos a explicitar algumas conside-rações críticas em relação à interpretação do desenvolvi-mento histórico da noção de número feita por Waldegg.

É preciso ressaltar, antes de mais nada, que nãose sabe por que razão Waldegg, em sua análise, res-tringe-se a navegar pelo mundo da matemática teóricagrega, chamando-nos a atenção, em uma nota derodapé, para o fato de que entende por matemática teóricagrega aquela presente nos Elementos de Euclides. Nessesentido, parece desconsiderar o fato da possibilidade deexistência de outras concepções de número, distintasdaquela presente na tradição platônico-aristotélico-euclidiana, tanto no espaço físico e temporal no qual amatemática grega exerceu uma influência duradouraquanto no contexto do mundo ocidental anterior ao surgi-mento do trabalho de Stevin. Teria sido essa também aconcepção de número presente no universo no qual semovimentavam e trabalhavam os engenheiros, agrimen-sores, astrônomos e calculadores gregos?

Todos sabemos das razões ideológicas que, nomundo grego, opuseram Aritmética e Logística, por umlado, e Geometria e Geodésia, por outro. Todos sabemostambém que nesse universo “impuro” e desvalorizadoda matemática prática, e mesmo em toda a tradição prag-mática da matemática não-helênica, o símbolo numéricosempre foi utilizado para expressar os resultados decontagens e de medições. Neste sentido, a abordagemeuclidiana dicotômica e disjunta da Aritmética e daGeometria e, por extensão, a concepção de número aela subjacente, deveria ser vista como uma exceção (claroque nada desprezível e também de larga influência nomundo erudito), mais do que como uma regra ou, o queé pior, como a única regra. Mais apropriado seria terdito que a concepção platônico-aristotélico-euclidianaera a concepção dominante no mundo grego, mas assimmesmo precisaríamos esclarecer a natureza dessa domi-nância e delimitar o âmbito no qual essa concepção teriatido, de fato, a sua interferência.

Além disso, se concordarmos com a análisefeita por Szabó (1960) do surgimento da matemáticateórica grega, devemos admitir que a definição dearithmos (e também a de outras noções como, porexemplo, a de “ponto”) presente nos Elementos, repre-sentaria não uma noção forjada contra supostasconcepções em vigor neste universo prático, mas sim otérmino de uma polêmica travada no seio do própriouniverso teórico, uma vez que teriam sido as críticas

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eleáticas (inspiradas na doutrina de Parmênides) à teoriapitagórica das mônadas o ponto inicial da mesma. Nessesentido, a concepção euclidiana de arithmos representaria,portanto, uma reação (ou uma retificação possível) de,pelo menos, outra concepção que lhe antecedeu nopróprio terreno teórico, a saber, a concepção de númeroque tinham os primeiros pitagóricos. Como se sabe,essa noção, tal como aquela (ou aquelas?) em vigor nouniverso da prática, ainda que por outras razões, nãoera, a rigor, antigeométrica. Ao contrário, a noção denúmero estava profunda e inalienavelmente ligada à deponto, isto é, à de configurações geométricas de pontos.Embora, contrariamente a outros ensinamentos dos pri-meiros pitagóricos (como, por exemplo, a teoria relativaaos números pares e ímpares), não tenha restado nenhumvestígio dessa “aritmética figurada” nos Elementos de Eucli-des, não se pode dizer que ela tivesse sido “superada” –e por essa razão também abandonada – pelo surgimentode uma nova concepção de número no terreno teórico.Prova disso é que essa tradição continuou viva durantetoda a Idade Média em virtude, principalmente, dotrabalho dos filósofos neoplatônicos.

Do mesmo modo como antes de Stevin co-existiram diferentes concepções de número, o mesmopode ser dito em relação à época posterior à de Stevin, emesmo na atualidade. Não se pode, por essa razão,afirmar, ou mesmo supor, que a tradição platônico-aristotélico-euclidiana tenha desaparecido devido ao surgi-mento de outras concepções supostamente “superiores” oumais “engendradoras” de novos conhecimentos. Bastaria,por exemplo, revisitar os Fundamentos da Aritmética deGottlob Frege para se convencer da existência e convi-vência de múltiplas concepções de número em plenoséculo XIX. A devastadora crítica feita por Frege a StuartMill, nesta obra, nos mostra como a concepção aristotélica,de natureza empirista, sobrevive no modo como Mill delase apropria. Por outro lado, a própria concepção de númerode Frege distingue-se da defendida por Stevin, e não épor essa razão que ela deixa de ser também “operatória”.

A própria concepção de número apresentadapor Aleksandrov et al. (1985), em pleno século XX,resgata, em certo sentido, a concepção de Mill e, porconseguinte, insere-se na tradição empirista clássicainaugurada pela concepção aristotélica de número.

Desse modo, é possível afirmar que emboranovas concepções apareçam e outras desapareçam – eoutras ainda, não tenham sido identificadas ou nunca oserão – no curso da história, cada momento da filogê-nese é sempre pluriconceptual, e, assim sendo, torna-sebastante questionável interpretar o desenvolvimentohistórico de uma idéia matemática em termos de umasucessão bem comportada e hierarquizada de concep-ções acerca dessa idéia.

Uma vez explicitada essa argumentação emfavor da coexistência de mais de uma concepção denúmero no mundo grego antigo e no mundo ocidentalpós-antigo – antes e após o advento da concepção deStevin –, concepções estas que nem sempre comparti-lhavam das mesmas características daquelas presentesna tradição platônico-aristotélico-euclidiana, é oportunoperguntarmo-nos ainda se todas elas envolveriam algumgrau de abstração, graus diferenciados de abstração oumesmo tipos diferentes de abstração para que pudessemter surgido no plano filogenético. Ora, não foi o próprioPiaget quem defendeu o ponto de vista de que, noplano psicogenético, a construção da noção de númeronatural por parte do sujeito envolveria necessariamentea intervenção da operação mental de abstração reflexiva?Se isso é verdade, e se a análise psicogenética (comopensam Piaget e García) pode e deve servir de base paraa análise histórico-crítica, como seria possível imaginarque alguma concepção de número, por mais primitivaque fosse, pudesse ter surgido no plano filogenético sema intervenção da abstração reflexiva? Se assim é, não teriasido apenas a concepção de Stevin a gozar desse privi-légio e não seria o mecanismo da abstração reflexiva, ou“abstração simbólica” como prefere Waldegg, acaracterística que a distinguiria das demais concepçõesque a antecederam, ou mesmo das que a sucederam. Senela está presente uma certa consciência da natureza ouda possibilidade operatória com os símbolos numéricos,isso não advém do fato de ela revelar um grau deabstração superior em relação à concepção platônico-aristotélico-euclidiana ou a outra qualquer, mas sim ànatureza do próprio sistema de numeração indo-arábicoque o Ocidente herdara do Oriente, o qual, contra-riamente aos sistemas de numeração que vigoraram naAntigüidade e na Idade Média Ocidental, era, de fato,um sistema operatório; isto é, que trazia em si a possibi-lidade da realização de operações sobre os própriossímbolos do sistema, sem que fosse necessário recorrer-seao ábaco como instrumento mediador. A rigor, o grande“salto conceitual”, a grande “mudança qualitativa” deveria,portanto, ser atribuída aos hindus e não a Stevin. Issoporque foram eles que não só conseguiram construirum sistema de numeração de fato operatório, como foramtambém os construtores dos primeiros algoritmos (paraas quatro operações fundamentais) da história, para cujoscálculos o ábaco mostrava-se totalmente supérfluo.

Por sua vez, o contexto econômico da Europarenascentista e pós-renascentista, no qual a políticamercantilista impelia os homens a romperem com aantiga tradição da navegação costeira e a lançarem-se aomar aberto em busca de novas rotas comerciais e de novasterras, colocava também novos desafios ao mundo doconhecimento e da tecnologia. A resposta a estes

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desafios foi a produção de novos conhecimentos, dentreeles, o da geometria analítica. Pensamos que um contextoque já dispunha de uma geometria sintética herdada dosgregos, de um sistema de numeração operatório herdadodos hindus, de uma trigonometria e de uma álgebraherdadas dos árabes (conhecimentos estes apropriadoscom outras intenções e dentro de outras condições) e noqual havia a intenção (e a necessidade a ela associada) de secolocar o mundo em mapas, deveria também ser invocadopara explicar o surgimento de uma nova concepção denúmero ajustável e ajustada a esse novo ambientepolítico-econômico e cultural.

Se a dicotomia entre número e grandeza, presentena concepção platônico-aristotélico-euclidiana de número,fosse algo a ser superado irreversivelmente por força deuma inelutável e inexplicável sucessão previsível e hierarqui-zada de concepções descontextualizadas no tempo, comoexplicar o fato de, no final do século XIX, essa dicotomiavoltar a ser defendida (é claro que, em outros termos, poroutras razões, sob outras condições e com outras inten-ções) por matemáticos como Dedekind, por exemplo?

A intenção subjacente a essa nossa argumen-tação é a de meramente mostrar a possibilidade dediferentes leituras, associadas a diferentes perspectivasteóricas, no terreno da história das idéias matemáticas.Isso nos permite levantar um outro argumento emrelação às pesquisas ou ações pedagógicas baseadas naperspectiva teórica de Piaget e García: qual dessas leiturasa psicogênese espelharia ou deveria espelhar? Por querazões, e com que legitimidade, dentre as múltiplaspossibilidades interpretativas da constituição e transfor-mação de uma noção matemática na história, o “espelho”da psicogênese faria refletir exatamente aquela que colocacomo motor do desenvolvimento das idéias matemáticasna filogênese a ação de mecanismos de passagembaseados em operações cognitivas tais como abstraçõesreflexivas, generalizações completivas etc.?

Forma de se conceber a relação entre história,epistemologia e cognição matemática no

referencial teórico de Piaget e García

Logo no primeiro parágrafo da introdução dePsicogênese e história da ciência (Piaget; García, 1982), osseus autores enunciam duas das teses em favor das quaispretendem argumentar, quais sejam: 1) a da existência,tanto no plano filogenético quanto no psicogenético, deuma relação ou nexo, ainda que parcial, entre a formaçãodo conhecimento nos estádios mais elementares e omodo como ele se constitui nos estádios superiores; 2) ada subordinação da significação epistemológica adquiridapor uma idéia, conceito ou estrutura, nos estádiossuperiores de seu desenvolvimento, ao modo como os

mesmos teriam sido construídos, quer no plano filoge-nético, quer no psicogenético.

O fato fundamental que os autores pretendemressaltar com a primeira tese é o da existência de etapasseqüenciais e hierárquicas no processo de construção doconhecimento em ambos os níveis, e não meramente oda existência de momentos de avanços ou regressões,de continuidade ou descontinuidade (“rupturas episte-mológicas”) nesse processo, uma vez que, segundo eles,estes últimos elementos estariam presentes em tododesenvolvimento do conhecimento (Piaget; García,1982, p. 15). Com a segunda, os autores pretendemressaltar que o desenvolvimento do conhecimento, emambos os níveis, “resulta da iteração de um mesmomecanismo, constantemente renovado e ampliado pelaalternância de agregados de novos conteúdos e deelaborações de novas formas de estruturas” (Piaget;García, 1982, p. 10). Isso significa que, com a segundatese, pretendem argumentar em favor da existência deum mesmo modo de construção do conhecimento emambos os níveis, modo este que se repetiriaindefinidamente, nível por nível, e que seria passívelapenas de renovação e ampliação, mas não de mudançade natureza ou função. Desse modo, a segunda tese,embora diferente da primeira, nada mais faz do queexplicá-la, isto é, nada mais faz do que pôr em relevo oduplo fato que estaria na base da explicação das razõespelas quais as construções mais elevadas no plano daconstrução do conhecimento, tanto na filogênese quantona psicogênese, permaneceriam, ainda que parcialmente,solidárias àquelas de níveis mais primitivos: 1) integraçõessucessivas de novos conteúdos e de novas formas deestruturas; 2) atuação reiterada de um mesmo mecanismo(ou modo de construção do conhecimento) em níveisdiferentes, o qual (embora conserve a mesma natureza efunção nos diferentes níveis) renova-se devido a essa repe-tição (Piaget; García, 1982, p. 10). Os autores denominamesse mecanismo de “modo de construção do conhecimen-to por abstração reflexiva e generalização completiva”.

Uma vez explicitada a natureza dos mecanismosque permitem a passagem de uma etapa a outra doprocesso de construção do conhecimento, os autoresenunciam uma terceira, e talvez a mais importante, teseem favor da qual argumentam na obra. Trata-se dadefesa da existência de duas características relativas aesses mecanismos de passagem: 1) cada vez que essesmecanismos promovem uma superação/passagem paraum nível superior no plano cognitivo, aquilo que foisuperado/ultrapassado está, de alguma forma, integradono elemento superador, isto é, no elemento quepermitiu a superação; 2) são esses mecanismos quepromovem a passagem do nível intra-objetal (ou deanálise dos objetos) ao nível interobjetal (ou de estudo e

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análise das relações entre os objetos e dastransformações de um objeto em outro), e deste último,ao nível transobjetal (ou de construção de estruturas)(Piaget; García, 1982, p. 33).

Mas é a exploração do ponto de vista que semanifesta no esclarecedor prefácio escrito por Garcíaem co-autoria com Emilia Ferreiro, contido na ediçãocastelhana da Introducción a la epistemologia genética: elpensamiento matemático de Jean Piaget – no qual essesautores nos explicam a possibilidade vislumbrada porPiaget de compatibilizar os três métodos complementaresem epistemologia genética4 – que nos possibilitará atacarmais profundamente o problema que nos interessa aqui,qual seja, o modo como os autores que estamos exami-nando concebem a relação entre história, epistemologia ecognição matemática. A passagem seguinte evidencia omodo como Piaget e García concebem as relações entre ométodo psicogenético e o histórico-crítico:

Mas as relações entre o método psicogenético e o histórico-crítico têm também dado margem a equívocos sistemáti-cos. Piaget não pretende explicar a ontogênese a partir dasociogênese do conhecimento, nem o contrário; tampoucopretende sugerir que a ontogênese recapitula a sociogênese.Como explicar então as referências cruzadas, tãofreqüentes em suas obras epistemológicas, nas quais seconfrontam dados relativos à ontogênese do conhecimentocom dados relativos à história da ciência? O que interessaa Piaget é [...] encontrar um modelo geral explicativo dapassagem de um estado de menor conhecimento a outrode maior conhecimento; as comparações entre ambos ostipos de gêneses apontam para a consideração dos meca-nismos gerais de organização, desequilibração e re-equilibração. Por outro lado, a legitimidade da compa-ração se sustenta na demonstração de uma continuidadeentre o conhecimento “natural” ou pré-científico e o co-nhecimento científico. Finalmente, é preciso recordar que ométodo psicogenético não é privilegiado de início, mas a jus-tificativa para se recorrer a ele se deve à impossibilidadede se controlar experimentalmente as afirmações relativasà história da ciência e à impossibilidade de se remontaraos estados iniciais que precederam a ciência constituída(García; Ferreiro, in: Piaget, 1975, p. 13-14).

Para reforçar esse ponto de vista, García eFerreiro complementam o seu esclarecimento citando aseguinte passagem, do próprio Piaget, extraída do seuLógica e conhecimento científico:

Reconstituir o desenvolvimento de um sistema de opera-ções ou de experiências é, antes de tudo, estabelecer a suahistória, e os métodos histórico-críticos e sociogenéticosbastariam para se alcançar os fins epistemológicos

perseguidos caso pudessem ser completos, isto é, casopudessem remontar-se anteriormente à história das ciênciaspropriamente dita até à origem coletiva das noções, ouseja, até a sua sociogênese pré-histórica. Pelo fato dissoser impossível, uma vez que as noções científicas foraminicialmente extraídas das noções de senso comum, a pré-história das noções espontâneas e comuns pode continuarsendo, para sempre, por nós desconhecida. É por essa razão,portanto, que se torna conveniente completar o métodohistórico-crítico com os métodos psicogenéticos. (Piaget,apud García; Ferreiro, in: Piaget, 1975, p. 13)

É claro que, por um lado, não se poderiadiscordar da natureza das intenções primariamenteepistemológicas de Piaget; porém, por outro lado, seriapreciso dizer também que a natureza das teses em favordas quais Piaget e García argumentam os obriga, indireta-mente, e ainda que a contragosto, a tornarem-se simulta-neamente historiadores, epistemólogos e psicólogos.

No que se refere exclusivamente ao papel dehistoriadores por eles assumido, ao argumento centradona idéia de que seria necessário recorrer ao métodopsicogenético devido à impossibilidade de se exercerum controle experimental das afirmações relativas à históriada ciência, e particularmente à história da matemática,poderíamos contrapor a seguinte questão: de onde viriaa necessidade de se estabelecer um controle experi-mental para as afirmações da história? De onde viria anecessidade de os autores se imporem essa obrigação?Menos do que uma necessidade, vemos essa obrigação maiscomo uma opção, isto é, como um pressuposto de naturezapositivista, uma vez que essa obrigação só se manifestariapara aqueles historiadores que concebem a históriacomo uma ciência natural, à semelhança da física, daquímica, da biologia etc.

Sabemos hoje, porém, que o debate acerca doestatuto da história, que há muito vem sendo travado,tanto no terreno da filosofia da história quanto no daprópria história, está longe de chegar a um consenso (seé que um dia chegará). As posições se dividem,inicialmente, entre os que tendem a considerar a históriauma ciência e os que tendem a negar-lhe o estatuto dedisciplina científica sob o argumento principal de que oobjeto da história, diferentemente do das ciênciasempíricas (o qual está ligado a fenômenos universais enecessários), diz respeito a tudo que estaria circunscritoà esfera do singular, do irrepetível, do concreto e docontingente. Por outro lado, mesmo dentre aquelespontos de vista favoráveis à história como disciplinacientífica, as tendências atuais tendem a não assimilá-laàs formas de ser das ciências empíricas. Além disso, nãofoi o próprio Piaget quem, numa obra denominada Asituação das ciências do homem no sistema das ciências (Piaget,

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1970), procedendo a uma classificação das ciênciashumanas em quatro categorias, reservou às ciências his-tóricas não apenas um lugar distinto daquele reservado àsciências naturais, mas também um lugar distinto daquelesocupados quer pelas ciências nomotéticas, quer pelas ciênciasjurídicas, e quer ainda pelas disciplinas filosóficas? Quando,nesta obra, atentamos para o modo como Piaget expressaa distinção entre o que chama ciências nomotéticas e ciênciasjurídicas, salta aos olhos o contraste entre o estatutoatribuído às ciências históricas aí presente e aquele quese manifesta na passagem citada anteriormente. Ocupandoas ciências históricas, na classificação piagetiana, um lugardiferenciado em relação às nomotéticas e às jurídicas pelofato de, diferentemente destas, tomar como objeto“todas as manifestações da vida social no decurso dotempo” (Piaget, 1970, p. 22), parece-nos incompatívelpressupor a necessidade de as afirmações nesse terrenoterem de ser submetidas a um controle experimental.

O argumento mais óbvio e ao mesmo tempomais contundente que se poderia contrapor ao segundoargumento apresentado, nas passagens acima, por Piagete García – de que seria necessário recorrer ao métodopsicogenético devido à impossibilidade de remontar-seaos estágios iniciais que precederam a ciência constituída –é o de que essa suposta “impossibilidade” não tem sidosentida por historiadores das mais diferentes tendênciasque, pelo menos desde o século XIX, têm se dedicado aestudos pré-históricos nos quais se procura tematizarquestões relativas a épocas anteriores ao advento daconstituição das ciências, a despeito de todas as dificul-dades, sobretudo daquelas de natureza documental, quese manifestam nesses processos de constituição.

A história das idéias, e particularmente ahistória das idéias matemáticas, não foge a essa regra.São inúmeros os estudos relativos à matemática pré-euclidiana e mesmo pré-helênica; são também vários ostrabalhos de resgate histórico de civilizações antigas nasquais teria predominado uma forma pragmática de sefazer matemática. Outros trabalhos procuram compreen-der e explicar como teria sido possível o surgimento,entre os gregos, da própria matemática chamada “teórica”ou “científica”, isto é de uma matemática baseada emprincípios (Szabó, 1960). Esses trabalhos, de inegávelcunho científico, bem como aqueles, mais gerais,levados a cabo pelos historiadores não exclusivamentepreocupados com o campo da história das idéias, nãoprecisaram aguardar o método histórico-crítico paraserem realizados. Seus autores acabaram se remontandoa esses “estágios iniciais” armados de outros métodos erecursos advindos de ciências tais como a arqueologia, aetnografia, a química, a lingüística, etc.

Pensamos que também não se sustenta oargumento piagetiano de que a chamada “pré-história

das noções espontâneas” poderia continuar para sempredesconhecida devido ao fato de as noções científicasterem sido inicialmente extraídas das noções de sensocomum. Pelo menos não é isso o que nos têm mostradotrabalhos mais recentes no campo da história da mate-mática, como, por exemplo, os de Paulus Gerdes (Gerdes,1992), os quais têm penetrado e lançado luz, com o auxíliodo método etnográfico, sobre o surgimento histórico denoções geométricas em épocas muito anteriores àquelada constituição da matemática como disciplina científica.Acreditamos que a suposta existência de uma linha decontinuidade entre as noções espontâneas e as científicasnão constitui, mais do que outros, um obstáculo assimtão sério que pudesse impossibilitar ou paralisar o trabalhoe a curiosidade do historiador. Além do mais, não nosparece assim tão óbvio, como deixam transparecerPiaget e García, que tenha sido demonstrada a existênciade uma continuidade entre o que chamam conhecimentonatural, ou pré-científico, e o conhecimento científico. Sópara citar um exemplo, na própria noção de obstáculoepistemológico, desenvolvida por Bachelard, parece mani-festar-se a tese oposta, uma vez que este autor defendeuser a experiência primeira o primeiro e mais fundamentalobstáculo à constituição do pensamento dito científico.Dessa forma, ainda que possa haver continuidade entrea experiência cotidiana e a científica, é controvertidoque esta última possa constituir-se sem ruptura – totalou parcial – com a primeira. É oportuno ainda levantar asseguintes questões em relação a esse argumento de Piagete García: 1) Com base em que critérios seria possíveldemarcar nitidamente, tanto no plano filogenético quantono psicogenético, o pré-científico do científico? 2) Comoconceber, a rigor, o que chamam de conhecimento naturalou pré-científico? Seria um tipo de conhecimento queindependeria de algo como o contexto escolar, a influênciados adultos, a influência do contexto ou de qualquer outracoisa que pudesse ser esse “algo”? Qualquer que seja esse“algo”, poder-se-ia contra-argumentar afirmando-se quenunca existiu um tipo de conhecimento assim, isto é,exclusivamente pessoal, exclusivamente subjetivo, com-pletamente livre de algum tipo de condicionamento afim de que pudesse ser chamado natural.

Para se tentar melhor entender a que Piaget eGarcía estão se referindo quando utilizam expressõestais como conhecimento natural ou conhecimento pré-científico,vamos recorrer a uma outra passagem, não mais doPsicogênese, mas do Introdução à epistemologia genética: opensamento matemático, de Piaget. Nesta passagem, após oesforço feito por Piaget para justificar a necessidade dese complementar o método histórico-crítico com ométodo genético – com base em uma metáforabiológica5 que atribui a este último método a função deconstituir uma embriologia mental –, este autor sente a

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necessidade de dar um exemplo extraído da história damatemática, mais particularmente da história dos nú-meros, para esclarecer este necessário papel comple-mentador do método genético:

Contudo, dificilmente se obterá, unicamente a partirdesta história6 uma resposta unívoca à questãoepistemológica central de saber se existe uma intuiçãoprimitiva do número natural, irredutível à lógica, ou seo número é o resultado de operações mais simples. Arazão deste fracasso da investigação histórico-crítica seencontra seguramente no fato de que a estrutura mentaldaqueles que teorizam acerca do número ser umaestrutura adulta, que se remonta de Cantor ouKronecker a Pitágoras, ao passo que a idéia dequantidade apareceu neles anteriormente a toda reflexãocientífica: portanto, o que se tem que conhecer é oestado larvário da quantidade, isto é, o estado“nauplio”7 que explica o anafite adulto,8 e vemosque não resulta demasiado irreverente reclamar aqui aintervenção de uma embriologia intelectual poranalogia aos métodos da anatomia comparada. (Piaget,1970, p. 34, grifos nossos)

Esta passagem reflete, sem dúvida, a concepçãoque tem Piaget da história da ciência – e, maisparticularmente, da história da matemática – e daspossibilidades desse terreno da investigação histórica.Para ele, constituir a história de uma noção matemática,tal como a de número, implicaria efetuar uma análisecronologicamente regressiva das concepções acercadessa noção, defendidas pelos grandes matemáticosque, de algum modo, a tomaram como objeto deinvestigação. Mas onde se deteria essa busca regressivaque se iniciaria em Cantor e terminaria (terminaria?) emPitágoras? Qualquer que fosse a resposta a esta questão,visando à busca, na linha do tempo, de pontos cada vezmais anteriores, ela não satisfaria a Piaget. Isso porque,para ele, é sempre um adulto sábio (um anafite adulto) queantecede outro adulto sábio, e, dessa maneira, o problemade se saber o modo como essa noção ter-se-ia primiti-vamente imposto (a tal da intuição primitiva) a todo equalquer adulto sábio de qualquer época, continuaria,para sempre, sem resposta satisfatória. A nosso ver,entretanto, essa impossibilidade só se manifesta porquePiaget “biologiza” algo que só poderia ser explicadosatisfatoriamente recorrendo-se ao plano socioculturalde produção das idéias matemáticas. Pensamos que oresgate dessa intuição primitiva, isto é, desse estado larvário(ou seja, o estado do conhecimento natural ou pré-científico)das idéias, será, sempre e tão somente, a busca e aexplicação sempre controvertidas (e para a qual, portan-to, nenhuma resposta unívoca e consensual poderá ser

imaginada) das raízes, difusão, apropriação e filiaçõessocioculturais das idéias matemáticas, para o quenenhum método embriológico, nenhuma embriologia intelectualpoderá se mostrar eficaz. Recorrendo a uma analogia, osonho histórico-epistemológico de Piaget poderia serequiparado ao sonho político de Rousseau: à busca, emRousseau, do homem natural, do homem livre, isto é, de umhomem dessocializado, não submetido aos constrangi-mentos e condicionamentos invariavelmente impuros,contaminadores e corruptores do contexto social,corresponderia, em Piaget, a busca das idéias naturais, dasidéias pré-científicas, das intuições primitivas que estariamocultas em estruturas mentais hierarquizadas, hierarquiaesta que deveria, via método genético-embriológico, serpercorrida regressivamente até o estado náuplio. Trata-se,desse modo, de uma história embriológica das idéiasmatemáticas, para a qual o contexto sociocultural nãodesempenha qualquer papel significativo. É plenamentelegítima, portanto, a crítica que Rotman dirige a Piagetquando lhe contrapõe o argumento de que

todo o pensamento humano é composto e é inseparáveldos signos que supostamente o expressam, signos quenão são fenômenos naturais ou biológicos, mas aconstrução de distintas culturas em condições históricas esociais determinadas; e os signos ocorrem em sua formamais pura dentro da atividade matemática. (Rotman,apud Vuyk, 1985, v. II, p. 401)

Tendo em vista as considerações anteriores,não vemos por que razões o método psicogenéticogozaria de um privilégio especial em relação a outrospara se levar a cabo o empreendimento, com fins epis-temológicos, de constituição histórica do desenvolvi-mento de sistemas de operações ou de experiências.Pensamos ainda que os argumentos de Piaget e Garcíanão são suficientemente fortes para justificar um talprivilégio. A rigor, o método psicogenético poderia, nomáximo, ser encarado como um ponto de referência para arealização de um tal empreendimento, funcionando maiscomo uma fonte de levantamento de conjecturas a serempostas à prova com base em métodos propriamente his-tóricos de investigação, mas nunca como um complementoa esses métodos propriamente históricos e socio-genéticos, como acreditam Piaget e García. Isso porque,ainda que a meta epistemológica seja a de se “encontrarum modelo geral explicativo da passagem de um estadode menor conhecimento a outro de maior conhecimento”,quando o método psicogenético é posto em ação porPiaget e García, por mais que reclamem o contrário erotulem de equívocos os argumentos dos críticos, o quefazem, em última instância, é reduzir a explicação históricaàs explicações, dados experimentais e modelos teóricos

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da psicológica genética. Não se trata simplesmente,portanto, de meras referências cruzadas que “apontam paraa consideração dos mecanismos gerais de organização,desequilibração e reequilibração”, como acreditamGarcía e Ferreiro (Piaget, 1975, p. 13-14).

Para os objetivos a que visamos neste artigo, epara fundamentar a contra-argumentação feita acima(referente ao papel do método psicogenético napesquisa de natureza histórica) é relevante fornecer aquium exemplo da forma do método psicogenético operar,particularmente no terreno da história da matemática.São duas as obras nas quais, em algumas incursões, Piagetse apresenta como historiador da matemática, ainda que,em ambas, as suas intenções sejam epistemológicas.

Uma delas é a obra que vem sendo aquianalisada até agora – Psicogênese e história da ciência –,escrita em parceria com Rolando García; a outra éIntrodução à epistemologia genética: o pensamento matemático,publicada originalmente em francês em 1975. É destaúltima obra que vamos tomar o exemplo, uma vez que aleitura que nela se faz da história da matemática épraticamente a mesma da presente naquela escrita emparceria com García. É nela que se defende, pelaprimeira vez, a concepção piagetiana do modo trifásicode se subdividir a história da matemática, modo estetambém presente na obra Psicogênese e história da ciência. Eé nela também que se pode perceber a fonte na qualPiaget se inspirou para conceber essa subdivisão. Trata-se da obra intitulada O ideal científico dos matemáticos: naantigüidade e nos tempos modernos, escrita pelo historiadorda matemática Pierre Boutroux, na época professor doCollège de France, e publicada originalmente emfrancês, em 1920, sob o título L’idéal scientifique desmathématiciens: dans l’antiquité et dans les temps modernes.

Nesta obra, Boutroux também subdivide a históriada matemática em três etapas: a etapa contemplativa, aetapa sintética e a etapa analítica, segundo o critério dosideais orientadores da atividade matemática – ou, emoutras palavras, das concepções acerca da matemática –que, segundo ele, teriam prevalecido entre osmatemáticos em cada uma dessas etapas.

Segundo este autor, entre os gregos, teriaprevalecido uma concepção contemplativa da matemática, e amotivação principal que teria orientado a atividadeespeculativa no terreno da matemática teria sido o idealda beleza e da harmonia das propriedades numéricas egeométricas. Com Descartes, uma nova forma de seconceber a natureza da verdade matemática teria surgido.Embora para Descartes, tal como para os gregos, averdade matemática estivesse baseada na idéia de intuição,não se tratava mais de uma intuição contemplativa e sim deuma intuição concebida como poder criador do espírito,uma vez que à intuição caberia o papel de desarticular

ou decompor as totalidades em seus elementos simples, osquais seriam, por sua vez, recompostos operacionalmentepor meio das ferramentas proporcionadas pela álgebra.

Para Boutroux, a etapa sintética da matemáticateria sido, portanto, aquela na qual se constituiu aálgebra como uma ciência teórica, a geometria analíticae o cálculo infinitesimal. Ele inclui também, nesta etapa,o desenvolvimento dos números complexos, a descobertados grupos de substituição, o surgimento das geometriasnão-euclidianas e o movimento de constituição da lógicasimbólica. O ideal orientador da atividade matemática,nesta etapa, teria sido o da construção operatória indefi-nida e autônoma, uma vez que a matemática teriapassado, segundo ele, a ser concebida como umaconstrução operatória de natureza algébrico-lógica.

A revolução na matemática operada por EvaristeGalois teria marcado, para Boutroux, o surgimento daterceira etapa no desenvolvimento histórico da matemá-tica. O que distinguiria essa etapa da anterior teria sido,segundo ele, o desenvolvimento de uma nova consciênciaem relação ao papel desempenhado pelas operações naprática de investigação matemática. Contrariamente àprimeira etapa (na qual os matemáticos teriam selimitado a deduzir) e contrariamente à segunda etapa (naqual supunham ser possível, além de deduzir, tambémconstruir livremente a matemática em sua totalidade, combase no uso desenfreado da noção de operação) naterceira etapa, devido à descoberta da existência detotalidades operatórias governadas por suas próprias leise caracterizadas por uma certa objetividade intrínseca, ter-se-ia gradativamente formado a consciência de que essaliberdade não era assim tão irrestrita. Tendo em vista aformação dessa nova consciência, Boutroux chega àconclusão de que o matemático, em sua atividade, nãose limitaria a deduzir e a construir, mas também arealizar algo mais. Deveria haver um terceiro ideal orientadore caracterizador do pensamento matemático, o qualBoutroux não precisa muito bem, mas que poderia sercaracterizado como uma resistência crescente às síntesesoperatórias, e que apontaria, de algum modo, para algosituado além do domínio das operações. Para explicar estaresistência que os fatos matemáticos oporiam à vontadedo sábio, Boutroux vê-se obrigado “a supor a existênciade fatos matemáticos independentes da construçãocientífica”; vê-se forçado a “atribuir uma objetividadeverdadeira às noções matemáticas”, objetividade quedenomina “intrínseca para indicar que ela não seconfunde com a objetividade relativa ao conhecimentoexperimental” (Boutroux, 1920, p. 203).

Piaget irá ver com bons olhos essa bela leituraque Boutroux faz da história da matemática. Entretanto,não irá concordar inteiramente com ela. Deverá mantero esquema trifásico proposto por Boutroux; deverá

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ainda concordar com o modo como Boutroux caracterizaas duas primeiras fases, reinterpretando-as, porém, à luzde um critério que Piaget denomina “tomada de cons-ciência das operações”. De fato, em vez de colocar aênfase, como o faz Boutroux, no aspecto construtivo(em detrimento do aspecto operatório) que envolve oideal dos matemáticos na segunda fase, Piaget deverácaracterizá-la como a etapa da tomada de consciênciahistórica das operações, e onde Boutroux vê a presençacaracterizadora dos aspectos contemplativo e dedutivona primeira etapa histórica da atividade matemática,Piaget vê a ausência parcial de tomada de consciênciahistórica das operações (Piaget, 1970, p. 249). De fato,em relação a esta primeira fase, assim se expressa Piaget:

Na matemática dos antigos, o número é uma realidadeque existe em si mesma, independentemente das opera-ções que permitem sua formação, e as operações deadição, de duplicação e de divisão ao meio eram por elesconsideradas como a expressão das relações que eterna-mente existem entre os números. Estas relações permi-tem que o matemático as obtenha e correspondem assima um procedimento subjetivo de construção, análogo aosprocedimentos que intervêm nas figuras geométricas.Contudo, nem em um caso e nem no outro a operação éconsiderada construtiva no pleno sentido do termo: éconstrução sem criação, enquanto atividade do sujeito, ecriação sem construção, enquanto relação entre osobjetos. (Piaget, 1970, p. 250)

Mas o ponto de divergência principal entrePiaget e Boutroux diz respeito ao modo de se inter-pretar a terceira fase do desenvolvimento histórico damatemática. Enquanto Boutroux vê nela um momentode ruptura radical com a fase anterior, ruptura esta que semanifestaria em termos de resistência dos matemáticosàs sínteses operatórias, de uma ultrapassagem das fronteirasdo operatório em direção a uma espécie de domínio trans-operatório (esse termo não é empregado por Boutroux, esim por Piaget) que Boutroux não chega a visualizar comclareza; Piaget, ao contrário, a concebe como um momentode continuidade em relação à etapa anterior, isto é, comoum momento de manifestação ainda mais decisiva da realidadedas operações (Piaget, 1970, p. 252). Para explicar este pontode vista alternativo que vê continuidade onde se poderiatambém ver ruptura, Piaget, mais uma vez, invoca a noçãode tomada de consciência. Mas se a passagem da primeirapara a segunda etapa tinha sido explicada com base natomada de consciência das operações, que outro tipo detomada de consciência, capaz de expressar uma manifes-tação ainda mais decisiva da realidade das operações,deverá ser por ele invocado na passagem da segundapara a terceira etapa? Trata-se, agora, da

tomada de consciência dos sistemas de conjunto queconstituem as operações, isto é, das conexões necessáriasentre as transformações operatórias por oposição aomanejo de algumas operações isoladas. (Piaget, 1970,p. 253)

Esse argumento permite a Piaget ver, naterceira etapa proposta por Boutroux, um prolongamentoda atividade construtiva do pensamento matemático, umavez que, para ele,

a tomada de consciência [...] constitui em si mesma umaconstrução: só se toma consciência de um mecanismointerior quando esse mecanismo é re-construído em umanova forma que o desenvolve explicitando-o, e quandotodo o processo reflexivo é, em si mesmo, acompanhado porum processo construtivo que continua, reconstruindo-o, omecanismo em relação ao qual se produz uma tomadade consciência. (Piaget, 1970, p. 255)

Uma vez explicitado o ponto de vista de Piaget,devemos nos perguntar qual é a sua intenção em resgatar oponto de vista filosófico de Boutroux acerca do desen-volvimento histórico da matemática, reinterpretando-odessa maneira. Não resta dúvida de que a sua intenção éepistemológica. Pretende, com isso, mostrar como umanova leitura – mais original e esclarecedora do que asnormalmente feitas – do desenvolvimento histórico damatemática poderia ser proposta e fundamentada à luzda análise de experimentos realizados com crianças daatualidade. Em outras palavras, pretende nos mostrar aeficácia e o poder explicativo do método psicogenético. Sóque essa intenção, é claro, nunca aparece explicitamentenas duas obras a que estamos nos referindo. Além disso, omodo como os diferentes capítulos são ordenados nessasobras acaba sempre sugerindo ao leitor que a análisehistórica e/ou epistemológica teria precedido e fornecidoelementos explicativos à compreensão da análise psico-genética propriamente dita, quando o contrário é que sepassa. De fato, em Psicogênese e história da ciência, o capítulodenominado “O desenvolvimento histórico da geometria”é sucedido imediatamente pelo capítulo denominado “Apsicogênese das estruturas geométricas”, e o capítuloseguinte, no qual se propõe uma releitura da história da ál-gebra, é sucedido imediatamente por um outro denominado“A formação dos sistemas pré-algébricos”. Mas essaordenação, que poderia levar a equívocos, não consegueocultar o fato de que, a rigor, teria sido a análise psicoge-nética que teria conduzido Piaget e Garcia à releitura dahistória da geometria e da álgebra e não o contrário.

No caso do livro Introdução à epistemologia genética:o pensamento matemático, dentre os três capítulos referentesao estudo do pensamento matemático, os dois primeiros

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são dedicados, respectivamente, à análise de diferentespontos de vista epistemológicos acerca da construçãooperatória do número e do espaço. O terceiro tambémse configura como um capítulo no qual se processa umaabordagem de natureza epistemológica acerca das rela-ções entre o conhecimento matemático e a realidade. Énos dois primeiros subitens desse terceiro capítulo quePiaget realiza (com intenções epistemológicas, é claro)as suas incursões no terreno da história da matemática:no primeiro, fornece a sua interpretação da matemáticagrega e no segundo, da matemática no período moderno.O aspecto que mais se sobressai na leitura históricacomparativa desses dois períodos, feita por Piaget, éque é sempre por insuficiência em relação à matemáticados modernos que a matemática grega é caracterizada.De fato, para Piaget, por mais diversificados que tenhamsido os problemas levantados e enfrentados pelos matemá-ticos gregos, o campo de investigação matemática no qualinvestiram teria sido muito mais limitado do que aquelesobre o qual operaram os matemáticos dos temposmodernos. Isso porque, diferentemente destes últimos,os matemáticos gregos teriam chegado a desenvolverapenas a aritmética, um único tipo de geometria, umaespécie limitada de álgebra (que só utilizava símbolosabreviados para expressar as potências) e uma logística(ou arte de calcular) e geodésia (ou arte de mediçãogeométrica concreta) com fins estritamente utilitários.Além disso, embora Zenão, ao levantar a polêmica emtorno de seus paradoxos, tivesse se aproximado doproblema referente às séries infinitas, a sua intençãoteria sido meramente negativa e crítica, ao passo que,entre os modernos, o infinito desempenharia um papelconstrutivo; embora Antifón, Eudoxo e Arquimedes, aodesenvolverem o método da exaustão, tivessem seaproximado do Cálculo Infinitesimal, os procedimentos poreles utilizados estavam sempre subordinados ao métodogeométrico; embora os geômetras gregos conhecessemefetivamente um grande número de curvas, as chamadascurvas mecânicas não chegaram a ser consideradas porEuclides em seus Elementos, nos quais apenas as figurasconstrutíveis mediante régua e compasso são reconhe-cidas; embora Euclides tivesse feito uso da noção dedeslocamento nas decomposições e recomposições defiguras que realiza, inexiste em seus Elementos uma teoriado deslocamento; embora os pitagóricos tivessem desco-berto os números irracionais mediante a generalizaçãode operações de raiz quadrada, não teriam chegado aestabelecer a legitimidade deste conceito enquantogeneralização operatória do conceito de número.

Os exemplos poderiam ser multiplicados. Nossaintenção, porém, é unicamente a de ressaltar que essacaracterização por insuficiência não nos parece um proce-dimento dotado de legitimidade histórica, uma vez que,

por meio desse mecanismo de comparação das caracterís-ticas da matemática de um determinado momento históricocom as da matemática de uma outra época que lheantecedeu, nada mais se faz do que projetar indevidamenteo presente no passado, acusando uma civilização de nãoter sido o que uma outra que lhe sucedeu o foi, ouentão, cobrando de uma civilização mais do que aquiloque ela de fato realizou ou poderia ter realizado. Emnenhum momento se pergunta, por exemplo, a respeitodas razões pelas quais a matemática grega foi o que foi, ouentão, a respeito das razões propriamente sociais dessascaracterísticas singulares assumidas pela matemática grega e dasopções que foram feitas, dentre outras possíveis, dentrodaquele contexto. Nesse sentido, se mostra pertinente acrítica que faz Rotman a esse modo ilegítimo dométodo psicogenético operar no domínio da históriadas idéias matemáticas:

A descrição que faz Piaget da história da matemática étotalmente incorreta uma vez que sua análise repousaem uma visão completamente individualista da criativi-dade matemática que nega qualquer papel sério àlinguagem ou ao contexto social do pensamento [...]Analisando este desenvolvimento só podemos concluirque a história da ciência não mostra um desenvolvimentolinear para o progresso, como crê Piaget, mas umaramificação em várias direções, algumas das quaisconquistam esse progresso e outras não. A concepçãoerrônea de Piaget se deve ao fato de que parte do presente,retrocedendo por análise regressiva, o que o leva a fazeruma confusão entre causa e antecedente e, portanto, aesquecer-se de outras possibilidades. (Rotman, apudVuyk, 1985, v. II, p. 401-402)

De fato, essa concepção individualista e inter-nalista da história da matemática levará Piaget a afirmarque a esterilidade e a decadência da matemática grega noperíodo alexandrino, após a plenitude atingida anterior-mente, não poderia ser explicada pelas circunstânciassociais, isto é, com base em causas externas, e sim internas.Deverá defender, contrariamente a A. Reymond – quesugeriu, para explicar esse fato, a hipótese do impactoparalisante instaurado pela adoção dos radicais princípioseleáticos subjacentes à uma lógica que, ao renunciar aosconceitos de movimento e de infinito, tornava-se maisexigente do que a nossa –, que tal decadência seexplicaria pela adoção de

uma lógica mais limitada que a dos modernos, por sermais estática e menos apta para assimilar os dados doreal, por ser menos conscientemente operatória. (Piaget,1970, p. 245)

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A nosso ver, entretanto, o que faz Piaget écontrapor uma explicação internalista a uma outraigualmente internalista. A questão central, porém, nãoreside em saber se a lógica dos antigos, comparativamenteà dos modernos, era mais ou menos exigente, mais oumenos limitada, mais ou menos operatória, mas sim emse perguntar sobre que fatores surgidos em que contextosacabaram tornando possível o surgimento dessas lógicasdiferenciadas, fazendo com que as mesmas assumissemcaracterísticas e poderes diferenciados; e por que razõesa natureza da lógica subjacente à atividade matemática,por si só, a despeito de outros fatores possíveis, teriatido o poder de levá-la à esterilidade e à decadência.Pôr-se estas ou semelhantes questões teria obrigadoPiaget, é claro, a suspeitar da possibilidade de influênciade fatores contextuais externos sobre a atividadematemática. Mas o método psicogenético-embriológiconão se interessa por fatores explicativos dessa natureza.Em vez disso, Piaget deverá levantar, a fim de explicaraquilo a que se refere como “uma das mais interessantesexperiências epistemológicas – a história da matemáticagrega”, a seguinte conjectura:

seu pensamento formal não alcançaria em absoluto odesenvolvimento ilimitado que se poderia esperar porcausa deste defeito de tomada de consciência, e, emconseqüência, devido aos limites impostos pelo realismonele originado. (Piaget, 1970, p. 246)

Essa conjectura leva-o então a uma outra: à deque a suposta supremacia da concepção realista emrelação à idealista na matemática grega poderia serexplicada mediante mecanismos psíquicos elementares –conjectura esta que Piaget se obriga, portanto, adefender (Piaget, 1970, p. 246). É a partir de então quese percebe, com mais clareza, o reducionismo denatureza psicológica de que se reveste a explicaçãobaseada no método psicogenético, uma vez que, paraargumentar em favor desta última conjectura, Piaget vaifazer apelo ao conjunto de estudos realizados eresultados obtidos relativos ao desenvolvimento mentalda criança afirmando que

o estudo do desenvolvimento mental demonstra, com todaa clareza necessária, não só que a delimitação comu-mente obtida entre o sujeito e o objeto é essencialmentevariável de um nível ao outro, como também que eladepende de um fenômeno constante ou constantementerenovado: a dificuldade para tomar consciência dosmecanismos internos da atividade intelectual, emparticular quando estes se apresentam sob formasadquiridas recentemente. (Piaget, 1970, p. 246)

Os aspectos do desenvolvimento mental queserão postos em destaque nessa argumentação dizemrespeito ao grau de interiorização do pensamento e aomodo como se estabelecem as relações entre o sujeito eo objeto ao longo dos estágios sensório-motor dasoperações concretas e das operações formais, cujotranscurso seria marcado por um momento inicial detotal ausência de consciência e indiferenciação entre osujeito e o objeto, até um momento final de tomada deconsciência e de diferenciação entre os mesmos. Com aseguinte argumentação psicogenética, Piaget acredita terdemonstrado a tese histórica que defende uma naturezaincompleta, realista e parcialmente consciente dopensamento formal dos gregos:

A projeção pitagórica dos números inteiros nas coisaspode ser uma herança do nível das operações concretas.Contudo, se nos referirmos às transformações contínuasdos diversos modos de realismo no transcurso dos níveisprecedentes, o realismo geral do pensamento dos matemá-ticos gregos ulteriores, mesmo sendo formal, comporta amais natural das explicações: ao ser o realismo aexpressão de uma indiferenciação entre o sujeito e oobjeto e ao efetuar-se a diferenciação entre ambos só deforma progressiva, o sujeito pensante, quando alcançaum novo grau de elaboração intelectual, não consideranunca, em um primeiro momento, que atua medianteseu pensamento; ao contrário, antes de apreender reflexi-vamente os mecanismos, sempre começa por tomarconsciência dos resultados desse pensamento. Toda afilosofia do conhecimento dos gregos assinala esta primaziado objeto, por oposição ao “cogito” que inaugura a reflexãoepistemológica moderna: desde o suposto “materialismo”dos pré-socráticos até a reminiscência platônica dasverdades supra-sensíveis, desde a lógica ontológica deAristóteles até a intuição platônica, o pensamento gregosempre considerou que apreendia ou contemplava reali-dades já constituídas, sem descobrir que operava sobreelas [...] compreende-se, então, a verdadeira causa psico-lógica do caráter estático do raciocínio matemático grego,inclusive em seus próprios criadores, cujo dinamismointelectual contrasta de forma tão surpreendente com aimobilidade da visão das coisas a que chegaram.(Piaget, 1970, p. 248)

Ainda que a caracterização filosófica da natu-reza da matemática grega feita por Piaget possa serhistoricamente defensável, a explicação psicológica quecoloca na base dessa caracterização histórica pode sercompletamente questionada. Isso porque, com base noparalelismo ilegítimo e completamente controvertidoentre psicogênese e filogênese, no qual a filogenêse éconcebida como espelho da psicogênese, a matemática

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grega é vista como a infância – necessária, mas incompleta– da matemática adulta, civilizada e necessária, desen-volvida pelos modernos. Em outras palavras, os matemá-ticos gregos passam a ser vistos ilegitimamente comocrianças em relação aos adultos de nossa época;conseqüentemente, toda a matemática grega passa a servista como a infância necessária e lacunar a ser atraves-sada para a constituição da matemática adulta contem-porânea. Essa transposição ilegítima para o terreno dahistória das idéias matemáticas do pressuposto ilegítimo(e de claras repercussões ideológicas) – tantas vezesdenunciado por antropólogos, sociólogos e psicólogos– de estabelecimento de paralelismos e analogias entre ainfância humana e os estágios primitivos das sociedadeshumanas, por um lado, e a maturidade humana e osestágios civilizatórios das sociedades humanas poroutro, pode ser detectada explicitamente na seguintepassagem de Piaget, na qual ele se refere ao duplo avanço(acompanhado de uma espécie de retorno ao realismo)conquistado pelas crianças, em seu desenvolvimentomental, representado pela diferenciação dos significantescoletivos (signos verbais) ou individuais (imagens) e assignificações elaboradas graças a esses significantes:

Desta maneira, as crianças e os primitivos imaginamque os números estão nas coisas e apresentam umaexistência exterior independente do sujeito que fala (oque determina os tabus ligados a alguns númerossagrados, etc.); os sonhos são imagens dadas material-mente e que podem ser observadas da mesma formacomo se “vê” os objetos; [...]. Em resumo, o sujeito e oobjeto são separados de forma diferente do modo como ofaz o adulto civilizado. (Piaget, 1970, p. 247,grifos nossos)

Essa analogia entre filogênese e psicogênese tam-bém é vista por Bkouche como duplamente redutora,quer sob o plano da psicogênese como sob o da filogênese:

A analogia piagetiana repousa sobre a hipótese daexistência de estruturas psicológicas profundas queregem, via mecanismos de acomodação e assimilação, oato de conhecer, constituindo o que hoje se chama acognição. O aspecto problemático da construçãocientífica é assim eliminado, reduzindo-se unicamente àsinterações entre um sujeito cognoscente objetivado comoconjunto de processos cognitivos e o mundo exterior,sendo o conjunto de processos cognitivos, ele mesmo,organizado pela teoria dos estádios, a qual dá conta daanalogia entre a gênese dos conhecimentos no indivíduo eo desenvolvimento histórico da ciência. Desse modo, osujeito cognoscente deixa de existir enquanto sujeito, pelomenos enquanto sujeito consciente, uma vez que se

considera que o sujeito não é mais do que um conjuntode processos em interação com um meio que o rodeia.Analogamente, a história não é mais do que a descriçãode um conjunto de interações que conduzirão, mais oumenos necessariamente, ao estado atual dos conheci-mentos, o que reenvia a um aspecto teleológico quepoderia ser situado na interseção de Hegel e de Darwin.Nesse sentido, a epistemologia genética elimina o sujeito,tanto o sujeito individual quanto o coletivo, mas essetalvez seja o preço a ser pago pelo fato de se quereratribuir à epistemologia o estatuto de cientificidade.(Bkouche, 1997, p. 36-37, grifos do autor)

Um outro tipo de argumento contrário à leiturapiagetiana da história da matemática é o que nos ofereceRotman com base na natureza social e pública da constitui-ção das verdades matemáticas, em detrimento à ênfaseposta por Piaget, por influência de Kant, no aspecto danecessidade que supostamente governaria o curso doprocesso construtivo interno da matemática pelo sujeito,seguida de uma descentração necessária dessa construçãoindividual através da cooperação com outros:

O erro central do estruturalismo de Piaget é a crença deque é possível explicar a origem e a natureza dasmatemáticas com independência dos problemas justifica-tivos não estruturais de como se validam as afirmaçõesmatemáticas [...]; é igualmente razoável supor, comefeito, que a coordenação de pontos de vista é umaquestão de argumento explicitamente justificado sobre asentidades públicas, e não, como insiste Piaget, umproblema das necessidades internas que operam dentrode uma mente individual. (Rotman, apud Vuyk,1985, v. II, p. 402)

Um argumento bastante esclarecedor de Bkouche,contrário a essa forma de inserção piagetiana na históriada matemática, é o de que, em Piaget,

a história é reconstruída em função das necessidadesinternas da epistemologia genética ao mesmo tempo emque ele explicita uma teoria psicológica do conhecimentoque se adapta a esta história reconstruída. Poder-se-iadizer que é o estado do conhecimento matemático contem-porâneo que o força a construir uma história e umapsicologia compatível com esse estado, como se esse estadotivesse necessidade de ser legitimado pelas consideraçõespsicológicas ou epistemológicas. (Bkouche, 1997, p. 38)

A nosso ver, esse tipo de leitura histórico-epistêmica do desenvolvimento das idéias matemáticasincorre, finalmente, no equívoco de se pensar que se fazgrande avanço em se acrescentar às interpretações

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históricas não-lineares que, no terreno da história dasidéias, ressaltaram o papel das descontinuidades (comoé o caso da de Foucault) e/ou das rupturas epistemo-lógicas (como é o caso da de Bachelard), uma outracaracterística julgada fundamental, qual seja, a da existên-cia de etapas seqüenciais e hierárquicas no processo deconstrução do conhecimento. Isso porque, no nossomodo de entender, nem uma nem outra dessas caracterís-ticas consegue atacar em profundidade um dos problemascentrais que perpassa o terreno da história das idéias naatualidade, qual seja, o da natureza da explicaçãohistórica propriamente dita. Se ter afirmado e defendido(contra o cômodo e harmonioso pressuposto da históriacontínua) a existência de rupturas epistemológicas, deavanços e recuos e de descontinuidades no processo deprodução e circulação das idéias foi, de fato, um avanço,o desafio imediato que se coloca a toda históriaconstruída com base nesse pressuposto alternativo é ode explicar não apenas a natureza dessas descontinuidadese rupturas, como também por que elas ocorrem. E nonosso modo de entender, Piaget e García equivocam-sequando pensam que um princípio tão abstrato einternalista como o da atuação reiterada do mecanismoda abstração reflexiva tenha o poder de, por si só, darmobilidade e circulação ao jogo produtivo das idéiasmatemáticas e de introduzir as novidades nesse terreno.Mais do que uma verdadeira explicação histórica, opressuposto da atuação reiterada do mecanismo daabstração reflexiva deveria, ele próprio, receber umaexplicação histórica. Dever-se-ia então perguntar: quefatores propriamente históricos poderiam explicar aexistência de um tal princípio? Por que teria ele acaracterística de atuar de forma reiterada? Por que teria eleo poder de dar mobilidade às idéias e de criar as novidadesno plano da produção do conhecimento? Por que esseprincípio divide a história das idéias em exatamente trêsfases, e não em mais ou menos fases? Por que essasfases devem ser hierarquizadas? O que atestaria asuperioridade da fase transobjetal em relação às que lheantecedem? Só ao se colocar e se tentar dar respostas aquestões dessa natureza, um tal tipo de interpretaçãopoderia aproximar-se daquilo que constitui atualmente apreocupação e a prática efetiva do historiador.

Este tipo de história das idéias matemáticas,inteiramente estruturada e internalista, como o propostopor Piaget e García, aproxima-se bastante do tipo de históriafilosófica inaugurado por Hegel, na qual a um princípioabstrato externo e trans-histórico (isto é, ao qual não édada qualquer explicação propriamente histórica e que, nocaso de Piaget e García, nada mais é do que a projeção,na filogênese, de certos mecanismos e operaçõesmentais reveladas na psicogênese) – seja ele chamado oespírito objetivo, o absoluto, as leis da lógica dialética, os mecanismos

mentais de passagem, tais como abstração reflexiva egeneralização completiva, etc. –, é dado o poder exclusivode “explicar” o complexo e não legislável processo deprodução cultural das idéias. As palavras seguintes de PaulRicoeur ilustram perfeitamente bem o quão afastado estáum tal modo de se trabalhar no campo da história dasidéias, do modo como a maior parte dos historiadorescontemporâneos concebem esse trabalho:

o que nos parece altamente problemático é o próprioprojeto de compor uma história filosófica do mundo queseja definida pela “efetivação do Espírito na história”[...] O que nós abandonamos foi o próprio território. Jánão estamos à procura da fórmula na base da qual ahistória do mundo poderia ser pensada como uma totali-dade efetivada. (Ricoeur, apud Chartier, 1990, p. 70)

A “fórmula” na base da qual a história das idéiasmatemáticas é pensada por Piaget e García, emboradiferente daquela pensada por Imre Lakatos (para quema “fórmula” das provas e refutações governaria a produçãoe o movimento autônomo das idéias matemáticas, cons-tituindo a lógica do processo de descobrimento dasmesmas), ou daquela pensada por Bento de JesusCaraça (para quem a criação de novidades na história damatemática é explicada, ainda que não exclusivamente,com base na “fórmula” hegeliana do movimento dialéticotrifásico que vai da tese à antítese e desta à síntese,devido a um suposto poder criador atribuído à lei danegação da negação), compartilha com estas a mesmacrença na existência de um princípio trans-históricoregulador, legislador, disciplinador e direcionador damarcha, supostamente evolutiva, das idéias matemáticas.

Para finalizar esta seção, gostaríamos de levantaralguns argumentos genéricos contrários a todo tipo deapropriação do referencial teórico desenvolvido por Piagete García e do modo como se concebe, em função dele,a relação entre a análise epistemológica e a cognição,para o plano da ação pedagógica e/ou da pesquisa emeducação matemática.

De nosso ponto de vista, seria inadequado háum primeiro equívoco que, inevitavelmente, acompanhaqualquer tipo de apropriação: o de correlacionar formashistórico-culturais de se conceber uma determinada idéiamatemática e etapas ou estágios do desenvolvimento históricodesta mesma idéia. Isso porque estariam implícitas ousubjacentes à noção de etapas – o mesmo não ocorrendocom a noção de formas histórico-culturais – as idéias dehierarquia e evolução. Além disso, quando se fala emestágios ou etapas, trabalha-se sempre – ainda que, muitasvezes, não se admita – com a suposição tácita de umdesenvolvimento já realizado ou terminado, ou então, quetenderia a realizar-se de uma maneira previsível. Portanto, a

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concepção etapista no terreno da história das idéias éconivente com as noções de evolução, previsibilidade,hierarquia, legalidade, linearidade e totalidade efetivada.

Um segundo recurso – a nosso ver, tambémcontrovertido – que geralmente acompanha as apro-priações pedagógicas do referencial de Piaget e García éo de se pensar que o desenvolvimento cognitivoespontâneo – isto é, independente dos condicionamentosescolares – e/ou a aprendizagem escolar de uma idéiapor parte de um estudante deveria guiar-se por etapassucessivas, sendo as posteriores mais complexas do queas antecedentes (ou então, as posteriores dependentes dasanteriores ou subordinadas, de algum modo, às antece-dentes). Essa concepção arquitetônica do desenvolvimentocognitivo do sujeito (desenvolvimento este que é sempresocial, não importando se recebe ou não a influência dosistema escolar) e/ou da sua aprendizagem na práticasocial escolar pode (e deve), igualmente, ser questionada,pois desconsidera o fato de o desenvolvimento cognitivoe a aprendizagem escolar serem sempre fenômenossocioculturalmente condicionados, portanto, influencia-dos pelas representações hegemônicas das idéias, e nãonecessariamente – e simultaneamente – por todas asrepresentações históricas das mesmas. As representaçõeshegemônicas são sempre, e em certo sentido, opçõesculturais e/ou contextuais feitas com base em certosvalores, na maioria das vezes difusos e não-conscientes.Neste sentido, as etapas se tornam quase sempre des-cartáveis e desprezíveis à luz da urgência dessas opções.Além disso, se essas supostas etapas fossem necessáriaspara o desenvolvimento cognitivo, ou para o processa-mento do ensino-aprendizagem escolar, como explicar ofato de eles continuarem ocorrendo, mesmo quando umaou mais dessas supostas etapas antecedentes terem sidomarginalizadas no processo de ensino-aprendizagem esco-lar de determinada idéia? A ausência de uma ou mais dessasetapas mostra que o indivíduo pode ser capaz de apropriar-se da idéia, do modo como ela se apresenta na etapa final,sem que seja necessário, para isso, apropriar-se tambémdaquelas outras julgadas necessárias e a ela antecedentes.

Há, finalmente, um terceiro aspecto controver-tido: o de se acreditar haver necessidade – qualquer queseja o fim alegado – de se estabelecer um paralelismoentre as etapas de ambos os tipos de desenvolvimentoou processos. Se um estudante, ou a maior parte deles,tem dificuldade em se apropriar de determinada idéiaque lhe foi apresentada à luz de determinada represen-tação, isso nem sempre se explica pelo fato de queoutras etapas do desenvolvimento histórico dessa idéia(ou outras representações dessa mesma idéia) lhetivessem sido sonegadas ou ocultadas. Muitas vezes, asdificuldades de aprendizagem poderiam ser explicadascom base na forma ou representação eleita por parte do

professor para lhe apresentar aquela idéia, ou então,com base em razões quaisquer de natureza extra-escolarou extrapedagógica ligadas ou à condição pessoal doestudante ou ao seu contexto sociocultural mais amplo.

Forma de se conceber a relação entre história,epistemologia e cognição no referencial teórico

de Gaston Bachelard

Tal como o fizeram Comte e Piaget, Bachelardtambém dividiu a história do pensamento científico emtrês etapas: a etapa pré-científica, a etapa científica e aetapa do novo espírito científico. A primeira etapa com-preenderia toda a Antigüidade Clássica, a Idade Média,o Renascimento e os séculos XVI e XVII, estendendo-seaté meados do século XVIII. A etapa científica teria tidoseu início na segunda metade do século XVIII e teriaterminado no início do século XX, momento em queteria se iniciado a última etapa. O marco de passagemda primeira para a segunda etapa se justificaria, pois,segundo Bachelard, na segunda metade do século XVIII,a ciência teria experimentado um desenvolvimentoconsiderável. O marco de passagem da segunda para aterceira etapa se deveria, segundo Bachelard, ao fato de,durante esse período, a razão ter atingido níveisinusitados de abstração, desafiando verdades tidas comoabsolutas e eternas, o que poderia ser atestado, sobretudo,pelo surgimento da Teoria da Relatividade de Einstein.

Mas se o critério subjacente à periodizaçãopiagetiana assenta-se, como vimos, na idéia de grau detomada de consciência das operações, para Bachelard ocritério subjacente diz respeito à natureza das explicaçõescientíficas. Se essas explicações tendem a se basear emimagens e analogias com objetos materiais e sensações,elas são incluídas por Bachelard na etapa pré-científica;caso elas atinjam o nível da intuição geométrica, 9 sãoincluídas na etapa científica e, finalmente, caso atinjam aforma abstrata, são consideradas pertencentes à etapa donovo espírito científico.

À primeira vista, poderia parecer que esteesquema trifásico proposto por Bachelard fosse apenasuma variante que poderia ser justaposta aos propostospor Comte e Piaget. Pensar dessa forma, entretanto,seria subestimar as características inovadoras e originaisintroduzidas por Bachelard no terreno da história e dafilosofia das ciências. De fato, diferentemente de Comte ePiaget, uma das características inovadoras da epistemologiade Bachelard diz respeito à introdução da noção deprogresso descontínuo na interpretação do desenvolvimentohistórico do pensamento científico. Na época em queBachelard publicou seus trabalhos, a concepção positivistade desenvolvimento histórico da ciência, baseada nanoção de progresso contínuo, era hegemônica no terreno da

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história da ciência. Isso significava que as histórias daciência eram escritas com base no pressuposto filosóficotácito de que as novas teorias científicas eram simples-mente propostas a título de complementação das já exis-tentes. Desse modo, o edifício da ciência aparecia comoum conjunto cumulativo de verdades absolutas e irretifi-cáveis. Em ataque declarado e explícito a esse ponto devista, e com base na noção de ruptura epistemológica,Bachelard irá contrapor-lhe o pressuposto de que, emoposição ao acúmulo monótono de verdades, a ciênciaprogridiria através de retificações de erros e por reorganizaçõesdo saber: “A retificação é uma realidade, ou melhor, é averdadeira realidade epistemológica, pois é o pensamentoem seu ato, em seu dinamismo profundo” (Bachelard, apudBulcão, 1981, p. 45). A retificação é vista, portanto, como omotor do progresso científico, a atividade científica como ati-vidade que constrói ativamente o real, e não como algo queo descreve passivamente. Mas, nessa atividade de construçãodo real os homens se defrontariam, segundo Bachelard,com um conjunto de obstáculos epistemológicos, os quais de-veriam ser superados para que a ciência pudesse avançar.

Uma outra característica inovadora, introduzidapor Bachelard em sua interpretação da história das ciên-cias, foi a de concebê-la como uma história recorrente. Issosignifica que ele defendeu o controvertido pressuposto deque os fatos científicos do passado deveriam ser analisadostendo como referência a ciência atual. É esse ponto devista que se acha elegantemente condensado na afirmação:“Acompanhamos o desenrolar do drama das grandesdescobertas na história com mais facilidade quando assis-timos ao quinto ato” (Bachelard, apud Bulcão, 1981, p. 39).

Como se isso não bastasse, na obra de Bachelard,o postulado de uma história recorrente aparece como odesdobramento natural e necessário do pressuposto,ainda mais fundamental, de uma história progressivadescontínua cujo motor é posto nas retificações de erros.Mas quem vê erros nas formas de explicação e nas soluçõesdadas por nossos antepassados aos problemas com osquais se defrontaram – e ver erros é mais do que veressas formas de explicação simplesmente como opçõesou possibilidades de saída historicamente condicionadas,pois é também julgá-las – deve possuir de antemão umpadrão de julgamento do passado em função daquiloque a ciência se tornou no presente. Significa defender,por extensão, o pressuposto ainda mais controvertidoda possibilidade de julgamento e condenação da ciência dopassado tomando como referência a natureza e os valorespelos quais a ciência se pauta no presente. Mesmo desper-tando a ira dos positivistas, mas não apenas deles,Bachelard não terá o menor escrúpulo em defender tam-bém, ao lado do pressuposto de uma história recorrente,um outro de uma história normativa. Na obra intitulada Aatividade racionalista da Física contemporânea, dirá:

Trata-se, de fato, de mostrar a ação de uma históriajulgada, de uma história que deve ter como objetivodistinguir erro e verdade, o inerte e o ativo, o nocivo e ofecundo [...]; na história das ciências é necessáriocompreender, porém também julgar. (Bachelard, apudBulcão, 1981, p. 39)

Tendemos a acreditar, porém, que os principaisproblemas a serem enfrentados hoje, por parte daquelesque se dedicam à investigação no âmbito da história dasidéias científicas e matemáticas, nada têm a ver com odilema hoje superado do julgar ou não julgar o passado,pois não é a opção por qualquer uma dessas duas alter-nativas que tornaria nossas reconstituições mais plausíveis,mais críticas, mais convincentes e mais esclarecedoras.Conscientizarmo-nos, através de uma história epistemoló-gica como a de Bachelard, do quão distante estava aciência de nossos antepassados em relação à nossa nãotorna mais esclarecedoras as razões pelas quais a ciênciadeles foi o que foi, e é por esse segundo aspecto queuma legítima história da ciência deveria, a nosso ver, seinteressar. Neste sentido, não vemos como uma análiseque julgue o passado à luz de critérios contemporâneospossa produzir algo mais do que uma desqualificação daciência de nossos antepassados em relação à contempo-rânea. Embora o processo de investigação histórica sejasempre um empreendimento valorativo, não pensamos queuma história seria tanto mais crítica quanto mais julgamen-tos de valor fossem feitos por parte do historiador. Alémdisso, nem todo julgamento de valor é necessariamentefeito com base numa projeção de valores de uma épocahistórica sobre outra, ou de um contexto a outro quelhe é contemporâneo. Essa crítica nada tem a ver comuma suposta defesa do ponto de vista positivista quepostula a suspensão dos juízos de valores, quer no âmbitoda prática de investigação científica no terreno das ciênciasnaturais, quer no da prática da investigação científica noterreno da história. É claro que toda investigação históricaé sempre condicionada pela natureza das interrogações,intenções, pressupostos, valores, recursos e métodosdos quais o historiador de cada presente se utiliza. Masisso não significa que o historiador de qualquer presenteesteja completamente não-consciente da totalidade ou departe destes elementos condicionadores. Significa apenasque o historiador de qualquer presente, ainda queconstitua o passado à luz de todos esses elementoscondicionadores, está sempre ciente de que “o outro”que ele busca constituir não é “o si próprio”; que aindaque ele possa constituir esse outro à sua maneira (dentrode certos limites, é claro, porque não se pode dizer oque bem se entende, sem que esse dito se faça acompanharde outros ditos ligados às razões de sua aceitação), ascircunstâncias e os elementos condicionadores que

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envolvem o processo e o produto da investigação sãosempre distintos das circunstâncias e dos elementoscondicionadores que envolvem o objeto historicamentesituado que está sendo constituído. Mas onde, segundoBachelard, poderíamos encontrar os valores científicosrealmente verdadeiros pelos quais a crítica do pensamentocientífico do passado deveria se pautar? Ele iráresponder a essa questão afirmando que esses valores seencontram na epistemologia, e é por esta razão que, paraele, é indispensável que toda crítica da ciência dopassado se faça à luz da epistemologia. História eepistemologia das ciências aparecem-lhe, então, comoempreendimentos indissociáveis.

Uma outra inovação introduzida por Bacherlard,qual seja, a subdivisão entre história perimida e históriasancionada10 é pouco explicativa. Isso porque tal distinçãonada mais faz, a nosso ver, do que tentar demarcarrigidamente – como o tentou também, sem sucesso,Popper – a fronteira entre o científico e o não-científico. Éclaro que quando se está cronologicamente avançadoem relação à ciência do passado, é sempre possível, combase naquilo que a ciência se tornou, condenar certostipos de explicações rotulando-as de não-científicas. Oproblema, porém, consiste em se perguntar se quandose está inserido no movimento da investigação científicaem construção, seria possível ou mesmo tão relevantepreocuparmo-nos com o problema da separação entreexplicações ditas científicas e não-científicas, ou entre asexplicações supostamente fecundas e as tidas comoestéreis. Mesmo porque sabemos hoje que a ciência seconstrói não apenas com base em explicações científicasfecundas, mas também mediante explicações científicasjulgadas infecundas, explicações não-científicas fecundas eexplicações não-científicas infecundas. É o processohistórico-social de produção da ciência, com os seuscondicionamentos, pressupostos e valores de todas asordens – econômicos, políticos, racionais, irracionais,eticamente reprováveis ou não – que fará essa seleção, enão qualquer critério de racionalidade a priori ou aposteriori que possam ser inferidos de dentro ou de forada atividade científica. Temos consciência hoje, ainda,do papel que as crenças de qualquer natureza – e mesmoos dogmas, como defendeu Khun – desempenham naprodução do conhecimento dito científico ou não.Sabemos que a ciência não se constrói sem dogmas,crenças ou pressupostos; nem mesmo unicamente, ousobretudo, com pressupostos ditos racionais. O papelambivalente dos pressupostos (dogmáticos ou não) fazcom que eles, em certos momentos, funcionem comoestimuladores e catalisadores e, em outros, como estag-nantes ou mesmo impeditivos da produção da ciência.Neste sentido, o critério moralizador de racionalidadeno qual se pauta a epistemologia bachelardiana é rigoroso

demais, não apenas para conduzir a investigação científicacontemporânea, como também para julgar a ciência denossos antepassados. Além disso, se os supostos obstá-culos que teriam se manifestado a nossos antepassados noprocesso de produção da ciência, e que, também suposta-mente, estariam se manifestando aos cientistas da atuali-dade, fossem apenas e tão somente aqueles denunciadospor Bachelard – ou mesmo que um número finito deoutros pudesse se tornar transparente e consciente noprocesso de se fazer ciência na atualidade – concluiríamos,surpreendentemente, que um dia chegaríamos a umestado inusitado de total ausência de erros na atividadecientífica, a um estado de constituição de uma super-comunidade científica insuspeita, infalível e acima detoda condenação futura. Pensamos ainda que Bachelard, aosupervalorizar, em sua proposta epistemológica de umareconstrução racional da ciência, o critério da natureza dasexplicações científicas, esqueceu-se de atribuir igual peso ànatureza das explicações históricas. Assim, a sua históriaepistemológica das ciências, ao se basear em algunspressupostos controvertidos e quase completamentecontestados pela ciência contemporânea da história,segundo a própria classificação bachelardiana, poderiaser situada no estágio pré-científico.

Como vimos, história e epistemologia aparecem,para Bachelard, como empreendimentos indissociáveis.Ele pôs em destaque, do seguinte modo, a naturezadistintiva das tarefas do epistemólogo e do historiador:

é o esforço da racionalidade e de construção que devereter a atenção do epistemólogo. Percebe-se assim adiferença entre o ofício de epistemólogo e o de historiadorda ciência. O historiador da ciência deve tomar as idéiascomo se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar os fatoscomo se fossem idéias, inserindo-as num sistema depensamento. Um fato mal interpretado por uma épocapermanece, para o historiador, um fato. Para oepistemólogo, é um obstáculo, um contrapensamento.(Bachelard, 1996, p. 22, grifos do autor)

Percebe-se, através desta passagem, que é noesforço de racionalizar os fatos retrospectivamente, tendo comoreferência aquilo que eles se tornaram no tempo doepistemólogo racionalizador e moralizador, que residiria,segundo Bachelard, a natureza do empreendimentoepistemológico. É essa suposta distinção entre as tarefasdo epistemólogo e do historiador que permite a Bachelardestabelecer a polêmica distinção entre fato e obstáculo. Apassagem seguinte é ainda mais esclarecedora a esse respeito:

parece-nos que o epistemólogo – que nisso difere dohistoriador – deve destacar, entre os conhecimentos deuma época, as idéias fecundas. Para ele, a idéia deve ter

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mais que uma prova de existência, deve ter um destinoespiritual. Não vamos pois hesitar em considerar comoerro – ou como inutilidade espiritual, o que é mais oumenos a mesma coisa – toda verdade que não faça partede um sistema geral [...]. (Bachelard, 1996, p. 22)

A possibilidade, defendida por Bachelard, deseleção de idéias fecundas na história do desenvolvi-mento do conhecimento só se sustenta quando sesobrepõe conscientemente ao tempo histórico um outromomento temporal que ele não comporta em si mesmo.Bachelard irá expressar essa sobreposição mediante asnoções de tempo cronológico e tempo lógico:

A epistemologia ensina-nos uma história científica tal comodeveria ter sido [...], isto é, tal como deveria ter sido prevista[...]. A epistemologia situa-nos, então, num tempo lógico,nas razões e nas conseqüências bem colocadas, num tempológico que não mais tem as delongas da real cronologia.(Bachelard, 1977, p. 114)

Mas essa história bachelardiana epistemologicamentemediada do pensamento científico, daquilo que deveriater sido previsto, mas não o foi, nada mais é do queuma caracterização das idéias do passado, em relaçãoàquilo que elas se tornaram no presente. Nesse sentido,o passado sempre se torna insuficiente e insatisfatórioem relação ao presente, não sendo essa sobreposiçãotemporal proposta por Bachelard nada mais do que umaprojeção ilegítima do presente sobre o passado, e nãouma tentativa – esta sim, legítima, à luz da investigaçãohistórica – de busca de sentido das idéias passadas à luzdo que de fato foram ou poderiam ter sido, dadas ascircunstâncias e condições sociais contextuais sob asquais foram produzidas, apropriadas e transformadas.Poderíamos acrescentar ainda que, devido ao redu-cionismo psicológico subjacente ao empreendimentobachelardiano, a epistemologia passa a ser vista econcebida como uma atividade destacada e destacávelda atividade do historiador, atribuindo-se a ela um papeldistinto daquele que efetivamente ela cumpre no terrenoda investigação caracteristicamente histórica, qual seja, ode funcionar como um corpo de pressupostos, explícitosou não, justificados ou não, acerca da natureza doconhecimento histórico e científico, com base no qualse constitui e se assenta a investigação e o discursohistóricos. Para Bachelard, portanto, fazer epistemologiapassa a ser sinônimo de fazer história num segundograu de abstração, isto é, de fazer uma segunda análisehistórica com intenções distintas daquelas que orientaramo trabalho de investigação histórica propriamente dito.Mas por que chamar epistemologia a essa segunda história?Por que não lhe imputar simplesmente a denominação

de história alternativa, uma vez que também as análiseshistóricas primeiras dos historiadores, bem como asanálises epistemológicas no sentido de Bachelard, sãosempre empreendimentos intencionados? Por que razões anatureza da intenção direcionadora do processo deinvestigação histórica nos deveria remeter inevitavelmentea um terreno distinto do da própria história? Por quereconstruções ditas racionais da história, tais como a deBachelard e as de tantos outros como Lakatos e Piaget &Garcia, por exemplo, deixariam de ser histórias e passariama ser epistemologias? Por que o racional – entendido comoanálise reducionista de natureza lógica, psicológica,heurística, etc. – deveria fundar um campo ou operar emum campo distinto do da própria história? Por queconcepções distintas de racionalidade deveriam justificaro abandono do terreno da própria história? Estas sãoalgumas das questões que poderíamos levantar a fim dese questionar a concepção bachelardiana da relaçãoentre história e epistemologia. Pensamos, portanto, que atentativa bachelardiana – e também a dos investigadoresfiliados à escola francesa contemporânea de didática damatemática, como veremos mais adiante – de distinguirradicalmente entre análise histórica e análise epistemo-lógica da história é pouco esclarecedora, pois nos leva aum beco sem saída, ou melhor, nos faz inevitavelmenteretornar ao terreno da própria história.

Até agora, nossa análise se centrou no Bachelardhistoriador-epistemólogo. Mas estaríamos enganados sesupuséssemos que Bachelard faz história pela históriaou análise epistemológica da história do pensamento cien-tífico sem quaisquer propósitos. Na verdade, pensamosque o seu interesse pela história é apenas indireto. Nele,são as intenções e propósitos do epistemólogo-educadorque falam mais alto. Se assim não fosse, como explicaro subtítulo do seu A formação do espírito científico? O subtítulo“uma contribuição para a psicanálise do conhecimento” quer, nofundo, destacar o interesse de Bachelard pelas condiçõesde apropriação do conhecimento científico por parte decientistas e aprendizes da atualidade. De fato, Bachelardnão hesita em se apropriar do termo freudiano “psicanálise”deformando-lhe conscientemente o seu sentido original:

O significado de psicanálise, para Freud, pode serexpresso em três níveis: como método de investigação,que consiste em evidenciar o significado inconsciente daspalavras, das ações e dos atos imaginários; como ummétodo psicoterápico baseado nessa investigação e comoum conjunto de teorias psicológicas que sistematizam osdados introduzidos pelo método acima citado. Bachelarddá uma nova orientação ao termo” psicanalítico”, aoconsiderar que as forças psíquicas, os fatores inconscientese os sonhos profundos também atuam sobre o ato deconhecer e constituem obstáculos à objetividade científica.

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Refletindo apenas sobre o conhecimento, Bachelardafirma que pretende fazer psicologia “por reflexo” e não“psicologia direta”, isto é, utilizá-la somente na medidaem que auxilia a depuração dos fatores inconscientes queperturbam o ato do conhecimento [...] trata-se de umprocesso que tem por finalidade mostrar a influência dosvalores inconscientes na base do conhecimento científico.(Bulcão, 1981, p. 60-61)

Segundo Bulcão, Michel Vadée, um dos co-mentadores contemporâneos da obra de Bachelard, éainda mais explícito em relação às reais intenções dapsicanálise bachelardiana, pois, para ele,

a psicanálise em Bachelard tem objetivos terapêuticos,catárticos e normativos, donde seu aspecto moralizador epedagógico. Michael Vadée, tendo interpretado os obstáculoscomo psicológicos, não vê outra saída para Bachelard senãorecorrer à psicanálise, ou seja, a uma psicologia do espíritocientífico, a fim de afastar o erro. (Bulcão, 1981, p. 65)

De nossa parte, não vemos problema algumcom as intenções pelas quais Bachelard faz história dasciências, ou mesmo com as razões pelas quais ele sesente quase que obrigado a recorrer a uma espécie depsicanálise cognitiva. Em princípio, não nos opomos aintenções de se recorrer à história com fins epistemo-lógicos, psicológicos ou pedagógicos. No entanto, comojá ressaltamos anteriormente, vemos problemas com anatureza dos pressupostos a que Bachelard recorre paraa constituição de sua história epistemológica. Tal comoComte e Piaget o fizeram, Bachelard, a fim de realizar oseu empreendimento de uma história com fins epistemo-lógicos, psicológicos e pedagógicos, se obriga a lançarmão do contestado pressuposto recapitulacionista queestabelece um paralelismo entre os níveis filogenéticosde sua história epistemológica e os psicogenéticos de seussupostos aprendizes da atualidade. De fato, o esquematrifásico proposto por Bachelard para explicar o desenvol-vimento do pensamento científico no plano históricoreaparece também ao nível da formação do espírito cientí-fico no indivíduo. Segundo Bachelard, o indivíduo, noesforço progressivo feito no sentido de atingir a naturezado pensamento científico contemporâneo, passaria pelosseguintes estágios seqüenciais: 1) o estágio concreto; 2) oestágio concreto-abstrato; 3) o estágio abstrato. No primeirodestes estágios, o indivíduo estaria preso às primeiras ima-gens do fenômeno. No segundo, já mostraria a capacidadede utilizar explicações de natureza geométrica; no entanto,essas abstrações geométricas só adquirem legitimidade paraele se estiverem referenciadas ao plano sensível. Final-mente, no terceiro estágio, o indivíduo mostrar-se-ia capazde se desligar completamente da experiência primeira –

imediata, cotidiana, espontânea e sensível – e de forneceraos fenômenos explicações objetivas e racionais que con-tradizem a experiência primeira (Bachelard, 1996, p. 11-12).

Algumas conclusões interessantes podem serretiradas quando se compara essa caracterização, feitapor Bachelard, do trânsito do pensamento científico, aolongo das três etapas, com aquelas propostas por Piagete Comte. Em primeiro lugar, parece haver uma fixaçãonão-explicada por parte dos três em torno do número três.Por que haveria de ser trifásico o trânsito progressivodo pensamento científico? Tratar-se-ia de uma analogiaimagética pré-científica com o modelo dialético trifásicoda tese–antítese–síntese de Hegel? Quando se atenta paraessa fixação não-explicada, não se consegue deixar deevocar, contra essas três filosofias da história do pensa-mento científico, a pertinência do contra-argumento deHabermas à lei dos três estados proposta por Comte:

essa lei do desenvolvimento possui manifestamente umaforma lógica não correspondente ao status das hipótesesnomológicas das ciências experimentais: o saber queComte reivindica para interpretar o significado do saberpositivo não está, ele mesmo, subsumido sob as condiçõesdo espírito positivo. (Habermas, 1982, p. 92)

Desse modo, as mesmas considerações que fize-mos em relação ao modo de Piaget e García estabeleceremum vínculo entre a história e a psicogênese parecem poderaplicar-se para Bachelard, como também o seriam paraComte. Porém, em nosso modo de ver, Bachelardchega a explorar mais a fundo esse paralelismo quandose refere àquilo que chama a base afetiva dos seus trêsestágios filogenéticos:

Estabelecer a psicologia da paciência significa acres-centar à lei dos três estados do espírito científico umaespécie de lei dos três estados da alma caracterizados porinteresses: “alma pueril ou mundana”, animada pelacuriosidade ingênua, cheia de assombro diante do míni-mo fenômeno instrumentado [...]; “alma professoral”,ciosa de seu dogmatismo, imóvel na sua primeiraabstração, fixada para sempre nos êxitos escolares dajuventude, repetindo ano após ano o seu saber, impondosuas demonstrações, voltada para o interesse dedutivo[...]; “alma com dificuldade de abstrair e de chegar àquintessência”, consciência científica dolorosa, entregue aosinteresses indutivos sempre imperfeitos, no arriscado jogodo pensamento sem suporte experimental estável, pertur-bada a todo momento pelas objeções da razão, pondosempre em dúvida o direito particular à abstração, masabsolutamente segura de que a abstração é um dever, odever científico, a posse enfim purificada do pensamentodo mundo! (Bachelard, 1996, p. 12-13)

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Desse modo, pensamos que, na história dopensamento científico de Bachelard, as condiçõespsicológicas do progresso da ciência são ilegitimamenteidentificadas com as condições psicológicas do processode construção individual do saber; assim, tal como ocorrecom Piaget e García, a psicogênese é projetada nafilogênese e toda a análise histórica – agora, distintamenteda de Piaget e García, na qual a projeção é meramentecognitiva – passa a ser construída e orientada por certostipos de bloqueios psicológicos afetivos por ele denominadosde obstáculos epistemológicos. A história bachelardiana dopensamento científico acaba, dessa maneira, funcionandocomo um fiel espelho plano que reflete a dimensãopsicológica das condições afetivas de apropriação individualcontemporânea do saber científico.

Como já ressaltamos anteriormente, não vemosproblema algum em se fazer história com intenções epis-temológicas, psicológicas ou pedagógicas. Pensamos,porém, ser controvertido basear um tal projeto nasuposição de que a distância cognitiva e/ou afetiva quesepararia os protagonistas adultos das ciências de outrasépocas dos protagonistas de nossa ciência contemporâneaseja a mesma que a que separaria as crianças da atua-lidade dos protagonistas de nossa ciência contemporânea,ou que os supostos obstáculos epistemológico-afetivos que osprotagonistas das ciências de outras épocas supostamenteenfrentaram tenderiam a ressurgir para as crianças daatualidade no enfrentamento de problemas aparentementesemelhantes. Aliás, que argumentos seriam capazes de ex-plicar o ressurgimento – para as crianças e jovens de cadapresente, em seus esforços de apropriação da ciência –apenas dos obstáculos e não também das soluções, adequadas ounão, ensaiadas por nossos antepassados ao lidar com osproblemas ditos científicos? Que gênio maligno seria esseque lhes imporia o castigo de herdar e inventariar as dívidas,as dificuldades e os erros de um processo sonegando-lhes,porém, os seus saldos, as suas saídas e os seus êxitos?

E já que estamos falando em obstáculos, e já queé precisamente esta noção ambígüa e polêmica do refe-rencial bachelardiano que vem sendo apropriada commais freqüência pelos educadores matemáticos a partirda década de 80, voltemos a ela um pouco mais denossa atenção para finalizar esta seção. É no primeiroparágrafo do primeiro capítulo do A formação do espíritocientífico, logo após o Discurso preliminar, que Bachelardnos define o que entende por obstáculo epistemológico:

Quando se procuram as condições psicológicas doprogresso da ciência, logo se chega à convicção de que éem termos de obstáculos que o problema doconhecimento científico deve ser colocado. Enão se trata de considerar obstáculos externos, como acomplexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de

incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito huma-no: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem,por uma espécie de imperativo funcional, lentidões econflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação eaté de regressão, detectaremos causas de inércia às quaisdaremos o nome de obstáculos epistemológicos. (Bachelard,1996, p. 17, grifos do autor)

Essa definição, aparentemente clara, começa atornar-se confusa à medida que Bachelard passa a des-crever, nos diferentes capítulos desta obra, os diferentestipos de obstáculos classificados em gerais e particulares,quais sejam: a experiência primeira, o conhecimento geral,o obstáculo verbal, o conhecimento unitário e pragmático,o conhecimento quantitativo, o obstáculo animista e oobstáculo substancialista. Portanto, uma primeira crítica,assinalada por Bulcão, que poderia ser remetida a essanoção, diz respeito ao seu estatuto ambígüo:

Os obstáculos parecem à primeira vista, os maisdiferentes, sendo difícil, por isso, determinar se são deordem moral, ideológica, psicológica, etc. Além disso,não está muito claro se o seu sentido é estritamenteepistemológico ou se chega a ser pedagógico. Daí adiversidade de interpretações sobre o assunto. (Bulcão,1981, p. 65)

Dominique Lecourt, um dos comentadorescontemporâneos da obra de Bachelard, não hesita eminterpretar a noção de obstáculo epistemológico como

valores ideológicos que interferem na ciência e lhealteram o significado [...], e conclui que os obstáculosintervêm no conhecimento científico por intermédio daFilosofia, que representa os valores ideológicos, cabendoà Epistemologia afastá-los na medida do possível (cf.Bulcão, 1981, p. 57-58).

Por razões que já manifestamos anteriormente,tendemos, no entanto, a compartilhar da crítica marxistaa esta noção feita por Michel Vadée, um outrocomentador contemporâneo de Bachelard, o qual:

vê na noção de obstáculo epistemológico uma reafirmaçãodo idealismo de Bachelard. Para ele, os obstáculos epis-temológicos são psicológicos e a-históricos e constituemobjeto de estudo de uma teoria dos “instintos” doespírito. Isso significa que, para Vadée, os obstáculossão provenientes de uma estrutura psíquica, reduzindo-se a puros “instintos” do espírito que conhece, além deserem independentes do contexto histórico em que semanifestam [...] Esses impedimentos são de naturezapuramente subjetiva e não são obstáculos naturais ou

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materiais, fundados na natureza da realidade física, nasformas de consciência de classe ou nas ilusões ideológicas.(Bulcão, 1981, p. 58)

Concordando em parte com Vadée, ao afirmarque “a origem psicológica é a que está mais presente emBachelard”, e que “faltou a Bachelard aprofundar arelação do sujeito individual com o contexto em quevive a fim de mostrar os limites do psicológico e dosocial”, a conclusão pessoal a que chega Bulcão arespeito dessa noção é que todos os obstáculosassinalados por Bachelard poderiam ser reduzidos aapenas um, qual seja, o obstáculo representado pelaexperiência primeira, ou pelo conhecimento comum, uma vezque, para ela, à noção de obstáculo epistemológico estariasubjacente o pressuposto bachelardiano de oposiçãoradical entre o conhecimento científico e o conhecimentode senso comum (Bulcão, 1981, p. 59-60). É surpreendenteque Bachelard, no seu esforço de análise e psicanalização doconhecimento objetivo – conhecimento este que julga tãoradicalmente distanciado da experiência primeira – nãotenha se dado conta de ter raciocionado circularmenteutilizando-se, para esse fim, de uma noção – como a deobstáculo – tão ligada ao senso comum e à experiênciasubjetiva cotidiana de quem quer que seja. Desse modo,condena a experiência cotidiana, ao transformá-la noobstáculo primeiro ou fundamental, recorrendo a umanoção tão íntima e peculiar à experiência cotidiana.

Comentários acerca de algumas pesquisas emeducação matemática inspiradas no referencial

teórico de Bachelard

No terreno da educação matemática, GuyBrousseau – professor, desde 1970, do departamento dematemática da Universidade de Bordeaux I e, atual-mente, Diretor do Laboratoire Aquitaine de Didactique desSciences et des Techniques da Universidade de Bordeaux I –irá apropriar-se da noção bachelardiana de obstáculoepistemológico, mantendo praticamente inalterada aconcepção dessa noção. Nesse sentido, um obstáculoepistemológico é sempre um conhecimento e não,como se poderia à primeira vista supor, uma ausênciade conhecimento. Além disso, esse conhecimento não éum conhecimento falso, uma vez que permitiu ou permiteproduzir respostas satisfatórias ou corretas a determinadostipos de problemas. No entanto, esse mesmo conheci-mento, ao ser transposto ou aplicado a outras categoriasde problemas, acaba produzindo respostas inadequadas ouincorretas, produzindo erros. Mas esses erros produzidospor obstáculos devem, por sua vez, ser considerados umtipo especial de erros, uma vez que não se incluem entreaqueles produzidos pelo desconhecimento, pela ignorância,

pelo acaso, pela imprevisibilidade ou pelo descuido. Aocontrário, constituem erros previsíveis, persistentes eresistentes à correção (cf. Brousseau, 1983, p. 172-174).Além disso, parece que Brousseau, ao importar a noçãode obstáculo epistemológico para o terreno da didática damatemática, embora tenha submetido alguns pressupostosbachelardianos a uma análise retificadora e ampliadora11,não chegou a romper explicitamente com a concepçãobachelardiana da relação entre história e epistemologia;ao contrário, traz, pela primeira vez, para o terreno da in-vestigação em educação matemática propriamente dito,um papel inédito a ser desempenhado pela epistemologia,concebida como análise histórico-epistemológica de um tópico específicoda matemática, e, a partir de então, pareceu tornar-se legítimofalar-se, por exemplo, em epistemologia dos números decimais.

Outro investigador que, imediatamente apósBrousseau, resolveu se utilizar da noção de obstáculoepistemológico no terreno da educação matemática foiGeorges Glaeser, na época professor da UniversidadeLouis Pasteur (Estrasburgo). Do mesmo modo comoBrousseau havia decidido realizar uma epistemologia dosnúmeros decimais, também Glaeser dedica-se à tarefa derealizar uma epistemologia dos números relativos. Glaeser procedea uma distinção entre o que chama métodos experimentais emétodos históricos e epistemológicos, com base na crença de quecaberia aos métodos experimentais em didática elaborarou preparar situações didáticas facilitadoras da supe-ração, por parte dos estudantes, das diversas barreirasque a eles se apresentam no processo de aprendizagemdos conteúdos matemáticos, enquanto aos métodoshistóricos e epistemológicos caberia a tarefa de seinvestigar de que modos a produção pedagógica dossujeitos estudados, escrita e/ou oral, poderia, de algumaforma, ser confrontada com os vestígios do passado. Dessemodo, segundo ele, os métodos históricos e epistemo-lógicos, diferentemente dos experimentais, trabalhariam“sobre documentos deixados por grandes matemáticosou por representantes típicos da comunidade científicade épocas revisitadas” (Glaeser, 1981, p. 304).

A partir desta distinção metodológica, é pos-sível inferir que, do mesmo modo que para Brousseau,Glaeser parece não ter clareza sobre o papel diferenciala ser desempenhado pela epistemologia em relação àhistória. O próprio fato de Glaeser situar os métodoshistóricos e os epistemológicos numa mesma categoria,atribuindo-lhes o mesmo papel ou função, nos atestaisso. Se, de fato, cabe aos métodos epistemológicostrabalharem sobre documentos ou vestígios do passado,em que eles se distinguiriam dos métodos históricos? Ede duas uma: ou a epistemologia acaba sendo assimiladaà história – e, neste caso, a análise histórica e aepistemológica em nada se diferenciariam – ou, talcomo em Brousseau, a epistemologia se diferenciaria da

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história por ser um empreendimento orientado por certosfins, ou melhor, por ser um empreendimento pedagogica-mente ou didaticamente orientado. Além disso, tantoBrousseau quanto Glaeser procedem a uma fragmentaçãodo objeto da epistemologia. Porém, há uma diferença bas-tante nítida entre os dois empreendimentos: enquanto oprimeiro, em sua epistemologia dos decimais, antepõe o objetivodidático ao histórico-epistemológico (fazendo dele o guiapara este último tipo de análise, para retornar, em seguida,ao terreno da didática), o segundo, em sua epistemologia dosnúmeros relativos, dedica-se exclusivamente ao terreno daanálise histórico-epistemológica, deixando o retorno aoplano didático para outros que por ele se interessem.

Glaeser é também suficientemente explícito arespeito de sua concepção da relação entre a históriaepistêmica da matemática e o ensino-aprendizagem. Nova-mente, o ensino-aprendizagem da matemática é vistocomo o espelho real ou provável da história epistêmica damatemática, e esta última aparece ao investigador em edu-cação matemática como um laboratório ou campo dotadode legitimidade, não apenas para se identificar os blo-queios e dificuldades por que passam os alunos da atuali-dade no processo escolar de construção da matemática,como também para se interpretá-los e buscar formas para amontagem de situações didáticas superadoras dos mesmos.De fato, logo no resumo de seu trabalho, ele esclarece que

um estudo detalhado de trabalhos dos melhoresmatemáticos – de Diofante, Euler, d’Alembert, etc. –permitiu observar alguns dos obstáculos que se opuseramà aquisição da noção de número negativo e, conseqüen-temente, à regra dos sinais. Gostaríamos que fosseexaminado, através de numerosas experiências, se asdificuldades vivenciadas pelos grandes matemáticos sãoas mesmas que perturbam os jovens estudantes de hoje.(Glaeser, 1981, p. 303)

Mas se as dificuldades e os obstáculos identifi-cados no laboratório virtual da história epistêmica gozamapenas da propriedade de possibilidade de manifestaçãono laboratório real da sala de aula, por que realizar aanálise histórico-epistemológica, isto é, por que não fazeresse trabalho de detecção diretamente no espaço real dasala de aula? E mesmo que as dificuldades e os obstáculosgozassem da propriedade de certeza de manifestação totalou parcial na sala de aula, de que teria valido o trabalhohistórico-epistêmico de identificação? No fundo, tanto emBrousseau quanto em Glaeser parece persistir a esperança,baseada numa espécie de crença indutivista proativa, de quea análise histórico-epistemológica possa, de algumaforma, iluminar ou indicar o rumo a ser dado à práticapedagógica e à prática da investigação pedagógica noterreno da educação matemática. É claro que, a fim de se

confrontarem com qualquer tipo de crítica a essa crença,sempre lhes resta o argumento da possibilidade de sechecar e de se controlar essa esperança no laboratório deúltima instância – firme e seguro – da sala de aula. Mas, seassim é, por que não se manter neste último desde oinício? Por que se dedicar ao trabalho extra de ter queretificar algo que poderia ter sido realizado uma única vezcom base nas razões da prática? Se a prática pedagógicaatual é vista, ao mesmo tempo, como critério de verdade,fonte de alternativas, última instância legitimadora dasdecisões e luz que guia as nossas ações, por que recorrerà pálida luz segunda da análise histórico-epistemológica?Diante desses esclarecimentos e dessas consideraçõescríticas, penso que se deveria olhar para o trabalho deGlaeser como um trabalho de natureza histórica propria-mente dita, e é nesse âmbito que deveria ser avaliado. E,nesse sentido, uma crítica global que poderia ser feita aoestudo realizado por ele é da mesma natureza queaquela já feita ao trabalho de Bachelard. Isso porque, opróprio fato de se tentar interrogar o passado, com basena noção de obstáculo, já significa ter-se feito uma duplaopção, ambas polêmicas e questionáveis, no terreno dafilosofia da história: 1) opção por uma concepção indutivistaretroativa da história da matemática, que consiste naelaboração de uma constituição histórica de uma idéiamatemática com base num julgamento e projeçãoilegítimos dos resultados da matemática contemporâneasobre aqueles elaborados por nossos antepassados;2) opção pelo pressuposto de que o curso da história damatemática seria governado pela noção de progresso.Estas opções deverão produzir uma história epistemoló-gica dos números inteiros relativos de cunho internalista,subjetivista e personalista,12 na qual o contexto social nãodesempenha nenhum papel significativo, e na qual grandesmatemáticos do passado acabam aparecendo-nos, naatualidade, como seres ingênuos e, às vezes, até mesmoestúpidos, por não terem conseguido “ver” coisas tãotriviais e elementares como as que hoje reconhecemos.De fato, a passagem seguinte é apenas uma, dentremuitas, nas quais Glaeser deixa transparecer essepreconceito injustificável:

encontramos textos em que grandes sábios revelam, commaior ou menor espontaneidade, índices de incompreensãosobre o tema, tão banal, dos números relativos. Masnossa surpresa não faria senão crescer diante das síntesesde d’Alembert e Carnot, que não hesitaram em osten-tar a sua incompreensão sem a menor inibição(Glaeser, 1981, p. 323, grifos do autor e que tambémsão nossos por outras razões que não as dele).

Como seria de se esperar, o estudo realizadopor Glaeser sobre os números inteiros relativos iria

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suscitar polêmica entre os próprios investigadores per-tencentes à escola francesa de didática da matemática.

Na tentativa de recuperar a noção de obstáculoepistemológico e de manter o seu papel de importânciana investigação em didática da matemática, Artigue,com base em investigações sobre a aprendizagem danoção de limite realizadas por B. Cornu e, posteriormente,por A. Sierpinska, deverá acentuar ainda mais a importânciada análise epistemológica da história para a investigaçãodidática. Artigue tenta superar essa aparente contradiçãopor meio da defesa da tese de que aquilo que tanto ahistória quanto o ensino-aprendizagem deveriam atestarseria a presença não de conhecimentos-obstáculos propriamenteditos, mas de processos ou mecanismos mentais produtores deconhecimentos-obstáculos tais como: a generalização abusiva,a regularização formal abusiva, a fixação sobre umacontextualização ou uma modelação familiares e oamálgama de noções sobre um suporte dado (Artigue,1990, p. 261-262). De certo modo, esta tese de Artiguese assemelha bastante àquela defendida por Piaget eGarcía, e, por conta dessa semelhança, isto é, por insistirem continuar defendendo uma espécie de paralelismoontofilogenético no nível não mais dos conhecimentos,mas dos processos mentais, fica também sujeita a todas asconsiderações críticas já feitas ao ponto de vista daquelesautores. Além disso, ao deslocar, nesse paralelismo, aênfase dos conhecimentos-obstáculos para os processosou mecanismos mentais, acaba estabelecendo uma distinçãoartificial e insustentável entre mecanismos mentais econhecimentos. Não seriam também os processos oumecanismos mentais produtores de conhecimentos-obstáculos, eles próprios, formas de conhecimento? Seriao conhecimento uma categoria histórico-epistemológica,enquanto os processos mentais seriam construtos denatureza estritamente psicológica? Em sendo este ocaso, que lugar ocupariam os processos ou mecanismosmentais no plano da cognição? Mas se os processos men-tais são construtos de natureza estritamente psicológica,qual seria o estatuto dos processos a eles correspondentesao nível da história? Seriam esses processos mentaisobtidos como produtos de uma análise epistemológica,histórica, psicológica ou didática? Penso que respostas aquestões dessa natureza só podem ser inferidas quandoquestões como estas forem analisadas à luz da concepçãoque tem Artigue da relação entre história, epistemologiae didática. Que papéis específicos e diferenciados atribuiela às análises histórica, epistemológica e didática?

Uma primeira aproximação à concepção quetem Artigue da epistemologia da matemática nos mostraque, para ela, trata-se do campo do saber que objetivaconhecer e revelar: 1) os processos pelos quais os com-ceitos matemáticos se formam e se desenvolvem; 2) ascaracterísticas da atividade matemática (Artigue, 1990,

p. 243). A nosso ver, essa forma de conceber a epistemo-logia da matemática acaba assimilando ou subordinandoeste campo do saber ao terreno da própria história dasidéias matemáticas. Não constitui também tarefa dohistoriador da matemática estudar a formação e odesenvolvimento das idéias matemáticas e, ao fazê-lo,mostrar as características da atividade matemática emfunção da época e do local em que essa atividade serealiza? Mas para ser melhor analisado, o ponto de vistade Artigue poderia ser desdobrado nas seguintes teses:

1) pode-se e deve-se distinguir entre análisehistórica, análise epistemológica e análise didática deuma determinada noção matemática.

2) a análise epistemólogica seria um tipo deempreendimento que deveria ir além da análise histórica.Esse passo além parece dizer respeito a uma espécie decapacidade ou potencialidade adicional da análise episte-mológica de captar uma espécie de lógica interna pela quala constituição histórica de uma idéia matemática seriaexplicável ou à qual estaria ela subordinada; ou, naspalavras da própria autora, de se tentar captar “aquiloque governaria a evolução do conhecimento científico”.Mas de onde viria esse suposto poder adicional daepistemologia em relação à história? Pensamos que essasuposição só se sustenta quando se admite também opressuposto anterior, que sempre esteve subjacente àsinvestigações históricas de natureza positivista, de queuma tal lógica realmente existe. Mas se nas histórias positi-vistas cabia ao historiador propriamente dito dar esse passoalém, em Artigue, como também em Brousseau, subtrai-seao historiador esta tarefa, transferindo-a ao epistemólogo.É unicamente essa divisão de tarefas que parece “justificar”a existência de um empreendimento epistemológico pro-priamente dito, distinto do empreendimento histórico.Entretanto, a artificialidade e a arbitrariedade destadivisão e o pressuposto positivista que a sustenta tornamquestionável e difusa a linha demarcatória entre história eepistemologia, defendida por Artigue. O mesmo nãoocorre, entretanto, com a linha de demarcação entre oempreendimento histórico-epistemológico e o didático.

3) o sujeito didático não pode ser reduzido aoepistêmico ou mesmo ao sujeito cognitivo. Claro que não édifícil concordar com esta última tese de Artigue. Mesmoporque aquilo que a sua análise parece ressaltar é o fatode o sujeito didático não poder ser visto como o reflexodo sujeito histórico-epistêmico ou mesmo do sujeito cognitivo.E daí, a análise histórico-epistêmica é legitimamenteconcebida, como pensamos que deveria ser concebida,meramente como um ponto de ancoragem da análise didática.Mas por que deveria o didata lançar âncoras no mar enga-nador das múltiplas versões histórico-epistemológicas dasidéias matemáticas? Para Artigue, esse mergulho tem umadupla função: uma função de controle e uma função

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“libertadora”. Isso porque, para ela, esse mergulho poderia,por um lado, auxiliar o didata a exercer um certo controlesobre as representações epistemológicas que tendem ainfluenciar a sua prática de ensino – ajudando-o adistinguir e a separar as representações epistemológicaserrôneas das verdadeiras – e, por outro lado, a se libertarda ilusão de transparência dos objetos que ele manipula nonível do saber. É, portanto, uma concepção restrita deconcepção – concepção esta permite a Artigue adjetivar edistinguir nitidamente as representações epistemológicaserrôneas das verdadeiras – que legitima e sustenta tanto afunção de controle quanto a função “libertadora” que elaatribui à análise histórico-epistemológica. De fato, aquilo queArtigue parece estar nos querendo dizer é que se o didataestiver suficientemente consciente das diferentes concep-ções do conceito matemático com o qual está lidando,ele estaria “liberto” das concepções errôneas que poderiaminfluenciar negativamente a sua prática pedagógica e/ou asua prática de investigação em didática da matemática.

Desse modo, um dos papéis desempenhadospelas análises histórico-epistemológicas na práticapedagógica e na prática da investigação em didática damatemática parece restringir-se a um papel negativo: asanálises histórico-epistemológicas teriam o poder de ensinar-nos anão errar! Nesse sentido, e apenas nesse, a história é vistacomo um porto seguro no qual o didata poderia lançartranqüilamente as suas âncoras. Mas esse suposto portoseguro só pode ser assim encarado se o “oceano” dahistória das idéias matemáticas não for visto como ummar enganador que comportaria múltiplas versõeshistórico-epistemológicas do desenvolvimento dessasidéias. Ele só é seguro, portanto, se acreditarmos que anossa interpretação histórico-epistemológica é a únicapossível ou a mais adequada dentre as possíveis. Mas oque poderia sustentar uma tal crença? No caso deArtigue, parece-nos que essa crença otimista em relaçãoao papel não-enganador da história epistêmica advémmenos da confiança na incontrovertibilidade da análisehistórica propriamente dita, do que da confiança em umcerto ponto de vista epistemológico acerca da natureza dasasserções e dos objetos matemáticos que os concebe comoentidades conclusivas, consensuais e não controvertidas.De fato, na situação hipotética de se considerar não o casode diferentes concepções de círculo, mas de diferentes concepçõesde democracia (ou de diferentes concepções de história ou concep-ções de matemática), muito provavelmente essa confiança nopoder da história de fornecer um critério fidedigno e infa-lível para se separar as representações epistemológicasfalsas das verdadeiras não seria mais mantida.

Pensamos, entretanto, que seria injusto se nãose reconhecesse que, em Artigue, o papel da análisehistórico-epistemológica em didática da matemáticaextrapola, ainda que não muito, as fronteiras da mera

análise conceptual. Trata-se de atribuir a ela o passo aléma que já fizemos referência anteriormente. Mas essepasso além não vai além das fronteiras que demarcam oterritório da própria matemática, uma vez que o passoadicional àquele já dado pela análise epistemológica denatureza exclusivamente conceitual seria o de inserir osalunos no jogo da matemática, isto é, nos processos geraisde pensamento que a governam. Desse modo, tal comoem Brousseau – porém agora de forma explícita e cons-cientemente enfocada –, à análise histórico-epistemológicanão se permite qualquer entrada que extrapole o âmbitoda esfera cognitiva ou metacognitiva propriamente dita,sendo essa esfera vista como não tendo qualquer interaçãoou interseção com as esferas da ética social, dos valoressociais, da ideologia, da afetividade, dos sentimentos,etc. Estas últimas seriam coisas complicadas demais paraserem levadas em consideração por uma engenharia didática.

Anna Sierpinska, ex-professora do Instituto deMatemática da Academia de Ciências da Polônia e,atualmente, professora do Departamento de Matemática eEstatística da Universidade de Concordia em Montreal(Canadá), também se envolveu na discussão acerca doestatuto da noção bachelardiana de obstáculo epistemológicono plano da investigação em didática da matemática.Envolveu-se, diga-se de passagem, através do seu estudoacerca dos obstáculos epistemológicos relativos à noção de limite,com o propósito explícito de reafirmar a oportunidade ea importância dessa noção no terreno da investigaçãoem didática da matemática. Embora esse estudo tenhasido realizado antes do aparecimento do artigo de Artiguea que fizemos anteriormente referência, e também antesda realização, em 1988, do Colóquio Internacional deMontreal, organizado em torno dessa temática, Sierpinskase mostra consciente da polêmica que vinha sendotravada em relação à noção bachelardiana de obstáculoepistemológico. Mesmo que afirme explicitamente que oestudo por ela realizado se insere na linha de investigaçãoproposta por Brousseau, pensamos que ela acaba explici-tando uma concepção de obstáculo epistemológico que seaproxima muito mais daquela defendida por Artigue. Defato, ela parece não conceber os obstáculos comoconhecimentos propriamente ditos, como o faz Brousseau,e sim como “causas de lentidões e perturbações” na aquisiçãode determinado conhecimento.

É claro que a intenção de se buscar explicaçõespara o problema da lentidão histórica do surgimento deuma idéia matemática ou de uma propriedade relativa aessa idéia já traz implícita em si mesma o pressupostode que teria havido, de fato, uma tal lentidão. Mas emrelação a que e com que propriedade se poderia pressuporisso? Qual deveria ter sido o tempo histórico normal ourazoável para que se percebesse que uma tal noção gozariade uma tal propriedade? E por que uma tal propriedade

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deveria necessariamente ter sido percebida em algumtempo? Percebe-se, por meio dessas questões, que apressuposição de existência de lentidão no terreno dahistória das idéias só consegue se estabelecer quando setoma implicitamente como parâmetro aquilo que umaidéia matemática se tornou no nosso tempo; estamos,portanto, novamente, diante da presença dos mesmospressupostos já utilizados amplamente por Bachelard: ode que o curso das idéias seria governado pela noção deprogresso, ainda que não-linear, e o de projeção dopresente no passado, isto é, de projeção no passado denossa expectativa de que as idéias matemáticas setornassem, o mais rapidamente possível, aquilo que elasacabaram se tornando. Pensamos, portanto, que o termolentidão não goza do estatuto histórico necessário paraconfigurar um problema de investigação histórica. Poroutro lado, quem postula a existência de lentidão deverátambém postular, por decorrência, a existência de causasou obstáculos que a expliquem. Mas, se se parte de umpostulado histórico controvertido, o que pensar dacondição dele decorrente que se impõe ao historiador?Pensamos, portanto, que Sierpinska não se coloca emvantagem em relação a Brousseau ou a Artigue ao tentarconceber os obstáculos epistemológicos como causasexplicativas das lentidões. Além do mais, quando nosatentamos para a natureza das causas por ela invocadaspara explicar o reconhecimento histórico tardio de quea operação de passagem ao limite goza do estatuto deverdadeira operação matemática, notamos que essas causasou obstáculos ou se caracterizam por serem conhecimentosque teriam impedido o reconhecimento de um outro conhecimento –e, portanto, conhecimentos conforme Bachelard ouBrousseau –, ou então se caracterizam por serem umaausência de percepção de que os conceitos matemáticosfuncionam ou deveriam ser vistos de tal ou qual maneira;isto é, por serem uma ausência de conhecimento, o que sechoca com a concepção bachelardiana e brousseaunianade obstáculo epistemológico. O que dissemos a respeitoda concepção de obstáculo epistemológico, no planohistórico, poderia também ser transferido para o planoda construção individual ou interativa dessa noção naatualidade, embora, nesse nível, Sierpinska não nosforneça um critério explícito que funcione como umparâmetro para a identificação de obstáculos.

Em relação ao papel que atribui Sierpinska àanálise histórico-epistemológica no âmbito da investigaçãoem didática da matemática, podemos dizer que esse tipode análise é visto como uma ferramenta, isto é, como uminstrumento que possibilitaria a obtenção de certos fins.Que fins são esses? São obviamente fins metodológicos,isto é, relativos à metodologia da investigação em didáticada matemática, uma vez que ela se apresenta como uminstrumento adequado e indispensável para se proceder

à leitura, isto é, à identificação, análise e explicação dosobstáculos e dificuldades que se manifestam no processode construção individual e/ou interativa do conhecimentomatemático. E por que a análise histórico-epistemológicapoderia e deveria se prestar a um tal fim? Porque paraela, de algum modo, a psicogênese de idéias matemáticas évista como o espelho da constituição histórico-epistêmicadessas mesmas idéias, ainda que esse espelho goze da es-tranha propriedade de refletir apenas alguns aspectos (quais?)dessa constituição. Mas ao mesmo tempo em que, paraesta autora, a psicogênese aparece como um espelho semi-opaco da constituição histórico-epistêmica, essa mesmaconstituição também se mostra como espelho da psicogê-nese, uma vez que esta última também se evidencia comoum instrumento metodológico para a leitura epistêmica doprocesso de constituição histórica das idéias matemá-ticas, ainda que esse processo histórico seja identificadomeramente com a restituição dos “pontos de vista adotadospelos matemáticos do passado”. Cabem-lhe, portanto, todasas considerações críticas que fizemos anteriormente aomodo como Piaget e García concebem e utilizam ochamado método psicogenético.

Em sua comunicação intitulada Sur un programmede recherche lié à notion d’obstacle épistémologique feita noColóquio Internacional de Montreal, ocorrido em outubrode 1988, Sierpinska tenta dar um passo além, com oobjetivo de melhor caracterizar a sua concepção deobstáculo epistemológico. Essa mudança de orientação,expressa pelo que vamos chamar de “teoria trifásica acercada cultura matemática”, e na qual ela vai ancorar a sua tesede que os obstáculos epistemológicos devem ser encarados comoum fenômeno cultural, acha-se, porém, melhor e maisrecentemente explicitada em seu livro Understanding inMathematics, publicado em 1994. Antes de mais nada, épreciso esclarecer que a “sua” teoria trifásica acerca dacultura matemática não é totalmente original, masinspira-se, como ela mesma ressalta, nos trabalhosantropológicos de E. T. Hall, particularmente no livrointitulado The Silent Language, publicado em 1981. Defato, segundo ela, também na cultura matemática poderiamser distinguidos três níveis, que se caracterizariam dosseguintes modos: 1) um nível técnico, isto é, o nível doconhecimento racionalmente justificado e, portanto, aceitopela comunidade dos matemáticos; 2) um nível formal, istoé, o nível ao qual pertencem as crenças, as convicções eatitudes hegemônicas em relação à matemática as quais,por serem hegemônicas, são tidas como óbvias; 3) umnível informal, isto é, o nível do conhecimento tácito, doscânones de rigor e convenções implícitas (Sierpinska, 1994,p. 163, 164 e 165).

É visível que essa teoria trifásica de Hall-Sierpinska nada mais faz do que repetir idéias que jávinham sendo defendidas pelo menos desde Frege. O

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esquema a ela subjacente é o seguinte: separemos, emprimeiro lugar, o “mundo” do conhecimento em doissubmundos, o submundo do conhecimento objetivo(nível técnico) e o submundo do conhecimento subjetivo(níveis formal e informal); em seguida, separemos osubmundo do conhecimento subjetivo em dois outros, odas nossas representações subjetivas acerca do submundoobjetivo (nível formal) e o das regras tácitas e não-conscientes que orientam tanto a comunidade científicano processo de legitimação do conhecimento quantonossos esquemas ou processos mentais subjetivos que nãosão conscientemente acionados no ato de enfrentamentode um problema matemático. Percebe-se ainda umacerta semelhança dessa teoria trifásica com a teoria dostrês mundos proposta por Popper na sua tentativa de darconta do problema de demarcação entre o conhecimentocientífico e o não-científico, com uma diferençasignificativa: a ausência nesta teoria trifásica de Hall-Sierpinska do mundo 1 de Popper, isto é, do mundofísico propriamente dito. Dessa forma, o mundo doconhecimento matemático aparece como um universoestritamente conceitual de saberes e metassaberes semqualquer tipo de ancoragem nos mundos material e/ousocial propriamente ditos. Os obstáculos voltam a serconcebidos como conhecimentos propriamente ditos. Maspara que isso seja possível, por um lado, crenças, concep-ções, convicções e atitudes acabam sendo incluídos namesma categoria a que pertencem os conhecimentos ditosóbvios, isto é, acima de quaisquer suspeitas; e, por outrolado, aqueles expedientes que permanecem no nível donão-dito, do não completamente consciente (isto é,mecanismos e processos mentais individuais, normas,regras e critérios institucionais implícitos de validaçãodo conhecimento) passam também a ser vistos comoconhecimentos tácitos. Mas se o critério aparente que distingueos conhecimentos óbvios dos tácitos baseia-se no graude consciência individual ou pública das crenças, normas emecanismos mentais, a distinção entre conhecimentosóbvios e tácitos acaba se tornando difusa, uma vez quenão vemos por que razões crenças, concepções,convicções e atitudes devam, necessariamente, gozar dapropriedade de “serem totalmente conscientes” ou de“serem óbvias”, e por que razões processos mentaisindividuais, normas e critérios institucionais, pelo fatode serem implícitos ou tácitos, não possam gozar tambémda propriedade de “serem completamente conscientes”.Não vemos ainda por que razões os conhecimentosexplícitos e publicamente legitimados (pertencentes aonível técnico) não possam também ser consideradosóbvios e completamente conscientes, o que torna difusaa fronteira que separa os conhecimentos ditos “técnicos”dos ditos “formais”. Adicionalmente, segundo Sierpinska,é apenas nos níveis formal e informal que os obstáculos

epistemológicos podem se manifestar. Portanto, ao negara possibilidade de manifestação dos obstáculos epistemo-lógicos no “nível técnico” da cultura matemática,Sierpinska acaba excluindo a possibilidade de se buscarobstáculos exatamente naquela categoria de conhecimen-tos que para Brousseau – e em certo sentido tambémpara Bachelard – constituía a fonte natural de obstáculos.Mas não levanta qualquer argumento convincente parajustificar esse impedimento de os conhecimentostécnicos poderem funcionar também como obstáculos.Pensamos ainda que, tanto na teoria da cultura de Hallquanto na correlata teoria da cultura matemática deSierpinska, o termo “cultura” é concebido meramentecomo o espaço de ação e interação de um conjunto deindivíduos espacialmente e temporalmente configurados.É a intersubjetividade que define a cultura, mas nenhumpapel é conferido às estruturas sociais propriamenteditas, pois o “social” é assimilado ao “intersubjetivo” e,tal como em Lakatos, o conhecimento se desenvolve e setransforma exclusivamente mediante a crítica pública.Nenhum papel significativo desempenham nesse processoas formas de organização política, econômica e social eas estruturas sociais a elas correspondentes; os grupos e asclasses sociais, com suas ideologias e interesses acham-setambém excluídos desse processo. Nesse sentido, osobstáculos epistemológicos – supostos motores doprogresso do conhecimento – ou são gerados porconstrutos subjetivos ou por construtos “objetivos”internos a uma comunidade científica restrita, fechada emsi mesma e que não sofre influências de “fatores culturais”que extrapolem os seus próprios limites de ação e atuação.Radford tem, portanto, razão quando afirma que oprograma revisado dos obstáculos epistemológicos apresentadopor Sierpinska “reduz a cultura ao social behaviorismo”,o que o torna muito parecido com o Strong Program deBloor (Radford, 1997, p. 30). Dessa forma, o compro-misso com o social behaviorismo, o artificialismo e aambigüidade subjacentes à teoria trifásica de Hall-Sierpinska impedem que a encaremos como um recursorazoável, consistente e convincente de salvamento dateoria dos obstáculos epistemológicos.

Vamos voltar agora a nossa atenção para opapel que atribui Sierpinska à análise histórico-epistemo-lógica no âmbito da investigação em didática da mate-mática nesta segunda fase de seu pensamento. Em seulivro de 1994, essa questão é retomada dentro do temamais geral relativo às diferentes abordagens da compreensão(isto é, da aprendizagem significativa) em matemática,no âmbito da pesquisa em educação matemática. SegundoSierpinska, haveria pelo menos quatro tipos de teorias oumodelos que se prestariam a esse fim: 1) aqueles que, comoo dos Van Hiele ou o de Bergeron e Herscovics, secentram sobre a hierarquia dos níveis de compreensão;

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2) aqueles que, tais como os apresentados por Greeno,Lesh, Dubinsky, Lewin, etc., se centram sobre as idéiasde modelo mental, modelo conceptual, estrutura cognitiva, etc.; 3)aqueles que, tais como os de apresentados por Skemp,Douady e Sfard, se centram sobre a idéia de jogo dialéticoentre dois modos de se atingir o objeto da compreensão;4) aqueles que se centram na abordagem histórico-empíricada compreensão matemática, e nos quais se inclui aprópria Sierpinska (Sierpinska, 1994, p. 119-120). Para ofim que aqui temos em vista, é suficiente focalizarmosapenas esta última abordagem. Segundo Sierpinska, asabordagens ou teorias que se incluem nesta última categoria,embora estejam bastante próximas àquela desenvolvidapor Piaget e García na obra Psicogênese e história da ciência,diferenciariam-se entre si segundo o modo comoconcebem a relação entre epistemologia e educação.Sierpinska tenta caracterizar essa relação pelas diferençasque acredita existir entre esses dois empreendimentos.Uma primeira diferença, segundo ela, residiria nosobjetivos distintos que orientam as análises epistemológica eeducacional. Caberia à primeira identificar e esclareceros mecanismos de desenvolvimento, estágios, tendências, leis(tal como as leis da equilibração das estruturas cognitivas edo funcionamento da abstração reflexiva e refletida), etc.ao passo que a segunda, por partir do pressuposto de queaprender nada mais é do que superar uma dificuldade,visaria à detecção de acelerações e regressões, de lacunas ouinterrupções epistemológicas, bem como de obstáculos epistemoló-gicos e de dificuldades. Com isso, Sierpinska parece estarquerendo ressaltar que enquanto o foco da análiseepistemológica seria a identificação e o funcionamentodos mecanismos de desenvolvimento com vistas à obtenção doequilíbrio cognitivo, a preocupação da análise educacionalincidiria, antes de mais nada, e sobretudo, na identificaçãode formas de funcionamento dos mecanismos que atuamna desestabilização das estruturas cognitivas do estudante,condição necessária e anterior a fim de que qualquerprocesso de equilibração ocorra. Isso porque, para ela,

a construção de significados parece ser determinada, nãopelos estágios – pelo menos não somente pelos estágiospositivos de um movimento em direção à mudança –mas também pelo impacto negativo de várias normas,crenças e modos de pensar que constituem obstáculos aessa mudança. (Sierpinska, 1994, p. 121)

Entretanto, Sierpinska não nos apresenta umargumento sequer que nos induza a acreditar por querazões a análise epistemológica deveria restringir-se ex-clusivamente à “tarefa positiva e moderadora” de identificare esclarecer o funcionamento dos mecanismos equilibradoresdeixando ao investigador em educação a “tarefa negativa eagitadora” de identificar e esclarecer o funcionamento

dos mecanismos desestabilizadores. Pensamos que esta divisãode tarefas é completamente artificial e arbitrária, umavez que o epistemólogo que está convencido de que oprocesso de construção do conhecimento possa serdescrito e esclarecido em termos de níveis hierárquicosqualitativamente distintos, progresso e equilíbrio, inevita-velmente compartilha do pressuposto tácito ou explícitoque afirma a existência de mecanismos desestabilizadores.Por que, então, não dedicar a eles também a sua atenção?Por outro lado, o educador matemático – e também oinvestigador dessa área de conhecimento – que compar-tilhe esta mesma visão do processo de construção doconhecimento matemático jamais poderia restringir-se aopapel de mero desestabilizador das estruturas cognitivasdo estudante, uma vez que, após isso, a ele se colocatambém a tarefa crucial de saber como – e através deque mecanismos equilibradores – dar continuidade aoprocesso que conduz ao equilíbrio. Por que então, nãodedicar a eles também a sua atenção?

Uma segunda diferença entre as análisesepistemológica e educacional apontada por Sierpinska,que diz respeito ao suposto caráter genérico da primeira emdetrimento de um suposto caráter específico da segunda, ficapatente quando afirma que:

Para a educação matemática, teorias gerais do desenvol-vimento são apenas um meio para elaborar e planejar odesenvolvimento de conceitos e processos matemáticosparticulares. Para a epistemologia, esta hierarquia seinverte: teorias gerais são a verdadeira meta da pesquisaepistemológica e o estudo de processos particulares não ésenão um meio para se atingir essa meta. (Sierpinska,1994, p. 122)

Mas se levarmos a sério essa distinção, devería-mos, inevitavelmente, nos perguntar em quais teorias geraisdo desenvolvimento os diferentes investigadores em educaçãomatemática se baseiam quando falam sobre e/ou fazemepistemologia da matemática. Deveríamos nos perguntarqual é a teoria geral do desenvolvimento que informa aepistemologia dos números inteiros de Glaeser, qual é a teoriageral do desenvolvimento que informa a epistemologia dosnúmeros decimais de Brousseau; qual é a teoria geral dodesenvolvimento que informa a investigação a respeito dosobstáculos epistemológicos relativos à noção de limite de alguns dosinvestigadores da escola francesa, e da própria Sierpinska,que a ela se dedicaram. Poder-se-ia responder a essaquestão dizendo que a epistemologia geral de Bachelardestaria informando esses vários estudos. Porém, por queencarar a epistemologia de Bachelard uma epistemologiageral? Em primeiro lugar, este geral deve sofrer umadelimitação, porque a teoria de Bachelard dizia respeitotão somente ao conhecimento dito científico. Em segundo

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lugar, essa epistemologia do conhecimento científicoprecisou, para constituir-se e legitimar-se, recorrer àsdiferentes esferas particulares do conhecimento científicoem busca de exemplos específicos que a pudessem validar(aliás, não é dessa forma que se constrói o pensamentode Bachelard em seu A formação do espírito científico?).Bachelard não precisou esperar o surgimento de umconjunto de epistemologias particulares elaboradas porepistemólogos específicos para, somente após isso,através de um processo de generalização, inferir umasuposta teoria geral. Assim sendo, a suposta teoria geral deBachelard nos aparece tão específica quanto aquelas levadasa cabo pelos investigadores no terreno da educação mate-mática. Mas, ainda que esteja subjacente ao empreendi-mento de Bachelard (como também ao de Piaget e García),um certo desejo de generalização (parcial no primeiro e ili-mitado no segundo), e ainda que se possa renunciar a essedesejo quando se trabalha com “epistemologias específicas”,como aquelas a cuja construção se dedicam algunsinvestigadores em educação matemática, a avaliação dalegitimidade dessa distinção nos remete à discussãomais ampla relativa ao real estatuto do pensamento ditoepistemológico em relação ao pensamento histórico.Defendemos, porém, que essa distinção, embora estejaligada às intenções orientadoras de cada tipo de análise,como ressalta Sierpinska, não se dá em termos do partensional geral versus particular. Desta forma, pensamosque, mesmo nesta segunda fase do pensamento deSierpinska, não fica satisfatoriamente caracterizado opapel que cumpriria a análise epistemológica no plano daprática pedagógica e/ou da investigação em educaçãomatemática. Mas é preciso entender ainda como é que,para ela, a história da matemática intervém neste processo,isto é, de que modo a análise histórica se distinguiria daprópria análise epistemológica e por que deveria o investi-gador em educação matemática, que se situa dentro dochamado referencial histórico-empírico da compreensão matemática,a ela recorrer. A seguinte passagem é bastante esclare-cedora a esse respeito:

A hipótese fundamental que está subjacente à abor-dagem histórico-empírica não é a da existência deum paralelismo em termos de conteúdos entre osdesenvolvimentos histórico e genético da compreensãocientífica. Aquilo que se considera responsável pelas seme-lhanças que encontramos entre os modos como nossosestudantes compreendem e o modo como nossos antepassa-dos compreenderam na história, não é o suposto fatode que a “filogênese recapitula a ontogênese”mas, por um lado, um certo compartilhamento demecanismos desses desenvolvimentos, e, por outro, apreservação, na tradição lingüística e no usometafórico de palavras, dos sentidos a elas

atribuídos no passado. (Sierpinska, 1994, p.122-123, grifos nossos)

Não podemos deixar, antes de mais nada, dedestacar uma espécie de contradição presente no modocomo Sierpinska tenta caracterizar a hipótese fundamentalsubjacente à abordagem histórico-empírica da compre-ensão (ou aprendizagem significativa) da matemática.De fato, ao mesmo tempo em que, ao tentar caracterizá-la negativamente, insiste em registrar que não se trata deuma hipótese recapitulacionista, ou que não se pretendedefender um paralelismo ao nível dos conteúdos mate-máticos propriamente ditos, ao caracterizá-la positivamente,acaba, porém, ressaltando a preservação de certas caracte-rísticas, tanto na filogênese quanto na ontogênese, quaissejam, a de certos mecanismos inerentes à construçãodo conhecimento (a seqüência dos estágios e mecanismosde passagem de um a outro dos níveis “intra”, “inter” e“trans”) e dos sentidos racionais e metafóricos dostermos científicos. Ao levantar essa hipótese, Sierpinskanos coloca diante da seguinte situação: 1) há algo que sepreserva em ambos os processos; 2) esse algo não são coisasbanais, mas coisas muito relevantes como mecanismosde produção do conhecimento e significados das palavras.É claro que o recapitulacionismo não se caracteriza sim-plesmente pela defesa do ponto de vista de que algo sepreserva nos dois processos. Precisaríamos saber asrazões que sustentariam tal preservação, uma vez que não setrata de duvidar de que os estudantes da atualidadecontinuem empregando muitos dos mecanismos mentaisempregados por nossos antepassados e de que continuematribuindo a certas palavras muitos dos significados aelas atribuídos por eles. Mas como explica Sierpinskaessa preservação? Explica-a recorrendo ao mesmo tipode argumento de natureza biológica utilizada por Piaget eGarcía na obra a que já nos referimos exaustivamente.Essa preservação nem mesmo recebe qualquer tipo deexplicação com base em sua teoria cultural trifásica de cunhosocial-behaviorista da cultura matemática, utilizada exclusiva-mente para defender a natureza cultural dos obstáculosepistemológicos. Em nenhum momento se alega que tal“preservação” poderia ter-se dado através de mecanismospropriamente socioculturais como os de transmissão ouapropriação cultural, de preservação da memória oudifusão da cultura, etc. Dessa maneira, a hipótese quelevanta Sierpinska para justificar uma abordagem histórico-empírica da educação matemática ao nível da investigaçãofica sujeita às mesmas críticas que já fizemos às pesquisasem educação matemática que tomam por base oreferencial de Piaget e García. Mas poderíamos nosperguntar ainda por que o pesquisador em educaçãomatemática, filiado ao referencial histórico-empírico precisaria,necessariamente, basear-se numa hipótese desta natureza

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para realizar suas investigações. De acordo com Sierpinska,só podemos saber se de fato está ocorrendo uma apren-dizagem significativa (isto é, uma aprendizagem comcompreensão) de um tópico qualquer da matemática setivermos como referência um “modo ideal decompreensão do objeto em questão” (Sierpinska, 1994,p. 124). Mas como poderemos julgar se uma forma deaprendizagem é, de fato, mais significativa do que outraqualquer? Onde buscar esse modo ideal de compreensão? Éaqui que a história intervém. Diz ela:

se sabemos quais foram as maiores rupturas na história(ou pré-história) de uma teoria; quais questões impul-sionaram repentinamente novos desenvolvimentos; quaisforam as formas de compreensão causadoras de estagnação,então, seremos capazes de identificar as formas de apren-dizagem realmente relevantes. Mas nessa avaliação, oestágio de desenvolvimento no qual se encontra a criançaou o estudante é um fator importante. Embora asformas iniciais de compreensão estejam implicadasnas formas adultas, elas não são transparentes, e ahistória da matemática é a história da matemáticaadulta. Portanto, as análises históricas devem ser feitasem interação com os estudos empíricos acerca do modocomo os conceitos matemáticos se desenvolvem nacriança. Então, uma aprendizagem pode serjulgada significativa se ela acusa a passagempara um nível diferente de pensamento, porexemplo, do intra para o inter ou do pensamento sob aforma de complexos para o pensamento conceptual, sedesejamos trabalhar com o referencial da psicologiavygotskiana. Em geral, propomos julgar como maisimportantes do que quaisquer outras, aquelas formasde aprendizagem que consistem em superarobstáculos, epistemológicos ou desenvolvimentistas,relacionados com o conhecimento científico maduro.(Sierpinska, 1994, p. 124, grifos nossos)

Nesta colocação, a história se manifesta comofonte de busca das formas ideais de aprendizagem mate-mática. É por essa razão que o pesquisador deveria a elarecorrer. Mas tendo em vista o fato de ser a história damatemática uma história da matemática adulta, isto é, deuma matemática produzida por adultos, essas formas ideaisde aprendizagem matemática devem ser confrontadascom estudos empíricos de desenvolvimentos conceptuaisde crianças da atualidade. Vê-se, portanto, que a necessidadedo confronto não advém da existência de intenções,motivações sociais e condições políticas, econômicas esociais diferenciadas subjacentes ao contexto históricode produção do saber matemático e ao contexto daaprendizagem escolar contemporânea desse saber, mastão somente da diferença etária existente entre o matemático

adulto de qualquer época e contexto e o aprendiz neófito damatemática de qualquer época e contexto. Portanto, paraque o aprendiz neófito da matemática, na atualidade, atinjao patamar no qual se encontra a matemática adulta,também na atualidade, basta percorrer, gradativamente,os diferentes níveis hierárquicos de pensamento pelosquais passaram os matemáticos adultos de qualquerépoca e contexto. É desta forma, e somente desta, queo aprendiz da atualidade realizaria uma aprendizagem defato significativa, atingindo a compreensão matemática.Mas para Sierpinska, esse percurso etapista em direção àmatemática adulta só pode ser realizado mediante asuperação de obstáculos:

Por que pensamos que a compreensão ideal deve seratingida através da superação de obstáculos? Por que oprocesso de compreensão deve ter uma tal naturezadramática? As razões repousam em nossas hipótesesacerca do desenvolvimento intelectual de um indivíduo edo desenvolvimento histórico do conhecimento. A pri-meira hipótese é que na passagem de um nível a outro deconhecimento e compreensão, há uma necessidadesimultânea de integração e reorganização. A cogniçãonão é um processo acumulativo. Pressupõe-se isso tantopara a psicogênese quanto para a história do conheci-mento científico. (Sierpinska, 1994, p. 125-126)

Vê-se, agora, que os obstáculos epistemoló-gicos não são mais concebidos, como anteriormente,como obstáculos à compreensão “correta”, e sim comoobstáculos a alguma mudança na estrutura da mente.Dessa forma, a importância da história para o pesqui-sador em educação matemática se evidencia não mais pelofato de haver uma preservação dos mesmos obstáculosepistemológicos, tanto na filogênese quanto na psicogênese,mas pelo fato de haver uma preservação da forma de seproduzir o conhecimento matemático, via superação de obstáculos,nessas duas instâncias. A psicogênese do conhecimentomatemático e a aprendizagem escolar da matemáticanão mais espelham os obstáculos epistemológicos em simesmos, mas a forma de se produzir o conhecimentomatemático através da superação de obstáculos. A ênfasepassa dos obstáculos em si mesmos para a forma de seprocessar uma aprendizagem que só será compreensivacaso se processe via luta para a superação de obstáculos,luta esta que só a história nos poderia ensinar.

Quando se procede a uma avaliação sumária domodo como a noção bachelardiana de obstáculo episte-mológico foi apropriada pelos educadores matemáticosfiliados à escola francesa contemporânea de didática damatemática,13 de toda a polêmica que se estabeleceu emrelação à legitimidade de sua utilização ao nível dainvestigação e da ação pedagógica, a seguinte conclusão

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acaba se impondo: parece-nos difícil discordar do fatode que os alunos, em seus processos de aprendizagemescolar da matemática, enfrentam dificuldades e obstáculosdos mais diversos tipos, os quais acabam impedindo aapropriação do novo conhecimento. Difícil parece tam-bém discordar do fato de que nossos antepassados, noenfrentamento de problemas determinados no processode produção de novos conhecimentos no terreno damatemática, igualmente enfrentaram dificuldades e obstá-culos de diferentes tipos. Entretanto, quando falamos naexistência de dificuldades e obstáculos no plano contem-porâneo do ensino-aprendizagem da matemática, estamoscom isso querendo dizer que as dificuldades e obstáculosenfrentados pelos estudantes são sempre relativos, tendoem vista que eles só podem ser caracterizados comodificuldades e obstáculos porque o são à luz de um sistemade referências constituído pelo saber já elaborado que se estáquerendo transmitir, reconstruir ou problematizar. Omesmo não ocorre, entretanto, em relação às dificuldadese obstáculos enfrentados por nossos antepassados. Porquê? Simplesmente porque eles não possuíam um sistemade referência “acabado” à luz do qual pudessem julgar avalidade das suas propostas de soluções aos problemasenfrentados. Portanto, não podiam ter consciência dessesobstáculos (ou, pelos menos, dos mesmos obstáculos aosquais se costuma hoje fazer referência). Nesse sentido,esses obstáculos inexistiam para eles. Apenas quando saídase propostas de solução “adequadas”, isto é, aceitas comoadequadas por uma comunidade científica, são alcançadasé que se pode rever as propostas antecedentes e “enxergar”nelas desvios e mal-entendidos em relação à soluçãoadequada negociada, e também “obstáculos” que seusproponentes não teriam sabido superar adequadamente.Quando se faz história temática da matemática ou históriadas idéias matemáticas com base na noção de obstáculo,tal como a concebeu Bachelard, está-se, implícita ou expli-citamente, assumindo, portanto, um pressuposto indutivistaregressivo ilegítimo que pode ser assim expresso: aspropostas de solução a determinados problemas, aceitascomo bem sucedidas e adequadas numa certa época, po-dem ser legitimamente utilizadas como referência paraapontar as “deficiências” do passado, as “deficiências”dos nossos antepassados, as “deficiências” das opções rea-lizadas por nossos antepassados. Desse modo, se algumasvezes estudantes da atualidade incorrem nos mesmos tiposde erros ou caso se defrontem com obstáculos análogosàqueles enfrentados por nossos antepassados, isso nãosignifica que os processos pedagógicos da atualidade deve-riam estar, inevitavelmente, direcionados, condicionadosou mesmo que pudessem ser explicados ou justificadospelos fracassos pessoais de matemáticos, manifestados nopassado. Em nosso modo de entender, isso significa apenase tão somente que o modo como os estudantes da atua-

lidade, inseridos num contexto determinado, interagemcom a forma pela qual o professor resolve conduzir osprocessos construtivos de ensino-aprendizagem nessecontexto, o que acaba propiciando o surgimento dessasdificuldades e não de outras. Pois se assim não fosse, porque estariam os estudantes da atualidade fatalisticamenteinclinados a reproduzir os mesmos “erros” e “obstáculos”enfrentados por nossos antepassados e incapazes dereproduzir também seus “êxitos” e “acertos”? Seria issouma mera ironia do destino? Uma brincadeira do acaso?Além do mais, é possível atualmente, como o fez LeoRogers no Encontro de História e Educação Matemáticaocorrido em Braga em 1996, questionar a concepçãobachelardiana de obstáculo epistemológico com base noargumento de que esta concepção assenta-se em umavisão indutivista da história e que, por esta razão, elanão seria confiável nem para se proceder a uma análisee avaliação do desenvolvimento científico ou matemático emuito menos para se predizer problemas pedagógicoscontemporâneos (Rogers, 1996). De fato, a concepçãoindutivista da história, e particularmente da história e dafilosofia da ciência e da matemática, nada mais faz doque tentar proceder a uma análise avaliadora e julgadora daciência passada com base naquilo que a ciência se tornouno presente. Tudo se passa como se a matemática contem-porânea pudesse se constituir em critério fidedigno elegítimo para se avaliar as atitudes, as idéias, as formasde procedimento e as opções de nossos antepassados,isto é, a matemática de nossos antepassados. Tudo sepassa como se a matemática, inevitavelmente, tivesse quese tornar aquilo que se tornou. E daí, a noção de“obstáculo” passa a dizer respeito a tudo aquilo que, nopassado, teria impedido a matemática de se tornar aquiloque hoje ela é, de se apresentar do modo como ela se nosapresenta hoje. É claro que uma visão indutivistaregressiva dessa natureza é incompatível com a concepçãode matemática como produção sociocultural ou comouma “representação social” como defendeu Restivo (cf.Restivo, 1992, p. 99-128). Isso porque ela sempre acabaproduzindo uma história internalista, desencarnada edescontextualizada de conceitos e idéias, na qual osfatores externos não podem exercer papel significativoalgum, uma vez que a matemática, desde o início, tendea ser aquilo que é em sua forma contemporânea. Umavisão que corta, pela raiz, a possibilidade de amatemática ter-se tornado algo diferente daquilo que ela éhoje. Mas foi com base nessa concepção indutivistaretroativa da história do pensamento científico, para a quala noção de obstáculo epistemológico revelou-se indispen-sável, que Bachelard tentou estabelecer um paralelismoentre a formação do espírito científico dos estudantes daatualidade e o desenvolvimento histórico da ciência, para-lelismo este mediado pela epistemologia ou, mais precisamente,

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por uma proposta de empreendimento de uma análiseepistemológica da história. E foi também, como vimos, combase nesta mesma concepção indutivista da história damatemática, associada à concepção especular da relaçãoentre história e educação matemática mediada pela noção deanálise epistemológica da história da matemática, que muitosdos pesquisadores contemporâneos tentaram e continuamtentando desenvolver as suas pesquisas e/ou ações peda-gógicas no plano do ensino-aprendizagem da matemática.

Considerações finais

Com base nas considerações anteriores, seria,portanto, legítimo afirmar que tanto no caso daconcepção bachelardiana centrada na noção de obstáculosepistemológicos quanto no da concepção de Piaget e García(que apela para a noção de mecanismos de passagem), comotambém em todos os tipos de concepções da relaçãoentre análise epistemológica da história e psicogênese,ou da relação entre análise epistemológica da história einvestigação em educação matemática, baseadas, diretaou indiretamente, nas noções de recapitulação eparalelismo – seja o que quer que se postule que possaser recapitulado ou conservado em ambos os processos:erros, dificuldades, obstáculos epistemológicos, acertos,motivações do processo, conteúdos específicos, ordemde aquisição de noções e conceitos matemáticos, oumecanismos e operações mentais de passagem –, umacrítica comum que a elas poderia ser remetida é a de queacabam projetando indevidamente, quer no planopsicogenético, quer no plano pedagógico, quer ainda noda investigação, as iniciativas do passado, como se asanálises epistemológicas da história tivessem o poder deantecipar, de explicar ou mesmo de tornar previsível orumo do desenvolvimento psicogenético; e, conseqüen-temente, de antecipar, explicar e tornar previsíveis todasou algumas formas de comportamento dos sujeitos depesquisas em educação matemática ou dos estudantesda atualidade no processo de construção/apropriaçãodo conhecimento matemático. Essa projeção inaceitávelse baseia sempre no questionável raciocínio duplamenteindutivo seguinte: em primeiro lugar, procede-se a umaanálise epistemológica da história da matemática, isto é,analisa-se e avalia-se o passado com base nas formu-lações mais recentes atingidas pelo desenvolvimento damatemática; em seguida, projeta-se indevidamente, noplano psicogenético e/ou no plano da investigação ouno do ensino-aprendizagem, o produto dessa análiseepistemológica da história. A ordem dessas projeções pode,às vezes, mudar, mas pensamos que isso não altera a ile-gitimidade da conclusão. Desse modo, quaisquer “lições”que se procurasse extrair da história da matemática nãopoderiam jamais ultrapassar o nível da mera analogia;

seria, portanto, imprudente, porque ilegítimo, dotá-lasde poder preditivo, explicativo ou conclusivo, uma vezque jamais poderiam atingir o estatuto de argumentos,por mais dados empíricos que tenham sido ou possamser acumulados para atestar tais analogias. No fundo,tudo se passa como se a mente, em seu processamentocognitivo de apropriação de idéias matemáticas, fosse do-tada de uma inexplicável característica intrínseca de operarcomo espelho das análises epistemológicas das históriasdessas idéias (ou então, contrariamente, no caso dePiaget e García, da análise epistemológica da história dasidéias matemáticas que, por alguma razão inexplicável,tivesse se constituído de modo a espelhar uma suposta lógicaque estaria presidindo o processo psicológico subjetivo deapropriação das idéias matemáticas), e que, por essa razão, oprocesso da investigação em educação matemática e/ou oensino-aprendizagem da matemática devesse espelhar, istoé, refletir mais ou menos fielmente, totalmente ou emparte, as constituições histórico-epistêmicas.

Mas do mesmo modo como tem se tornadocada vez mais criticada e condenada, na psicologia e nafilosofia ocidental contemporâneas, a crença milenar de quea produção e legitimação do conhecimento, tanto no nívelsubjetivo quanto objetivo, se processaria exclusivamente combase no critério clássico de verdade, segundo o qual oconhecimento deveria representar, conformar-se a ouespelhar uma suposta estrutura íntima e oculta da natureza,ou uma suposta essência ou organização estrutural darealidade objetiva – sendo o livro de Richard Rorty,intitulado A filosofia e o espelho da natureza, uma das maisvigorosas críticas relativamente recentes a essa crença –,este artigo procurou argumentar em favor do ponto devista de que deveríamos também questionar uma outracrença de grande penetração e influência no âmbito dainvestigação contemporânea em educação matemática,qual seja, a de que o processo de investigação relativo àapropriação de noções matemáticas na atualidade deveriaespelhar ou mesmo basear-se nos diferentes momentos ouetapas de análises epistemológicas da história dessa idéia.

Mas se quebrarmos o espelho, isto é, se abando-narmos as metáforas do reflexo, do paralelismo ou darecapitulação, restaria ainda alguma forma plausível dese conceber a participação da história e da epistemologiano terreno da investigação em educação matemática?Em outras palavras, se essa consonância especular entre osníveis histórico, mental e pedagógico, no plano da inves-tigação, não conseguiu, a nosso ver, impor-se ou atestar-semediante o recurso de se apelar à epistemologia enquantoempreendimento mediador necessário entre esses trêsníveis, poderíamos nos perguntar se outras formas de seconceber a relação entre eles, que buscassem romper comesse desejo de consonância especular, poderiam ser vislumbradas.

Se os pontos de vista anteriores, acerca das

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formas de participação da história e da epistemologia damatemática no terreno da investigação em educaçãomatemática, nos pareceram contestáveis e inadequados,é porque, paradoxalmente (ainda que tragam implícita anecessidade de se estabelecer uma distinção entre históriada matemática e epistemologia da matemática), acabam, nofundo, tornando indistintas essa duas práticas de investigação.

Pensamos que seria sim possível e apropriadodistinguir as histórias da matemática das filosofias damatemática e conceber esses dois empreendimentos comopertencentes a dois campos distintos do saber contempo-râneo. De fato, quando fazemos, por exemplo, filosofia damatemática, aquilo que estaria orientando nossas investi-gações e análises seriam problemas de natureza filosóficapropriamente ditos, o que não significa que a história ou asociologia, por exemplo, não possam participar direta ouindiretamente dessa análise; porém, elas o fariam de formasubsidiária, isto é, enquanto instrumentos ou recursospara a constituição e tratamento de um problema que sesituaria na esfera da filosofia propriamente dita. Dessemodo, pensamos que a distinção entre um projeto decunho histórico e um outro de cunho filosófico sóconseguiria impor-se a partir das intenções e dos métodos deinvestigação explícitos ou tácitos que orientariam essesdiferentes projetos. Como não há nada que impeça que asidéias matemáticas ou o conhecimento matemático possaconstituir-se em objeto de investigação, tanto por parteda filosofia quanto por parte da história, da sociologia, dapsicologia, da pedagogia, etc., a única forma de se dis-tinguir quando um projeto se situaria em um ou outrodesses terrenos diria respeito às intenções e aos métodosde investigação que estariam orientando tal projeto.Porém, nem sempre é possível distinguir nitidamentequando um projeto se situa em um desses terrenos ouem outro. Esta impossibilidade de distinção se torna maispatente e aceitável quando o objeto da investigaçãohistórica identifica-se com as idéias (isto é, com osprodutos socioculturais e/ou com os processos de suaprodução) produzidas nas atividades relativas a camposespecíficos do conhecimento tais como a matemática, aquímica, a sociologia, a filosofia, etc., isto é, quando setrabalha no terreno da história social das idéias de um campoespecífico do conhecimento. De fato, se nos parece possível elegítimo distinguir (ainda que, para alguns, essa distinçãopossa ser contestada) entre história da matemática, filosofiada matemática, sociologia da matemática, psicologia damatemática, etc., soaria estranho, senão ilegítimo, distinguirentre história das Américas, sociologia das Américas,psicologia das Américas, etc. Esse estranhamento advémdo fato de soar-nos sensato e aceitável que os produtos eos processos de produção de atividades sociais específicas– ou, em uma palavra, que as “idéias” – sejam abordáveissegundo as intenções e os métodos de diferentes campos

constituídos do conhecimento, o mesmo não ocorrendocom um evento, episódio ou fato de outra natureza.

Analogamente, se nos soa sensato e aceitável queas “idéias” de uma prática social referida a um campoespecífico do conhecimento sejam abordáveis segundo asintenções e métodos de diferentes campos constituídos dosaber, o mesmo nem sempre ocorre quando o foco é postonão sobre as “idéias” propriamente ditas, mas sobre ahistória dessas idéias. Por exemplo: coisa aceitável seria umempreendimento de história da história da matemáticaou de filosofia da história da matemática; mas o queseria um empreendimento de sociologia ou de psicologiada história da matemática? Uma coisa seria aceitar adistinção entre pedagogia da matemática e filosofia da ma-temática, pois, embora ambos sejam empreendimentosintencionados relativos ao conhecimento matemático, eleso são segundo as intenções e interesses de duas áreasdistintas do conhecimento; outra coisa diferente seria aceitara distinção entre história da matemática e história damatemática com intenções filosóficas. Em outras palavras,embora seja legítimo distinguir entre história damatemática e filosofia da matemática, ou mesmo entrefilosofia da matemática e história da matemática com finsfilosóficos, o mesmo não ocorre com a tentativa de sedistinguir entre história da matemática e história damatemática com fins filosóficos. Isso pois mesmo que,como anteriormente, a história da matemática seja sempreum empreendimento intencionado relativo ao conheci-mento matemático, quando falamos em história damatemática e história da matemática com fins filosóficossituamo-nos dentro de um mesmo campo do conhecimento (no caso,o da história) e, neste caso, não é a natureza da intençãoque viria a descaracterizar a natureza do empreendimento.

Isso não significa, entretanto, que não possamosdistinguir entre história da matemática e análise filosóficadessa história. Mas o que uma análise filosófica da história(ou melhor, das histórias) da matemática poderia produzir?A nosso ver, duas possibilidades de resposta se colocam:ou uma análise crítica das intenções, pressupostos, fontes,métodos, teses, etc., explícitos ou tácitos, que conduziramà produção daquela história (e, neste caso, esse empreendi-mento estaria circunscrito ao terreno da filosofia dahistória propriamente dito), ou então, uma outra históriada matemática (isto é, uma história alternativa da mate-mática), caso esta análise ou interpretação da história damatemática à qual se aplica se faça à luz de métodos,intenções, pressupostos filosóficos, fontes, teses, etc.diversos daqueles utilizados pelo historiador para produziraquela história (e, neste caso, esse empreendimentoestaria circunscrito ao terreno da história propriamentedito). No primeiro caso –em que, sob o nosso ponto devista, estar-se-ia, de fato, fazendo filosofia ou análisefilosófica da história da matemática –, seria ilegítima a

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retirada de qualquer tipo de implicação direta para oterreno da pedagogia, que não ocorreria se estivéssemosconsiderando filosofias da matemática propriamente ditas enão filosofias da história da matemática; no segundo caso,penso que não estaríamos, a rigor, em presença de umafilosofia da matemática propriamente dita, mas simdiante de uma nova história, isto é, de uma históriaalternativa da matemática; e neste caso, a discussão acercadas potencialidades pedagógicas desta história alternativaconstitui um outro problema, qual seja, o problema relativoao modo como concebemos diretamente – isto é, sem amediação da filosofia da matemática, mas não sem a mediaçãoinevitável de pressupostos filosóficos gerais – a relação entre ahistória da matemática e a educação matemática.

É útil ressaltar, finalmente, que a defesa da auto-nomia ou da independência filosófica da história da matemáticaem relação à filosofia da matemática não implica, noentanto, a defesa do ponto de vista de que esses camposseriam completamente disjuntos ou incomensuráveis.Pensamos, porém, que a única conjunção possível entre elesassenta-se no fato de jamais se poder fazer histórias temáti-cas de “idéias” matemáticas sem pontos de vista filosóficos,explícitos ou implícitos, acerca da matemática, da “idéia”matemática que está sendo historicamente constituída,acerca da própria história, acerca da própria “história dasidéias”, etc. e, correlativamente, de jamais se poder fazerfilosofia da matemática sem pontos de vista, explícitosou implícitos, acerca do modo como se concebe a inserçãoda matemática e da filosofia na própria história.

Notas

1 Descrição e análise detalhadas desses trabalhos específicospodem ser encontradas em (Miguel, 1999a).

2 A noção de abstração reflexiva fica melhor caracterizada quandolhe opomos um outro tipo de abstração denominadaempírica. Enquanto que a abstração empírica é o ato mentalutilizado pelo sujeito para extrair informações dos objetos,informações estas que constituem propriedades dessesmesmos objetos (como, por exemplo, a cor, a massa, o materialde que é feito etc.), a abstração reflexiva é o ato mentalutilizado pelo sujeito para impor aos objetos ações, operações epropriedades que estes não possuem. A quantidade ou númerode elementos de um conjunto seria um tipo de informaçãoque se obteria via abstração reflexiva, uma vez que, segundoos construtivistas (ver, por exemplo, Kamii, 1984, p. 16), epara o próprio Piaget, o número não é uma propriedade dosconjuntos, mas uma relação que o sujeito decide impor adois ou mais conjuntos de objetos quando resolve estabeleceruma correspondência biunívoca entre os seus elementos.

3 A noção de generalização completiva fica bem caracterizadapor meio da seguinte nota de rodapé extraída do texto emquestão dos autores: “Dizemos que há ‘generalização comple-tiva’ quando uma estrutura, conservando suas característicasessenciais, se vê enriquecida por novos subsistemas que se

agregam sem modificar os precedentes. Por exemplo, aincorporação à Álgebra das álgebras não-comutativas quecompletam as comutativas” (Piaget; García, 1982, p. 10).

4 Esses métodos são os seguintes: 1) o método formalizante,que atacaria os problemas de estrutura formal e de validadedos sistemas de conhecimentos; 2) o método psicogenético,que, contrariamente aos problemas de natureza formal, visariaaos problemas de fato, relativos à caracterização dos diferentesestágios ou níveis de conhecimento e dos mecanismos depassagem de um a outro desses níveis; 3) o método histórico-crítico, que atacaria os problemas relativos à reconstituiçãoda história da ciência, sobretudo no que se refere à análisedos processos que conduzem de um a outro desses níveis.

5 A fim de justificar o ponto de vista de que o estudo de umaestrutura mental constitui uma forma de anatomia e aanálise do funcionamento dessas estruturas uma espécie defisiologia, a metáfora biológica utilizada por Piaget parte daseguinte pergunta: “Como é que a anatomia comparada efetuaas determinações dos planos comuns da organização de‘homologias’ ou parentescos genéticos de estrutura, etc.?” Aresposta de Piaget a essa questão é a seguinte: “há dois métodosdistintos que orientam constantemente essas determinações eque podem ser combinados entre si. O primeiro consiste emseguir a filiação das estruturas” quando sua continuidade aparecede modo visível nos tipos adultos “[...]quando há descontinuidaderelativa, o ‘princípio das conexões’ de Geoffroy Saint-Hilairepermite determinar os órgãos homólogos em função de suasrelações com os órgãos vizinhos. Mas esses métodos, fundadosno exame das estruturas já completas, estão longe de ser suficientespara satisfazer as necessidades da comparação sistemática,porque há filiações que escapam completamente à análise devido a umacarência muito grande de continuidade visível. Neste caso, impõe-senecessariamente um segundo método: trata-se do ‘métodoembriológico’ que consiste em estender a comparação aos estágiosmais elementares do desenvolvimento ontogenético” (Piaget,1970, p. 32-33, grifos nossos). Compare esta citação com a queé feita, logo em seguida, no corpo do texto.

6 Piaget se refere aqui à história feita pelos historiadores dasciências, a qual julga limitada pelo fato de referir-seunicamente às noções construídas e empregadas por umpensamento já constituído, qual seja, o dos cientistasconsiderados segundo a perspectiva de suas filiações sociais.

7 Náuplio: forma larvar comum a todos os crustáceos, comum ocelo mediano e três pares de apêndices.

8 Anafite: classe de crustáceos cirrópodes fixos.9 Tornar geométrica a representação dos fenômenos significa,

para Bachelard, a tentativa de se explicar matematicamenteos fenômenos, isto é, o esforço feito no sentido de seconciliar matemática e experiência, de se pôr os fatos sob aforma de leis, superando-se, dessa forma, as explicaçõesbaseadas em modelos analógicos ou imagéticos, isto é,aquelas em que o fenômeno a ser explicado é caracterizadomediante semelhanças que algumas de suas propriedadesmantêm com as propriedades de um objeto físico.

10 Segundo Bachelard, história perimida seria aquela que se fixariaem teorias sem valor científico, como, por exemplo, a teoriado flogístico. Já a história sancionada seria a que se fixaria emteorias propriamente científicas.

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11 No que se refere à análise retificadora e ampliadora empreen-dida no processo de apropriação das idéias bachelardianas,Brousseau deverá, antes de mais nada, diferentemente deBachelard (que explicitou tipos diversos de obstáculos noprocesso de constituição do pensamento científico), propore defender a tese da existência de origens diversas para osobstáculos epistemológicos no processo de construção doconhecimento matemático por parte dos alunos da atualidade;isto é, deverá propor uma classificação dos obstáculos combase no critério das razões que os desencadeiam. É precisoesclarecer que, para Brousseau, todos os obstáculos que semanifestam ao estudante no processo de aprendizagem,ainda que as razões para essa manifestação possam ser deorigens diversas, são, na verdade, obstáculos epistemológicos.Isso porque todos esses obstáculos dizem respeito aoconhecimento matemático propriamente dito.

12 Uma interpretação alternativa e contextualizada da história dosnúmeros inteiros relativos, não mais de natureza subjetivista,personalista e retroativo-indutivista como as empreendidaspor Glaeser, e portanto, a nosso ver, muito mais esclarecedora,foi aquela proposta por Schubring (1986) num artigo inti-tulado “Ruptures dans le status mathématique des nombres négatifs”,publicado em 1986 na revista francesa Petit x. Neste artigo, oautor nos mostra, contrariamente às interpretações de cunhopersonalista, subjetivista e universalista no terreno da história dasidéias matemáticas, a possibilidade de coexistência de históriasdiferenciadas dos números inteiros relativos em função dosestatutos diferenciados de que gozava esse tipo de númerono interior de comunidades matemáticas de países distintos(no artigo citado, o autor analisa o caso da França, daInglaterra e da Alemanha, países que, desde a segundametade do século XVIII, possuíam as maiores comunidades dematemáticos). Com isso, esse autor acaba explicitando evoluntariamente reforçando a tese do papel orientador e eficazdas representações epistemológicas no desenvolvimento da matemática,o que significa defender implicitamente uma nova forma de seconceber a relação entre história e epistemologia da matemática,diferente daquelas sugeridas por Piaget e García, Brousseau eGlaeser. Assim se expressa o autor a este respeito:As principais fontes nas quais me baseei foram livros-texto dearitmética e álgebra, além de monografias e artigos de revistas. En-contrei não apenas um debate sobremodo amplo e intensivo sobre ostatus dos números negativos, mas também claras diferenças nacionais arespeito do reconhecimento desses números como legítimos conceitosmatemáticos. De passagem lembro que, no contexto da segundametade do século XVIII, estas diferenças abrangiam posicionamentostanto de rejeição quase absoluta na Inglaterra, de ambivalência naFrança, quanto de clara aceitação na Alemanha. Estas atitudesrefletiam a posição das respectivas comunidades matemáticas como umtodo, uma vez que à época ainda não existiam comunidades dematemática escolar (Schubring, 1998, p. 19).Schubring, em sua história alternativa dos números inteirosrelativos, chega a extrair conclusões bastante diferentesdaquelas que nos forneceu Glaeser. Uma primeira é a deque a tão comentada regra dos sinais, contrariamente àquiloque defendeu Glaeser, não teria chegado a constituir umproblema perturbador para a comunidade matemática, istoé, não teria chegado a constituir um verdadeiro obstáculo

epistemológico de origem epistemológica e sim de origemdidática. Uma segunda é que a atribuição do estatuto denúmero aos inteiros relativos não pode ser encarada comouma questão meramente técnica e, nesse sentido, seria naturale historicamente legítimo defender a existência de uma“resistência epistemológica” no processo de desenvolvimentohistórico dessa noção. Mas é útil ressaltar que a palavra“epistemologia” é usada por Schubring em seu sentidoclássico, isto é, como um meta-saber de natureza filosóficasobre a matemática. Daí, por “resistência epistemológica”ele entende o apego por parte da comunidade matemática auma concepção clássica da matemática que a entendia como“a ciência das grandezas”, concepção esta que, de fato,oferecia uma resistência para se atribuir aos inteiros relativos oestatuto de número, uma vez que uma decisão dessa naturezaimplicava numa nova atitude perante a matemática, isto é,concebê-la como uma ciência não-empírica (Cf. Schubring,1998, p. 22). Finalmente, uma terceira e importante conclusão,com repercussões no terreno da investigação em didáticada matemática, é por ele expressa do seguinte modo:[...] por mais importantes que sejam os fatores epistemológicos para odesenvolvimento da matemática numa ou noutra direção (o conceitodos números negativos teve conseqüências significativas para outrosdomínios da matemática), os números negativos não podem ser tomadoscomo demonstração positiva da eficácia dos obstáculos no sentido deBachelard. Para Bachelard os obstáculos epistemológicos têm um sentidonormativo; eles representam etapas do progresso intelectual necessário dahumanidade em direção a um domínio sempre científico-racionalista domundo. Quem não superou algum obstáculo é, portanto, alguém queficou para trás. Agora pode-se afirmar com segurança que o conceitounívoco de grandeza, no sentido de Bachelard, foi uma “generalizaçãoprecipitada” que impediu interessantes diferenciações como, por exemplo,o conceito de função e de variável. De outro lado, aparece muitoclaramente em Carnot que epistemologias alternativas lhe são conhecidase que ele faz uma opção consciente. Penso que uma tal escolha não podeser assimilada à noção de obstáculo no sentido de Bachelard. Parece-meantes essencial assinalar que não existe uma generalidade total nosentido de Bachelard: o desenvolvimento de conceitos ocorre no interior dedeterminados grupos sociais, sendo influenciado pelos respectivoscontextos culturais. Por esta razão, também não existe uma absolutasimultaneidade ou paralelismo no desenvolvimento de conceitos emdiferentes culturas (Schubring, 1998, p. 22-23).

13 Para um exame e análise mais detalhados dos modos comoessa apropriação foi feita por pesquisadores em didática damatemática, tais como Guy Brousseau, Georges Glaeser,Michèle Artigue e Anna Sierpinska, remetemos o leitor paraa referência (Miguel, 1999).

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Sobre o autor:

Antonio Miguel é professor assistente doutor do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade deEducação da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do grupo de pesquisa HIFEM (História, Filosofia eEducação Matemática) do Círculo de Estudo, Memória e Pesquisa em Educação Matemática (CEMPEM).

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