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191 CONTRIBUIÇÕES DA DOUTRINA SOCIAL CATÓLICA AO MUNDO DO TRABALHO: BRASIL 1937-1967 ADRIANA GILIOLI CITINO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP/SP [email protected] “O Verbo se fez carne e veio montar sua tenda entre a nossa,” (FERNADES, 2011) Por meio das reflexões do padre Luis, seja em homilias, seja em impressos, pude pensar sobre a manifestação divina na Palavra. Por exemplo, “Deus sendo verbo encarnado é, por assim dizer, palavra que se torna ação (...)” (FERNANDES, 2011) Ao mesmo tempo, sabendo que uma ciência que investiga a sociedade humana não pode explicar os fatos sociais tendo por base causas sobrenaturais, nem morais, nem somente naturais e tampouco individuais. Mas, parecia-me ser possível buscar um conhecimento da história do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, via produção intelectual dos agentes católicos em sua atuação no mundo do trabalho. Procurei estar atenta à advertência de que a história contada pela Igreja católica possui uma determinante importante, isto é, ela é teândrica. Portanto, portadora e produtora de muitas interpretações com os elementos humanos e divinos interpondo-se na realidade concreta. A asserção católica sobre a Encarnação percebe “precisamente um Deus que assume a natureza humana, que se faz carne e penetra com direitos senhoriais na história total dos homens.” (LANGLOIS, 1988, p.5) Por outro lado, a doutrina católica também reconhece que o cristão não está esquizofrenicamente dividido em dois seres –“um cidadão da eternidade e um cidadão do mundo” (LANGLOIS, 1988, p.5) – antes, porém percebem que há uma comunicação entre esses planos, pois o homem é uno e a salvação eterna dos homens se decide precisamente nesse mundo. De fato, o Evangelho já apontava que o Reino de Deus está no meio de nós. (BIBLIA SAGRADA, 1990) Evidentemente, uma pesquisa histórica não pretende promover e tampouco resolver discussões teológicas ou filosóficas, então, somente me ative aos documentos produzidos pelos agentes de ação católica. No entanto, foi necessário o auxílio de outras

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CONTRIBUIÇÕES DA DOUTRINA SOCIAL CATÓLICA AO MUNDO DO TRABALHO: BRASIL 1937-1967

AdriAnA Gilioli Citino

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP/[email protected]

“O Verbo se fez carne e veio montar sua tenda entre a nossa,” (FERNADES, 2011)

Por meio das reflexões do padre Luis, seja em homilias, seja em impressos, pude pensar sobre a manifestação divina na Palavra. Por exemplo, “Deus sendo verbo encarnado é, por assim dizer, palavra que se torna ação (...)” (FERNANDES, 2011)

Ao mesmo tempo, sabendo que uma ciência que investiga a sociedade humana não pode explicar os fatos sociais tendo por base causas sobrenaturais, nem morais, nem somente naturais e tampouco individuais.

Mas, parecia-me ser possível buscar um conhecimento da história do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, via produção intelectual dos agentes católicos em sua atuação no mundo do trabalho.

Procurei estar atenta à advertência de que a história contada pela Igreja católica possui uma determinante importante, isto é, ela é teândrica. Portanto, portadora e produtora de muitas interpretações com os elementos humanos e divinos interpondo-se na realidade concreta.

A asserção católica sobre a Encarnação percebe “precisamente um Deus que assume a natureza humana, que se faz carne e penetra com direitos senhoriais na história total dos homens.” (LANGLOIS, 1988, p.5)

Por outro lado, a doutrina católica também reconhece que o cristão não está esquizofrenicamente dividido em dois seres –“um cidadão da eternidade e um cidadão do mundo” (LANGLOIS, 1988, p.5) – antes, porém percebem que há uma comunicação entre esses planos, pois o homem é uno e a salvação eterna dos homens se decide precisamente nesse mundo. De fato, o Evangelho já apontava que o Reino de Deus está no meio de nós. (BIBLIA SAGRADA, 1990)

Evidentemente, uma pesquisa histórica não pretende promover e tampouco resolver discussões teológicas ou filosóficas, então, somente me ative aos documentos produzidos pelos agentes de ação católica. No entanto, foi necessário o auxílio de outras

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fontes de informações para uma melhor apreensão do sentido católico para os textos pinçados. E, em alguns momentos, também se fizeram necessários alguns exercícios de aproximação exegética de nossa parte.

Ainda há que recordar que a interpretação e as definições éticas, litúrgica, doutrinais de uma religião qualquer são elaboradas no interior de uma sociedade específica, portadora de uma estrutura particular de poder entre os grupos componentes da sociedade. Queremos dizer que, numa sociedade de classes, a leitura da mensagem fundadora de uma religião recebe também a influência das relações de poder estabelecidas na sociedade, assim como, as influências são sentidas em momentos de crises nas instituições.

Essa assertiva é visível na produção dos documentos católicos referentes à questão social, em que se percebe a dinâmica inexorável da vida humana. Aliás, como a própria história contada pelos evangelistas.

Se por um lado, há interpretações elaboradas pelos oprimidos da sociedade, porém, há uma especialização religiosa, ou seja, há os encarregados da interpretação oficial da mensagem fundadora, inclusive, sob a delegação de decisões conciliares.1

Não queremos dizer com isso, que há uma consciência da hierarquia religiosa que se coloca a disposição da classe dominante na elaboração de suas doutrinas, pois esse processo de tentativa de consolidação de poder de uma classe sobre a outra é dialético e a consciência dos atores nem o percebe na maior parte do tempo.

No entanto, poderá ser percebido que a hierarquia católica utiliza de um mecanismo de afrouxamento das interpretações e, consequentemente, de aprovação do surgimento de movimentos internos segundo a conjuntura política do momento. Em situações de crises circunstanciais vê-se, por outro lado, um fechamento rígido.

Parece-nos razoável afirmar que a maioria dos historiadores brasileiros compartilha a opinião de que a Igreja católica exerceu forte influência na formação do Estado brasileiro. Com membros do laicato católico a instituição atuou efetivamente na administração pública, no legislativo e em movimentos sociais, principalmente nas organizações dos trabalhadores.

Vale lembrar que após a separação constitucional dos poderes temporal e religioso, consagrada pela Constituição republicana em 1891, a influência política da Igreja católica

1 Riolando Azzi. A vida Religiosa no Brasil...disse a esse respeito: “Quando uma espiritualidade dá mais ênfase à aglutinação organizada de idéias religiosas, a mesma pode ser chamada de “erudita”; mas quando uma espiritualidade dá mais ênfase aos atos de piedade, pode ser chamada “popular”. Sabemos que, às vezes, uma espiritualidade erudita pode incorporar elementos de uma espiritualidade popular, mas cada uma mantém sua própria identidade.(...) [a espiritualidade popular] podemos dizer que normalmente, ela não demonstra sua estrutura intelectual. Um ato de piedade popular como o pagamento de uma promessa executa-se. A pessoa não constrói razões para dar valor a esse ato, ela simplesmente o faz. Portanto uma espiritualidade popular é altamente tradicional e pragmática, (...) o povo em geral, não questiona eses atos. Para ele o ato em si faz sentido. É verdade qe um teólogo pode esquematizar os valores religiosos desse ato, mas uma pessoa que faz e paga uma promessa não se baseia nisso para realizar seu ato de pie-dade e devoção.” p. 75

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debilitou-se, contudo, a instituição encontrou suas esferas de atuação, junto ao laicato católico participando sem interferência alguma em todas as dimensões da sociedade brasileira, sempre contando com a orientação da hierarquia clerical.

Por outro lado, essa separação constitucional, representou na prática a retirada da administração da Igreja, de serviços como: registro de nascimento, registro de casamento, os serviços de sepultamentos, passando-os para a administração civil. Consequentemente, essa medida permitiu maior liberdade de opção religiosa.

Para enfrentar a diminuição de sua influência nas decisões nacionais, a Igreja intentou reafirmar a sua posição de formadora das consciências, por meio do reforço da sua ação mediante a palavra, nos presbitérios, nos confessionários, pela veiculação de suas idéias na imprensa e, principalmente, nas escolas, sejam nas escolas privadas católicas, sejam nas escolas públicas.

A garantia do ensino religioso nas escolas públicas foi uma cara luta que os católicos empreenderam constantemente em suas ações na esfera política.2 Lograram êxito com a inclusão dessa garantia constitucionalmente em 1934 e na Carta de 1946, ainda que, facultativo.

Vale registrar que em 1914 o Centro Católico do Brasil recomendava atenção especial dos católicos brasileiros, por recomendação da pastoral coletiva dos bispos em São Paulo, a luta contra a escola neutra, e eles lembravam que Leão XIII havia escrito sobre a calamidade da escola neutra.

Assim se expressaram em documento:

“Os católicos do Brasil pagam com pesados tributos um ensino que, pervertendo a criança, deixa-lhe dúvida na inteligência e o vazio no coração. É preciso reagir enquanto é tempo e pelo mesmo modo com uma carga cerrada contra o ensino leigo, reclamando a subvenção pelos cofres públicos para as escolas fundadas por iniciativa particular dos católicos.” (LUSTOSA, 1979, p.82)

Em 1934, com intermediação do ministro Gustavo Capanema, o governo de Getúlio Vargas formalizou uma concordata com o Vaticano, entre outras conquistas, instaurando o ensino religioso nas escolas públicas.

Como recurso teórico, utilizamos os estudos de Antonio Gramsci (1976) sobre a atuação da Igreja católica Romana junto aos poderes públicos e, mesmo no interior da sociedade civil na Europa, quando da elaboração de diversas concordatas ocorridas nesse mesmo período. A partir dessa colocação do autor, percebemos, então, a nova estratégia

2 No ano 2001 em sua autobiografia, Dom Paulo Arns em comentário sobre o governo de Mario Covas (1995/1999) mostra a importância desse projeto católico nas seguintes palavras: “Lastimo, no entanto, que Covas não tenha posto em prática o ensino religioso ecumênico desejado por todos os bispos do Estado de São Paulo para as escolas estaduais e tão necessário para a formação religiosa e ética de nossos futuros cidadãos.” D.Paulo Evaristo Arns. Da esperança...p.398.

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de atuação da instituição na modernidade. O autor afirmou:

“É importante notar que tanto o modernismo como o jesuitismo e o integralismo têm significados mais amplos do que aqueles estritamente religiosos: são ‘partidos’ no ‘império absolutista internacional’ representado pela Igreja romana, que não podem evitar colocar sob forma religiosa problemas que muitas vezes são puramente mundanos, de ‘domínio’ ”. (GRAMSCI, 1976)

Ou seja, percebendo a hipostenia da Igreja na modernidade, a hierarquia católica reage por meio da antiga fórmula do poder indireto, de autoria do jesuíta Roberto Bellarmino, inaugurando uma nova maneira de inserção na sociedade, a saber: promovendo a atuação do laicato em todas as esferas da sociabilidade humana, gozando esse grupo, portando, de toda liberdade para proceder à catequese, mesmo em instituições públicas, formando intelectuais ordenados ou não, lideranças sindicais e lideranças de movimentos populares, os quais adquiriram autonomia civil para realizar a sua penetração em qualquer dimensão da sociedade.

Como outrora com Leão XIII, Sumo Pontífice católico durante o período de 1878 a 1903, a Igreja católica já possuía um corpo teórico forte, ao perceber a inexorabilidade das transformações do mundo moderno, a instituição abraçou o desafio de reconquistar o poder sobre as consciências, que sempre havia exercido.

De acordo com a bibliografia estudada e os documentos analisados em nossa pesquisa, percebe-se a preocupação da Igreja católica com o crescimento da participação socialista no meio do operariado e, esta constatação irá nortear a ação da instituição, sobretudo na construção de uma idéia de “harmonia das classes sociais” em contraponto ao conceito marxista de “luta de classes”.

No final do século XIX a instituição organizou vários grupos constituídos por intelectuais do clero, para estudar os assuntos da questão social, objetivando fornecer subsídios para que os agentes católicos pudessem intervir na sociedade com um projeto de terceira via para enfrentar os conflitos advindos das novas relações sociais de produção. Como resultado desses estudos surgiu a doutrina social cristã, de repercussão mundial.

A partir dessas orientações, a hierarquia católica no Brasil estimulou e deu forte apoio à criação de várias organizações leigas para a disseminação da doutrina social.

Procurou-se basear a pesquisa do trabalho de doutorado da autora nos resultados documentados por essas organizações irradiadoras do pensamento católico no período.

Assim como, utilizamos os depoimentos de agentes católicos extraídos dos debates realizados na Assembleia Constituinte de 1946, devido à bancada católica ter tido participação expressiva nesse fato político relevante. Ressaltando que os deputados e senadores católicos pertenciam a variados partidos políticos, apoiados pela Liga Eleitoral Católica, tendo em vista que esta organização se auto proclamava acima dos

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interesses partidários, bastando que os candidatos assinassem o compromisso de cumprir as orientações recomendadas pela hierarquia católica, obviamente, lastreadas nos documentos oficiais emanados da doutrina cristã.

Essa pesquisa, também priorizou os documentos elaborados por Alceu Amoroso Lima, por seu extenso e fértil percurso na vida pública brasileira, também conhecido pelo codinome de jornalista - Tristão de Athayde. Este foi sem dúvida o principal representante leigo dos católicos. Na vida pública participou do Ministério da Educação. Jurista de formação universitária fundou várias escolas e institutos particulares, ministrou aulas de literatura brasileira e nos Estados Unidos e França ministrou aulas de civilização brasileira. Deixou vasta obra, constituída de muitos livros e artigos. Era empresário industrial, por ter recibo de herança paterna a fábrica de tecidos Cometa, situada no Rio de Janeiro.

Manteve fecundos e esclarecedores debates com o importante intelectual católico Jackson de Figueiredo (fundador do Centro Dom Vital), os quais são reveladores3 da influência definitiva exercida pelo catolicismo na vida do mais ilustre intelectual católico do período. Em 1928, converteu-se ao catolicismo, participando de vários movimentos de leigos, inclusive do integralismo de orientação fascista. No entanto, após o Concílio Vaticano II, no qual participou como representante do governo brasileiro, recebeu forte influência das suas conclusões e diretrizes, que na realidade, imprimiram nova orientação pautada na abertura da Igreja aos problemas mundanos; a partir daí, passou a defender a “ala mais progressista” da instituição, que saiu bastante robustecida desse conclave.

No Brasil, esse posicionamento da corrente progressista significou muitas rupturas com os setores mais conservadores, sendo, por eles, até taxados de sofrerem influências do comunismo. O que não deixa de ser hilariante, pois, demonstra que esses rotuladores ideológicos desconhecem a teoria marxista do comunismo, já que Alceu Amoroso Lima, durante toda a sua vida, percebeu a dicotomia entre as duas ideologias.

Em que pese à inquestionável observação empírica de que o pensamento cristão católico se baseia em princípios teológicos, em certa medida transcendentais à existência material da humanidade, sabemos, por pressuposto teórico e metodológico, que os atores sociais católicos são homens ativos, os quais, no desempenho de suas ações sociais refletem a ideologia católica, exercendo influência, por intermédio de suas realizações práticas, na formação do pensamento da sociedade como um todo.

Com isso queremos afirmar que uma de nossas hipóteses de pesquisa pretendeu identificar a gênese de possíveis ecos da doutrina social cristã católica nos elementos constituintes da formação da consciência social dos trabalhadores.

Isto porque alguns autores em suas reflexões sobre a História Contemporânea do

3 O livro organizado por João Francisco Etienne contendo a correspondência entre os dois, conf cit. Bibliografia auxilia a compreensão das dúvidas de Alceu Amoroso Lima quando de sua conversão ao catolicismo.

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Brasil, como Boris Fausto, para citar um exemplo apenas, sugere que em certas situações, a classe operária brasileira parece ter uma tendência à conciliação entre as classes sociais. Ainda que, o mesmo autor demonstre com muitos números e fatos que a classe operária tenha realizado vários movimentos grevistas, consequentemente ações de resistência, em determinados períodos durante sua organização, desde a superação das relações de trabalho escravo no país. E, principalmente, é demonstrada em muitas obras a constante reação violenta dos proprietários, inclusive algumas vezes com o auxílio da força estatal, contra as ações organizadas ou espontâneas dos operários e de qualquer movimento popular.

Basta lembrar que o direito de greve, previsto e estatuído na Constituição de 1988, ainda não foi regulamentado por lei específica sobre a matéria, efetivamente no país.

O governo de Getúlio Vargas é um período emblemático para observarem-se momentos nos quais se constata tendência das classes trabalhadoras favoráveis à efetivação de pactos sociais, ao lado de momentos de manifestações de resistência e lutas. O período do governo provisório que precedeu a Constituição de 1934 é um exemplo de manifestações populares, com diversas greves, em prol de direitos trabalhistas, surgindo a Constituição como um “acordo” social. Esse foi de curto prazo, tendo em vista o período ditatorial de 1937- 45, em que as conquistas trabalhistas anteriores foram postergadas. É seguido novo período de lutas políticas, até a Constituição de 1946, uma das mais democráticas do país, com a inclusão de várias garantias aos trabalhadores. Nesse contexto, acredito que a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943) representa outro momento de pacto social.

Uma de nossas perguntas é a seguinte: diante do percurso de organização e lutas da classe trabalhadora, de que forma a doutrina social cristã católica contribuiu para esse processo?

Como os atores sociais católicos, defensores da alternativa cristã católica para as relações do trabalho, atuaram durante a normatização da legislação trabalhista? Em outros termos, frente às reivindicações dos interesses dos operários, qual foi a posição assumida por esses atores católicos, auto denominados protetores dos trabalhadores?

Sabendo, a priori, que não há doutrinas sem ideologia, procuramos na pesquisa enfrentar o desafio de desvendar e trazer à luz a posição política da instituição católica nas relações sociais de produção da existência material, no sistema capitalista brasileiro.

Muito nos influenciaram os estudos de István Mezáros,(2004) sobre o poder da ideologia para a concretização de pactos sociais entre classes antagônicas.

A análise do autor é resultante de sua apreensão teórico-metodológica de Marx e Luckács, sendo que nesse trabalho mencionado, o pensador Mezáros, faz uma crítica profunda aos ícones da academia, como Weber, Adorno e Habermas, para demonstrar que, intencionalmente, ou não, suas idéias serviram para legitimar o jugo do capital em

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um contexto mundial.Assim se expressou o filósofo no referido livro:

“O poder da ideologia predominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em razão da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as consequências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, ‘consensualmente’, valores e políticas que são de fato absolutamente contrários a seus interesses vitais.” (grifos do autor)

Os pressupostos teórico-metodológicos do autor permitiram que, ao descolarmos essa reflexão para a realidade brasileira, isto é, para a formação do pensamento, assim como, para os resultados práticos verificados no processo de normatização da legislação trabalhista, pudesse se observar que há uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada.

A interpretação e utilização da doutrina social pelos atores sociais católicos que a propuseram como alternativa teórica aos conflitos oriundos do modo de produção capitalista, objetivamente, contribuíram para a formação de uma específica consciência social que podemos observar no mundo do trabalho.

Essa consciência social da classe trabalhadora, decerto, contém os princípios de harmonia das classes sociais, defendidos com constância pela doutrina social, em oposição aos reais conflitos experimentados pelos agentes do trabalho.

Para lograr êxito nesta luta por conquistar as massas trabalhadoras para seu projeto cristão de convivência harmoniosa, o caminho da Igreja católica percebeu o comunismo como inimigo potencial, no debate ideológico

Não obstante, a doutrina social nessa missão de se mostrar como uma direção alternativa, a denominada Terceira Via, deparou-se com um real problema: o conflito existente entre Capital e Trabalho, com isso, supomos que enfrentou obstáculos para implementar seus princípios teóricos, surgindo ocasionalmente, necessidades de modificá-los.

Com essas inquietações, optamos por esmiuçar documentos produzidos pelos intelectuais da doutrina social, objetivando uma atualização das fontes dentro de uma reflexão histórico-econômica, pretendendo trazer à luz a origem da ideologia mistificadora que determinou a impossibilidade de ascensão autônoma dos trabalhadores na existência terrena.

Observarmos com maior atenção a proposta de Marx (2006) conforme explanação de István Mezáros4, para a compreensão do papel da religião como a “forma de consciência

4 O trecho que nos apoiamos está em O poder da Ideologia, conf. cit. p. 469: “A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e um protesto contra essa miséria real. A religião é o suspiro dos oprimidos, o coração de um mundo sem coração, o espírito de um mundo sem espírito. A religião é o

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ideológica mais problemática” para a emancipação das classes trabalhadoras. Percebemos que o costumeiro uso, pelos católicos, da frase de Karl Marx – “A religião é o ópio do povo” – além de não ser devidamente contextualizada por dispensar a reflexão restante do seu pensamento, esvaziou sua profundidade.

De fato, a Igreja católica deveria se preocupar com essa análise de Karl Marx, pois ele estava afirmando que a ideologia religiosa funcionava, na consciência social, como um veneno paralisante, e, também era “o coração de um mundo sem coração”, pretendendo, com suas críticas, lutar pela criação de um mundo que não poderia mais ser descrito como sem coração. Também, poderia ser nomeado com um mundo em que não pudesse mais ser caracterizado como um vale de lágrimas. Este mundo, como deixou sugerido Karl Marx, não mais necessitaria da religião como consolo de tantos males.

No texto citado, que debate as possibilidades de autonomia humana, não estava em pauta estabelecer discussões sobre sutilezas teológicas, tampouco transparece a hipótese de que o autor estivesse preocupado em empunhar a bandeira do ateísmo; por esse motivo, afirmou a necessidade de se abandonar a metodologia religiosa de lidar com os problemas humanos, isto é, o método de conceber uma idéia de história da humanidade que necessite de ilusões. Karl Marx alertou que, para ele, o que importava era realizar uma crítica da religião para a libertação do homem da ilusão, para que ele pudesse pensar e atuar na sua realidade como homem que perdeu a ilusão, mas reconquistou a razão.

A maneira de se alcançar essa condição, ou nas palavras de Karl Marx, “para que [o homem] lance fora os grilhões e a flor viva brote”, era mister estabelecer a verdade deste mundo, considerado por ele, uma tarefa da história, por isso, a necessidade de uma nova metodologia de análise dos problemas humanos, a de transformar a crítica do céu em crítica da terra, a crítica da religião transformar-se em crítica do direito e, por sua vez a crítica da teologia transformar-se em crítica da política.

Fontes consultadas:

A base documental de nossa pesquisa concentrou-se em documentos publicados por católicos, especialmente os expressos na Revista A Ordem. Este periódico de responsabilidade de leigos teve uma longa duração, de 1921 a 1980, sendo um forte veículo de consultas, pertencia ao Centro Dom Vital, portando veículos privilegiados de difusão do pensamento católico.

Optou-se, também, por uma análise dos pronunciamentos emitidos pelos

ópio do povo. (...) A exigência de se abandonar as ilusões sobre o presente estado de coisas é a exigência de se abandonar um estado de coisas que necessita de ilusões. Portanto, a crítica da religião é, em estado embrionário, a crítica do vale de lágrimas cujo halo é a religião (...) Assim, a crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito e a crítica da teologia na crítica da política.”

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constituintes católicos durante a Assembleia Constituinte de 19445/46. Para esta escolha vale uma observação pertinente. Entre alguns historiadores, há certa resistência a esses documentos, alegando-se imprecisões de revisão, até mesmo a existência de alguns cortes de censura. No entanto, o fato é de que alguns debates estão registrados com o consentimento da Assembleia, tendo sua relevância histórica.

Para melhor clareza das informações contidas nos veículos acima, utilizamos as encíclicas papais, radio mensagens e documentos da igreja sobre os temas apresentados.

Os documentos da Igreja católica obedecem a critérios, por suposto, e se norteiam por fontes remotas e fontes próximas, a saber:

Fontes remotas: a) a revelação, objeto da fé, compreende a Sagrada •Escritura e a Tradição; b) a razão, com os princípios do direito natural.

Fontes próximas: a) o ensinamento oficial, denominado magistério •eclesiástico, que compreende os documentos pontifícios; as constituições dogmáticas; as bulas; as encíclicas; as mensagens e os discursos pontifícios; as declarações das Congregações Romanas e as cartas pastorais; b) o ensinamento científico oficial, que compreende as obras dos escritores católicos: os teólogos, filósofos, moralistas, sociólogos e economistas.

Lembrando que os papas se utilizam das encíclicas para tratarem de questões importantes da época ou de seus pontificados. São publicadas sob o nome e autoridade do Soberano Pontífice, embora sejam elaboradas com o auxílio de competentes especialistas na matéria. Em geral são redigidas em latim, mas há casos de serem versadas na língua da província eclesiástica ou do país a que se dirige o papa. Elas são denominadas pela primeira ou pelas primeiras palavras de seu texto original.

Ainda que pudesse, devido à infalibilidade papal, este não considera o conteúdo das encíclicas como objeto de fé divina, portanto, não aceitar esse conteúdo, ou parte dele não é considerado heresia, mas, como disse Leão XIII em 6/1/1895: “As cartas encíclicas que escrevemos em Nosso Pontificado contém numerosos ensinamentos que os católicos devem seguir e aos quais eles devem obedecer.”

E Pio XII (12/8/1950):

“Não se deve crer que o que é proposto nas encíclicas não pede de si o assentimento pelo fato de que os Papas nelas não exercem o poder supremo de seu magistério. Ao magistério ordinário, aplica-se também a palavra, e na maioria das vezes o que é exposto nas encíclicas faz parte já, por outro lado, da doutrina católica...”

E há também documentos emanados de fontes oficiosas, tais como da União

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Internacional de Estudos Sociais de Malines; da União de Friburgo; da Catholic National Welfare Conference dos EUA, entre outros.

Também foram úteis para a pesquisa as publicações da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ACDE), para a verificação da prática empresarial dos cristãos que se orientam na doutrina social para as relações de produção.

Com o intuito de estabelecer a confrontação das informações impressas pelos católicos com a realidade dos momentos históricos, ou seja, para uma investigação empírica, utilizamos o jornal O Estado de São Paulo, para os períodos concomitantes.

Utilizamos como fonte documental, também, o jornal de orientação comunista (PCB) – A Classe Operária – tendo em consideração que os atores sociais de orientação católica estavam em permanente debate com os comunistas. Esse confronto de idéias pareceu-nos oportuno como tentativa de esclarecer as duas correntes de pensamento em seus processos de influência sobre a organização da classe operária e dos trabalhadores de um modo geral.

A opção por este periódico baseou-se no seu período de existência, tornando-o uma importante fonte documental, pois contempla o lado comunista dos debates com os atores católicos. A publicação teve seu início em 1926, sobrevivendo entre clandestinidade e liberdade até os dias de hoje, com um interregno entre 1953 e 1961, período sem edições. Em 1953, com a morte de Stalin a Classe Operária encerra suas atividades no momento em que ocorre a cisão dentro do Partido Comunista, formando-se, como é sabido, o PCB (Partido Comunista Brasileiro), ficando conhecido como “Partidão” e o “PC do B” (Partido Comunista do Brasil).

Na parte de comunicações, o Partidão lançou a Voz Operária e o PC do B retornou com a idéia original da Classe Operária.

Luiz Carlos Prestes em coluna da edição do jornal de 9/Março/1946, número em que reaparece o periódico, avalia que durante os anos de vida clandestina foi A Classe Operária “o ‘organizador coletivo’ que reclamava Lenine, sem deixar de ser o agitador e propagandista sempre temido pela classe dominante.”

Entre muitas palavras, diz o dirigente que esse jornal era o órgão central do Partido e, tinha como objetivo apreciar, sob o ponto de vista proletário, todos os acontecimentos em contraponto à ‘grande imprensa’.

Em síntese, escolhemos o caminho de realizar o confronto das duas alternativas, a saber: a terceira via cristã católica para as relações sociais, com as propostas das correntes de pensamento, consideradas pelos católicos, como a de seus opositores: o liberalismo e o socialismo, mas enfocando os aspectos de suas ações práticas.

Na primeira parte do trabalho desenvolvemos os conceitos econômicos elaborados pela doutrina social desde o seu surgimento no século XIX, procurando acompanhar as

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alterações sofridas, prioritariamente, dentro do período compreendido neste estudo, isto é, até 1967.

No Brasil a doutrina social foi recebida e estudada pela comunidade católica em geral; buscamos, então, entender a interpretação dos intelectuais católicos tomando como referência, principalmente a Revista A Ordem, mas, também outros documentos encontrados ao longo da pesquisa que nos auxiliaram.

Também acreditamos importante reconstituir alguns debates entre os intelectuais católicos sobre temas importantes como democracia, comunismo e direito, presentes na Assembléia Constituinte de 1946, como forma de entender a proposta de sociedade defendida por esses atores católicos.

Reservamos, então, uma seção do trabalho para a reflexão sobre a ação dos agentes sociais católicos que se declararam seguidores da doutrina social, em suas atuações nos diversos espaços da administração pública, com ênfase naquelas existentes no campo da legislação trabalhista.

Por fim destacamos a interpretação dos empresários católicos seguidores da doutrina social e suas ações reais na relação empregador-operário, com o intuito de verificação empírica das possibilidades de realização da proposta de terceira via católica para a convivência harmoniosa da sociedade.

Em algumas situações fomos forçados a extrapolar os limites cronológicos de nossa proposta do período de pesquisas documentais, porque como é sabido, os acontecimentos históricos não falam por si sós e o debate transcende a cronologia escolhida em um trabalho. Com relação ao cristianismo tem-se a agravante deste tema pertencer a uma história de longa duração, por isso alguns conceitos utilizados pela doutrina social somente são mais bem compreendidos quando iluminados por sua gênese histórica. Além dessas considerações há também a questão de que em algumas situações a Igreja católica tende há levar alguns anos (às vezes séculos) para modificar seus conceitos, em certos momentos considerados como dogmas e com relação ao trabalho humano levamos essa assertiva em consideração, portanto, adentrando o espaço temporal, como defesa contra as armadilhas do anacronismo. Basta recordarmos dos exemplos da relação da Igreja com as teorias de Galileu, assim como a mea culpa, muito posteriores, frente às atitudes com os índios e com os judeus.

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Bibliografia

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CITINO, Adriana Gilioli. Comerás o pão com o suor do seu rosto. participação da igreja católica na elaboração da legislação trabalhista no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006 (dissertação de mestrado)

______________. Contribuições da doutrina social católica ao mundo do trabalho: Brasil 1937-1967. São Paulo: USP. 2012 (tese de doutorado)

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