Contribuições à Pesquisa Etnográfica

download Contribuições à Pesquisa Etnográfica

of 11

description

etnografia

Transcript of Contribuições à Pesquisa Etnográfica

  • 372Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82

    www.eerp.usp.br/rlaenf

    INTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDADE E HISTADE E HISTADE E HISTADE E HISTADE E HISTORICIDORICIDORICIDORICIDORICIDADE:ADE:ADE:ADE:ADE: CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIBUIES DUIES DUIES DUIES DUIES DA MODERNA MODERNA MODERNA MODERNA MODERNAAAAAHERMENUTICA PESQUISA ETNOGRFICAHERMENUTICA PESQUISA ETNOGRFICAHERMENUTICA PESQUISA ETNOGRFICAHERMENUTICA PESQUISA ETNOGRFICAHERMENUTICA PESQUISA ETNOGRFICA

    Maria Cristina Silva Costa1

    Costa MCS. Intersubjetividade e historicidade: contribuies da moderna hermenutica pesquisa etnogrfica. RevLatino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82.

    Dada a ampla penetrao do paradigma hermenutico nas pesquisas sociais contemporneas, este artigoprope a reflexo sobre alguns de seus pressupostos tericos e metodolgicos, que podem ser enfeixados sob ascategorias de intersubjetividade e historicidade.

    DESCRITORES: metodologia, antropologia, etnografia

    INTERSUBJECTIVITY INTERSUBJECTIVITY INTERSUBJECTIVITY INTERSUBJECTIVITY INTERSUBJECTIVITY AND HISTAND HISTAND HISTAND HISTAND HISTORICITYORICITYORICITYORICITYORICITY::::: CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIBUTIONS FRUTIONS FRUTIONS FRUTIONS FRUTIONS FROM MODERNOM MODERNOM MODERNOM MODERNOM MODERNHERMENEUTICS HERMENEUTICS HERMENEUTICS HERMENEUTICS HERMENEUTICS TTTTTO ETHNOGRAPHIC RESEARO ETHNOGRAPHIC RESEARO ETHNOGRAPHIC RESEARO ETHNOGRAPHIC RESEARO ETHNOGRAPHIC RESEARCHCHCHCHCH

    Considering the large penetration of the hermeneutic paradigm in contemporary social research, this articleproposes the reflection on some of its theoretical and methodological assumptions which can be trussed under thecategories intersubjectivity and historicity.

    DESCRIPTORS: methodology, anthropology, ethnography

    INTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDINTERSUBJETIVIDAD E HISTAD E HISTAD E HISTAD E HISTAD E HISTORICIDORICIDORICIDORICIDORICIDAD:AD:AD:AD:AD: CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIBUCIONES DE LA MODERNUCIONES DE LA MODERNUCIONES DE LA MODERNUCIONES DE LA MODERNUCIONES DE LA MODERNAAAAAHERMENUTICA HERMENUTICA HERMENUTICA HERMENUTICA HERMENUTICA A LA INVESTIGAA LA INVESTIGAA LA INVESTIGAA LA INVESTIGAA LA INVESTIGACIN ETNOGRFICACIN ETNOGRFICACIN ETNOGRFICACIN ETNOGRFICACIN ETNOGRFICA

    Considerando la amplia penetracin del paradigma hermenutico en las investigaciones socialescontemporneas, este artculo propone la reflexin sobre algunos de sus presupuestos tericos y metodolgicos, quepueden ser enmarcados en las categoras de intersubjetividad e historicidad.

    DESCRIPTORES: metodologa, antropologa, etnografa

    1 Doutor em Antropologia Social, Docente da Escola de Enfermagem de Ribeiro Preto, da Universidade de SoPaulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: [email protected]

    Artigo de Reviso

  • 373

    INTRODUO

    A importncia e a grande freqnciacom que as pesquisas sociais se voltam paraas questes relativas sade, bem como odestaque conferido metodologia das cinciassociais, justificam a ateno dada temticaterico-metodolgica, tal como ela tem sidotrabalhada pela Sociologia e pela Antropologia,em estudos desenvolvidos por profissionais dediversas inseres. Esta discusso, antes afeitasobretudo a cientistas sociais, revela-se cadavez mais preeminente em trabalhos da rea dasade.

    Um outro aspecto da influncia dasCincias Sociais a ser destacado na rea adifuso ampla da apropriao dos recursosmetodolgicos da Etnografia. Aquilo que era,por definio, tarefa de antroplogos - o fazeretnogrfico - hoje adquire relevncia empesquisas empreendidas na Psicologia, naEnfermagem, na Medicina.

    Tudo isso suscita, sem dvida, a maiordivulgao, entre esses pesquisadores, dereflexes acerca das questes tericas quefundamentam a metodologia cientfica aplicada pesquisa social. Neste artigo, proponho adiscusso de algumas contribuies dahermenutica moderna, ou dialtica, antropologia contempornea e ao mtodoetnogrfico, que revelam a proximidade entreos problemas discutidos no interior doparadigma hermenutico e as preocupaesmaiores daquela cincia. Dentre estes,destacam-se questes epistemolgicasclssicas, que no se restringem apenas

    antropologia, quais sejam: a relao sujeito-objeto, neutralidade e objetividade, explicaoe compreenso no conhecimento cientfico.

    A FUSO DE HORIZONTES

    Um dos maiores problemasmetodolgicos ao escrever cientificamentesobre religio deixar de lado, ao mesmotempo, o tom do ateu da aldeia e o do pregadorda mesma aldeia, bem como seus equivalentesmais sofisticados, de forma que as implicaessocial e psicolgica de crenas religiosasparticulares possam emergir a uma luz clara eneutra(1).

    Como no ser o ateu ou o pregador daaldeia? possvel ser neutro no estudo dacultura? Como efetuar a crtica de nossospreconceitos? Clifford Geertz remete-nos aquestes antigas da antropologia social, quetm merecido tratamentos diversos, nos quaisuma pretendida objetividade cientfica se casa,nos paradigmas da ordem*, ora comespeculao racionalista, ora com naturalismoe empirismo, ou com os procedimentosnomolgicos de anlises formais.

    Essa velha, mas, nem por isso, superadadiscusso encontra-se no mago de problemasmetodolgicos da Antropologia, como asdicotomias de objetividade versus subjetividadee etnocentrismo versus relativismo cultural,tambm na questo da tica e a Cincia, assimcomo na incorporao da Histria aos estudosetnogrficos.

    Sem percorrer toda a construo dessa

    * Nos denominados paradigmas da ordem - representados pela Escola Francesa de Sociologia e Estruturalismo,pela Escola Britnica de Antropologia e pelo Culturalismo norte-americano - orientados pelos pressupostos das cinciasnaturais, a defesa do conhecimento objetivo implica a abstrao, quando no a expulso do tempo ou sua neutralizao(2)

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 374

    problemtica ampla e profundamenteconsiderada por Cardoso de Oliveira, em vriasde suas obras, limito-me a refletir sobrealgumas das contribuies do pensamentohermenutico para redimensionar criticamentequestes centrais da antropologia. Essasquestes, entretanto, no so relevantesapenas para os antroplogos, dedicados Etnografia por definio, mas para todosaqueles que se dedicam anlise cultural epercorrem os caminhos da pesquisaetnogrfica.

    Valho-me da expresso utilizada porRicoeur, ao definir o papel desempenhado pelahermenutica como enxerto (greffe(3)). Nessesentido, o paradigma hermenutico introduz, namatriz disciplinar* antropolgica, a desordem,no por se opor aos paradigmas da ordem,superando-os todos, mas, sim, por negar odiscurso cientificista, ao assumir o papel deconscincia crtica da prpria cincia e porintroduzir um novo estilo do fazer etnogrfico.

    A desordem inserida pela hermenuticaconsiste, sobretudo, num questionamentoradical da autoridade do pesquisador e docarter cientfico da prpria Antropologia, bemcomo da produo do texto etnogrfico, temasbastante explorados pelos autores ps-modernos em Antropologia. A desordem introduzida quando se coloca, no centro dadiscusso, a reflexo sistemtica sobre arelao pesquisador/objeto cognoscvel eprope-se um novo estilo de produo do textoetnogrfico. Da mesma forma, ocorre com anfase na necessidade de esclarecer ocontexto em que se d o encontro etnogrfico,pela incluso da histria como historicidade

    do objeto e do pesquisador (a conscinciahistrica).

    Sem dvida, as principais contribuiesdesse questionamento enxertado pelaHermenutica, na matriz disciplinar daAntropologia moderna, podem ser resumidasna incorporao da historicidade e noreconhecimento da intersubjetividade. Taiselementos recolocam, sobre novas bases,antigos problemas metodolgicos dainvestigao cultural.

    A despeito da existncia decontrovrsias no interior da comunidadecientfica, quanto interpretao dessascontribuies A diversidade de posturashermenuticas tanta que melhor seria trat-la como um movimento(2) -, resulta inegvel asuspeita levantada contra o autor (autoridade),saber e objetividade cientfica, pelahermenutica.

    Ao eleger a relao dialgica e a fusode horizontes como condies do saber osaber negociado(2) -, a perspectivahermenutica exige a incluso, a penetrao eo confronto dos horizontes culturais depesquisador e pesquisado, assim como dopesquisador com seu horizonte terico,representado pelas diversas versesconstrudas no interior da histria da Cincia.Nesse contexto, a categoria tempo resgatada como historicidade do sujeito queconhece e do objeto cognoscvel eminterpenetrao mtua, e do conhecimento.

    Vista por outro ngulo, a pretenso deobjetividade maneira positivista (oobjetivismo) sofre uma crtica radical graas assuno da intersubjetividade e da relao

    * Na distino entre paradigmas e matriz disciplinar, enquanto os primeiros correspondem a modelos explicativos outeorias, a matriz disciplinar engloba o conjunto de paradigmas considerados em simultaneidade(4)

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 375

    dialgica - que transforma observador eobservado em interlocutores situados emcampos semnticos distintos, porm emposies simtricas - como condio doconhecimento. Essa renncia a uma pretensasuperioridade conferida pela posioprivilegiada de observador e de cientistatambm est presente no que Habermas definecomo atitude performativa(5), por eleconsiderada inerente aos procedimentoshermenuticos.

    A nfase na relao dialgica entrepesquisador e pesquisado, transformados eminterlocutores, promove o debate sobreaspectos importantes no s da pesquisaetnogrfica e da antropologia, como doconhecimento nas cincias humanas,contribuindo para repensar as relaes entresujeito e objeto e seus respectivoscondicionamentos histrico-culturais.

    NEUTRALIDADE OU PRECONCEITO?

    A partir dessas colocaes iniciais,resulta evidente que, para o pensamentohermenutico, a objetividade isenta de valores,importante nas perspectivas positivistas e neo-positivistas, torna-se ilusria(6). Apel bastante claro quanto impossibilidade de seeliminarem os juzos de valor das cinciashumanas na construo do objeto, quando setrata de reconstruir compreensivamente asaes, produes e instituies humanas(7).

    Isso posto, permanece o problema decomo evitar o etnocentrismo na interpretaocultural, e assim os julgamentos elaborados apriori, sem nos perdermos num torvelinho derelativismo cultural(1), que tudo admite ejustifica, sob o imperativo de entender o outronos seus prprios termos. Ou deveramos

    aventar, como James Boon, a possibilidade deque, estando toda interpretao incrustada emuma cultura, o trabalho do etngrafo no sejamais do que um etnocentrismo ao inverso(8)?

    Trata-se, na verdade, de questionar oslimites do relativismo, evitando os excessos deuma postura dogmtica e mantendo, ao mesmotempo, a atitude relativista que permite superaro etnocentrismo. Sem alongar mais a discussode etnocentrismo versus relativismo cultural,vejamos como os pressupostos do paradigmahermenutico permitem refletir sobre a questo,juntamente com a da objetividade.

    Sob vrios aspectos, a noo deintersubjetividade, desenvolvida no interior dopensamento hermenutico, possibilitafundamentar o debate. Se o pesquisador j notem a si prprio e a sua sociedade como osmodelos de racionalidade, a partir dos quaiselabora juzos de valor sobre o outro, damesma forma impossvel deixar dereconhecer, como bem o demonstram Gadamere Ricoeur, a existncia de preconceitoslegtimos, aqueles que encaminham compreenso.

    O encontro etnogrfico, empreendidocomo relao dialgica, implica a comunicaoentre dois universos culturais que seinterpenetram, sem se anularem, e tambmsem anularem as posies histricas dosinterlocutores. Nesse sentido, uma conscinciaformada hermeneuticamente ter que ser atcerto ponto tambm uma conscincia histrica,e tornar conscientes os prprios preconceitosque a guiam na compreenso...(9).

    Conseqentemente, o pesquisadorhermeneuta no elude, nem despreza ou nega,os preconceitos: ele os assume, tornandoconsciente o preconceito no sentido dehorizonte do presente, concepodesenvolvida por Gadamer e Ricoeur. O

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 376

    preconceito o horizonte do presente(10) aexigir permanente atitude crtica, por parte dopesquisador: Na realidade o horizonte dopresente est em um processo de constanteformao na medida em que estamosobrigados a por prova, constantemente, todosos nossos preconceitos(9).

    Assim, assumimos os nossospreconceitos na anlise cultural, condio deassumi-los criticamente. A compreensohermenutica no pode penetrar na coisa(Sache) sem preconceitos, mas j estinevitavelmente condicionada pelo contexto noqual o sujeito que compreende adquiriuinicialmente seus esquemas de interpretao.Esta pr-compreenso pode ser tematizada, eem cada anlise hermenutica conscienteprecisa ser experimentada na coisa(11).

    A compreenso hermenutica implicasempre o processo de fuso de horizontes,j que no existe o horizonte do presente em simesmo - ele s se coloca no encontro com ooutro -, elucida Gadamer na obra j referida.E esta fuso de horizontes tem conotaodupla. Em primeiro lugar, refere-se, na relaoeu/outro, ao fato de que o pesquisador noabdica de seu horizonte, ao se abrir para acompreenso do horizonte do outro. Emsegundo, embora com excepcional importnciano que diz respeito postura hermenutica,envolve, para o pesquisador, o situar-se nointerior de uma cultura cientfica, alargando aspossibilidades de compreenso atravs daanlise crtica das diversas perspectivasexistentes no interior da cincia em questo,tanto quanto exige uma atitude auto-reflexiva(12). Mais uma vez, assumimos nossos

    preconceitos (tericos, nesse caso), sob acondio, contudo, de assumi-los criticamentee, assim, sermos capazes de perceber oslimites das vrias verses, ou paradigmas, quecompem a matriz disciplinar.

    A COMPREENSO RECONSTRUTIVA

    A fuso de horizontes - inerente relao dialgica associada s categorias deintersubjetividade e historicidade - conduz considerao dinmica e profunda da questodas diversidades culturais, exigindo, para isso,o exerccio contnuo da auto-reflexo e dacrtica por parte daqueles que se dedicam etnografia. Este certamente um dossignificados da expresso de Geertz de queagora somos todos nativos(13).

    Sendo o enfoque hermenuticocomunicativo e auto-reflexivo(7), a relaodialgica de eu/outro investe-se do carter derelao dialtica: o esforo para a incorporaoe a compreenso do horizonte cultural do outro,tambm estimulado a compreender-nos(6),consiste, ao mesmo tempo, num esforo decompreenso do prprio horizonte dopesquisador.

    Vejamos como esta relao de contedodialtico se integra com a aspirao maior daAntropologia, de compreender os homensmelhor do que se compreendem a si mesmos,erigida sobre o pressuposto hermenuticotranscendental de uma comunicao comoutros sujeitos para compreender o mundo epara se autocompreender(7)*.

    No encontro etnogrfico, o pesquisador

    * A aspirao da compreenso hermenutica expressada por Apel remete a Schleiermacher e Dilthey. Em Gadamer,a aspirao a compreender melhor limita-se a compreender de um modo diferente

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 377

    se abre para o horizonte do outro, conscientede seus prprios ancoramentos culturais (os desua sociedade e os produzidos no processo desocializao no interior de uma culturacientfica). Desse modo, a interiorizao dooutro, na relao dialgica entre observador eobservado, convertidos em interlocutores, nopode nunca corresponder meramente areproduzir o modelo do outro, adotando suaviso, j que o pesquisador o v por meio dalente do conhecimento produzido no interiorde uma comunidade cientfica. O modelonativo, mesmo sendo dado empricorelevante, no substitui a interpretao, quesupe a compreenso construda sobre umainteligibilidade muito diversa daquela disponvelaos atores sociais.

    Retomo, aqui, a noo de etnografiacomo descrio densa, uma descrio embusca de significaes(1). Para alm do sentidoconstrudo no horizonte do nativo, ainterpretao hermenutica procura assignificaes, e estas se constroem nohorizonte do pesquisador*. Interpretar, dessaforma, assume o significado de traduzir, com ocompromisso de decodificar um cdigo.

    Seguindo a idia de traduo cultural ecom ela os procedimentos da interpretaohermenutica desenvolvidos por Geertz, paraque possamos traduzir o discurso do outro nostermos da nossa disciplina, necessriocontextualizar. Para que piscadelas ou rituaisbalineses sejam decodificados enquantomensagens que encerram significadosespecficos, eles devem ser remetidos aocontexto (a cultura como contexto): Do ponto

    de vista pragmtico, duas abordagens, doistipos de compreenso devem convergir se sequer interpretar uma cultura: uma descrio deformas simblicas especficas (um gesto ritual,uma esttua hiertica) enquanto expressesdefinidas; e uma contextualizao de taisformas no seio da estrutura significante totalde que fazem parte e em termos da qual obtma sua definio. No fundo, isto , obviamente,o j conhecido crculo hermenutico: aapreenso dialtica das partes que estoincludas no todo e do todo que motiva aspartes, de modo a tornar visveissimultaneamente as partes e o todo(15).

    Os dois tipos de compreenso,inseparveis e interpenetrveis, envolvem asegmentao dos elementos significativos dasformas simblicas e a determinao daimportncia desses elementos no todo. sobreesses dois tipos de compreenso que opesquisador hermeneuta constri, no interiordos jogos de linguagem de sua disciplina(horizonte dos critrios de sentido e validade),o seu texto, a sua interpretao informada pelomesmo campo semntico que, igualmente,nutre sua observao, isto , balizada pelascategorias ou por conceitos bsicosconstitutivos da disciplina(12).

    Impregnada pela vivncia do campo - doencontro etnogrfico como fuso dehorizontes - e pelo conhecimento cientfico, ainterpretao toma o carter de fico(1).Fico, no sentido de ser uma verso, entremuitas, sobre a realidade observada; umaverso que deve ser cotejada com outrasverses elaboradas no interior da linguagemcientfica.

    * A distino entre sentido e significao apoia-se em E. D. Hirsh Jr., que diferencia sentido, conferido pelo autor aoescrever, de significao dada pelo leitor(14). A mesma distino explicitada por outros autores, que recorrem fuso metafrica entre texto e cultura, autor e nativo, leitor e antroplogo(1,12)

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 378

    A anlise que Apel faz da compreensohermenutica - a compreenso reconstrutiva- enseja a discusso e o esclarecimento maiordas problemticas de contextualizao e devalidao das interpretaes.

    A validade da interpretao elaboradapelo estudioso da cultura obtida pelo debateno interior de uma comunidade decomunicao, fundamento de umacomunidade de argumentao, instncia daintersubjetividade na qual se articulam osprofissionais de uma cincia: No podemoscomprovar a validade lgica dos argumentossem pressupor, em princpio, uma comunidadede pensadores capazes de acordointersubjetivo e de chegar a um consenso(7).

    A existncia de um acordo intersubjetivoconstrudo no interior de uma comunidadecientfica - comunidade de comunicao e deargumentao - impe-se, portanto, navalidao dos argumentos sobre os quais seestabelece a compreenso. Mais ainda,constitui condio para todo conhecimento,para a objetividade resultante de acordointersubjetivo (diferente, pois, da objetividadeno-valorativa do racionalismo cientificista) epressupe uma tica.

    Se, por um lado, aceitar as regras dojogo de uma comunidade crtica decomunicao, conforme afirma Apel, consisteem condio da possibilidade de validaolgica dos argumentos, por outro, o acordointersubjetivo em torno de normas moraisfundamentais se estabelece como condio dapossibilidade de toda argumentao e,conseqentemente, da possibilidade deautocrtica e da objetividade cientfica.

    Aprofunda-se, a, a noo de preconceitolegtimo ou positivo, que encontramosinicialmente em Gadamer, com a dimenso deuma tica intersubjetivamente vlida,incorporada aos jogos de linguagem da cinciae ao horizonte do pesquisador.

    A quem aspira compreender os homensmelhor do que se compreendem a si mesmos,como entende Apel a compreensohermenutica, cabe levantar todas asinformaes possveis a respeito dos fatos -aes, instituies, rituais, prticas e discursosou sistemas morais -, inserindo-os em seucontexto sociocultural e histrico. Isto , devetratar de efetuar uma reconstruo dascondies materiais de vida da sociedadehumana, mediada hermeneuticamente, pormque seja ao mesmo tempo histrica eobjetiva(7).

    A reconstruo social e histricamediada pela objetividade hermenutica se faz,em Apel, com a incluso da crtica dasideologias, que assegura a superao doslimites da justificao expressada no nvel dovivido, pelos atores sociais. E o aspectofundamental dessa crtica das ideologias queela exige uma tica normativa, j pressupostana lgica normativa, resultantes, ambas, deacordo intersubjetivo. Importa assinalar que,dessa maneira, o acordo em torno de normase procedimentos da cincia subentende oacordo em torno das normas e valores morais,na reflexo de Apel acerca da relao entretica e cincia, ou do problema dafundamentao racional da tica na era dacincia, como esclarece o subttulo da obra*.

    evidente que tal interpenetrao de

    * A necessidade de uma tica inter-subjetivamente vlida se estende, em Apel, at o nvel da exigncia de uma ticauniversal, ou macro-tica, coerente com uma poca de macro-conseqncias das aes humanas

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 379

    tica e cincia oferece argumentos consistentespara a crtica ao relativismo cultural, rompendocom a noo de que as culturas soincomensurveis. A possibilidade do dilogoentre realidades culturais diversas antepe-seao relativismo dogmtico, assim como aexistncia de uma tica intersubjetivamenteconstruda estabelece o contexto e oscontornos desse dilogo.

    Da exposio de Apel deduz-se, ainda,que, se a neutralidade cientfica no radicalmente negada, resume-se a umaneutralidade ideal, no realizvel, emboraefetiva como idia reguladora. Devemos serneutros, podemos concluir; contudo,assumindo, alm dos nossos preconceitos, ocompromisso tico pressuposto na crtica dasideologias o que, por sua vez, s se tornapossvel com a reconstruo histrica e dascondies reais de vida de grupos e povos.Ainda mais, tal postura exige que asinterpretaes sejam validadas criticamente,mediante acordo interpessoal, em sentidoamplo de validade construda pelaargumentao, no interior do jogo lingstico dacomunidade cientfica de comunicao.

    EXPLICAO E COMPREENSO NAINTERPRETAO HERMENUTICA

    Por crtica das ideologias, Apel entendeo termo tcnico que designa a mediaodialtica entre compreenso e explicao.Esclarece: a combinao de explicao quase-causal e de compreenso hermenuticaprofunda (especialmente da conduta teleolgicainconsciente), que transcende o uso lingsticoefetivo e a auto-compreenso fatual das formassociais de vida caracteriza - em meu

    entendimento - o procedimento metdico dacrtica das ideologias(7).

    Ao reconhecer que o enfoquehermenutico estabelece uma relao decomplementaridade entre compreenso eexplicao, Apel aborda uma questolocalizada no mago da epistemologia dascincias humanas.

    Essa problemtica essencial submete discusso a tradicional dicotomia entre ascategorias de explicao e compreenso,respectivamente referidas a dois camposepistemolgicos distintos - o das cincias danatureza e o das cincias do homem - eassociadas a causalidade e motivao. Nointerior das cincias sociais, a mesma dicotomiase expressa, por exemplo, entre a perspectivapositivista, essencialmente explicativa, e ahermenutica tradicional, que s reconhecevalidade compreenso. Tambm noentendimento da verso ps-moderna dointerpretativismo norte-americano, a dicotomiase estabelece, com a explicao e acompreenso opondo os paradigmas da ordem Hermenutica.

    A anlise crtica desta viso dicotmica,por Apel e Ricoeur (o ltimo apoiando-se nareflexo do primeiro), desenvolve umaperspectiva diversa sobre o papel queexplicao e compreenso desempenham noconhecimento. Demonstram que ambas podemassociar-se e interpenetrar-se dialeticamente,posio que caracteriza a postura hermenuticamoderna ou dialtica, no entendimento deCardoso de Oliveira, afastando-a, porconseguinte, do interpretativismo ps-moderno.

    Em apoio considerao de que, noesforo de compreender outras realidadesculturais - traduzir -, a explicao se faznecessria, manifesta-se Jarvie, que

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 380

    fundamenta, com isso, sua crtica aorelativismo: No tenho nada a opor sugestode que nas cincias sociolgicas pretendemoscompreender outras sociedades. Porm eu iriamais alm: as cincias sociolgicas tratamtambm de explicar e avaliar as sociedades,suas instituies, seus conhecimentos. Ascincias sociolgicas, como quaisquer outrascincias, utilizam a linguagem em suastentativas para fazer enunciados universaisverdadeiros acerca do mundo, enunciados queexpliquem o mundo(16).

    A nfase na explicao, em Jarvie,remete perspectiva comparativa e a mtodosque permitam aproximar da verdade e dosenunciados universais verdadeiros acerca domundo. Tudo isso se integra aoquestionamento da objetividade das cinciassociais, ante o empenho de traduzir as outrassociedades, o que s pode ser feito em termosda nossa sociedade, segundo Jarvie, e implicao explicar.

    Sem a pretenso de retomar temasanteriores, nem de esgotar a discusso sobreobjetividade, verdade, preconceito, relativismo,quero, apenas, destacar a importncia dodebate sobre explicar e compreender comogrande tributo da moderna hermenutica teoria antropolgica e aos estudos etnogrficos.Debate este que fundamenta um dilogo crticocom os paradigmas da antropologia, ampliandoa fuso de horizontes que a compreensohermenutica pressupe.

    Fundamental para esse dilogo areavaliao da interpretao, explicitada naargumentao de Ricoeur contra a dicotomiairredutvel tradicionalmente observada entreexplicar e compreender. Como alternativa dicotomia, Ricoeur prope o que denomina dedialtica fina: Par dialeticque, jentends la

    considration selon laquelle expliquer etcomprendre ne constitueraient pas les plesdun rapport dexclusion, mais les momentsrelatifs dun processus complexe quon peutappeler interprtation(3).

    Portanto, compreenso e explicaoarticulam-se, recobertas por uma terceiracategoria, tomando o aspecto de doismomentos de um processo amplo e complexode conhecimento: a interpretao.

    H que se registrar a proximidade entreas colocaes de Ricoeur e a noo de duplacompreenso, em Geertz. Na anlise doNegara, Geertz demonstra a inseparabilidadeentre os dois tipos de compreenso, naverdade dois momentos interpretativos inter-relacionados, j que a interpretao integratanto a identificao e a descrio doselementos, quanto a captao de sentidodesses elementos no todo.

    Ricoeur esclarece a associao entreexplicar e compreender no processo deinterpretao, atravs do arco interpretativo,que percorre desde a compreenso ingnuainicial at a compreenso sbia, emprofundidade, mediado pela explicao.

    Sendo a interpretao inerente a todoconhecimento, teramos, conseqentemente,no interior de uma mesma cincia, umainterpretao explicativa e uma interpretaocompreensiva, com carter complementar,ainda que mantenham sua autonomia comomodalidades de anlise, ou nveis deinterpretao igualmente importantes. Assim,a explicao e a compreenso podem seconstituir - no caso da antropologia, pelo menos- em modalidades de interpretao at certoponto complementares, a primeira voltada paraa identificao de regras e padres suscetveisde um tratamento proposicional; a segunda

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 381

    voltada para a apreenso do campo semnticoem que se movimenta uma sociedadeparticular...(4).

    No nvel da interpretao explicativa,situar-se-iam as perspectivas naturalizantese das anlises formais; no nvel dainterpretao compreensiva, encontraramosa abordagem hermenutica tradicional e a dosinterpretativistas ps-modernos,comprometidas com as conexes de sentido.A moderna postura hermenutica consiste,segundo Ricoeur e Cardoso de Oliveira, emdesenvolver a interpretao compreensiva sem,entretanto, prescindir da dimenso explicativa.

    No se trata de dois mtodos - o mtodoexplicativo e o mtodo compreensivo -: seulelexplication est mthodique. La comprhensionest plutt le moment non mthodique qui, dansles sciences de linterprtation, se composeavec le moment mthodique de lexplication(3).

    Com efeito, na relao dialtica entreexplicar e compreender, da proposta deRicoeur, a compreenso precede, acompanhae envolve a explicao que, por sua vez,desenvolve analiticamente aquela. Dissolve-sea tradicional (des)continuidade/oposio entreexplicar e compreender, substituda peladialtica de (des)continuidade/continuidade. Aoposio entre explicao e compreensorecoloca-se sob nova forma, em Ricoeur, comooposio dialtica, em que explicar adquire ocarter de plo metdico e compreender, deplo no-metdico, dois momentos no interiordas cincias interpretativas.

    A compreenso hermenutica capta oexcedente de sentido (surcrot de sens) nomensurvel pelo mtodo, o que fundamenta aidia defendida por Cardoso de Oliveira, de queo paradigma hermenutico revitaliza a matrizdisciplinar da antropologia, ao introduzir uma

    tenso enriquecedora, atravs da relaodialtica que mantm com os demaisparadigmas(6).

    CONCLUSO

    A compreenso do encontro etnogrficocomo encontro intersubjetivo de interlocutoressituados em posies simtricas, proposta pelaHermenutica moderna, subtrai do pesquisadorsua tradicional posio de autoridadeincontestvel na pesquisa. Visto por outrongulo, a fuso de horizontes que esseencontro pressupe, exige a incluso dadimenso da historicidade, inseridos que soos pares da investigao em seus respectivoscontextos e procedendo, o pesquisador, acrtica dos preconceitos e das ideologias, comocondio para a assuno plena da conscinciahistrica. Nisso reside, sem dvida, um grandecontributo do paradigma hermenutico pararedimensionar as possibilidades e os limites daobjetividade e da neutralidade na investigaocultural.

    A crtica das ideologias, que permitesuperar o carter de justificao contido nosdiscursos e aes dos atores sociais, promovida, na anlise hermenutica, por meioda associao das dimenses explicativa ecompreensiva. Ao entender explicao ecompreenso como complementares noconhecimento, passos a percorrer no interiordo arco interpretativo, a Hermenutica dialticademonstra como, ultrapassando a relao deexcluso tradicionalmente estabelecida entreas posturas que privilegiam, num plo, acausalidade, e noutro, a motivao dascondutas humanas, a anlise cultural deve serconduzida.

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.

  • 382

    Assim, a moderna Hermenutica propenovos parmetros para a reflexo sobre ascondies da pesquisa social e doconhecimento por ela produzido, contestandoa autoridade do pesquisador e recomendandoo esclarecimento do contexto do encontroetnogrfico. Novos parmetros tambm secolocam, na tenso enriquecedora quepromove entre os paradigmas dominantes naAntropologia, pela combinao decompreenso e explicao. Enriquece, ainda,com a nfase na necessidade do debate acercadas relaes entre tica e Cincia, discusses

    clssicas nas Cincias Sociais, em torno deobjetividade e neutralidade no conhecimentocientfico, voltado questo das diversidadesculturais.

    No exagero, no entanto, reconhecerque a tenso enriquecedora trazida pelaHermenutica dialtica se faz sentir, hoje, noapenas na Antropologia ou nas CinciasSociais, mas nos prprios rumos da Cinciacontempornea, marcados por umanecessidade profunda de repensar questesaparentemente resolvidas h muito tempo emperspectivas antinmicas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1. Geertz C. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro:Zahar; 1978. p.13-41;101-42.2. Cardoso de Oliveira R. Sobre o PensamentoAntropolgico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/CNPq;1988.3. Ricoeur P. Du Texte LAction. Essais dhermneutiqueII. Paris: Collection Esprit/Seuil; 1986.4. Cardoso de Oliveira R. A Dupla Interpretao emAntropologia. Anurio Antropolgico 94. Braslia: TempoBrasileiro; 1995. p.9-20.5. Habermas J. Conscincia Moral e Agir Comunicativo.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.6. Cardoso de Oliveira R. La AntropologiaLatinoamericana y La Crisis de Los Modelos Explicativos.Maguare, Revista del Departamento de Antropologia,1996; (11/12):9-23.7. Apel K O. La Transformacin de La Filosofia II. Madrid:Taurus Ediciones; 1985.8. Boon J A. Otras Tribus, Otros Escribas. Antropologiasimblica en el estudio comparativo de culturas, histrias,religiones y textos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica;1990.9. Gadamer H G. Verdad y Metodo I. Salamanca:Ediciones Sigueme; 1993.10. Ricoeur P. Interpretao e Ideologias. Rio de Janeiro:Francisco Alves; 1977.11. Habermas J. Dialtica e Hermenutica. Porto Alegre:L± 1987.12. Cardoso de Oliveira R. O Trabalho do Antroplogo:Olhar, Ouvir e Escrever. Revista de Antropologia, 1996;39(1):13-37.13. Geertz C. O Saber Local. Petrpolis: Vozes; 1999.

    14. Hirsch Jr ED. Validity in Interpretation. New Haven:Yale University Press; 1967.15. Geertz C. Negara. O Estado Teatro no Sculo XIX.Lisboa: DIFEL; 1991.16. Jarvie I C Comprensin y Explicacin en Sociologia yen Antropologia Social. Borges R, Cioffi F, organizadores.La Explicacin en Las Ciencias de La Conduta. Madrid:Alianza Editorial; 1974. p.159-207.

    Recebido em: 21.9.2001Aprovado em: 14.1.2002

    Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio-junho; 10(3):372-82www.eerp.usp.br/rlaenf

    Intersubjetividade e historicidade...Costa MCS.