Conversa com Ferreira Gullar

45

description

Leia trecho da obra "Conversa com Ferreira Gullar".

Transcript of Conversa com Ferreira Gullar

Page 1: Conversa com Ferreira Gullar
Page 2: Conversa com Ferreira Gullar
Page 3: Conversa com Ferreira Gullar

ferreiragullar

arieljiménez

conversa com

tradução  Vera Pereira

Page 4: Conversa com Ferreira Gullar
Page 5: Conversa com Ferreira Gullar

    Introdução

    Uma poesia universal, Weydson B. Leal

    Ferreira Gullar conversa com Ariel Jiménez

    Sobre os autores

    Créditos das imagens

9

13

23

241

245

Page 6: Conversa com Ferreira Gullar

6

Page 7: Conversa com Ferreira Gullar

7

Page 8: Conversa com Ferreira Gullar

8

Page 9: Conversa com Ferreira Gullar

9

  introdução

Page 10: Conversa com Ferreira Gullar
Page 11: Conversa com Ferreira Gullar

11

Neste livro, Ferreira Gullar narra sua descoberta casual da poe-

sia, quando era adolescente. Tudo o que ele realizou ao longo 

de mais de seis décadas, desde essa descoberta fortuita, não é 

menos impressionante.

Primeiro título publicado no Brasil da série  in Conversation

with / en Conversación con,  editado  e  produzido  pela  Funda-

ción Patricia Phelps de Cisneros, Ferreira Gullar conversa com

Ariel Jiménez  apresenta  um  retrato  vívido  de  um  poeta  cujas 

contribuições  à  atmosfera  cultural  brasileira  têm  sido  de  vital 

importância,  ainda  que  às  vezes  mal  interpretadas  ou  mesmo 

negligenciadas. As conversas entre Gullar e Ariel Jiménez reve-

lam um escritor sempre empenhado em dialogar criticamente 

com  outros  autores  e  cuja  influência  nas  artes  plásticas  e  na 

teoria da cultura já se tornou lendária.

Autodidata de profunda erudição, Gullar diz que “sua vida in-

teira é uma improvisação”. Dono de uma notável capacidade de 

adaptação a novas circunstâncias, ele demonstra uma resistên-

cia quase emersoniana às “coerências tolas”, quando desafiado 

por  fatos  que  claramente  contradizem  uma  de  suas  crenças 

prévias. De fato, até em seus momentos mais polêmicos, Gullar 

dá provas de uma honestidade intelectual e de uma flexibilidade 

que o impedem de cair no erro básico de tentar adaptar a reali-

dade à teoria.

Criador  do  Manifesto  Neoconcreto,  de  1959,  Gullar  acabou 

por  se  distanciar  da  vanguarda,  chegando  inclusive  a  assumir 

uma postura de clara oposição, quando finalmente admitiu as 

Page 12: Conversa com Ferreira Gullar

12

limitações desse movimento. Analogamente, suas crenças mar-

xistas alteraram-se depois que ele estudou a filosofia e a prática 

comunistas na ex-urss; e concluiu que seu idealismo é admirá-

vel,  mas  falho.  Em  meio  a  revoltas  políticas,  e  vivendo  muitas 

vezes na condição de exilado, Gullar reinventou-se com firmeza 

numa refletida resposta às circunstâncias estéticas, ideológicas 

e políticas. Aliás, sempre questionou sua própria prática pessoal, 

criando  e  destruindo  sem  medo  as  barreiras  que  se  interpu-

nham em seu caminho a fim de reconstruir as bases necessárias 

à sua obra artística. Em consequência, Gullar se manteve como 

uma figura vibrante e vital, não alheia a controvérsias tenazes.

Sou  muito  grato  a  Ferreira  Gullar  e  a  Ariel  Jiménez  por  sua 

dedicação à elaboração deste volume, o mais extenso relato até 

esta data sobre o trabalho e as ideias de Gullar ao longo de uma 

existência  tão  fértil.  Quero  felicitar  Ariel  Jiménez,  ex-curador 

chefe da Colección Patricia Phelps de Cisneros (cnpp), por ter 

seguido sua intuição de localizar Gullar e convencê-lo a partici-

par deste projeto. 

gabriel pérez-barreiro

Diretor da Colección Patricia Phelps de Cisneros

Page 13: Conversa com Ferreira Gullar

13

  uma poesia universal  Weydson B. Leal

Page 14: Conversa com Ferreira Gullar
Page 15: Conversa com Ferreira Gullar

15

Se  o  poeta  é  um  pensador  que  usa  as  palavras  para  revelar  as 

percepções  mais  sensíveis  da  experiência  humana,  Ferreira 

Gullar  está  no  ápice  de  uma  tradição  que  desde  Homero,  pas-

sando por Dante, Shakespeare, Camões e Whitman, compreen-

deu a condição humana. Paradoxalmente, no cânone da poesia 

contemporânea,  sua  posição  é  incontestável.  Com  uma  bio-

grafia  que  se  iniciou  em  1930,  na  pequena  cidade  de  São  Luís, 

capital do estado do Maranhão, no Nordeste do Brasil, Ferreira 

Gullar  construiu  sua  trajetória  de  vida  e  obra  pelo  desenvolvi-

mento  de  um  talento  singular  e  de  convicções  estéticas,  políti-

cas  e  ideológicas  firmes  e  combativas,  principalmente  a  partir 

do momento em que começou a viver no Rio de Janeiro, na dé-

cada  de  1950.  Sua  poesia,  seu  teatro,  seus  ensaios  sobre  arte  e 

artigos em jornais constituem um registro contundente de um 

homem  de  seu  tempo  que  também  pensa  no  futuro.  Por  isso 

Ferreira Gullar pode ser considerado, além de um dos maiores 

poetas  da  língua  portuguesa,  um  dos  grandes  humanistas  dos 

séculos xx e xxi.

A  grande  poesia  é  atemporal  e  independe  do  lugar  onde  foi 

escrita.  Não  importa  o  idioma  ou  a  idade  do  poeta,  o  país  ou  o 

século  em  que  ele  nasceu.  A  grande  poesia  transcende  os  mo-

vimentos  estilísticos,  historiografias,  modismos,  revoluções 

e  vanguardas.  Isso  porque  a  verdadeira  arte  poética,  seja  na 

Grécia  Antiga,  na  Itália  do  século  xiii  ou  na  América  do  século 

xix,  continua  a  transmitir  o  pensamento  e  o  sentimento  de  um 

povo  por  meio  da  palavra  que  atravessa  gerações.  O  poeta  e 

Page 16: Conversa com Ferreira Gullar

16

diplomata  brasileiro  Vinicius  de  Moraes  não  exagerava  quando 

escreveu,  em  um  artigo  de  1976,  que,  graças  à  tríade  formada 

por Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e 

Ferreira Gullar, a poesia brasileira estava pronta para apresentar-

-se a qualquer leitor do mundo. Ao lado de Manuel Bandeira e do 

próprio  Vinicius,  esses  autores  foram  responsáveis  pela  grande 

poesia  escrita  no  Brasil  desde  o  começo  do  século  passado.  O 

amplo  sucesso  de  crítica  que  a  obra  poética  de  Ferreira  Gullar 

conquistou  –  com  teses  universitárias,  ensaios  e  artigos  publi-

cados por críticos, poetas, estudiosos e intelectuais do porte de 

José  Guilherme  Merquior  e  Alfredo  Bosi  –  ratifica  os  argumen-

tos  de  Vinicius.  No  artigo  de  1976,  Vinicius  de  Moraes  referiu-se 

ao  aparecimento  do  “Poema  sujo”  –  longo  poema  escrito  por 

Gullar  em  seu  exílio  em  Buenos  Aires,  durante  a  ditadura  militar 

brasileira.  Vinicius  declarou  que  “Poema  sujo”  era  um  dos  mais 

importantes  e  emocionantes  poemas  que  já  lera  em  todos  os 

idiomas que conhecia. Também afirmou que o “Poema sujo” era 

“seguramente o mais rico, generoso (e paralelamente rigoroso) e 

transbordante de vida de toda a literatura brasileira”.

Como  crítico  de  arte  e  pensador,  Ferreira  Gullar  está  entre  os 

mais lúcidos e cultos escritores do mundo atual. Colunista ou co-

laborador de jornais e revistas no Brasil, seus textos têm a clareza 

e  a  sagacidade  dos  que  indicam  caminhos  e  denunciam  falácias, 

quer  se  revelem  em  discursos  político-ideológicos,  quer  nos  sa-

lões das bienais de arte. Como defensor das liberdades democrá-

ticas  que  dão  a  todo  cidadão  o  direito  de  agir  e  de  expressar-se, 

Page 17: Conversa com Ferreira Gullar

17

Gullar  não  tem  medo  de  estabelecer  limites  ou  de  indicar  novos 

rumos  –  e  mais,  nunca  sentiu  esse  medo,  mesmo  quando  a  per-

seguição política e a vigilância ideológica o empurraram ao exílio. 

Prova disso está  no  fato de,  sendo  também  artista  plástico, apre-

sentar seus trabalhos em livros e exposições, abrindo a janela do 

artista à crítica alheia. Sua coragem como pensador ultrapassa as 

fronteiras da arte e da literatura, pois se debruça sobre importan-

tes questões sociais, suas colunas publicadas em jornais e revistas 

obtêm enorme repercussão e não raro suscitam polêmicas. Seus 

artigos e ensaios são sempre garantias de veracidade, coragem e 

convicção.  Em  um  caso  recente,  que  marcou  a  história  do  jorna-

lismo,  ele  escreveu  um  artigo  na  Folha de S.Paulo  a  respeito  dos 

erros, equívocos e contradições do tratamento da esquizofrenia 

no Brasil. Devido ao avassalador apoio que recebeu por parte da 

opinião pública, dias depois seu rosto apareceu na capa da revista 

de maior circulação do país, cuja reportagem principal tratou do 

problema  que  ele  havia  trazido  à  baila  com  uma  argumentação 

incontestável.  O  motivo  de  sua  manifestação  foi  o  fato  de  ele 

mesmo  ter  um  filho  esquizofrênico,  que  sofreu  durante  muitos 

anos  as  consequências  dos  erros  de  tratamento  médico  para 

os  quais  Gullar  chamara  a  atenção  no  jornal.  Ele  nunca  se  sentiu 

constrangido  de  tornar  públicos  seus  problemas  pessoais  ou  fa-

miliares,  desde  que  as  situações  pudessem  afetar  qualquer  pes-

soa,  e  a  razão  disso  talvez  esteja  em  um  incomparável  senso  de 

solidariedade e do bem coletivo. Seu humanismo também é ação. 

A  poesia  de  Ferreira  Gullar  é  fruto  de  uma  sensibilidade  eru-

Page 18: Conversa com Ferreira Gullar

18

dita,  lírica  e  social.  Sua  poética  é  capaz  de  traduzir,  além  das 

angústias  do  homem  contemporâneo,  os  fecundos  silêncios 

que  alimentam  seus  próprios  conflitos,  inquietações  e  alegrias 

cotidianos  com  uma  riqueza  de  percepções  que  florescem  em 

luminosas  sinestesias.  A  mesma  sensibilidade  capaz  de  apreen-

der, no “Poema sujo”, a morte que “se propagou por toda a rua, /  

se  misturou  com  as  árvores  da  quinta, / penetrou  na  cozinha 

de  nossa  casa, / se  impregnou  do  cheiro  de  carne  que  se  assava 

na  panela / e  ficou  brilhando  nos  talheres / dispostos  sobre  a 

toalha / na  mesa  do  almoço” ,1  também  é  visionária  em  “O  jas-

mim”, onde o perfume de uma flor é “um silêncio a inventar-se 

nas  plantas / vindo  da  terra  escura / como  caules  talos  ramos  fo-

lhas / o  aroma / que  se  torna  o  arbusto  jasmineiro” .2  Como  toda 

poesia  que,  ao  submergir-se  e  elevar-se,  alcança  o  coração  do 

homem comum, está presente na obra de Gullar a solidariedade 

fraterna  e  o  inconformismo  com  as  injustiças  sociais,  a  indigna-

ção  com  o  sofrimento  alheio  e  o  deleite  lírico,  características 

que,  no  plano  internacional,  colocam-no  ao  lado  de  Baudelaire, 

Rilke,  Rimbaud,  Whitman,  T.  S.  Eliot  e  Maiakóvski,  poetas  origi-

nais  e  universais  que  alcançam  o  sublime  e  o  humano.  Isso  nos 

remete  ao  componente  linguístico  da  poesia  de  Ferreira  Gullar. 

1  Ferreira Gullar, “Poema sujo” in Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, 

pp. 233-91

2  Ferreira  Gullar,  “O  jasmim”  in  Em alguma parte alguma.  Rio  de  Janeiro:  José 

Olympo, 2010, pp. 33-34

Page 19: Conversa com Ferreira Gullar

19

Ao escrever em português, as mesmas portas da latinidade que 

o identificam com os sentimentos de seu povo – que o reveren-

cia  com  merecido  reconhecimento  –  também  lhe  dão  acesso, 

mediante  inúmeras  traduções,  a  leitores  de  outras  nacionalida-

des,  anunciando-o  como  um  exemplo  perfeito  de  clássico  mo-

derno.  Sua  poesia  foi  traduzida  e  publicada  em  países  como  Es-

tados  Unidos,  Venezuela,  Argentina,  Colômbia,  Cuba,  Equador, 

Itália,  México,  Peru,  Portugal,  Canadá,  Suécia,  Holanda,  Vietnã, 

entre outros. O alcance de sua poesia nos lembra o que T. S. Eliot 

escreveu em seu discurso para The Virgil Society, em 1944: 

Pode-se  concluir  então  que  o  clássico  perfeito  deve  ser 

aquele  no  qual  se  encontra  latente,  ou  completamente  ex-

posto, o gênio inteiro de um povo, e que somente se mostra 

em  uma  linguagem  que  permita  que  todo  seu  gênio  esteja 

presente ao mesmo tempo. Deve-se acrescentar, portanto, à 

nossa lista das características do clássico, a exaustividade. O 

clássico deve, dentro de suas limitações formais, expressar o 

máximo  possível  da  gama  completa  de  sentimentos  que  re-

presenta o caráter do povo que fala esse idioma. Desse modo, 

ele  será  sua  melhor  representação  e  será  apreciado  ampla-

mente; e entre o povo ao qual pertence conseguirá obter res-

posta entre pessoas de todas as classes e condições.3 

3  T.  S.  Eliot,  “What  is  a  Classic”,  discurso  proferido  na  Virgil  Society,  em  16  de  ou-

tubro de 1944. 

Page 20: Conversa com Ferreira Gullar

20

Penso que a conclusão de Eliot traduz a posição de Ferreira 

Gullar  na  história  da  literatura  brasileira  e  justifica  a  ampla  di-

versidade de seus leitores em tantas partes do mundo.

Desde  seu  primeiro  livro  de  poemas,  de  1949,  Um pouco

acima do chão  –  obra  da  adolescência,  não  incluída  pelo  autor 

em suas primeiras antologias –, percebe-se o ímpeto criador de 

um  poeta  que,  embora  ainda  buscasse  uma  linguagem  própria, 

já  revelava  força  e  inventividade.  A  partir  do  segundo  livro, A

luta corporal,  de  1954,  sua  poesia  encontra  a  grandeza  renova-

dora que deixou seus primeiros analistas sem parâmetros de jul-

gamento. Daí por diante, ele vai fazer experiências e renovar-se 

em  cada  publicação,  numa  impressionante  sequência  de  obras-

-primas como: Dentro da noite veloz, 1975, Poema sujo, 1976, Na

vertigem do dia,  1980,  Barulhos,  1987,  Muitas vozes,  1999,  e  Em

alguma parte alguma, 2010 – este último, uma antologia de poe-

mas  que  se  inclui  entre  os  melhores  livros  de  poesia  brasileira 

contemporânea. A obra de Ferreira Gullar é tão rica quanto mul-

tifacetada:  além  de  livros  de  poesia,  escreveu  artigos  e  ensaios 

sobre  artes  plásticas,  peças  de  teatro,  dramaturgia  para  televi-

são,  contos,  crônicas,  traduções,  uma  autobiografia  e  livros  de 

poesia infantojuvenil. Recebeu os mais importantes prêmios da 

literatura brasileira em diversas categorias. Nas últimas décadas, 

como intelectual intensamente envolvido no contexto sociocul-

tural  brasileiro,  entre  1992  e  1995  presidiu  o  Instituto  Brasileiro 

de  Arte  e  Cultura  (ibac),  vinculado  ao  Ministério  da  Cultura  do 

Brasil,  por  indicação  do  então  presidente  da  República  Itamar 

Page 21: Conversa com Ferreira Gullar

21

Franco. Em 2000, foi escolhido “Intelectual do ano” em um con-

curso nacional, após a exposição “Ferreira Gullar, 70 anos”, uma 

grande  retrospectiva  de  sua  vida  e  obra  no  Museu  de  Arte  Mo-

derna do Rio de Janeiro (mam-rj). Em 2010, sua mulher, a poeta 

Claudia Ahimsa, organizou no Museu Nacional de Belas Artes do 

Rio  de  Janeiro  (mnba)  uma  segunda  exposição  comemorativa, 

agora de seus oitenta anos. Nesse mesmo ano, foi laureado com 

o Prêmio Camões, o mais importante prêmio para escritores de 

língua  portuguesa,  outorgado  pelos  governos  de  Portugal  e  do 

Brasil  a  autores  que  contribuem  para  o  enriquecimento  do  pa-

trimônio  literário  e  cultural  do  idioma.  A  indicação  de  Ferreira 

Gullar, em 2002, para o Prêmio Nobel de Literatura, ocasião em 

que  obteve  o  apoio  de  vários  intelectuais  brasileiros  e  estran-

geiros, é  um  fato especialmente indicativo da  importância dele 

para  a  cultura  contemporânea.  Depois  que  o  primeiro  Prêmio 

Nobel  para  a  língua  portuguesa  foi  concedido,  merecidamente, 

ao romancista português José Saramago, não seria surpresa se 

uma  segunda  premiação  para  esse  idioma  fosse  dada  à  poesia 

e ao Brasil, por intermédio de Ferreira Gullar. Prestes a comple-

tar  83  anos,  a  vitalidade  desse  poeta,  cujas  obra  e  biografia  são 

exemplos de dignidade intelectual e humana, nos dá a sensação 

de estarmos na presença de um homem que está sempre reco-

meçando  o  trabalho  de  sua  vida:  a  poesia  que  reúne  todos  os 

homens em um só. 

Page 22: Conversa com Ferreira Gullar

22

Page 23: Conversa com Ferreira Gullar

23

ferreiragullar

arieljiménez

conversa com

Page 24: Conversa com Ferreira Gullar
Page 25: Conversa com Ferreira Gullar

25

  inventar a si mesmoO descobrimento da poesia

Como adultos, passamos a vida inteira compensando nossa infân-

cia. Completando-a, sentindo saudade dela, fugindo dela também.

Em todo caso, aquele momento – e aquele lugar – em que abrimos

os olhos para o mundo, quando ainda somos um amontoado de

sentidos, sem conceitos, sem palavras, define grande parte de nossa

estrutura psíquica. O que chegaremos a ser, a maneira como rea-

gimos aos estímulos e escolhas da vida provêm, em grande medida,

desse universo da infância e dos poucos anos seguintes até o nasci-

mento de uma consciência pessoal. Todos nós, sem exceção, quer

o saibamos ou não, respondemos a esse ditame. Contudo, é nas

pessoas que trabalham sua memória com mais constância, como

os escritores, que esse primeiro contato com o real se torna fecundo

e duradouro, e pode ser percebido em suas obras do começo ao fim.

Ali, para quem sabe observar, encontra-se escondido, se não toda a

obra de um autor, seu primeiro estímulo, o conjunto de problemas

aos quais ele tentará responder por toda a vida.

tudo isso em ti 

se deposita 

e cala.

Até que de repente

um susto 

ou uma ventania

Page 26: Conversa com Ferreira Gullar

26

(que o poema dispara)

chama

esses fósseis à fala.

Meu poema 

é um tumulto, um alarido:

basta apurar o ouvido.1

ferreira gullar Nasci em São Luís do Maranhão

no dia 10 de setembro de 1930, numa família de classe

média baixa. Batizaram-me com o nome de José Riba-

mar Ferreira, mas depois resolvi mudá-lo. Um poeta da

cidade (muito medíocre), chamado Ribamar Pereira,

escreveu um poema horrível que publicaram com meu

nome. Aquilo me irritou de tal maneira que decidi mudar

o meu nome para sempre. Usei meu sobrenome paterno,

Ferreira, e o sobrenome francês de minha mãe, Goulart,

que transformei para chamar-me Ferreira Gullar.2 Em São

Luís, meu pai era dono de uma quitanda, onde vendia ar-

roz, feijão, verduras, frutas e produtos desse tipo. Nossa

1  Ferreira  Gullar,  “Muitas  vozes”,  in Toda poesia.  Rio  de  Janeiro:  José 

Olympio, 2000, pp. 453-54.

2  Comentário  de  Ferreira  Gullar:  “Minha  mãe  vem  de  uma  família  me-

tade  francesa,  metade  indígena.  A  cor  da  minha  pele  e  meu  cabelo  liso  vêm  do 

ramo indígena da família”.

Page 27: Conversa com Ferreira Gullar

27

1  Ferreira Gullar (centro) com a mãe e os irmãos, c. 1936.

família era muito grande. Éramos dez, entre irmãos e ir-

mãs, e eu [1]. Além disso, não tínhamos muitos livros em

casa, apenas as histórias policiais que meu pai gostava

muito de ler numa revista chamada X-9. Ele tinha sido

jogador de futebol, era esse o mundo dele, e, quando eu

Page 28: Conversa com Ferreira Gullar

28

era garoto, me levava junto para assistir aos jogos. Talvez

seja por isso que, de início, eu quisesse ser jogador de fu-

tebol. Comecei jogando bola com meus colegas nas ruas

de chão batido até que, por fim, entrei para o time juvenil

do Sampaio Correia. Mas a paixão acabou rapidamente,

tão logo recebi um chute nas costas que me fez voar a uns

dois metros de altura. Quando caí no chão, pensei que as

vértebras da minha coluna tinham entrado umas dentro

das outras. Nunca mais voltei a jogar.

ariel jiménez  Qualquer  pessoa  que  leia  sua  poesia 

percebe de imediato que esse cenário quase rural da infân-

cia tem um papel fundamental em sua obra de adulto. Dali 

provêm  esse  assombro,  essa  estranheza  diante  da  opaci-

dade 3 do mundo que a caracteriza.

fg São Luís era uma cidade pequena naquela época,

e as famílias geralmente viviam em casas. Quase não ha-

via edifícios e apartamentos. Nós morávamos numa des-

3  Quando  usamos  aqui  o  conceito  de  “opacidade  do  mundo”,  refe-

rimo-nos  especificamente  a  essa  oposição  central  na  poesia  de  Ferreira  Gul-

lar  entre  linguagem  e  realidade  à  qual  a  linguagem  remete.  Uma  coisa  sem  um 

nome,  sem  nenhum  conceito  com  o  qual  possamos  abordá-la,  é  opaca  para 

a  inteligência  humana.  Nomeá-la,  descrevê-la,  determinar  suas  características, 

seus  usos  possíveis,  é  fazê-la  transparente  ao  nosso  entendimento.  A  poesia 

de Gullar provém, em grande parte, da vontade explícita de tratar dessa opaci-

dade primordial das coisas a fim de descrevê-las em palavras, se não novas, ao 

menos rejuvenescidas.

<entra imagem p. 15>

<legenda> 1. Ferreira Gullar (centro) com a mãe e 

os irmãos em São Luís do Maranhão, c. 1936.

Page 29: Conversa com Ferreira Gullar

29

era garoto, me levava junto para assistir aos jogos. Talvez

seja por isso que, de início, eu quisesse ser jogador de fu-

tebol. Comecei jogando bola com meus colegas nas ruas

de chão batido até que, por fim, entrei para o time juvenil

do Sampaio Correia. Mas a paixão acabou rapidamente,

tão logo recebi um chute nas costas que me fez voar a uns

dois metros de altura. Quando caí no chão, pensei que as

vértebras da minha coluna tinham entrado umas dentro

das outras. Nunca mais voltei a jogar.

ariel jiménez  Qualquer  pessoa  que  leia  sua  poesia 

percebe de imediato que esse cenário quase rural da infân-

cia tem um papel fundamental em sua obra de adulto. Dali 

provêm  esse  assombro,  essa  estranheza  diante  da  opaci-

dade 3 do mundo que a caracteriza.

fg São Luís era uma cidade pequena naquela época,

e as famílias geralmente viviam em casas. Quase não ha-

via edifícios e apartamentos. Nós morávamos numa des-

3  Quando  usamos  aqui  o  conceito  de  “opacidade  do  mundo”,  refe-

rimo-nos  especificamente  a  essa  oposição  central  na  poesia  de  Ferreira  Gul-

lar  entre  linguagem  e  realidade  à  qual  a  linguagem  remete.  Uma  coisa  sem  um 

nome,  sem  nenhum  conceito  com  o  qual  possamos  abordá-la,  é  opaca  para 

a  inteligência  humana.  Nomeá-la,  descrevê-la,  determinar  suas  características, 

seus  usos  possíveis,  é  fazê-la  transparente  ao  nosso  entendimento.  A  poesia 

de Gullar provém, em grande parte, da vontade explícita de tratar dessa opaci-

dade primordial das coisas a fim de descrevê-las em palavras, se não novas, ao 

menos rejuvenescidas.

<entra imagem p. 15>

<legenda> 1. Ferreira Gullar (centro) com a mãe e 

os irmãos em São Luís do Maranhão, c. 1936.

sas casas tradicionais, com um quintal cheio de galinhas,

galos, ervas e plantas diversas. Ali passei grande parte

do tempo brincando com meus irmãos e irmãs, no meio

de animais e rodeados de um monte de pintinhos. Tudo

isso fazia parte de nosso cotidiano e ficou gravado na mi-

nha memória como uma experiência essencial que res-

surge com frequência na minha poesia, porque faz parte

do que me constitui, do que me ajudou a ser o que sou.

Afinal de contas, somos feitos dessas coisas ínfimas que

vão se acumulando lentamente em nós. Meu poema “O

formigueiro”, por exemplo, que é um dos primeiros poe-

mas neoconcretos que escrevi no fim dos anos 1950, tem

origem nessas experiências infantis no quintal de casa.

Há uma lenda popular no Maranhão que diz que onde há

formigas há ouro enterrado. Um dia, vimos formigas no

quintal e logo nos pusemos a cavar o chão em busca do

ouro. Já tínhamos cavado um buraco enorme quando

caiu um desses fortes aguaceiros tropicais e inundou

tudo. Assim acabou nossa aventura, esquecemos do ouro

e das formigas, mas o episódio ficou guardado para sem-

pre na minha memória.

Houve também acontecimentos importantes na ci-

dade e no país que me marcaram de maneira duradoura,

como a Segunda Guerra Mundial. Eu tinha nove anos

de idade quando a guerra começou e me lembro bem

das manchetes enormes dos jornais, dizendo: “Polônia

Page 30: Conversa com Ferreira Gullar

30

invadida!”, e os jornaleiros gritando: “Guerra! Guerra!”,

e é claro que eu não sabia muito bem o que significava

aquilo, mas a agitação e a preocupação das pessoas nas

ruas, e na minha própria casa, me deixavam muito as-

sustado. Todos falavam disso, em todos os lugares, de

maneira que a guerra passou a fazer parte de nossa vida

cotidiana. Ouvíamos falar dela pelo rádio, nos noticiá-

rios, e meu pai comentava em casa, conosco e com os

amigos dele. Lembro-me de que quando estava ouvindo

as notícias pelo rádio, e entravam aqueles ruídos de es-

tática, meu pai começava a gritar: “São tiros, são tiros!”.

Pode ser que ele imaginasse que o rádio estava transmi-

tindo diretamente da frente de batalha e pensasse que

os ruídos fossem rajadas de metralhadoras. Eu escutava

tudo aterrorizado e, é claro, acreditava em todos os co-

mentários. Como não tinha a menor ideia de onde aquilo

estava acontecendo, se era perto ou longe de São Luís, a

guerra se tornou para mim uma coisa ameaçadora que

podia estar logo ali, um pouco além do horizonte visual

da cidade. Eu tinha medo de que a Gestapo chegasse até

nós, ou que os aviões alemães bombardeassem nossa

casa. Mais tarde, comecei a compreender onde as coisas

se passavam, mas essa primeira impressão me marcou

de maneira indelével.

A situação ficou mais tensa quando submarinos

alemães torpedearam navios brasileiros, o que levou o

Page 31: Conversa com Ferreira Gullar

31

Brasil a declarar guerra à Alemanha.4 Algumas pessoas de

São Luís tinham morrido naqueles navios afundados, e

esse fato deu origem a um clima de grande desconfiança

entre os moradores da cidade. De toda aquela época tu-

multuada, lembro-me do caso da filha de um negro que

trabalhava no cais do porto. Ela fora uma das vítimas dos

ataques, e, como a Itália era aliada dos alemães, o pai dela,

desesperado, foi até a praça da cidade onde um italiano

vendia jornais e o matou a punhaladas. Situações seme-

lhantes ocorreram com alemães ou seus descendentes,

como os meninos que começaram a ser hostilizados pelos

colegas na escola. Enfim, aquilo tudo foi lamentável.

Por outro lado, para mim pessoalmente, houve uma

consequência mais feliz dos ataques aos navios brasileiros,

porque naquele momento as mercadorias começaram a es-

cassear, e meu pai achou que poderia ganhar muito dinheiro

trazendo-as de outros lugares. Foi assim que ele se tornou

vendedor ambulante. Não foi muito longe – só até Teresina,

mas outros chegaram a viajar até o Rio de Janeiro. A boa

nova foi que meu pai resolveu me levar junto com ele, talvez

4  Em  agosto  de  1942,  após  o  afundamento  de  uma  série  de  navios  da 

marinha  mercante  brasileira,  o  governo  declarou  guerra  contra  a  Alemanha  e 

seus  aliados,  dando  efeito  ao  Tratado  de  Neutralidade  que  fora  assinado  em  Ha-

vana, em 1940. O tratado estipulava que qualquer ato de agressão contra um país 

americano seria considerado uma agressão a todos os países do continente.

Page 32: Conversa com Ferreira Gullar

32

por ser o caçula entre os filhos homens. O trem saía de ma-

drugada e, na minha imaginação, eu o via como um imenso

dragão metálico que respirava soltando fumaça pelas nari-

nas. Eu era garoto, devia ter uns dez ou doze anos, e o trajeto

de São Luís a Teresina naquele monstro mecânico me pare-

cia fascinante [2].

E como era grande o mundo:

há horas que o trem corria

sem nunca chegar ao fim

de tanto céu tanta terra

de tantos campos e serras

sem contar o Piauí 5

Nós saíamos da cidade e atravessávamos uma região panta-

nosa chamada Campo das Perdizes, com imensos alagados

e milhares de pássaros voando e cantando por todos os la-

dos. E essa visão dos pássaros sobre a água, de manhãzinha,

era deslumbrante, tanto assim que quando ouvi pela pri-

meira vez “O trenzinho do caipira”, das Bachianas brasilei-

ras n. 2, de Heitor Villa-Lobos,6 associei uma coisa à outra.

5  F. Gullar, “Poema sujo”, in Toda poesia, op. cit., pp. 233-91.

6  “O  trenzinho  do  caipira”,  de  1930,  faz  parte  da  segunda  série  das  Ba-

chianas brasileiras,  cujo  tema  é  o  movimento  ritmado  de  um  trem  no  interior 

do país.

Page 33: Conversa com Ferreira Gullar

33

Imediatamente me lembrei das viagens que fazia com meu

pai e inclusive tentei escrever uma letra, mas não consegui.

Durante vinte anos fiz várias tentativas, nunca deu certo.

Anos mais tarde, quando estava no exílio em Buenos Aires,

2  Ferreira Gullar aos doze anos, São Luís, 1942.

Page 34: Conversa com Ferreira Gullar

34

e enquanto escrevia o Poema sujo, que é um extenso poema

no qual evoco minha infância, aconteceu o contrário. Da

primeira vez que ouvi a Bachiana recordei-me das viagens

da minha meninice. Agora, ao evocar no poema as viagens

que fazia com meu pai, lembrei-me da música de Villa-Lo-

bos, e, na hora, a letra que não consegui escrever em vinte

anos de tentativas me surgiu em escassos vinte minutos:

Lá vai o trem com o menino

lá vai a vida a rodar

lá vai ciranda e destino

cidade e noite a girar

lá vai o trem sem destino

pro dia novo encontrar

correndo vai pela terra

vai pela serra

vai pelo mar

cantando pela serra do luar

correndo entre as estrelas a voar

no ar, no ar, no ar.7

Essa letra foi logo gravada e é muito conhecida no Brasil;

de alguma forma ajudou a popularizar a Bachiana. Hoje é

7  Letra de “ O trenzinho do caipira”, escrita por Ferreira Gullar, “Poema 

sujo”, in Toda poesia, op. cit., pp. 245-46.

Page 35: Conversa com Ferreira Gullar

35

uma das mais tocadas, não só por meu texto, obviamente,

mas porque é uma das mais belas, e porque a letra facilita o

acesso do público à música.

Foi assim a minha infância em São Luís. Fora isso, fui

um menino que brincava na rua, vivia livre na cidade. Junto

com outros dois amigos da minha idade fazíamos nossas

travessuras: pescando, preparando armadilhas para pegar

camarões, jogando bilhar, e até coisas proibidas, como rou-

bar cocos na esquina ou as galinhas do quintal dos outros.

Minha alfabetização, aliás, não se realizou numa escola

formal, mas em casa, com professores particulares. Mais

tarde, sim, fui estudar na melhor escola privada da cidade,

o Colégio São Luís Gonzaga. Era um bom aluno, estudioso,

aplicado, mas pouco tempo depois meu pai começou a

passar por dificuldades financeiras e tive que ir para uma

escola pública, a Escola Técnica de Formação Profissional,

que formava alfaiates, sapateiros, marceneiros. Talvez es-

perassem que eu acabasse aprendendo algum desses ofí-

cios, caso não conseguisse me formar numa profissão que

exigisse estudos universitários. Pois foi lá na escola técnica

que, por acaso, descobri a poesia e a ela me dediquei. Eu

devia ter uns treze anos de idade, e um dia a professora nos

passou, como dever de casa, uma redação sobre o Dia do

Trabalho. Escrevi um texto a respeito do fato peculiar de

que justamente no Dia do Trabalho as pessoas não traba-

lhavam. A professora gostou da redação; achou-a tão inte-

Page 36: Conversa com Ferreira Gullar

36

ressante e bem escrita que a leu em público na frente dos

meus colegas de classe. Apesar disso, ela não me deu dez,

a nota máxima, porque eu havia cometido alguns erros de

ortografia. A partir desse dia, eu disse a mim mesmo que

talvez pudesse me tornar um escritor, e para isso precisava

aprender as regras corretas da língua e da gramática.

Tal como o efeito borboleta na teoria do caos, um pequeno gesto – o

comentário simpático e encorajador da professora – definiu uma

vida inteira e uma obra, que hoje é imensa. Sem esse gesto, o me-

nino Ferreira Gullar poderia ter se orientado ou para a pintura, ou,

quem sabe, para o teatro. O fato é que dentre as múltiplas possibili-

dades que se ofereciam para um jovem talentoso, somente uma, na-

quele exato momento, respondeu às suas necessidades mais íntimas.

fg Eu não sabia o que fazer da vida, vinha tendo mui-

tos problemas na escola onde estudava, de maneira que,

quando vi que a professora tinha gostado da minha reda-

ção, imaginei que eu talvez desse para aquilo, mas como sa-

ber? Nessa idade, um menino tem inúmeras possibilidades

abertas; pode se tornar muitas coisas, e tem que inventar a

si mesmo. É claro que, para ser escritor, era preciso saber

gramática; então passei dois anos lendo livros de gramática,

entre 1943 e 1945. Fiz isso sozinho, em casa, porque nesse

mesmo período deixei a escola, e minha família não podia

fazer nada para me ajudar. Pois bem, uma dessas gramáticas,

Page 37: Conversa com Ferreira Gullar

37

a Gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira, continha

uma antologia de poetas portugueses e brasileiros. Havia

poemas de escritores portugueses como Luís de Camões e

Bocage, e também de brasileiros como Gonçalves Dias, Cas-

tro Alves e Olavo Bilac. Foi ali, naquele livro, que descobri a

poesia. Lembro-me perfeitamente deles, primeiro comecei

a decorá-los, e depois passei a ler a poesia de Gonçalves Dias,

os pensamentos de Bocage e de Camões. Enfim, comecei a

me interessar por esse tipo de produção literária. Só estra-

nhava que todos esses poetas estivessem mortos. A poesia

me parecia ser uma profissão de defuntos, mas mesmo as-

sim eu queria ser poeta. Finalmente descobri que os poetas

existiam e que tinha um bem perto da minha casa. Era o pai

de Iracema, uma amiga de minha irmã.

Esse senhor, de sandálias e camiseta, não correspon-

dia em nada à imagem idealizada que eu havia feito dos poe-

tas, mas era membro da Academia Maranhense de Letras e,

quando soube que eu também queria ser poeta, emprestou-

-me um livro, Tratado de versificação. Depois, me levou ao

centro da cidade, à praça João Lisboa, onde havia muitos

outros poetas, coisa difícil de imaginar para mim, que vivia

cercado de galinhas e galos no quintal de casa, e eu não fazia

ideia que houvesse um mundo maior. Lá no centro da cidade,

descobri poetas vivos e compreendi que existia uma vida li-

terária, com jovens como eu que se dedicavam àquele traba-

lho. Assim, comecei a conviver com eles, a trocar ideias com

Page 38: Conversa com Ferreira Gullar

38

os jovens e também com os escritores mais velhos – poetas

como Manuel Sobrinho, que foi quem me levou até lá, e Cor-

rêa de Araujo, um poeta muito engraçado, muito gozador [3].

Em suma, minha vida literária começou com eles. A partir

desse momento, tornei-me um verdadeiro expert no verso

hendecassílabo.

aj Imagino que para uma pessoa de personalidade in-

quieta como a sua, a escola e o regime de aulas devem ter sido 

como uma camisa de força.

fg Na verdade, a maior dificuldade que tive no colé-

gio foram as oficinas de ferreiro, com aqueles martelos enor-

mes e pesados que eu não conseguia levantar, e os cursos de

educação física. Nas oficinas me mandavam martelar o ferro

incandescente sobre as bigornas, e a verdade é que eu não

tinha força para levantar aquelas ferramentas. Por isso pedi

que me transferissem para outras oficinas, como a de sapa-

teiro, onde o cheiro dos materiais, a cola, as tintas, a cera e

o couro, me agradava. Sempre tive uma relação muito forte

com os cheiros que me cercavam: das flores, das frutas, da

terra. Mas o que realmente me fez abandonar a Escola Téc-

nica foram os cursos de educação física e seu professor, uma

pessoa de pouquíssima sensibilidade e que não entendia o

que estava fazendo. Pedir a um rapazote como eu, de escas-

sos trinta quilos, que carregasse um cara de oitenta quilos

era um absurdo completo. Eu reclamava, porque não podia

fazer aquilo, mas ele não ouvia e me ignorava totalmente.

Page 39: Conversa com Ferreira Gullar

39

3  Ferreira  Gullar  (esq.),  Corrêa  de  Araujo  (centro)  e  Lago  Burnett,  São 

Luís, c. 1950.

Por isso deixei de ir às aulas de educação física, e é claro que

o professor me deu zero. O mais absurdo de toda a situação

é que eu havia tirado boas notas em português, matemática,

física e também nas outras disciplinas, mas tudo era tão iló-

gico nesse colégio que, apesar de minhas notas altas, e sem

me chamarem para perguntar o que tinha acontecido, me

reprovaram por causa daquele zero. Foi aí que decidi aban-

donar a escola. Meu pai não tinha recursos para pagar outra,

e eu simplesmente não queria – não podia – voltar para a Es-

cola Técnica. Desse momento em diante, aos treze anos, me

tornei autodidata, e foi nos livros, em leituras solitárias, que

Page 40: Conversa com Ferreira Gullar

40

encontrei as respostas exigidas pela minha curiosidade in-

telectual. Nunca mais voltei à escola, nem fui à universidade.

aj Não deixa de ser admirável a disciplina com que 

você organizou seus estudos. É possível aprender sozinho, 

mas chegar a uma formação tão coerente e profunda em qual-

quer área, sem nenhum tipo de orientação intelectual, é extre-

mamente complexo, quase improvável.

fg Não organizei nada, nunca o fiz. Minha vida toda

é um improviso. Simplesmente me interessava por um

tema e começava a estudá-lo. Literatura, poesia e filosofia

me atraíam. Passei muito tempo estudando na biblioteca,

pegando livros emprestados e pesquisando os problemas

que mais me intrigavam. Não seguia um método preciso,

nem uma orientação específica. É bem verdade que, no

início, só me interessava pela literatura do Maranhão. Na

biblioteca de São Luís, havia uma estante dedicada à lite-

ratura do Maranhão, e eu só lia os autores cujos livros es-

tavam nessa estante. Logo ouvi falar de outros escritores,

é claro, e fui ampliando minha gama de interesses. Essa

decisão inicial foi, sem dúvida, de grande ajuda, porque eu

não tinha orientação alguma, e a verdade é que me colocar

sozinho ante o mundo da literatura poderia ter se tornado

uma situação incontrolável e frustrante. De modo que o

fato de me limitar a ler os escritores da minha cidade e

do meu estado me deu disciplina e ajudou a orientar-me

nesse universo.

Page 41: Conversa com Ferreira Gullar

41

Entre os primeiros livros que me lembro de ter lido,

e que não estava nessa estante, havia um de filosofia. Nem

sequer me lembro do nome do autor, talvez um italiano. Era

um livro velho, com as páginas cheias de mofo. Ali nasceu

meu interesse pela filosofia e com ele aprendi os elemen-

tos essenciais do léxico e desse tipo de pensamento lógico.

Logo depois, comprei outro livro em uma dessas livrarias

que vendem livros usados. O título era Lições de filosofia, e

me pus a ler sem nenhum método ou sistematicidade. Mais

tarde, por volta de 1950, interessei-me pela arte e pela poesia

modernas e, pouco a pouco, fui alargando meu universo in-

telectual. Recordo-me especialmente de um livro enorme de

Maurice Denis, que me motivou, junto com o estudo da poe-

sia francesa, a estudar esse idioma. Eu queria ler os livros de

arte que estavam na biblioteca, mas a maioria era em francês,

por isso resolvi estudar o idioma e pouco a pouco consegui

lê-los. O mais importante é querer aprender – o resto é uma

questão de tempo.

aj Certamente,  mas  não  deixa  de  ser  verdade  que 

aprender qualquer idioma, e aprendê-lo a ponto de ser capaz 

de ler algo tão complexo quanto a poesia, exige uma disci-

plina surpreendente. 

fg Talvez, mas eu o fiz por necessidade, porque de-

sejava ler esses livros. Comecei pelos livros sobre pintura e

escultura e em seguida passei a ler poesia, que me cativou

definitiva e completamente. Entre outros textos, encontrei

Page 42: Conversa com Ferreira Gullar

42

uma antologia de poesia francesa, bilíngue, em português

e francês, o que me ajudou consideravelmente. Nesse livro

descobri Paul Valéry, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e ou-

tros. Aos poucos, fui me familiarizando com os escritores

que são, digamos assim, a fonte histórica da poesia moderna,

e dessa maneira meu conhecimento sobre a pintura e a poe-

sia foi aos poucos se desenvolvendo.

aj No meio desse processo pessoal de educação, você 

não só lia e estudava, mas escrevia suas primeiras tentativas 

na poesia. 

fg Em 1949 publiquei meu primeiro livro de poe-

mas, Um pouco acima do chão, que considero um livro

ainda imaturo, embora seja evidente que minhas preo-

cupações pessoais, minhas indagações mais íntimas, já

estavam ali presentes. Eu tinha dezenove anos, era muito

jovem, e ainda não conhecia a poesia moderna brasileira:

Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes.

Quando os descobri, em 1950, foi um tremendo choque.

Eu vivia imerso na poesia parnasiana, uma poesia rimada

e muito construída. Meio por brincadeira, meio a sério,

sempre disse que nesse período da minha vida eu falava

por hendecassílabos. E é verdade que, por momentos, uma

frase me saía rimada como versos escritos pelos poetas

parnasianos, que eu lia sem parar. Mas, quando descobri

Drummond e a poesia moderna, deparei-me com versos

que pareciam completamente absurdos e até feios. Havia

Page 43: Conversa com Ferreira Gullar

43

um poema que dizia isto: “Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de

escamas”.8 Aquilo me parecia de muito mau gosto... Sopa?

A poesia não pode falar de sopa, eu me dizia. Foi um cho-

que, porque minha visão da poesia era a de um universo

idealizado completamente estranho à vida cotidiana. Poe-

sia era outra coisa. Transformar em poesia a realidade ba-

nal e cotidiana, isso é ser moderno, e aprendi isso quando

descobri Drummond.

Não serei o poeta de um mundo caduco

também não cantarei o mundo futuro.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens 

presentes,

a vida presente.9

Aquilo me surpreendeu desagradavelmente, sem sombra de

dúvida, mas teve um impacto tão forte sobre mim que tive

vontade de entender, e por isso comecei a ler esses poetas e

a fazer meus próprios exercícios literários. Imediatamente

compreendi que a poesia que eu vinha fazendo era bonita,

8  Carlos  Drummond  de  Andrade,  “Sentimental”,  in  Alguma poesia.  Rio 

de Janeiro: Record, 2010, p. 45. 

9  C. Drummond de Andrade, “Mãos dadas”, in Antologia poética. Rio de 

Janeiro: Record, 2009, p. 158.

Page 44: Conversa com Ferreira Gullar

44

mas pertencia ao passado, aos poetas mortos. Aí comecei a

fazer uma poesia de natureza diferente, mais atual. Não imitei

Drummond, é claro, mas comecei a escrever por minha conta

algo distinto. Tanto assim que no mesmo ano, 1950, pouco de-

pois de conhecer a poesia moderna, ganhei o Prêmio Nacional

de Poesia, concedido pelo Jornal de Letras, que era a principal

publicação literária da época no Rio de Janeiro, de circulação

nacional. Esse prêmio me estimulou muitíssimo e foi um dos

fatores fundamentais para minha decisão de mudar para o Rio.

aj O poema com que você ganhou o prêmio contém 

um detalhe interessante. Corresponde, de fato, a uma anedota 

cotidiana e banal, mas não uma anedota qualquer; é sobre uma 

coisa que aconteceu na sua infância, no quintal de sua casa. 

fg Nesse caso específico, não foi assim. O primeiro

poema não é o mesmo que foi publicado na minha antologia,

é uma versão anterior que nunca saiu em livro. A primeira

versão foi inspirada por um anúncio de sal de frutas Eno que

estava espalhado pela cidade. O anúncio tinha a silhueta ne-

gra de um galo cantando com o bico aberto e um sol com seus

raios. O outro poema, “Galo galo”, que incluí na antologia, é

que fala de um animal de minha infância, esse que conheci no

quintal da minha casa, mas não tem nada a ver com o primeiro.

aj Contudo, o fato de ter usado um galo saído de uma 

imagem publicitária como ponto de partida me parece ser 

uma ideia mais radicalmente moderna.

fg Não diria que é mais radical. O primeiro tem uma

Page 45: Conversa com Ferreira Gullar

45

forma bem mais apurada, mas o outro é muito mais pro-

fundo. Vai mais fundo na experiência de vida. É inclusive

mais complexo, porque o galo passeia cheio de garbo, como

se fosse um guerreiro medieval. Mas de quem ele se de-

fende? Contra quem esse galo guerreiro está lutando? Essas

perguntas, que são centrais, não surgem no outro poema,

que é mais descritivo e epidérmico. Além disso, há uma

identificação tácita entre o poeta – que sou eu – e o tema do

poema, que o torna muito mais denso.

De córneo bico e 

esporões, armado

contra a morte, 

passeia.

Mede os passos. Para.

Inclina a cabeça, coroada

dentro do silêncio.

– que faço entre coisas?

– de que me defendo?

Anda

No saguão.

O cimento esquece

o seu último passo.10

10  F. Gullar, “Galo galo”, in Toda poesia, op. cit., p. 11.