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A presente investigação pretendeu estudar a forma como um grupo de professores e alunos de Ciências da Terra e da Vida (11º ano) interpretam e reagem às controvérsias sócio científicas recentes, divulgadas pelos meios de comunicação social. Este estudo reveste-se de particular relevância num período marcado, simultaneamente, por fortes discussões relativas ao impacto social e ambiental de várias inovações científicas e tecnológicas e pela implementação de novos currículos de ciências, que realçam a importância da discussão de controvérsias sócio-científicas no desenvolvimento da literacia científica dos alunos.Actualmente, a compreensão da natureza da ciência e da sua relação com a sociedade e a cultura é considerada um dos eixos fundamentais da literacia científica (Galvão, 2001; McComas, 2000). No entanto, diversas investigações têm revelado que tanto a escola como os meios de comunicação social parecem contribuir, explícita e implicitamente, para a construção de concepções limitadas acerca da ciência e dos cientistas (Abd El Khalick e Lederman, 2000; Matthews e Davies, 1999; Praia e Cachapuz, 1998). Perante esta situação, assume especial importância a realização de iniciativas de desenvolvimento pessoal e profissional (centradas nas escolas) que, estimulando a reflexão na acção e sobre a acção, capacitem os professores para uma reconstrução dos currículos e das suas práticas, de acordo com as orientações curriculares actuais para o ensino das ciências (Loucks-Horsley, Hewson, Love e Stiles, 1998; Ponte, 1998; Roldão, 1999; Schön, 1987).Nesta investigação, optou-se por uma abordagem interpretativa, de tipo qualitativo, que decorreu em duas fases complementares. Numa primeira fase, baseada essencialmente em estudos de caso, procurou-se investigar o eventual impacto destas controvérsias nas concepções dos professores e dos alunos (sobre a natureza, o ensino e a aprendizagem das ciências) e na prática pedagógica desses professores. Como métodos de recolha de dados aplicaram-se questionários, realizaram-se entrevistas semi estruturadas, efectuaram-se observações de aulas e analisaram-se diversos documentos (nomeadamente, histórias de ficção científica redigidas pelos alunos). Entre os alunos, foi evidente a falta de conhecimentos processuais e epistemológicos sobre a ciência, bem como a existência de diversas ideias estereotipadas e deturpadas sobre as características e a actividade dos cientistas. As práticas de sala de aula utilizadas pelos seus professores e as imagens de ciência divulgadas pelos meios de comunicação social parecem contribuir para esta situação.A segunda fase do estudo, suscitada pelos resultados obtidos durante a primeira fase, assumiu um formato de investigação acção, perseguindo, simultaneamente, como é inerente a esta metodologia, finalidades de compreensão e de intervenção sobre a realidade detectada. A constatação do teor limitado e estereotipado das concepções dos alunos e de algumas práticas de sala de aula caracterizadas pela ausência de referências explícitas a aspectos processuais e epistemológicos da ciência, motivou a realização de uma acção de desenvolvimento pessoal e profissional dirigida aos professores envolvidos na primeira fase do estudo. Esta acção de formação permitiu constatar as potencialidades de várias estratégias utilizadas na estimulação da reflexão (sobre as concepções e as práticas de sala de aula), no reconhecimento das potencialidades das actividades de discussão de questões sócio científicas (na abordagem de aspectos da natureza e funcionamento da ciência) e na construção de conhecimento didáctico necessário à utilização deste tipo de actividades em contexto de sala de aula. Contudo, o aspecto mais importante da acção de formação deverá ter sido a sua contribuição para a identificação e o estudo de factores que afectam a congruência entre as concepções dos professores (acerca da natureza, do ensino e da aprendizagem das ciências) e a prática de sala de aula.Os resultad

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DEPARTAMENTO DE EDUCAO

FACULDADE DE CINCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

CONTROVRSIAS SCIO-CIENTFICAS: DISCUTIR OU NO DISCUTIR?PERCURSOS DE APRENDIZAGEM NA DISCIPLINA DE CINCIAS DA TERRA E DA VIDA

Pedro Guilherme Rocha dos Reis

DOUTORAMENTO EM EDUCAO ESPECIALIDADE: DIDCTICA DAS CINCIAS

Tese orientada pela Prof. Doutora Ceclia Galvo Couto

2004Unio Europeia Fundo Social Europeu

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RESUMO

A presente investigao pretendeu estudar a forma como um grupo de professores e alunos de Cincias da Terra e da Vida (11 ano) interpretam e reagem s controvrsias scio-cientficas recentes, divulgadas pelos meios de comunicao social. Este estudo reveste-se de particular relevncia num perodo marcado, simultaneamente, por fortes discusses relativas ao impacto social e ambiental de vrias inovaes cientficas e tecnolgicas e pela implementao de novos currculos de cincias, que realam a importncia da discusso de controvrsias scio-cientficas no desenvolvimento da literacia cientfica dos alunos. Actualmente, a compreenso da natureza da cincia e da sua relao com a sociedade e a cultura considerada um dos eixos fundamentais da literacia cientfica (Galvo, 2001; McComas, 2000). No entanto, diversas investigaes tm revelado que tanto a escola como os meios de comunicao social parecem contribuir, explcita e implicitamente, para a construo de concepes limitadas acerca da cincia e dos cientistas (Abd-El-Khalick e Lederman, 2000; Matthews e Davies, 1999; Praia e Cachapuz, 1998). Perante esta situao, assume especial importncia a realizao de iniciativas de desenvolvimento pessoal e profissional (centradas nas escolas) que, estimulando a reflexo na aco e sobre a aco, capacitem os professores para uma reconstruo dos currculos e das suas prticas, de acordo com as orientaes curriculares actuais para o ensino das cincias (Loucks-Horsley, Hewson, Love e Stiles, 1998; Ponte, 1998; Roldo, 1999; Schn, 1987). Nesta investigao, optou-se por uma abordagem interpretativa, de tipo qualitativo, que decorreu em duas fases complementares. Numa primeira fase, baseada essencialmente em estudos de caso, procurou-se investigar o eventual impacto destas controvrsias nas concepes dos professores e dos alunos (sobre a natureza, o ensino e a aprendizagem das cincias) e na prtica pedaggica desses professores. Como mtodos de recolha de dados aplicaram-se questionrios, realizaram-se entrevistas semi-estruturadas, efectuaram-se observaes de aulas e analisaram-se diversos documentos (nomeadamente, histrias de fico cientfica redigidas pelos alunos). Entre os alunos, foi evidente a falta de conhecimentos processuais e epistemolgicos sobre a cincia, bem como a existncia de diversas ideias estereotipadas e deturpadas sobre as caractersticas e a actividade dos cientistas. As prticas de sala de aula utilizadas pelos seus professores eiii

as imagens de cincia divulgadas pelos meios de comunicao social parecem contribuir para esta situao. A segunda fase do estudo, suscitada pelos resultados obtidos durante a primeira fase, assumiu um formato de investigao-aco, perseguindo, simultaneamente, como inerente a esta metodologia, finalidades de compreenso e de interveno sobre a realidade detectada. A constatao do teor limitado e estereotipado das concepes dos alunos e de algumas prticas de sala de aula caracterizadas pela ausncia de referncias explcitas a aspectos processuais e epistemolgicos da cincia, motivou a realizao de uma aco de desenvolvimento pessoal e profissional dirigida aos professores envolvidos na primeira fase do estudo. Esta aco de formao permitiu constatar as potencialidades de vrias estratgias utilizadas na estimulao da reflexo (sobre as concepes e as prticas de sala de aula), no reconhecimento das potencialidades das actividades de discusso de questes scio-cientficas (na abordagem de aspectos da natureza e funcionamento da cincia) e na construo de conhecimento didctico necessrio utilizao deste tipo de actividades em contexto de sala de aula. Contudo, o aspecto mais importante da aco de formao dever ter sido a sua contribuio para a identificao e o estudo de factores que afectam a congruncia entre as concepes dos professores (acerca da natureza, do ensino e da aprendizagem das cincias) e a prtica de sala de aula. Os resultados obtidos neste estudo tm implicaes para a investigao sobre as concepes dos alunos acerca da natureza da cincia, o ensino das cincias (no Ensino Bsico e Secundrio) e a formao inicial e contnua de professores. Entre as mais significativas destacam-se: a) as potencialidades da utilizao combinada de histrias de fico cientfica (sobre a actividade dos cientistas) e de entrevistas na investigao das concepes dos alunos acerca do empreendimento cientfico; b) a importncia de uma interveno activa do ensino das cincias na discusso das imagens veiculadas pelos media (acerca da cincia, da tecnologia e da actividade, caractersticas e motivaes dos cientistas); c) a pertinncia de um maior investimento na concepo e avaliao de materiais educativos centrados em aspectos processuais e epistemolgicos da cincia; e d) a relevncia de iniciativas de desenvolvimento pessoal e profissional, centradas na escola, que apoiem os professores durante a concepo e a implementao desse tipo de materiais em contexto de sala de aula.

Palavras-Chave: Ensino das Cincias; Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS); Controvrsias Scio-Cientficas; Discusso; Concepes acerca da Natureza da Cincia; Prticas de Sala de Aula; Conhecimento e Desenvolvimento Profissional.

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ABSTRACT

This research aimed at studying how some Earth and Life Science (11th grade) students and teachers interpret and react to recent socio-scientific controversies made public by the media. Two elements make this study particularly relevant: a) the actual debate concerning social impact of several scientific and technological innovations; and b) the implementation of new science curricula, which, stress the development of pupils scientific literacy through the discussion of socioscientific controversies. Understanding the nature of science and its relation to society and culture is considered to be one of the main aspects of citizens scientific literacy (Galvo, 2001; McComas, 2000). However, several studies have shown that both school and media seem to contribute, explicitly and implicitly, to the construction of limited conceptions about science and scientists (Abd-El-Khalick and Lederman, 2000; Matthews and Davies, 1999; Praia and Cachapuz, 1998). This situation brings forth the importance of conceiving personal and professional development initiatives aimed at encouraging reflection and supporting classroom practices reconstruction (LoucksHorsley, Hewson, Love and Stiles, 1998; Ponte, 1998; Roldo, 1999; Schn, 1987). An interpretative approach of a qualitative nature was chosen, organized in two complementary phases. The first phase was essentially based on case studies. It sought out to investigate the possible impact of these controversies on teachers and pupils conceptions (about the nature, teaching and learning of science) and also on teachers pedagogical practices. Data collection instruments included questionnaires, semi-structured interviews, classroom observation and the analysis of several documents (namely science fiction stories written by pupils). Among pupils there was a lack of procedural and epistemological knowledge of science, as well as, the presence of several stereotyped ideas about scientists features and activities. Both science teachers classroom practices and media seem to contribute to this situation.v

The second phase of the study, motivated by the results of the first phase, assumed an action-research format which aimed at understanding and intervening upon the reality that was revealed. The realization of pupils limited and stereotyped conceptions, as well as, certain classroom practices (characterized by the lack of explicit references to procedural and epistemological aspects of science), prompted an in-service workshop for the teachers involved in the first phase of the study. This initiative showed three potentialities of several strategies used: 1) stimulating reflection upon classroom conceptions and practices; 2) acknowledging the potential of classroom activities concerning the discussion of socio-scientific issues; and 3) constructing the professional knowledge for using this kind of activity in classroom context. However, the most important aspect of this workshop was its contribution to the identification and study of factors affecting the consistency between teachers conceptions (about the nature, teaching and learning of science) and their classroom practices. The results of this study have several educational implications. Among the most pertinent ones are: a) the potential of combined use of science fiction stories (about scientists activities) and interviews in investigating pupils conceptions about scientific activity; b) the importance of classroom discussions about media images (about science, technology and scientists activities, features and motivations); c) the importance of developing and evaluating educational materials focused on procedural and epistemological aspects of science; and d) the relevance of personal and professional development initiatives, that support teachers throughout the conception and implementation of this type of material in classroom context.

Key-Words:

Science

Education;

Science,

Technology

and

Society

(STS);

Socio-Scientific Issues; Discussion; Conceptions about the Nature of Science; Classroom Practice; Professional Knowledge; Professional Development.

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AGRADECIMENTOS

Uma palavra de agradecimento a todos os que me auxiliaram nesta viagem por Admirveis Mundos Novos. Uma viagem marcada, muitas vezes, pela aventura, por descobertas, por recompensas, por Cabos da Boa Esperana; menos vezes, por dificuldades, por obstculos, por Cabos das Tormentas. Ceclia Galvo, conhecedora das Artes de Bem Navegar, que me orientou nesta viagem, sugerindo rotas e assinalando escolhos, ventos e correntes. Um agradecimento muito especial pela sua amizade, competncia profissional, dimenso humana e apoio constante. Aos meus Pais a quem tudo devo e que me incutiram o gosto pela descoberta e pela argumentao. Rute, pelo apoio precioso nesta Viagem, eliminando escolhos e lendo e revendo as vrias verses deste Dirio de Bordo. A todos os professores e alunos que participaram empenhadamente e entusiasticamente nesta aventura, em especial s professoras a quem atribui os nomes Cristina, Amlia, Snia, Jlia e Gabriela. Ao Joo Pedro da Ponte, Margarida Csar e Cu Roldo pela sua amizade, pelas oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional que me proporcionaram e pelos comentrios pertinentes aos Instrumentos de Viagem e ao Dirio de Bordo. A todos os elementos da Escola Superior de Educao de Santarm, por todo o apoio institucional e toda a amizade que me tm dedicado. Aos meus colegas dos projectos Interaco e Conhecimento,

Desenvolvimento Profissional de Professores em Incio de Carreira e Aprender a

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ser Professor de Matemtica e Cincias pelos momentos de reflexo e aprendizagem em conjunto. Ao PRODEP, ao Instituto de Inovao Educacional (medida 2 do SIQE contrato n 42/2000) e ao Centro de Investigao em Educao da FCUL por todo o apoio disponibilizado a esta Viagem. A todas as pessoas familiares, professores, colegas, alunos, amigos..., do presente e do passado com quem tenho cruzado Rotas e que muito tm enriquecido a minha vida.

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NDICE

RESUMO ABSTRACT AGRADECIMENTOS NDICE NDICE DE FIGURAS E QUADROS CAPTULO 1 INTRODUO 1.1 Contexto, problemtica e relevncia da investigao 1.2 As origens do estudo 1.3 Organizao global do relato da investigao CAPTULO 2 REFERENCIAL TERICO 2.1 Finalidades da educao cientfica: argumentos, tenses e slogans 2.1.1 Literacia cientfica 2.1.2 Cincia-tecnologia-sociedade 2.2 A educao em cincia e as questes scio-cientficas 2.2.1 Cidadania e questes scio-cientficas 2.2.2 A discusso como experincia educativa 2.2.3 A discusso de questes scio-cientficas controversas nas aulas de cincia 2.3 A educao em cincia e a compreenso da natureza da cincia 2.3.1 A compreenso da natureza da cincia como finalidade educacional 2.3.2 Concepes e prticas sobre a natureza da cincia 2.4 Conhecimento e desenvolvimento profissional dos professores 2.4.1 Conhecimento profissional do professor 2.4.2 Desenvolvimento profissional do professor 2.4.3 Dois exemplos de iniciativas de desenvolvimento profissional 2.5 Sntese CAPTULO 3 METODOLOGIA ix

I V VII IX XIII 1 1 5 7 11 11 18 37 48 48 52 60 76 76 81 95 95 102 113 117 119

3.1 Introduo 3.1.1 Intenes 3.1.2 Questes de investigao 3.1.3 Abordagem metodolgica 3.1.4 Preocupaes com a validade da investigao 3.1.5 Pressupostos epistemolgicos 3.1.6 Valores 3.1.7 Sntese das fases do projecto 3.2 Opes e procedimentos de carcter metodolgico 3.2.1 Fase 1: Estudo do impacto das controvrsias scio-cientficas 3.2.2 Fase 2: Aco de desenvolvimento profissional 3.3 Cronograma do estudo CAPTULO 4 OS ALUNOS E AS CONTROVRSIAS SCIO-CIENTFICAS 4.1 Introduo 4.2 Estudos de caso 4.2.1 O caso de Ana Margarida 4.2.2 O caso de Miguel 4.2.3 O caso de Jaime 4.2.4 O caso de Ndia 4.2.5 O caso de Ana Sofia 4.3 Anlise global dos dados 4.3.1 Concepes sobre a natureza da cincia e da tecnologia 4.3.2 Concepes sobre o ensino e a aprendizagem das cincias CAPTULO 5 OS PROFESSORES E AS CONTROVRSIAS SCIO-CIENTFICAS 5.1 Introduo 5.2 O caso de Cristina 5.2.1 Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico 5.2.2 Concepes sobre o ensino das Cincias da Terra e da Vida 5.2.3 Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula 5.2.4 Concepes sobre a formao contnua de professores 5.2.5 Prtica de sala de aula 5.3 O caso de Amlia 5.3.1 Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico 5.3.2 Concepes sobre o ensino das Cincias da Terra e da Vida 5.3.3 Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula 5.3.4 Concepes sobre a formao contnua de professores x

119 119 121 122 123 125 127 127 129 129 147 164 167 167 168 168 175 185 190 196 203 204 235 245 245 246 248 250 253 255 258 264 266 269 272 274

5.3.5 Prtica de sala de aula 5.4 O caso de Snia 5.4.1 Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico 5.4.2 Concepes sobre o ensino das Cincias da Terra e da Vida 5.4.3 Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula 5.4.4 Concepes sobre a formao contnua de professores 5.4.5 Prtica de sala de aula 5.5 O caso de Jlia 5.5.1 Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico 5.5.2 Concepes sobre o ensino das Cincias da Terra e da Vida 5.5.3 Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula 5.5.4 Concepes sobre a formao contnua de professores 5.5.5 Prtica de sala de aula 5.6 O caso de Gabriela 5.6.1 Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico 5.6.2 Concepes sobre o ensino das Cincias da Terra e da Vida 5.6.3 Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula 5.6.4 Concepes sobre a formao contnua de professores 5.6.5 Prtica de sala de aula 5.7 Sntese CAPTULO 6 A ACO DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL 6.1 Introduo 6.2 As opinies das professoras participantes 6.2.1 Aspectos positivos 6.2.2 Aspectos negativos 6.2.3 Repercusses na actividade profissional 6.3 A opinio do avaliador externo 6.4 Potencialidades e limitaes da aco CAPTULO 7 CONSIDERAES FINAIS, IMPLICAES E PROJECTOS FUTUROS 7.1 Consideraes finais 7.1.1 Concepes dos alunos 7.1.2 Concepes e prticas dos professores 7.1.3 Desenvolvimento pessoal e profissional dos professores 7.2 Implicaes 7.2.1 Implicaes para a investigao sobre as concepes dos alunos acerca da NC 7.2.2 Implicaes para o ensino das cincias nos nveis Bsico e Secundrio xi

275 282 284 286 288 290 291 296 297 299 302 303 306 312 316 317 319 320 321 326 333 333 335 336 340 341 345 349 359 359 360 366 372 375 375 376

7.2.3 Implicaes para a formao inicial e contnua de professores 7.3 Do presente ao futuro REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS Anexo 1 Questionrio Q1 Anexo 2 Questionrio Q2 Anexo 3 Guio da Entrevista EP1 Anexo 4 Guio da entrevista EP2 Anexo 5 Guio da entrevista EP3 Anexo 6 Guio para a discusso dos enredos das histrias de fico cientfica Anexo 7 Guio da entrevista EP4 Anexo 8 Relatrio de avaliao da aco pelo consultor de formao

379 382 387 423 427 431 435 439 443 447 451 457

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NDICE DE FIGURAS E QUADROSFIGURAS Figura 1 Domnios do conhecimento do professor de cincias Figura 2 Os componentes do conhecimento pedaggico de contedo para professores de cincias Figura 3 Esquema da componente reflexiva da oficina de formao Figura 4 Concepes dos alunos sobre a clonagem Figura 5 Concepes dos alunos sobre o estudo do genoma humano Figura 6 Caracterizao dos enredos das histrias de fico cientfica Figura 7 Influncias da cincia e da tecnologia sobre a sociedade Figura 8 Influncias da sociedade sobre a cincia e tecnologia Figura 9 Caractersticas pessoais atribudas aos cientistas Figura 10 Motivaes para a actividade dos cientistas Figura 11 Local e materiais de trabalho dos cientistas Figura 12 Nvel de colaborao entre cientistas 100 151 213 213 216 221 222 225 227 229 230 98

QUADROS Quadro 1 Breve caracterizao dos professores e respectivas turmas Quadro 2 Breve caracterizao dos alunos retratados nos casos Quadro 3 Dados recolhidos durante o estudo Quadro 4 Palavras associadas aos termos cincia e tecnologia Quadro 5 Questes scio-cientficas identificadas pelos alunos Quadro 6 Fontes de esclarecimento sobre questes scio-cientficas Quadro 7 Questes scio-cientficas discutidas nas aulas Quadro 8 Utilidade atribuda pelos alunos disciplina de CTV Quadro 9 Expectativas relativamente aos professores de CTV Quadro 10 Actividades mais adequadas aprendizagem de CTV Quadro 11 Aula ideal de CTV Quadro 12 Aspectos positivos da oficina de formao Quadro 13 Aspectos negativos da oficina de formao 135 136 137 206 208 209 210 236 237 238 239 336 340

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Compreender to importante para cada um de ns como amar. uma actividade que no se delega. No deixamos ao Casanova a misso de amar. No deixemos aos cientistas [a misso] de compreenderem em vez de ns.

(Jacquard, 1985, p. 123)

No alinhes pelas opinies que o insolente julga verdadeiras ou pretende que julgues verdadeiras, mas examina-as em si mesmas, pelo que elas so realmente.

(Marco Aurlio, s.d., p. 38)

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xvi

CAPTULO 1 INTRODUO

1.1 CONTEXTO, PROBLEMTICA E RELEVNCIA DA INVESTIGAO Desde a revoluo industrial at ao incio da dcada de 70, assumiu-se frequentemente que a tecnologia conduzia automaticamente ao progresso e melhoria da vida humana: aceitava-se a ideia de que tanto a cincia como a tecnologia representavam a soluo para a maioria dos males da sociedade. Realmente, a tecnologia moderna permitiu aumentar as produes alimentar e energtica e melhorar as condies de vida da populao. No entanto, os custos ambientais e humanos tm-se tornado cada vez mais evidentes. Os acidentes em centrais nucleares, os desastres em indstrias qumicas e os derrames acidentais de petrleo constituem exemplos reveladores da extrema vulnerabilidade da tecnologia a erros humanos ou a falhas tcnicas. A explorao intensiva e irreflectida dos recursos naturais pela agricultura e pelas indstrias, a utilizao massiva de pesticidas e fertilizantes, a acumulao do dixido de carbono na atmosfera, a destruio da camada de ozono e a acumulao de resduos txicos por todo o planeta constituem alguns dos impactos negativos das aplicaes tecnolgicas sobre o ambiente. A exploso demogrfica, a desertificao humana das zonas rurais, o aumento das disparidades entre ricos e pobres, a concentrao do poder poltico e econmico, a febre consumista e a produo e utilizao de armas qumicas, biolgicas e nucleares representam efeitos sociais graves da tecnologia. Durante os ltimos anos, semelhana do que acontece em muitos outros pases, a sociedade portuguesa tem sido agitada por mltiplas controvrsias scio-cientficas: a) a co-incinerao de resduos txicos em cimenteiras e a

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consequente libertao para a atmosfera de substncias perigosas; b) a eventual propagao da BSE (Encefalopatia Espongiforme Bovina) aos seres humanos atravs do consumo de carne de vaca; c) os potenciais efeitos negativos da radiao emitida pelos telemveis; d) os possveis efeitos negativos da construo de barragens e da instalao de aterros sanitrios em determinadas zonas do pas; e e) a utilizao de hormonas e de antibiticos na produo animal. Estas situaes tm desencadeado reaces fortes na populao portuguesa medo, revolta, contestao e suscitado tenses sociais entre direitos individuais e objectivos sociais, prioridades polticas e valores ambientais, interesses econmicos e preocupaes relativamente sade. Todas estas reaces e tenses sociais agravam-se perante a crescente obscuridade e complexidade da cincia que ameaa os direitos dos cidados e a crescente importncia dos especialistas na tomada de decises que limita a democraticidade do processo (Nelkin, 1992). Simultaneamente, os meios de comunicao social exploram estas controvrsias, atravs de notcias sensacionalistas, frequentemente mais preocupadas com ndices de audincia do que com a informao do pblico. Consequentemente, os protestos dos cidados surgem muitas vezes associados a exigncias de um maior esclarecimento acerca dos vrios aspectos dos assuntos em questo que lhes permita reconhecer o que est em causa em determinada controvrsia, alcanar uma opinio informada e participar em discusses, debates e processos de tomada de deciso. Alguns estudos tm revelado que a imagem pblica da cincia determinada pelas questes scio-cientficas mais recentes (Thomas, 1997). Logo, todas estas controvrsias, para alm de terem desencadeado reaces e tenses na populao portuguesa, devem ter influenciado as suas concepes sobre a cincia e a tecnologia e, consequentemente, os seus pensamentos, discursos e decises sobre questes scio-cientficas. O estudo do impacto das questes scio-cientficas nas concepes dos cidados acerca da natureza da cincia torna-se especialmente importante e relevante no que respeita aos professores de cincias, dadas as eventuais repercusses nas suas prticas de sala de aula e nas concepes dos seus alunos acerca do que a cincia. Parte-se do princpio que os professores 2

atravs das ideias que veiculam, das estratgias que implementam e da forma como abordam estas controvrsias nas aulas podem ter um impacto considervel nas concepes que os seus alunos constroem acerca da cincia. Dada a pertinncia e a relevncia desta temtica, a investigao que se descreve neste trabalho pretendeu estudar o eventual impacto das controvrsias recentes em torno de questes cientficas e tecnolgicas divulgadas pelos meios de comunicao social na prtica pedaggica de um grupo de professores de Cincias da Terra e da Vida e nas concepes destes professores e dos seus alunos sobre a natureza, o ensino e a aprendizagem das cincias. As controvrsias referidas neste estudo (questes scio-cientficas) no se resumem a disputas acadmicas internas e restritas comunidade cientfica (por exemplo, entre os apoiantes de teorias e modelos cientficos concorrentes) consistindo sim, em questes relativas s interaces entre cincia, tecnologia e sociedade (nomeadamente, as polmicas despoletadas pelos eventuais impactos sociais de inovaes cientficas e tecnolgicas), que dividem tanto a comunidade cientfica como a sociedade em geral, e para as quais diferentes grupos de cidados propem explicaes e tentativas de resoluo incompatveis, baseadas em valores alternativos. Estas questes scio-cientficas possuem uma natureza contenciosa, podem ser analisadas segundo diferentes perspectivas, no conduzem a concluses simples e envolvem, frequentemente, uma dimenso moral e tica (Sadler e Zeidler, 2004). O estudo desta problemtica foi orientado pelas seguintes questes de investigao: 1. Como que um grupo de professores de Cincias da Terra e da Vida e os seus alunos interpretam as controvrsias recentes em torno de questes cientficas e tecnolgicas divulgadas pelos meios de comunicao social? 2. Qual o impacto dessas controvrsias nas concepes que estes professores e os seus alunos tm acerca da cincia e da tecnologia? 3. Qual o impacto dessas controvrsias nas concepes acerca do ensino e da aprendizagem e na prtica pedaggica deste grupo de professores?3

4. Que factores facilitam ou dificultam a utilizao, por parte destes professores, da discusso de assuntos controversos associados a questes cientficas e tecnolgicas actuais como abordagem para o ensino das cincias? 5. Quais as potencialidades de um tipo de aco de formao privilegiando a reflexo sobre a prtica de ensino dos participantes e a aprendizagem vivencial, colaborativa e centrada em problemas no desenvolvimento profissional deste grupo especfico de professores, nomeadamente, no que respeita construo do conhecimento didctico necessrio concepo e implementao de actividades de discusso de assuntos controversos nas suas aulas de Cincias da Terra e da Vida? Em Portugal, esta investigao torna-se particularmente significativa num perodo (2002-2003) marcado por diversas controvrsias relacionadas com cincia e tecnologia (por exemplo, a utilizao de antibiticos na produo animal, a clonagem de tecidos humanos, os alimentos geneticamente modificados e os efeitos nefastos da radiao emitida pelos telemveis) e pela implementao de novos currculos de cincias no Ensino Bsico e Secundrio, que apelam discusso de temas cientficos e tecnolgicos polmicos e actuais como forma de preparar os alunos para uma participao activa e fundamentada na sociedade (Galvo, 2001; Galvo e Abrantes, 2002; Ministrio da Educao, 2001b). Cumulativamente, tm sido apresentadas evidncias de que a discusso de questes scio-cientficas pode revelar-se positiva na aprendizagem dos contedos, dos processos e da natureza da cincia e da tecnologia e no desenvolvimento cognitivo, social, poltico, moral e tico dos alunos (Hammerich, 2000; Millar, 1997; Nelkin, 1992; Reis, 1997a, 1999a; Reis e Pereira, 1998; Zeidler e Lewis, 2003). Este estudo surge no seguimento de uma linha de investigao e de interveno, centrada na utilizao da discusso de assuntos controversos no ensino das cincias, iniciada em 1995 (Reis, 1997a, 1997b). Desde essa data, o conjunto de investigaes realizadas evidenciou potencialidades deste tipo de actividades na construo de conhecimentos sobre a cincia (substantivos,

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processuais e epistemolgicos) e no desenvolvimento cognitivo, social, afectivo e tico dos alunos (Reis, 1997a, 1999a, 1999b, 2001, 2003a; Reis e Pereira, 1998). No entanto, verificou-se, ainda, que a realizao destas actividades no constitui uma prtica comum nas aulas de cincias, o que poder comprometer a implementao dos novos currculos de cincias fortemente centrados na discusso de questes scio-cientficas actuais. Esta constatao salienta a importncia e a relevncia do estudo dos factores que condicionam positiva e negativamente a implementao de actividades de discusso de assuntos controversos nas aulas de cincias. A identificao e compreenso destes factores revelam-se decisivas para a concepo e implementao de processos de interveno capazes de proporcionarem aos professores a confiana, a motivao e o conhecimento didctico necessrios utilizao de actividades desta natureza.

1.2 AS ORIGENS DO ESTUDO As razes deste estudo penetram bem fundo na histria familiar do investigador, marcada pelo contacto com diferentes culturas (de quatro continentes) e pela diversidade de opinies e de orientaes polticas. Desde muito cedo, foi iniciado pelos seus pais numa cultura familiar que, influenciada pelos ideais do livre pensamento, sempre privilegiou o conhecimento, a discusso, o debate e a argumentao. sua profunda convico que esta cultura teve impactos profundos no seu desenvolvimento como ser humano, nomeadamente, nas suas dimenses cognitiva, afectiva, social e moral. O particular interesse do investigador pela dimenso controversa da cincia e da tecnologia, em especial pelas implicaes dos novos avanos na rea da gentica e da biotecnologia, manifestou-se na sua adolescncia suscitado pelos filmes e novelas de fico cientfica e esteve na base da opo por um curso na rea de Biologia. Desde ento, tanto na sua formao inicial e ps-graduada como na sua carreira profissional (primeiro como professor de Biologia e Geologia no Ensino Bsico e Secundrio; posteriormente como professor do Ensino Superior)5

tem dedicado uma ateno especial a estas temticas. Durante os ltimos dez anos, a discusso de questes scio-cientficas tem ocupado um espao privilegiado nas aces de formao inicial e contnua de professores que tem desenvolvido, em virtude das potencialidades desta metodologia (constatadas ao longo da sua actividade como docente e investigador) na promoo da literacia cientfica, nomeadamente, na aprendizagem dos contedos, dos processos e da natureza da cincia e da tecnologia e no desenvolvimento cognitivo, social, poltico, moral e tico dos cidados. O gosto do investigador pela inovao no se restringe aos temas cientficos e tecnolgicos que privilegia nas suas aulas, traduzindo-se tambm em prticas de sala de aula onde se experimentam e avaliam frequentemente novas abordagens e novas tecnologias (nomeadamente, as tecnologias de informao e comunicao). Ao longo da sua actividade docente, a componente investigativa e reflexiva surgiu como um elemento importante do seu desenvolvimento pessoal e profissional, proporcionando conhecimentos preciosos que tm sido constantemente integrados na sua prtica de sala de aula. Um marco extremamente importante no percurso pessoal e profissional do investigador (e que contribuiu decisivamente para este estudo) consistiu na sua integrao no Centro de Investigao em Educao da Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa e nas equipas dos projectos de investigao Desenvolvimento Profissional de Professores em Incio de Carreira, Aprender a ser Professor de Matemtica e Cincias (ambos coordenados por Joo Pedro da Ponte) e Interaco e Conhecimento (coordenado por Margarida Csar). A participao nestes projectos tem-se revelado decisiva no desenvolvimento, tanto das suas competncias investigativas e reflexivas como dos seus conhecimentos sobre o desenvolvimento profissional de professores e o papel das interaces sociais na apropriao de conhecimentos, mobilizao de competncias e promoo da auto-estima. Muitos destes conhecimentos e capacidades constituem os alicerces do presente estudo.

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1.3 ORGANIZAO GLOBAL DO RELATO DA INVESTIGAO O relato da investigao divide-se em nove seces: sete captulos, uma lista das referncias bibliogrficas e um conjunto de anexos. O captulo 1 corresponde Introduo e inclui a contextualizao do estudo, a justificao da sua relevncia, as motivaes pessoais do investigador que constituram a gnese deste trabalho, a problemtica e as questes da investigao e uma descrio do contedo de cada uma das seces que compem a dissertao. O captulo 2 apresenta o Referencial Terico que serviu de base investigao e divide-se em quatro sub-captulos. No primeiro sub-captulo Finalidades da educao cientfica: Argumentos, tenses e slogans discutem-se os diversos argumentos invocados na justificao de uma educao cientfica alargada a toda a populao e alguns dos slogans especficos que tm sido mais utilizados com o objectivo de mobilizar a sociedade em torno de determinadas ideias e propostas de mudana relativamente educao em cincia: literacia cientfica e cincia-tecnologia-sociedade. Apresentam-se diferentes definies do conceito de literacia cientfica, os diversos elementos que as caracterizam e as propostas dos seus autores no sentido de as operacionalizarem atravs da educao formal e no-formal. Quanto ao movimento cincia-tecnologia-sociedade, referem-se as suas finalidades, os seus princpios orientadores e as diferentes abordagens propostas para a sua concretizao (nomeadamente, os contedos e as metodologias que privilegiam). No segundo sub-captulo A educao em cincia e as questes scio-cientficas defende-se a importncia da discusso de questes scio-cientficas como experincia de aprendizagem adequada construo de conhecimentos sobre os contedos, os processos e a natureza da cincia e da tecnologia e ao desenvolvimento cognitivo, social, poltico, moral e tico dos alunos. Apresentam-se resultados de investigao que evidenciam as potencialidades da discusso, em geral, e da discusso de questes controversas, em particular, discutindo-se os factores que dificultam a incorporao deste tipo de interaco na prtica lectiva. O terceiro sub-captulo A7

educao em cincia e a compreenso da natureza da cincia inclui uma discusso dos benefcios culturais, educacionais e cientficos do ensino acerca da natureza da cincia e os resultados de diversas investigaes sobre esta temtica, nomeadamente: a) das concepes de alunos e professores acerca da natureza do empreendimento cientfico; b) dos factores que contribuem para estas concepes; c) das relaes entre as concepes e a prtica lectiva dos professores; e d) dos factores que afectam a coerncia entre as concepes e a prtica lectiva dos professores. O quarto sub-captulo Conhecimento e desenvolvimento profissional dos professores discute a natureza, o contedo e a estrutura do conhecimento profissional dos professores de cincias, bem como diversas estratgias adequadas ao seu desenvolvimento. Inclui, ainda, dois exemplos de aces de desenvolvimento profissional (destinadas a promover a construo de conhecimento didctico, pedaggico e de contedo disciplinar necessrio ao ensino da natureza da cincia) que articulam algumas das estratgias previamente discutidas. O captulo 3, correspondente Metodologia, descreve e fundamenta as opes e os procedimentos de carcter metodolgico das duas fases da investigao. Apresenta, tambm, as intenes, os pressupostos de natureza epistemolgica e os valores subjacentes globalidade do estudo e um cronograma de todo o processo investigativo. Os captulos 4, 5 e 6 apresentam e discutem os resultados do estudo. O captulo 4 Os alunos e as controvrsias scio-cientficas rene evidncias das concepes dos alunos sobre: a) a natureza da cincia; b) as questes controversas relacionadas com cincia e tecnologia divulgadas pelos meios de comunicao social; e c) o ensino e a aprendizagem das cincias. Divide-se em dois sub-captulos: o primeiro constitudo por cinco estudos de caso centrados, cada um, num aluno de uma das turmas envolvidas na investigao; o segundo apresenta a anlise global das informaes provenientes do conjunto dos alunos participantes no estudo. O captulo 5 Os professores e as controvrsias scio-cientficas constitudo por cinco estudos de caso centrados, cada um deles, no trabalho desenvolvido por uma professora do 11 grupo B (Biologia e Geologia) numa das suas turmas de Cincias da Terra e da Vida do 11 ano. Neste8

captulo, discute-se o eventual impacto de controvrsias recentes em torno de questes cientficas e tecnolgicas divulgadas pelos meios de comunicao social nas suas concepes acerca da natureza, do ensino e da aprendizagem das cincias e na prtica pedaggica implementada por essas professoras. O captulo 6 A aco de desenvolvimento profissional apresenta e discute os resultados da segunda fase do estudo, ou seja, da realizao de uma oficina de formao destinada a um grupo de professores de Biologia e Geologia (nomeadamente, aos participantes na primeira fase da investigao). Por fim, no captulo 7 apresentam-se as Consideraes Finais do estudo, estabelecidas a partir da triangulao dos resultados e do seu cruzamento com a fundamentao terica. Nesta seco, discutem-se algumas implicaes educativas dos resultados obtidos e sugerem-se linhas de investigao futuras.

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CAPTULO 2 REFERENCIAL TERICO

2.1 FINALIDADES DA EDUCAO CIENTFICA: ARGUMENTOS, TENSES E SLOGANS Desde o sculo XIX tm proliferado os apelos, de provenincias distintas (polticos, empregadores, cientistas, educadores, meios de comunicao social...), no sentido de uma educao cientfica alargada a toda a populao. As razes apontadas para tal alargamento tm variado de acordo com o contexto social e poltico da poca e as percepes de cada um daqueles sectores da sociedade relativamente s finalidades dessa educao (DeBoer, 2000; Freire, 1993). Actualmente, o conhecimento da cincia pela populao cincia para todos um objectivo de muitos pases, expresso atravs dos seus currculos de cincias (Fensham, 1997) e de inmeras iniciativas como a revitalizao dos museus, a realizao de colquios e debates, o alargamento do espao destinado cincia nos meios de comunicao social e a organizao de grandes exposies e feiras de cincia (Queiroz, 1998). De acordo com vrios autores, os argumentos mais referidos pela literatura das ltimas dcadas, para justificar uma educao cientfica alargada a todos os alunos, so de natureza econmica, utilitria, cultural, democrtica e moral (Millar, 2002; Osborne, 2000; Thomas e Durant, 1987; Wellington, 2001). De acordo com o argumento econmico, a educao cientfica deve assegurar um fluxo constante de engenheiros e cientistas capazes de garantirem o desenvolvimento cientfico e tecnolgico e, consequentemente, a prosperidade econmica e a competitividade internacional do seu pas. Segundo esta perspectiva, comum desde o sculo XIX, o ensino das cincias dever proporcionar uma

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preparao pr-profissional e seleccionar os alunos mais aptos para uma carreira cientfica; os restantes alunos acabam por beneficiar deste ensino, ficando melhor preparados para as exigncias de um mercado de trabalho onde a cincia e a tecnologia assumem uma importncia crescente. Na opinio de alguns autores, este argumento, apesar de vlido, suscita alguns problemas (Aikenhead, 2002; Osborne, 2000). Em primeiro lugar, at que ponto ser lcito sujeitar todos os alunos a um currculo de cincia concebido (em termos de objectivos, contedos e metodologias) de acordo com as caractersticas do pequeno grupo que ir prosseguir estudos e, eventualmente, uma carreira na rea da cincia. Para estes alunos, o currculo convencional de cincia pouco relevante para as suas vidas actuais ou futuras (Hodson, 1998; Layton, Jenkins, Macgill e Davey, 1993; Millar e Osborne, 1998). Em segundo lugar, a investigao tem revelado que at mesmo os alunos mais inteligentes e criativos so desencorajados por currculos aborrecidos e irrelevantes, acabando por desistir de uma carreira cientfica (Solomon, 1993). Em terceiro lugar, estudos recentes sobre o trabalho dos cientistas sugerem que o conhecimento de cincia necessrio sua actividade, para alm de ser bastante especfico do contexto em que investigam, representa apenas um dos muitos requisitos necessrios sua profisso (Coles, 1998, citado por Osborne, 2000). Pelo contrrio, vrios outros requisitos considerados importantes pelos cientistas inquiridos nesse estudo (capacidades de anlise e interpretao de dados, de trabalho em equipa e de comunicao fluente) so pouco valorizados pelos currculos actuais, marcados por uma grande nfase factual. O argumento utilitrio defende que a educao cientfica deve proporcionar conhecimentos e desenvolver capacidades e atitudes indispensveis vida diria dos cidados. De acordo com este argumento, qualquer cidado necessita: a) conhecimentos cientficos (nomeadamente, sobre electricidade, frico, anatomia e fisiologia humanas, sade e doena, microbiologia e fotossntese) que permitam uma experincia informada e inteligente com o mundo natural e a utilizao dos artefactos e processos tecnolgicos com que se depara no dia-a-dia; b) capacidades intelectuais indispensveis resoluo de problemas da vida diria (por exemplo, analisar e interpretar dados, prever e formular hipteses); e c)12

atitudes ou disposies teis na vida diria e no trabalho (nomeadamente, uma forma racional e analtica de pensar, intuio, curiosidade e cepticismo). Contudo, segundo alguns autores, este argumento apresenta algumas falhas e, como tal, no deveria ser utilizado por professores ou gestores curriculares. Em primeiro lugar, e de acordo com Osborne (2000), numa sociedade tecnologicamente avanada a educao cientfica no tem grande impacto na capacidade dos alunos utilizarem artefactos tecnolgicos. A sofisticao crescente dos artefactos (mquinas de lavar, computadores, gravadores de vdeo, etc.) simplificou imenso a sua utilizao, ao ponto de apenas requerer capacidades mnimas, limitando-se a reparao de qualquer avaria interveno de especialistas. Logo, o cidado comum no necessita de conhecimentos de cincia para trabalhar com a maioria dos artefactos. Em segundo lugar, o conjunto de conhecimentos e de capacidades necessrio para o mercado de trabalho, alm de ser difcil de estabelecer, sofre mutaes constantes (Wellington, 1994, 2001). Assim, o que considerado necessrio hoje, poder tornar-se obsoleto daqui a alguns anos. Em terceiro lugar, no existe qualquer garantia de que os conhecimentos de cincia apropriados na escola sejam aplicados na vida real, existindo mesmo alguns resultados de investigao contrrios a esta assuno (Hodson, 1998). Para que tal possa acontecer, torna-se necessrio um ensino de cincia que destaque a aplicabilidade e a relevncia desses contedos e capacidades para a vida dos alunos, o que no acontece frequentemente. Segundo o argumento cultural, a cincia constitui um aspecto marcante da nossa cultura que todos os cidados devem ter oportunidade e capacidade de apreciar e, como tal, merece um espao no currculo. Desde a segunda metade do sculo XIX, considera-se que um indivduo culto e bem informado deve possuir, por exemplo, algum conhecimento sobre o funcionamento do mundo natural, a forma cientfica de pensar e o efeito da cincia na sociedade. De acordo com este argumento, numa sociedade em que os temas de cincia ocupam um espao crescente nos meios de comunicao social, a educao cientfica deve promover a compreenso deste empreendimento e do grande feito e da luta rdua que representa, o que implicar: a) alguns conhecimentos sobre histria da cincia,13

tica da cincia, argumentao em cincia e controvrsia cientfica; e b) uma nfase maior na dimenso humana e menor na cincia como corpo de conhecimento. Contudo, por vezes, perante o crescimento de uma atitude anti-cincia entre a populao, este argumento assume uma dimenso mais propagandstica do que informativa e formativa: a cincia e a tecnologia so apresentadas como empreendimentos que conduzem inevitavelmente ao progresso e ao bem-estar da humanidade, sem uma discusso que contemple tanto as suas potencialidades como as suas limitaes (Queiroz, 1998). Outras vezes, assume-se que a literacia cientfica da populao se traduzir num apoio incondicional ao desenvolvimento da cincia e da tecnologia. No entanto, uma sociedade cientificamente literada dificilmente ir apoiar a cincia de forma acrtica. Vrias situaes mais ou menos recentes (por exemplo, os desastres de Chernobyl e de Bhopal, a crise das vacas loucas e os efeitos negativos sobre a sade pblica de alguns medicamentos e aditivos alimentares) tm informado a populao relativamente aos limites e incertezas da cincia e da tecnologia, bem como das suas relaes estreitas com a poltica e a economia. Logo, provavelmente, um aumento da literacia cientfica traduzir-se- numa maior diviso e ambivalncia das atitudes da populao relativamente cincia e s suas aplicaes (Thomas, 1997). O argumento democrtico, bastante utilizado nos documentos mais recentes, prope uma educao cientfica para todos como forma de assegurar a construo de uma sociedade mais democrtica, onde todos os cidados se sintam capacitados para participar de forma crtica e reflexiva em discusses, debates e processos decisrios sobre assuntos de natureza scio-cientfica (AAAS, 1989; Dsautels e Larochelle, 2003; Comisso Europeia e Fundao Calouste Gulbenkian, 1995; Galvo, 2001; Millar e Osborne, 1998; SCCC, 1996; Silva, Emdio e Grilo, 1988). A sociedade actual, marcada por dilemas morais e polticos suscitados pelo crescimento cientfico e tecnolgico, s ser verdadeiramente democrtica quando as decises sobre as opes cientficas e tecnolgicas deixarem de ser entendidas como responsabilidade exclusiva de especialistas, de governos nacionais ou instncias internacionais (Queiroz, 1998). A ignorncia e o medo da cincia e da tecnologia podem escravizar os cidados na servido do sculo XXI, tornando-os14

estranhos na sua prpria sociedade e completamente dependentes da opinio de especialistas (Prewitt, 1983). Os cidados necessitam, simultaneamente: a) de estar conscientes das eventuais implicaes sociais, econmicas, polticas e ambientais de determinadas opes como, por exemplo, a introduo de organismos geneticamente modificados nos ecossistemas, a co-incinerao de resduos txicos em cimenteiras e a utilizao de hormonas e antibiticos na pecuria; b) de desenvolver as competncias necessrias sua avaliao; e c) de conhecer as melhores formas de influenciar (de forma inteligente, responsvel e democrtica) as decises polticas relativas a estes temas. Devem, ainda, possuir os conhecimentos e as capacidades indispensveis compreenso e anlise crtica das notcias sobre cincia e tecnologia divulgadas pelos meios de comunicao social. Assim, de acordo com este argumento, a educao cientfica dever promover uma compreenso bsica da cincia (nomeadamente, de como os cientistas trabalham e decidem o que cincia legtima) e o desenvolvimento de uma atitude mais crtica que reconhea, simultaneamente, as potencialidades, as limitaes e os comprometimentos ideolgicos do empreendimento cientfico. Contudo, a prtica corrente da educao em cincia promove a conformidade relativamente ao conhecimento autorizado e ao discurso cientfico, encorajando os alunos a procurarem a aprovao de uma autoridade legitimada para validar as suas aces, em vez de os implicar em discurso crtico e democrtico (Dsautels e Larochelle, 2003; Roth e Lee, 2002). Para alm disso, a dificuldade de participao dos cidados em processos de discusso de questes scio-cientficas torna-se cada vez mais notria devido ao crescimento e especializao exponencial do conhecimento cientfico e consequente dependncia relativamente aos pareceres dos especialistas. Alguns autores chegam ao ponto de considerar que a complexidade cientfica de muitas destas questes torna este objectivo impraticvel, devendo as decises sobre questes de base cientfica ficar a cargo de especialistas (Shamos, 1995). De acordo com o argumento moral, a educao cientfica permite o contacto com a prtica cientfica e com todo um conjunto de normas, de obrigaes morais e de princpios ticos a ela inerentes, teis sociedade em geral. No entanto, alguns15

autores discordam deste argumento chamando a ateno para a inexistncia de evidncias de que os cientistas adiram a estas normas (em contextos interiores e exteriores cincia) mais do que qualquer outro grupo social (Barnes e Dolby, 1970). Em Portugal, alguns destes argumentos so claramente perceptveis na Lei de Bases do Sistema Educativo (Assembleia da Repblica, 1986) que define as grandes finalidades do sistema educativo em geral e, consequentemente, da educao em cincia. A Lei de Bases do Sistema Educativo reala, nos seus princpios gerais, o papel da educao na formao de cidados livres, responsveis, autnomos e solidrios, capazes de julgarem com esprito crtico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformao progressiva (pontos 4 e 5, respectivamente). No artigo relativo aos princpios organizativos, estabelece que o sistema educativo se deve organizar de forma a desenvolver a capacidade para o trabalho e proporcionar, com base numa slida formao geral, uma formao especfica para a ocupao de um justo lugar na vida activa. Neste mesmo documento, os argumentos democrtico, econmico e cultural so evidentes em alguns dos objectivos propostos para os nveis de ensino Bsico e Secundrio (Art.os

7 e 9), nomeadamente: Proporcionar a aquisio de

atitudes autnomas, visando a formao de cidados civicamente responsveis e democraticamente intervenientes na vida comunitria (Ensino Bsico) e Assegurar o desenvolvimento do raciocnio, da reflexo e da curiosidade cientfica e o aprofundamento dos elementos fundamentais de uma cultura humanstica, artstica, cientfica e tcnica que constituam suporte cognitivo e metodolgico apropriado para o eventual prosseguimento de estudos e para a insero na vida activa (Ensino Secundrio). Mais recentemente, o Currculo Nacional para o Ensino Bsico destaca o papel da educao em cincia na preparao dos indivduos: a) para um mercado de trabalho caracterizado pela insegurana e transitoriedade (atravs do desenvolvimento, por exemplo, de capacidades de comunicao e de aprendizagem ao longo da vida); e b) para a compreenso e o acompanhamento de debates sobre temas cientficos e tecnolgicos e suas implicaes sociais (Ministrio da Educao, 2001a). Este ltimo argumento tambm realado no Programa de Biologia e16

Geologia para os 10 e 11 anos do Curso Geral de Cincias Naturais (Ministrio da Educao, 2001b). Na introduo geral sublinha-se a importncia deste currculo na construo de cidados mais informados, responsveis e intervenientes capazes de desempenharem o seu papel no seio da democracia participada e de garantirem a liberdade e o controlo sobre os abusos de poder e sobre a falta de transparncia nas decises polticas (p. 4). De acordo com a introduo da componente de Biologia deste currculo, a liberdade de formular opes (ticas, scio-econmicas e polticas) depende, entre outros aspectos, do grau de literacia biolgica do cidado (p. 65). Desde o sculo XIX, a discusso das finalidades da educao em cincia, tanto em Portugal como no estrangeiro, tem sido marcada por tenses entre os defensores destes diferentes argumentos (econmicos, utilitrios, culturais, democrticos e morais). Wellington (2001) refere algumas delas: 1. A tenso entre aqueles que justificam a educao cientfica pelo seu valor intrnseco (o conhecimento cientfico um produto cultural de grande beleza, interesse e poder intelectual que ajuda a satisfazer a curiosidade humana acerca do mundo natural) e os que o fazem pelo seu valor extrnseco (preparao para a vida, o trabalho ou a economia). 2. A tenso entre a inteno de preparar futuros cientistas e a de promover uma literacia cientfica para todos os alunos. 3. A tenso entre os defensores de um ensino da cincia como corpo de conhecimentos e os que propem o ensino dos processos e mtodos da cincia. Este debate centra-se, frequentemente, no carcter efmero do conhecimento factual e no carcter mais perene das capacidades e dos processos. 4. A tenso entre as propostas de uma educao cientfica acadmica (percepcionada como de elevado estatuto) e de uma educao cientfica vocacional mais relevante (de menor estatuto). Esta tenso est estreitamente ligada s tenses 1 e 2.

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5. A tenso entre os defensores de um ensino da cincia centrado em conhecimento substantivo e os defensores de um ensino da cincia atravs das suas aplicaes e consequncias morais, sociais e ambientais. Este debate centra-se, por exemplo, (a) na necessidade de um ensino de cincia mais relevante, que destaque as suas aplicaes, e (b) nas diferenas entre uma educao em cincia (marcada pelo conhecimento substantivo e preocupada com uma minoria da populao os cientistas), uma educao sobre cincia (com nfase no desenho dos processos metodolgicos de questionamento, experimentao e validade do conhecimento) e uma educao pela cincia (concebida para todos os alunos e preocupada com o desenvolvimento de conhecimentos, capacidades e atitudes considerados necessrios ao exerccio da cidadania). Durante os ltimos 50 anos, as conjunturas nacionais e internacionais e as motivaes e os interesses de foras internas e externas cincia tm (res)suscitado periodicamente estas tenses e originado propostas de poltica educativa que oscilam entre aqueles plos. Algumas destas propostas tm recorrido a slogans especficos com o objectivo de mobilizar o maior nmero de cidados (decisores polticos, cientistas, educadores em cincia, meios de comunicao social, encarregados de educao, alunos, etc.) em torno das ideias que defendem e das mudanas que propem. Entre os slogans mais divulgados, dois destacam-se pelo seu grande impacto na rea da educao cientfica: literacia cientfica e cincia-tecnologia-sociedade.

2.1.1 Literacia Cientfica Progressivamente, desde o seu aparecimento nos anos 50 do sculo XX (Conant, 1947, Hurd, 1958), o termo literacia cientfica passou a ser utilizado como sinnimo de finalidades da educao cientfica (Hodson, 1998; Shamos, 1995). A partir dos anos 80 do sculo XX, este slogan espalha-se por todo o mundo18

associado ao slogan de cincia para todos defendido pela UNESCO e por vrios pases (AAAS, 1989; SRC, 1984; UNESCO, 1983). Durante os ltimos anos, a promoo da literacia cientfica tornou-se uma finalidade principal para os educadores em cincia (Kolstoe, 2000). No entanto, apesar desse termo representar um objectivo universalmente desejado e aceite, o seu significado no claro (DeBoer, 2000; Eisenhart et al., 1996; Galbraith et al., 1997; Hodson, 1998; Jenkins, 1990). Segundo Shamos (1995), o facto do objectivo literacia cientfica nunca ter sido claramente definido em termos operacionais poder estar na base do relativo insucesso dos educadores em alcan-lo: Actualmente, o objectivo da literacia cientfica tornou-se praticamente sinnimo de ensino das cincias apesar da sua definio se manter vaga e de se desconhecerem os mtodos para o alcanar (p. 158). Contudo, Jenkins (1997a) acredita que o facto da literacia cientfica constituir um slogan e no uma prescrio para a aco deve ser entendido como um aspecto positivo. Os slogans (expresso que, segundo este autor, deriva das palavras galicas sluagh e gairm, ou seja, exrcito e grito) continuam a ser invocados como gritos de reagrupamento de foras no sentido da obteno e da alterao de ideias, servindo como meio de angariao de apoio poltico, educacional, social ou financeiro sem o inconveniente de ter que se explicar o significado dos termos envolvidos. Durante as ltimas dcadas, o slogan da literacia cientfica tem sido utilizado pelos educadores em cincia de todo o mundo para orientar o desenvolvimento curricular e as prticas de sala de aula (Aikenhead, 2002). Na opinio de Jenkins, precisamente a impreciso e a ambiguidade dos slogans que lhes conferem um papel significativo no desencadeamento de mudanas: o estatuto de slogan permite que se possam atribuir mltiplos significados e interpretaes ao termo literacia cientfica, de acordo com as diferentes pocas e contextos em que utilizado. Os slogans aparecem e desaparecem medida que as realidades sociais mudam ao longo do tempo (Aikenhead, 2002). Ao longo dos ltimos 50 anos, um pouco por todo o mundo, tm sido apresentadas mltiplas definies de literacia cientfica centradas em diferentes aspectos. J em 1987, Thomas e Durant, atravs de uma anlise de literatura19

publicada at esse momento, conseguiam identificar oito aspectos distintos includos na noo de literacia cientfica: 1. Uma apreciao da natureza, dos objectivos e das limitaes gerais da cincia e um conhecimento bsico da abordagem cientfica no que respeita, por exemplo, a (1) racionalidade de argumentos, (2) capacidade de generalizar, sistematizar e extrapolar, e (3) papis da teoria e da observao. 2. Uma apreciao da natureza, dos objectivos e das limitaes da tecnologia e de como estes diferem da cincia. 3. Um conhecimento do funcionamento da cincia e da tecnologia, nomeadamente, de aspectos como o financiamento da investigao, as convenes da prtica cientfica e as relaes entre investigao e desenvolvimento. 4. Uma apreciao das inter-relaes entre cincia, tecnologia e sociedade, incluindo o papel social dos cientistas e tcnicos como especialistas e a estrutura de uma tomada de decises relevante. 5. Um conhecimento geral da linguagem e de alguns constructos-chave da cincia. 6. A capacidade bsica de interpretao de dados numricos,

nomeadamente, probabilsticos e estatsticos. 7. A capacidade de assimilao e de utilizao de informao tcnica e dos produtos da tecnologia. 8. Alguma ideia sobre as possveis fontes de informao e de

aconselhamento sobre questes relacionadas com cincia e tecnologia. De acordo com uma anlise realizada por Bisanz, Bisanz, Korpan e Zimmerman (1996), apesar desta multiplicidade de aspectos, possvel identificar trs elementos comuns s diferentes definies de literacia cientfica: a) a familiaridade com factos, conceitos e processos cientficos; b) o conhecimento de20

mtodos e de procedimentos de investigao cientfica; e c) a compreenso do papel da cincia e da tecnologia na sociedade. Numa das primeiras tentativas de clarificao, bastante centrada em conhecimentos, Pella e seus colaboradores (1966) sugeriram que a literacia cientfica envolve a compreenso: a) de conceitos bsicos da cincia; b) da natureza da cincia; c) da tica que controla o cientista no seu trabalho; d) das inter-relaes da cincia e da sociedade; e) das inter-relaes da cincia e das humanidades; e f) das diferenas entre cincia e tecnologia. Alguns anos mais tarde, Klopfer (1985) prope uma definio envolvendo uma articulao equilibrada de conhecimentos, capacidades e atitudes, nomeadamente: a) conhecimento de factos, conceitos, princpios e teorias significativas; b) capacidade de aplicar conhecimentos relevantes sobre cincia a situaes do dia-a-dia; c) capacidade de utilizar os processos do inqurito cientfico; d) compreenso de ideias gerais sobre as caractersticas da cincia e das suas interaces com a tecnologia e a sociedade; e e) desenvolvimento de atitudes e interesses esclarecidos relacionados com a cincia. O documento Science for all americans: Project 2061, produzido pela American Association for the Advancement of Science, em 1989, refora a importncia da interrelao do conhecimento, da diminuio da nfase em informao pormenorizada e de uma maior nfase na promoo de capacidades de pensamento. Aponta como objectivos a alcanar, tendo em vista a literacia cientfica: a) a familiarizao com o mundo natural e o reconhecimento da sua diversidade e unicidade; b) a compreenso de conceitos e princpios chave da cincia; c) a tomada de conscincia da dependncia entre cincia, matemtica e tecnologia; d) o conhecimento da cincia, da matemtica e da tecnologia como empreendimentos humanos com potencialidades e limitaes; e) a promoo da capacidade de pensar de forma cientfica; e f) a utilizao de conhecimentos e de formas de pensamento cientficos para objectivos individuais e colectivos. Este documento atribui especial importncia a dois aspectos da literacia cientfica. O primeiro diz respeito ao desenvolvimento dos conhecimentos e das capacidades necessrios compreenso das ideias, pretenses e acontecimentos com que os21

cidados so confrontados no seu dia-a-dia, de forma a assegurar o que vrios autores designam por independncia intelectual (Aikenhead, 1990; Norris, 1997), ou seja, a capacidade de resistirem a discursos pouco familiares e intimidatrios provenientes de polticos e cientistas respeitveis, bem como a propostas dogmticas, fraudulentas ou simplistas. O segundo aspecto, realado por este documento, consiste no reconhecimento da importncia da cincia no desenvolvimento de solues eficazes para problemas locais e globais e na promoo do respeito inteligente pela natureza, imprescindvel tomada de decises sobre questes tecnolgicas e preservao do nosso sistema de suporte de vida. Mais recentemente, o Scottish Consultative Council on the Curriculum (SCCC, 1996), preocupado com o facto de muitas definies de literacia cientfica no inclurem a capacidade e a vontade de agir, de uma forma ambientalmente responsvel e socialmente justa, adoptou o termo aptido cientfica (scientific capability) em substituio de literacia cientfica. Procurando destacar a importncia de uma educao cientfica orientada para a aco, descreveu a aptido cientfica em termos de cinco aspectos distintos mas claramente interrelacionados: a) curiosidade cientfica um hbito mental inquiridor; b) competncia cientfica a capacidade para investigar cientificamente; c) compreenso cientfica a compreenso de ideias cientficas e da forma como a cincia funciona; d) criatividade cientfica a capacidade para pensar e agir criativamente; e e) sensibilidade cientfica a conscincia crtica do papel da cincia na sociedade combinada com uma atitude de cuidado e precauo. De acordo com o documento produzido pela SCCC (1996), uma pessoa cientificamente apta, no possui apenas conhecimentos e capacidades sendo tambm capaz de mobilizar e aplicar os seus recursos de conhecimento e de capacidades de forma criativa e sensvel, em resposta a uma questo, problema ou fenmeno (p. 15). Logo, a aptido cientfica no envolve apenas conhecimentos e capacidades mas tambm o desenvolvimento de qualidades pessoais e de atitudes e a formulao de ideias pessoais e a tomada de posio sobre uma variedade de assuntos com uma dimenso cientfica e/ou tecnolgica.22

Hodson (1998) vai um pouco mais longe considerando que qualquer currculo de cincias estar incompleto se, apesar de preparar para a aco, no incluir uma componente de aco scio-poltica. Assim, ao propor o termo literacia cientfica crtica universal como grande finalidade para a educao cientfica, este autor marca a sua rejeio por uma educao diferenciada em cursos acadmicos/tericos com alto estatuto, destinados a alunos com grandes capacidades, e cursos com menor estatuto, orientados no sentido de capacidades para a vida, para os restantes alunos. Portanto, defende a promoo de uma literacia cientfica crtica em todos os cidados, atravs de uma educao cientfica, centrada em assuntos e muito mais politizada, cujo objectivo central consista em equipar os alunos com a capacidade e o comprometimento de realizar aces apropriadas, responsveis e eficazes sobre questes de teor social, econmico, ambiental e moral-tico (p. 4). Este autor adverte para a impossibilidade de se atingir este objectivo atravs de currculos clssicos e mtodos de ensino transmissivos. Na sua opinio, fundamentada por vrios resultados de investigao, as abordagens curriculares tradicionais centradas apenas ou prioritariamente em conceitos no capacitam os alunos para a aplicao dos conhecimentos cientficos a contextos reais e contribuem para o desenvolvimento da ideia de que o conhecimento cientfico aprendido na escola no tem qualquer valor fora do contexto escolar. Hodson (1998) afirma que, actualmente, nas aulas de cincias, muitos alunos so aborrecidos com contedos que consideram irrelevantes para as suas necessidades, interesses e aspiraes, no se sentindo envolvidos pelas metodologias de ensino-aprendizagem utilizadas nem pelo clima social e emocional das aulas. Este autor est convicto de que a literacia cientfica crtica, para uma populao de alunos cada vez mais diversificada, s poder ser alcanada atravs de um currculo de cincia: a) baseado em assuntos locais, regionais, nacionais e globais, seleccionados pelo professor e pelos alunos; b) que tenha em conta os conhecimentos, as crenas, os valores, as aspiraes e as experincias pessoais de cada aluno; c) no qual a cincia e a tecnologia sejam apresentadas como empreendimentos humanos; d) com uma educao em cincia e tecnologia politizada e infundida de valores humanos e ambientais mais relevantes; e e) onde todos os alunos tenham a oportunidade de executar investigaes cientficas e de23

se envolver em tarefas de resoluo de problemas tecnolgicos seleccionadas e concebidas por eles prprios. Para que este currculo seja uma realidade para todos dever prestar-se especial ateno aos obstculos sentidos pelos indivduos, muitos dos quais relacionados com etnia, gnero e classe social, atravs: a) da construo de uma imagem da cincia, dos cientistas e da actividade cientfica mais autntica, culturalmente sensvel e inclusiva, que mostre a cincia a ser utilizada e desenvolvida por diversas pessoas em diversas situaes; e b) da manuteno de um ambiente de sala de aula que proporcione a todos os alunos uma sensao de conforto e de pertena. Hodson (1998) afirma que, frequentemente, os professores tratam a educao cientfica como uma manipulao de esquemas conceptuais complexos e abstractos que, na melhor das hipteses, sero aplicados mais tarde a situaes, acontecimentos e problemas. Consequentemente, os alunos com um desempenho elevado na cincia escolar so bem sucedidos a recordar, a analisar e a resolver problemas acadmicos, mas muitas vezes no conseguem mobilizar o seu conhecimento em situaes reais. Na opinio deste autor, a mobilizao dos conhecimentos cientficos para a aco s ser possvel se estes conhecimentos forem ensinados e experimentados, pelos menos parcialmente, nos contextos em que podero ser utilizados, atravs da realizao de investigaes cientficas (tanto dentro como fora dos laboratrios) e do envolvimento em aco social e ambiental. Este investigador considera ainda que, muitas vezes, a cincia apresentada como a aplicao meticulosa, ordenada e exaustiva de um mtodo poderoso, objectivo e de confiana para a averiguao de conhecimento factual sobre o universo. E os cientistas so retratados como indivduos racionais, lgicos, intelectualmente honestos, abertos a novas propostas e disponveis a partilhar procedimentos e descobertas e a quem lhes exigida uma postura desinteressada, livre de valores e analtica. Logo, muitos alunos nunca se sintonizam com a cincia, percepcionando-a como uma actividade esotrica e abstracta, difcil e intimidante, afastada das suas preocupaes dirias e do domnio exclusivo dos especialistas. Hodson (1998) acredita que esta imagem despersonalizada da cincia e dos cientistas: a) deturpa seriamente a natureza da cincia e a prtica cientfica; b)24

desencoraja muitos alunos de prosseguirem estudos em cincia; e c) dissuade os alunos do escrutnio crtico ao apresentar o conhecimento cientfico como uma coleco de afirmaes fixas, no negociveis e autoritrias efectuadas por especialistas, contribuindo para a dependncia intelectual dos alunos relativamente a outras pessoas e para uma sensao de falta de poder. Na sua opinio, existem muitos alunos que se sentem sem poder devido s suas experincias na escola e que esto cada vez mais afastados da cincia. Logo, defende que a literacia cientfica crtica s ser alcanada atravs de uma compreenso clara dos fundamentos epistemolgicos da cincia e do reconhecimento da prtica cientfica como empreendimento humano influenciado e influenciador do contexto scio-cultural em que decorre. Acredita que o desenvolvimento de uma viso de cincia mais personalizada passa pelo conhecimento das influncias exercidas pelos conhecimentos, experincias, crenas, valores e aspiraes das pessoas no tipo e formas de cincia que praticam. Desta forma, o inqurito cientfico apresentado como fludo, reflexivo, dependente do contexto e idiossincrtico. O ncleo central da actividade do cientista passa a ser o seu conhecimento especializado (construdo atravs da experincia e frequentemente designado como conhecimento tcito, intuio cientfica e instinto cientfico) que combina compreenso conceptual e capacidades de laboratrio com elementos de criatividade, intuio experimental e um conjunto de atributos afectivos que proporcionam o mpeto necessrio de determinao e comprometimento. De acordo com Hodson (1998), trata-se de apresentar uma viso mais humana da cincia e dos cientistas: No desejo retratar todos os cientistas como (...) oportunistas cnicos com motivaes pessoais, e seria um desastre se o currculo de cincias o fizesse. No h dvida de que as posies pessoais, polticas e religiosas dos cientistas tm impacto no tipo de cincia que escolhem fazer; tambm no existe dvida de que a intuio, a sorte (boa e m), o interesse prprio, a ambio pessoal e as presses acadmica e de publicao influenciam, de tempos a tempos, a forma como o fazem. (...) Acima de tudo, eu quero lembrar os alunos de que a cincia realizada por pessoas, e de que essas pessoas, como quaisquer outras, tm posies, valores, crenas e interesses. Pretendo que o currculo mostre aos alunos que essas pessoas (cientistas) podem ser calorosas, sensveis, bem-humoradas e apaixonadas. Mais importante, quero que eles compreendam que as pessoas que so calorosas,25

sensveis, bem-humoradas e apaixonadas podem tornar-se cientistas apesar de lhes ser exigido que conduzam o seu trabalho de acordo com cdigos de prtica estabelecidos, avaliados e mantidos pela comunidade de cientistas. (p. 20) A literacia cientfica crtica para todos requer, tambm, a politizao do currculo, ou seja, a discusso dos interesses polticos e dos valores sociais subjacentes s prticas cientfica e tecnolgica, o que, de acordo com este autor, pode ser alcanado atravs de um currculo centrado em assuntos e com quatro nveis de sofisticao: Nvel 1: Apreciao do impacto social da mudana cientfica e tecnolgica e reconhecimento de que a cincia e a tecnologia so, at certo ponto, determinadas culturalmente. Nvel 2: Reconhecimento de que as decises relativas ao desenvolvimento cientfico e tecnolgico so tomadas tendo em vista interesses particulares e que os benefcios resultantes para uns podem ser obtidos custa de outros. Reconhecimento de que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico est inextrincavelmente ligado distribuio de riqueza e poder. Nvel 3: Desenvolvimento de pontos de vista prprios e estabelecimento das posies de valor individuais subjacentes. Nvel 4: Preparao para a aco e respectiva concretizao. Na sua opinio, apenas a passagem para o nvel quatro assegura: a) a apropriao do conhecimento e das capacidades necessrias a uma interveno eficaz em processos de tomada de deciso; e b) a valorizao das vozes alternativas e dos interesses e valores subjacentes nas decises polticas. Logo, um dos objectivos centrais do currculo consistir em equipar os alunos com: a) as capacidades e o desejo de tomarem aces apropriadas, responsveis e eficazes sobre questes de teor social, econmico, ambiental e moral-tico; e b) o sentimento de poder necessrio para participar e marcar a diferena. De acordo com Hodson, a educao cientfica s conseguir assegurar uma literacia cientfica crtica universal se abandonar as suas caractersticas actuais26

(elitista e restritiva; aborrecida; abstracta, acadmica e afastada da vida real; sexista; racista; impessoal e desumanizada; indiferente, objectiva e apresentada como isenta de valores) e passar a ser: acessvel a todos; interessante e excitante; real, relevante e til; no sexista e multicultural; pessoalmente relevante e humanizada; portadora de valores e interessada. Conforme refere Kyle (1996): A educao deve ser transformada da orientao passiva, tcnica e apoltica reflectida pela maioria das experincias escolares, para um empreendimento activo, crtico e politizado que transcenda os limites das salas de aula e das escolas (p. 1). Contudo, Hodson (1998) reconhece que esta evoluo dificultada quando os professores trabalham com um currculo oficial obrigatrio. semelhana de Hodson, tambm Roth (2001) reala a importncia de uma educao cientfica que envolva os alunos numa aco responsvel. Este autor, numa posio algo controversa relativamente importncia da educao em cincia, considera que a maior parte da populao vive perfeitamente sem saber cincia e que o conhecimento cientfico, tal como valorizado pelos professores, no to necessrio vida como se pretende fazer crer na literatura. Acredita que a maioria das aulas de cincia envolve actividades artificiais nas quais os alunos aprendem para a escola e para as classificaes em vez de estimular a participao em situaes reais, promotoras de aprendizagens relevantes e significativas para a vida. Na sua opinio, a literacia cientfica alcana-se atravs da expanso do potencial de aco dos alunos e no atravs da aprendizagem de um corpo bsico de conhecimentos, que estar sempre aqum das necessidades do momento. Para tal, prope uma educao cientfica que permita aos alunos aprender cincia (de forma significativa e contextualizada) enquanto exercem o seu direito cidadania pela participao responsvel em actividades da vida diria da sociedade. Desta forma, a autenticidade das aces dos alunos na comunidade no resulta da sua semelhana com a prtica do dia-a-dia mas do facto de constiturem parte integrante da prtica do dia-a-dia. A participao em prticas relevantes para a comunidade refora a percepo da relevncia da escola para a vida. Tambm outros autores tm sido bastante crticos relativamente maioria das tentativas de definio e de operacionalizao do conceito de literacia cientfica27

(Fensham, Law, Li e Wei, 2000; Irwin e Wynne, 1996; Jenkins, 1997b; Layton, Jenkins, Macgill e Davey, 1993). Na sua opinio, a maior parte das abordagens tem definido este conceito por referncia ao que as comunidades cientfica e educacional acreditam dever ser conhecido e apreciado pela populao em geral, no tendo em conta: a) as exigncias reais da sociedade moderna; b) o que os cidados identificam como significativo para as suas preocupaes dirias; e c) a diversidade de contextos com que os alunos iro deparar fora da escola. Logo, com vista operacionalizao do conceito de literacia cientfica, propem uma abordagem baseada na identificao das necessidades de conhecimento cientfico apresentadas pelos adultos nos vrios contextos sociais em que participam. De acordo com esta proposta, faz sentido a identificao de uma variedade de literacias cientficas relacionadas com uma variedade de contextos (por exemplo, emprego, famlia, tempos livres e definio de polticas) de e de temas txicos, (nomeadamente, alimentao, sade, tratamento resduos

aconselhamento gentico, conservao de recursos pesqueiros). Fensham, Law, Li e Wei (2000), por exemplo, num trabalho realizado em Hong-Kong, propuseram e utilizaram uma abordagem scio-pragmtica na identificao e definio da cincia contextual considerada necessria para os cidados conseguirem enfrentar o dia-a-dia e participar em decises sociais, nos diferentes contextos em que vivem. As trs fases desta abordagem implicam, respectivamente: a) a identificao, por especialistas em questes sociais (que lidam diariamente com o pblico em geral), dos principais problemas manifestados pelos cidados relativamente a questes envolvendo cincia e tecnologia; b) a especificao, por cientistas acadmicos, do conhecimento cientfico e tecnolgico associado aos problemas identificados na primeira fase; c) o envolvimento de educadores no desenvolvimento de um currculo de cincia para os diferentes nveis do ensino obrigatrio que inclua os contedos identificados na segunda fase. Fensham e os seus colaboradores acreditam que um currculo de cincia construdo a partir desta abordagem scio-pragmtica ter mais probabilidades de ser percepcionado como relevante e motivador da aprendizagem do que os currculos actuais.

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Uma das posies mais radicais quanto definio e operacionalizao da literacia cientfica foi assumida por Shamos (1995). Na sua opinio, a finalidade de uma literacia cientfica alargada a toda a populao constitui um mito: a) inatingvel, em resultado das dificuldades inerentes aprendizagem da cincia e da impossibilidade de se assegurar a utilizao das aprendizagens escolares na idade adulta; e b) desnecessrio, pois a iliteracia cientfica da maioria da populao no tem impedido o progresso cientfico e tecnolgico da sociedade actual. Acredita que a educao cientfica deveria concentrar-se na preparao dos cidados para a colaborao com os especialistas e no para a anlise crtica de temas de base cientfica que, pelo facto de requerer conhecimentos de cincia demasiado complexos, se torna impraticvel. Logo, considera que a finalidade da educao em cincia deveria consistir na consciencializao da populao acerca de como a cincia funciona (science awareness) e no na promoo de uma literacia cientfica centrada em contedos cientficos. Esta consciencializao implicaria: a) o conhecimento de como a cincia e a tecnologia funcionam; b) o conhecimento pblico do que a cincia, mesmo que se conhea pouco de cincia; c) a compreenso pblica do que se pode esperar da cincia; e d) o conhecimento de como a opinio pblica relativa cincia poder ser ouvida de forma mais eficaz. Simultaneamente, a responsabilidade pela tomada de decises sobre questes de base cientfica deveria ser transferida dos cidados em geral para os especialistas em cincia. De acordo com Shamos (1995), o contedo do currculo de cincia deveria centrar-se, essencialmente, na tecnologia (dada a sua relevncia para a sociedade) e ser utilizado para exemplificar a natureza da cincia e como a cincia praticada. Em Portugal, nos ltimos anos, a promoo da literacia cientfica passou a assumir o estatuto de principal finalidade da educao em cincia. Nas Orientaes Curriculares para o 3 Ciclo do Ensino Bsico, relativas rea disciplinar de Cincias Fsicas e Naturais (Galvo, 2001), a promoo da literacia cientfica surge como a grande finalidade da educao em cincias. De acordo com este documento, a literacia cientfica fundamental para o exerccio pleno da cidadania e implica a compreenso da cincia no apenas enquanto corpo de saberes, mas29

tambm enquanto instituio social, e o desenvolvimento de um conjunto de competncias que se revelam em diferentes domnios, tais como o conhecimento (substantivo, processual ou metodolgico, epistemolgico), o raciocnio, a comunicao e as atitudes (p. 5). Para a promoo de competncias nestes diferentes domnios, sugere as seguintes experincias educativas: 1. Domnio do conhecimento: a) Anlise e discusso de evidncias e de situaes problemticas que permitam a aquisio de conhecimento cientfico, necessrio interpretao e compreenso de leis e modelos cientficos, e o reconhecimento das limitaes da cincia e da tecnologia na resoluo de problemas pessoais, sociais e ambientais (conhecimento substantivo); b) Realizao de pesquisas bibliogrficas, observaes e experincias, avaliao dos dados obtidos, planeamento e realizao de investigaes, elaborao e interpretao de representaes grficas de dados estatsticos e matemticos (conhecimento processual); c) Anlise e debate de relatos de descobertas cientficas, evidenciando xitos e fracassos, metodologias utilizadas por diferentes cientistas e influncias da sociedade sobre a cincia, que permitam confrontar as explicaes cientficas com as do senso comum e a cincia, a arte e a religio (conhecimento epistemolgico). 2. Domnio do raciocnio: Resoluo de problemas (envolvendo

interpretao de dados, formulao de problemas e de hipteses, planeamento de investigaes, previso e avaliao de resultados, estabelecimento de comparaes, realizao de inferncias, generalizao e deduo) de forma crtica e criativa. 3. Domnio da comunicao: Utilizao de linguagem cientfica na

interpretao de fontes de informao, na representao e apresentao de informao, em debates promotores de capacidades de apresentao, anlise e argumentao de ideias e na produo de textos. 4. Domnio das atitudes: Realizao de experincias educativas promotoras de atitudes inerentes ao trabalho em cincia como, por exemplo, a30

curiosidade, a perseverana e a tica no trabalho, a reflexo crtica sobre o trabalho efectuado e a flexibilidade para aceitar o erro e a incerteza. A introduo geral do currculo de Biologia e Geologia para os 10 e 11 anos do Curso Geral de Cincias Naturais (Ministrio da Educao, 2001b) reala a importncia de uma literacia cientfica slida na compreenso do mundo, na identificao dos problemas com que este se confronta e na participao dos cidados na discusso crtica e fundamentada de possveis solues. De acordo com as finalidades e objectivos gerais da componente de Biologia deste currculo, esta literacia cientfica envolve: a) a apropriao de conceitos fundamentais inerentes aos sistemas vivos; b) o reforo de capacidades e competncias prprias das cincias (capacidades de abstraco, experimentao, trabalho em equipa, ponderao e sentido da responsabilidade); e c) a interiorizao de um sistema de valores e a assuno de atitudes que valorizem os princpios de reciprocidade e responsabilidade do ser humano perante todos os seres vivos, em oposio a princpios de objectividade e instrumentalizao caractersticos de um relacionamento antropocntrico (p. 67). Apesar da importncia atribuda escola na promoo da literacia cientfica, vrios autores destacam o papel desempenhado por agentes de educao no-formal (museus, centros de cincia, jardins botnicos, parques naturais, clubes de cincia, rdio, televiso, imprensa escrita, cinema, Internet, etc.) na prossecuo deste objectivo (Chagas, 1993; Falk, 2001; Jenkins, 1997b; Lewenstein, 2001; Martins, 2002a; Wellington, 1991). Constata-se que as pessoas aprendem cincia a partir de uma variedade de fontes, por uma variedade de razes e de diversas maneiras (Wellington, 1990). Ao contrrio das experincias de sala de aula (nas quais a aprendizagem envolve, geralmente, o desenvolvimento de conhecimentos e de capacidades, em perodos alargados de tempo, debaixo da superviso de professores), as experincias no-formais permitem uma maior autonomia do aprendente na gesto da sua aprendizagem que, de acordo com os seus interesses, ritmos de aprendizagem e capacidades, pode parar, repetir, demorar mais ou menos tempo e interagir com amigos ou familiares. Enquanto que a educao cientfica formal , frequentemente, percepcionada pelos alunos como difcil, maadora e31

desfasada dos seus interesses e necessidades (Millar e Osborne, 1998; Santos, 1994), as experincias no-formais conseguem cativar a ateno e o interesse de muitos alunos (Chagas, 1993; Frankel, 2001; Griffin, 2002). O reconhecimento da importncia crescente destas experincias na educao cientfica tem desencadeado inmeras iniciativas como a revitalizao dos museus, o alargamento do espao destinado cincia nos meios de comunicao social e a organizao de grandes exposies, feiras de cincia e debates em torno de cincia e de tica (Falk, 2001; Queiroz, 1998). No entanto, tal como refere Queiroz (1998): a) "os tmidos passos at agora dados resultaram mais numa mera propaganda da cincia e da tecnologia como tais do que numa aco informativa e formativa sobre o fenmeno cientfico e as suas conexes sociais" (p. 456); b) a divulgao cientfica, tal como tem sido praticada, tem servido fundamentalmente para deslumbrar e distanciar; e c) no parece que a populao se tenha tornado mais interveniente relativamente s questes cientficas, no sentido da to desejada democracia participativa. Frequentemente, mostra-se a cincia de um modo que a pe habilmente distncia, celebrando-se, ao mesmo tempo, o mito da cientificidade, (...) a cincia no apresentada como conhecimento mas sim como uma fora omnipresente e aurtica que atravessa as nossas vidas, provocando atitudes complexas e ambivalentes, misto de esperana e ansiedade, admirao e medo (Levy, Matos, Mouro, Nunes, Queiroz e Serra, 1998, p. 461). Actualmente, os meios de comunicao social (jornais, revistas, televiso, rdio e Internet) so considerados como as fontes de informao cientfica de mais fcil acesso para o pblico em geral (Lewenstein, 2001; Pellechia, 1997). Nelkin (1995a) considera que para a maioria das pessoas, a realidade da cincia o que lem na imprensa. Elas entendem a cincia menos pela experincia directa ou pela sua educao passada do que atravs do filtro da linguagem e do imaginrio jornalsticos (p. 2). Na sua opinio, os media representam o nico contacto da maioria da populao com as mudanas ocorridas nos campos cientfico e tecnolgico e uma importante fonte de informao sobre as implicaes sociais dessas mudanas. At mesmo os cidados com uma carreira cientfica ou tecnolgica so incapazes de acompanhar a literatura especializada de todas as32

reas cientficas, tendo que recorrer aos meios de comunicao social para se manterem informados acerca dos avanos cientficos fora da sua rea de especializao (Bauer, 1992). Contudo, o tipo de cincia divulgado, por exemplo, pela televiso ou pelos jornais, diferente do tipo de cincia apresentado em contextos educativos formais: a maioria da educao cientfica formal centra-se na cincia convencional, no-controversa, estabelecida e fidedigna; as notcias dos media destacam a cincia de fronteira, controversa, preliminar e em discusso (Zimmerman, Bisanz e Bisanz, 1999). Por vezes, ainda, apresentam uma imagem sensacionalista, pouco rigorosa e estereotipada da cincia, utilizando apenas determinadas histrias e apresentando as teorias polmicas como factos e os cientistas como seres superiores que vivem num mundo parte (Nelkin, 1995a; Santos e Valente, 1997). Recorrem, frequentemente, a metforas de grande impacto desastre, bno da medicina moderna, novo marco, proeza cientfica, fraude, luta que afectam a forma como os cidados entendem, pensam e actuam acerca de questes scio-cientficas (Lakoff e Johnson, 1980). Atravs destas metforas do forma s concepes da populao acerca da natureza da cincia. Liakopoulos (2002), por exemplo, num estudo sobre as metforas utilizadas pelos jornais ingleses nos artigos sobre biotecnologia, detectou grandes quantidades de metforas destinadas a transmitir imagens muito positivas revoluo, ouro, grande negcio, aventura, milagre e muito negativas Caixa de Pandora, ameaa, plantas assassinas, escravos, Frankenstein, perigo. Constatou, tambm, que o biotecnlogo era retratado como um cientista louco ou um gnio mau perseguindo os seus objectivos sem olhar a meios: uma imagem que, na sua opinio, tem um efeito considervel sobre a confiana do pblico relativamente biotecnologia. Muitos filmes de fico descrevem a investigao cientfica como um empreendimento que cruza as fronteiras do admissvel (Weingart, Muhl e Pansegrau, 2003). Desde as histrias medievais sobre alquimistas, at aos filmes actuais sobre clonagem, as narrativas sobre cientistas raramente os retratam de forma positiva, traduzindo o receio do poder e da mudana inerentes cincia e recorrendo a um nmero restrito de esteretipos: o alquimista diablico; o cientista como heri e salvador da sociedade; o cientista louco; o investigador desumano e33

insensvel; o cientista como aventureiro que transcende as fronteiras do espao e do tempo; o cientista louco, mau, perigoso e pouco escrupuloso no exerccio do poder; e o cientista incapaz de controlar o resultado do seu trabalho (Haynes, 2003). Portanto, a capacidade de leitura e avaliao crtica das representaes da cincia divulgadas pelos media importante para os cidados de sociedades democrticas, representando o nico antdoto contra eventuais tentativas de manipulao. Torna-se necessrio que a escola encare os filmes e as notcias divulgadas pelos meios de comunicao social como uma oportunidade para (1) explorar os contedos de cincia envolvidos, (2) reflectir sobre as interaces cincia-tecnologia-sociedade, (3) discutir ideias acerca da natureza da cincia e dos cientistas e (4) desenvolver capacidades de anlise crtica da informao (Dhingra, 2003; Miguns, Serra, Simes, e Roldo, 1996; Millar e Osborne, 1998; Norris e Phillips, 1994; Rose, 2003; Shibley Jr., 2003; Thier e Nagle, 1996; Zimmerman, Bisanz e Bisanz, 1999). A actualizao cientfica da populao depende, e ir continuar a depender, em grande parte, da informao veiculada pelos meios de comunicao social e da capacidade dos cidados lerem, compreenderem e avaliarem criticamente, ao longo da vida, essas fontes de informao e o discurso dos especialistas. importante que os educadores reconheam as mensagens acerca da natureza da cincia e dos cientistas veiculadas pelos meios de comunicao social como um conjunto importante de experincias informais de aprendizagem. Essas mensagens, apropriadas pelos alunos, influenciam e interagem com a aprendizagem da cincia na sala de aula (Dhingra, 2003). Logo, a educao em cincia nunca poder ignorar os efeitos poderosos dos meios de comunicao social nas concepes dos alunos acerca do empreendimento cientfico. De acordo com um estudo realizado por Dimopoulos e Koulaidis (2003), os artigos de jornal sobre questes cientficas e tecnolgicas podem revelar-se extremamente teis na promoo da literacia cientfica dos cidados em contexto formal de aprendizagem. Os jornais constituem uma fonte de materiais adequados discusso de questes scio-cientficas (considerados relevantes e interessantes pelos alunos e pelos cidados em geral), ao contrrio dos manuais escolares de cincia que, em 4234

pases, apenas dedicam uma mdia de 3,9% do seu espao a este tipo de questes (Wang e Schmidt, 2001). Na sua opinio, os artigos de jornal revelam: a) a natureza transdisciplinar da cincia e da tecnologia; e b) a dimenso social destes empreendimentos, realando as influncias de outros domnios (cultura, religio, tica, poltica, economia, etc.) em processos decisrios relacionados com questes tcnicas e cientficas. Estes autores consideram, ainda, que estes artigos permitem: a) destacar a relevncia do conhecimento cientfico e tecnolgico na compreenso de situaes do dia-a-dia; e b) ilustrar o tipo de argumentao e de raciocnio normalmente utilizado em disputas scio-cientficas. Contudo, advertem para o facto das notcias no se adequarem ao ensino dos contedos cientficos subjacentes nem das metodologias internas da cincia e da tecnologia (aspectos pouco explorados pelos jornais) e para a necessidade dos professores assegurarem uma explorao equilibrada e justa das potencialidades e das limitaes destes empreendimentos. Valente (1996), prope que os professores aproveitem as vias de educao no-formal para despertar nos alunos o gosto e a vontade de aprender cincia. Contudo, adverte para os limites da divulgao cientfica, enquanto forma de iniciao para a cincia, quando esta se limita a um espectculo cincia sem o indispensvel complemento de uma educao cientfica mais aprofundada, estruturada e exigente em termos de promoo de capacidades de pensamento, proporcionado pela escola. Martins (2002a) alerta para a necessidade da formao de professores suscita