Conversa Sobre Terapia

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APRESENTAO:Clareza e simplicidade so virtudes. Dedicao e amor so necessrios para conquist-las e preserv-las. Picasso e Mir as conquistaram em suas obras. Estas podem ser comparadas a desenhos de crianas por sua espontaneidade, mas basta tentar criar algo semelhante, de modo verdadeiro, para descobrir que no fcil. Associar essas virtudes a uma conversa sobre terapia baseada na filosofia de Heidegger pode parecer estranho. comum encontrar, na traduo de seus textos, conceitos fundamentais associados a palavras em grego e alemo, inclusive termos criados por ele. At mesmo o nome adotado no Brasil por esta abordagem de psicoterapia, a Daseinsanalyse, foi mantida em alemo. Entretanto, ao ler seus textos com calma, a adoo desses termos se revela apenas um instrumento para precisar seus conceitos. CONVERSA SOBRE TERAPIA Ser simples e claro pode ser perigoso. Pode deix-lo exposto. Muitos adotam a confuso para se proteger, como o polvo, que joga tinta na gua para camuflar a fuga. Jarges hermticos cumprem este papel, mistificam o conhecimento e podem se tomar smbolos de poder para os "iniciados". Utilizados sem conscincia pelos profissionais, acabam por se tornar obstculos para a comunicao. Empregadas com coragem e propsito, clareza e simplicidade so armas. Podem tocar coraes, transformar conceitos e atitudes. Cuidado com seta conversa...

Tarcsio Tatit Sapienza

SUMRIO

Introduo.........................................................11Conversa sobre terapia..................................... 13

INTRODUO

Um dia, senti a necessidade de pr no papel algo que me servisse como roteiro, como apoio para um curso sobre o assunto "terapia". O importante era poder falar de uma terapia fenomenolgica e, mais especialmente, da Daseinsanalyse. Assim comeou a nascer este texto, que foi surgindo no ritmo de uma conversa - j que essa era a forma imaginada para o desenrolar do curso. Cada pargrafo originava o seguinte. Situaes e personagens que vocs encontram aqui aparecem apenas como exemplos. Elas foram completamente imaginadas por mim. CONVERSA SOBRE TERAPIA Vamos conversar sobre terapia. E, quando fazemos isso, um dos assuntos que surgem a teoria com que trabalhamos. Se o nosso trabalho se situa na fenomenologia, ento, esse assunto se torna mais complexo, pois o prprio uso ou no de uma teoria passa a ser uma questo. Ha algumas coisas, porm, que independem de teorias. Uma delas e a postura do psiclogo diante de coisas fundamentais, como, por exemplo, o respeito: pelo paciente, pelo contexto da sesso de terapia, pelo segredo profissional; o bom senso de saber que a terapia, seja qual for, no pode tudo, e que, s vezes, nosso paciente pode precisar tambm de uma ajuda psiquitrica ou de algum outro tipo. Trabalhamos luz da fenomenologia. Diante da existncia do paciente, que o fenmeno com que lidamos, como poderemos fazer fenomenologia com coerncia se formos para a sesso munidos de uma teoria de psicologia que j sabe previamente explicar os fenmenos? 13 Suspendemos as teorias de psicologia. Mas precisamos saber o que estamos suspendendo; seno, estaremos sendo apenas ignorantes. E no razovel que ignoremos todo o conhecimento que a psicologia j acumulou daquilo que diz respeito ao homem. As teorias explicam o pensamento do homem, suas emoes, seu desenvolvimento; explicam o porqu de certas patologias. Todas elas tm algo a dizer, e importante que o profissional que se prope a tratar de seres humanos no ignore as cincias e os saberes todos que descrevem o homem. Se voc no conhecesse as teorias, naquelas horas de perplexidade diante do seu paciente, quando parece que nada faz sentido ou quando a sensao poderia ser a de estar jogando conversa fora, voc teria sempre uma iluso de que, se tivesse uma boa teoria, isso lhe ajudaria muito e que, com ela, voc poderia ir longe no seu entendimento. Em algum lugar dela, aquilo que ele diz ou o que no diz assentar-se-ia muito bem. Agora, se voc conhece as teorias, isso vai lhe permitir pensar: , a teoria diria tal coisa deste paciente; mas eu, que estou aqui junto dele, para quem ele j contou tanto de si, eu penso o que? Que sentido isso faz na histria dele? Foi para esta pessoa que aquela teoria foi feita?". Ento, voc no vai longe; para diante do seu paciente, diante daquela sesso em particular, diante de 14como vem se desenrolando o processo teraputico; reconhece que ainda no compreendeu bem e, com pacincia, espera. Nenhuma teoria tem o que fazer ali. Provavelmente, sua sensao vai ser de desamparo. Mas esse um primeiro momento. Depois, j que ali surgiu um vazio - disponvel, porque entregue, e disposto, porque atento a uma busca de sentido -, o desamparo passa a ser substitudo pela surpresa de perceber que uma compreenso comea a preencher o vazio. Esta surge sem voc saber de onde. Talvez lhe seja dada exatamente porque, para uma coisa nova germinar, ela precisa do vazio de um espao, da calma de um momento, e voc foi algum que favoreceu essas condies. Voc foi a abertura na qual algo se deu a compreender. A compreenso vai poder ser agora compartilhada ou, talvez, ainda no. Se no for ainda a hora, contenha a sua pressa. Como teorias so explicaes amplas, gerais, elas podem muitas vezes ser aplicadas ao caso do seu paciente, pois, afinal, falam de gente, e gente tem muita coisa em comum; foram elaboradas por pessoas que observaram, que pensaram em aspectos importantes da existncia, no importa que nomes tenham dado a isso. Ento, com seu paciente, mesmo que voc se aproxime dele sem uma teoria, pode acontecer que, em alguns momentos, aquilo que voc percebe nele seja muito parecido com algo que a teoria X fala. Nesse caso, a teoria coincide 15 com o que voc v no seu paciente. Voc talvez pense: "No h de ver que isso mesmo?". E vai achar bom. Mas, no caso de voc querer permanecer na fenomenologia, retorne em seguida ao seu paciente e deixe de novo seu pensamento aberto. Quem trabalha com fenomenologia convive com isto: a necessidade de ir direto ao fenmeno tal como se apresenta - ir atrs de seu significado naquele caso especial, nico, um significado que pode mesmo contrariar qualquer teoria de psicologia -, sem, contudo, ignorar as teorias que pretendem explic-lo. Quando, conhecendo as teorias, voc conseguir manter o pensamento aberto para permanecer diante do fenmeno, livre das teorias, voc vai ter a sensao de estar honestamente fazendo fenomenologia; saber o que est deixando de lado e por que faz isso. Voc sentir que o faz porque o apelo do fenmeno maior. Estar livre das teorias explicativas, geralmente casualistas, elaboradas pela psicologia, entretanto, no significa que seu pensamento se d na ausncia completa de referncias. Alis, nem seria possvel uma coisa dessas, mesmo porque somos "ser-no-mundo", e "mundo" em tal expresso j significa um entrelaamento de referncias: nosso fazer, nosso falar, nosso pensar sempre acontecem na referenda a algo que lhes d sentido. claro que, com mais razo ainda, aquele pensar que 16 prprio da terapia, o pensar que diz respeito existncia, d-se dentro de um contexto de referncias significativas fundamentais para nossa compreenso do fenmeno existencial. Em nosso caso, trabalhamos com um referencial bsico do pensamento heideggeriano: a compreenso do Dasein, do "ser-ai", como "ser-no-mundo", como "ser-com"; como aquele que chamado em suas possibilidades para realizar sua existncia atravs do "cuidado", cobrado por isso e sente culpa; aquele que sonha, faz planos; sabe que finito e se angustia diante da possibilidade do nada. Mas sempre h uma tentao: e se arrumarmos uma teoria de psicologia que seja fenomenolgica? H teorias psicolgicas que so de inspirao fenomenolgica. Mas ser que, ao se tornarem teorias, elas continuam a ser fenomenologia? E, no momento psicoterpico, atermo-nos a essa teoria, ainda que ela tenha se originado de um pensamento fenomenolgico, ser que fazer uma boa fenomenologia? O momento da terapia aquele privilegiado, em que fazemos uma fenomenologia da existncia. possvel tambm faz-lo estudando, pesquisando; so muitos os modos, mas nenhum e to precioso como esse, que se origina de um momento raro como s esse pode ser, pois em nenhum outro uma pessoa abre a sua intimidade

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com tanta confiana. E ela o faz no para que algum a veja dentro de uma teoria ou para que elabore uma a partir do que ela fala. Sua existncia se abre para ser compreendida. Esse o fenmeno ali. Ele absolutamente singular: porque aquela vida de que se trata e nica, aquela sesso e nica, a relao entre aquele terapeuta e aquele paciente nica. No h duas terapias iguais. Seu paciente vem semana aps semana, s vezes durante anos. Cada vez ele traz um pedacinho da histria que e a dele, que e ele. Os sentimentos mais diversos vo passando por ali: raivas e amores, sonhos e desiluses, esperanas e temores, culpas e vontade de poder ser melhor. Por que ele volta toda semana e continua o desenrolar de sua hist6ria? Ser que para ter uma conversa interessante com voc? Isso no sustentaria uma terapia. Ele vem porque, a cada sesso, vocs dois renem pedaos de significados que estavam dispersos na vida dele. s vezes, eles esto difceis de aparecer, mas vocs acendem uma luzinha aqui, outra ali, e comeam a encontr-los. Esses significados juntam-se e passam a estruturar sentidos de sua vida. Isso acontece porque aquele o lugar onde ele pode retomar tanto aquele episdio, to antigo que ele pensou que j fosse passado, como aquele sonho de futuro sempre 18 adiado; onde ele pode ser frgil e ser forte, estar triste ou contente; onde ele pode se ver como aquele para quem a vida tem de ser sempre uma tarefa rdua ou aquele para quem a vida tem de ser sempre uma festa. Enfim, todos os sentimentos tm o direito de freqentar a sesso. Alguns deles surgem e dizem logo "estou aqui" com muita clareza, e outros, por muito tempo, negam-se a mostrar-se; querem ser chamados por outros nomes ou se misturam com outros sentimentos. Mas, com pacincia, eles todos vo chegando e colorindo uma histria cheia de sentido. A histria que se revela no decorrer de uma terapia pode ter semelhana com outras histrias, mas cada uma tem uma peculiar combinao de significados, que s dela. E ali, na terapia, a nica fenomenologia que interessa a dessa histria particular, e a da existncia do paciente que est na sala. Nisto consiste o trabalho que ali se realiza: deixar que as coisas apaream com seus significados, reuni-los e permitir que sentidos se articulem. Esse trabalho e de pensamento, faz essencialmente uso da linguagem, mas bem poderia ser chamado de artesanal. Neste contexto, artesanal indica a diferena do "industrializado", do padronizado, do que se torna generalizado - como as teorias so generalizaes -, feito para algum que no sabemos quem ser. Nosso trabalho 19

destinado a cada um. E no aquele artesanal que poderia j estar na vitrine a espera de quem o levasse: ele s vai ser realizado no momenta em que o destinatrio estiver presente. E mais: s6 ser feito com ele. Terapeuta e paciente pensam e sentem juntos. Artesanal diz respeito a um oficio realizado com as mos. Embora no trabalhemos com as mos, essa metfora vale por aquilo que as mos humanas podem simbolizar. Mos podem agredir, afastar, mas tambm so elas que aproximam o que queremos ver de perto; mos seguram o que est prestes a cair; mos aconchegam, desfazem ns e fazem laos; mos mostram uma direo; mos detm a afobao da pressa e do aquele "empurrozinho", as vezes, necessrio; mos pensam feridas. Fora de toda a conotao pejorativa que a palavra manipulao carrega, e de acordo com um bom e velho sentido que ela j teve, podemos dizer aqui que esse um trabalho de "manipulao", como quando lemos "Farmcia de manipulao". Ali os remdios podiam ser elaborados especialmente para uma determinada pessoa. Fulano est em "boas mos" - o que dizemos quando achamos que ele vai ser bem tratado. Mas de que se trata o tratar da terapia? 20 Antigamente dizamos: fulano precisa tratar dos nervos. Depois, foi "descoberto" o "emocional", e as pessoas passaram a tratar do emocional; foi acrescentada a isso a noo de que muitas doenas so causadas pelo "emocional", e, ento, razo a mais para tratarmos dele. Mais recentemente, a pessoa vem por motivos mais definidos: sofre de depresso, tem pnico, vive com estresse (palavra da moda), e se define at dentro de siglas, por exemplo: "Eu tenho um TOC". Ela vem com um pedido muito particularizado e urgente para que voc a livre de um transtorno. Se no tomar cuidado, voc vai comprar essa idia, e logo voc e o paciente estaro ansiosamente empenhados em resolver a ansiedade dele. O paciente tem pressa: primeiro, porque ele est sofrendo; segundo, porque acredita que, se um tratamento bom, deve ser rpido. Afinal, j h tantas pesquisas a respeito dos distrbios, existem tcnicas para trat-los, e voc certamente j as conhece. Em geral, ele j vem tomando um remdio, mas lhe disseram que uma terapia tambm ajuda a resolver. Sim, ajuda e muito. Mas como imaginar uma fenomenologia ansiosa para resolver um problema? O paciente tem direito de escolher uma forma de terapia que corresponda as suas expectativas. Mas se ele resolver que quer ser atendido por voc, mesmo sabendo que voc no usa as tcnicas que ele procurava, e se voc trabalha 21 no referencial fenomenolgico, pelo menos para voc, desde o incio, algumas coisas devem estar claras. Voc e ele vo trabalhar, no contra o tempo, mas a favor do tempo; ele vai precisar de um tempo para poder desdobrar, com voc, pormenores de sua vida que, s depois de contados, tocados, mexidos, podero ajudar a compor a histria dentro da qual suas queixas fazem sentido. E muita coisa que vai ser dita poder parecer, primeira vista, conversa jogada fora, mas s parece; voc vai precisar de um tempo para aprender, com esse paciente, a forma de se aproximar sem ser invasivo; voc vai precisar de um tempo para que amadurea uma compreenso; vai ser preciso tolerar sofrimento. Talvez voc diga agora: "Mas isso tempo demais; e a terapia mesmo, pra valer, quando comea? Quando vai ser a hora de tratar dos problemas pelos quais ele me procurou?". Ora, a terapia j comeou l, no momento em que ele confiou em voc como possibilitador do espao ou da condio em que o mundo dele pode ser aberto, aproximado, olhado de perto; ali na sala ele falou do medo que sentiu tantas vezes ou do medo que nunca se permitiu sentir; do quanto ele tem se imposto tarefas e esforos para ter sucesso, do quanto ele precisa competir; do amor que no recebeu, do amor que no sabe dar; de como 22 se sente capaz de fazer algum estrago em sua vida ou na dos outros, de como ele no quer isso; de como preciso estar sempre atento para que nada errado acontea; dos seus sonhos, tanto aqueles que morreram como aquele que teima em continuar. Falou tambm das coisas boas de sua vida. A terapia j comeou na hora em que, ao entrar na vida dele, voc se tornou para ele aquele "outro" - e como necessrio o outro! - que o espera a cada sesso para recolher, com ele, pedaos da sua histria: pedaos que estavam esquecidos, dispersos, diminudos, aumentados, e que, ao serem recolhidos, formam um desenho que vai ganhando sentido e que ele pode reconhecer como sua vida. Ela comeou porque poder compartilhar com voc esse novo olhar j aquele "toque" teraputico que pode alterar profundamente a sua forma de existir. Terapia um pouco isto: oportunidade de o paciente poder olhar, de novo, para o que foi vivido e passou - ou no passou -, para o que vivido agora, e autenticar tudo como sendo dele, como sendo ele. Parece quase nada. Mas voc pensa que fcil? No , porque a se incluem, por exemplo, as dores de que 'ele no quer nem se lembrar, suas perdas, suas culpas, suas faltas, suas desiluses - e quanto disso h na base de uma depresso; seus receios, sua angstia, porque ele sabe que um dia vai morrer, sua tristeza pela precariedade de tudo, 23 seu sentimento de impotncia diante de um mundo que se torna cada vez mais ameaador - e quanto disso est l no pnico; a se incluem tambm os prazeres, as alegrias que ele no sabe se tem direito de sentir. Terapia tambm isto: ocasio de ver que essa e a vida que se realizou, que foi esse o caminho percorrido mas um caminho que continua e, o mais importante, pode ir em direes diferentes. s vezes, isso quer dizer novas escolhas que implicam mudanas radicais. Mas o mais comum que esse poder ir em outra direo queira dizer: mudar a direo do olhar, poder ver outros significados nos fatos que, em si continuam os mesmos; poder sentir que, exatamente porque aquela histria especialmente a dele, ele seu protagonista e cabe a ele trazer elementos novos para ela. Sim, porque terapia tambm isto: a chance de algum perceber que no lhe compete mudar os outros; que no compete aos outros tomar a iniciativa para resolver os problemas que so dele, e que a obrigao de cuidar da sua vida e primeiramente dele; e a chance de perceber que ele deve isso a si mesmo. Talvez voc diga: "Bem, terapia pode ser tudo o que est dito acima. Mas que tem isso a ver com aqueles problemas to especficos que o paciente trouxe para resolver? Ento terapia no passa de uma conversa, de um24compartilhar coisas da vida com o terapeuta, e, a partir disso, quem sabe, at poder v-las de um jeito novo? (Estou pensando aqui: voc acha que isso pouco?) Os fatos da vida do paciente permanecem l; o sentido deles pode mudar, mas os fatos no. E sua depresso fato e se baseia em fatos, faz parte da realidade; seu pnico fato e se sustenta em fatos, realidade; o abandono que ele sofreu aconteceu na realidade. E ele apenas vai aprender a olhar para a realidade de um outro jeito?". Diante dessas perguntas que voc pode ter feito, vamos pensar: e o que a realidade? Se voc trabalha com a fenomenologia, sabe que realidade sempre realidade percebida. Ouvi de um psiclogo algo que exemplifica isso. Uma menina chega para a sesso de terapia e conta que seu namorado a deixou, no a quer mais. Este o fato. Ela se deprime: "Que falta de sorte, eu devo ser mesmo incapaz de manter algum comigo; o que ser que me falta?". Esta , realmente, uma menina abandonada, porque no inspira amor. Outra menina chega e conta o mesmo fato. Ela fica triste e com raiva: "Esse cara no de nada, ele pensa que eu sou uma idiota, aquele tonto que no sabe o que est perdendo". Esta , realmente, uma menina que namorou algum que no soube lhe dar o valor que ela merece. Talvez voc me diga: "O real ai depende de se saber em cada caso exatamente por que o namorado foi embora". 25 Mas quem vai saber isso? Talvez nem ele mesmo saiba. Do ponto de vista da menina, o que importa nesse fato e a percepo que ela tem dele, o sentimento que despertado nela. Essa a realidade que tem sentido para ela. Ento, a realidade nunca to objetiva como imaginamos que seria por se chamar realidade. Ela sempre algo a meio caminho entre o que foi dado, como foi dado, e o que foi percebido. Se na terapia algum consegue comear a olhar a prpria vida e a reelaborar significados que j estavam cristalizados, a realidade da vida dessa pessoa pode se alterar tambm. Se at a fsica, uma cincia que lida com fatos objetivos, considera que ato de observar e uma varivel que altera o objeto observado, quanto maior deve ser a possibilidade de que uma dada situao existencial possa ser alterada dependendo do "olhar" que lhe dirigido. E tanto mais porque no se trata, na terapia, de um mero olhar desinteressado, mas daquele "olhar" que tambm cuidar, como quando algum, ao sair, diz para outra pessoa: "Olhe isso pra mim at eu voltar". Ou quando a me diz para a bab: "Estou saindo, olhe as crianas". S que, na terapia, trata-se de um olhar junto, de um "olhe comigo". Terapia um pouco isto: possibilidade de dirigir um olhar diferente para a prpria existncia e, assim, reformular significados. 26 Mas esse olhar que cuida olha o qu? De que cuida a terapia? A terapia isto: cuidar da existncia que sofre. Porque a existncia frgil por natureza. No s a vida que, como animal, o homem compartilha com os outros animais frgil, mas, sobretudo, a existncia como caracterstica peculiarmente humana o que h de mais vulnervel. Existncia "ser-no-mundo", e isso poder ser atingido, ser tocado o tempo todo por tudo: tanto pelo que vem ao encontro do que desejamos e torna a existncia mais plena, como por aquilo que e compreendido como destruio de algo que queremos ter preservado ou como ameaa de que isso possa acontecer. Algumas vezes, e a vida mesma, a prpria ou a de um outro, que sentimos ameaada, e ento o sentido das coisas fica abalado, e isso di. Mas isso no acontece s quando a vida est em risco; acontece tambm naquelas situaes em que sabemos que a vida est ilesa, mas o sentido da vida se quebra ou se torna confuso. A existncia sempre um poder ser diante de um "para qu", de um a fim de que", e quando este se rompe ou est ameaado a existncia sai machucada. Em algum grau e de alguma forma, algo est doendo quando a pessoa procura a terapia, embora, as vezes, no comeo ela nem identifique ainda aquilo como dor. A terapia no uma forma de entretenimento intelectual para pessoas que, dispondo de tempo e dinheiro, apenas querem se conhecer melhor. 27 Damos uma topada na pedra e o dedo di; algum sente que a garganta di; a indigesto faz doer o estmago. Os animais tambm sentem essas dores. Mas onde di uma decepo? Onde di o sentir-se perseguido? E o sentir-se culpado? E a falta de amor? E a falta de sentido? Onde di a incerteza? E, o saber da precariedade de tudo onde di? S os humanos sentem essas dores. Porque s o homem, como "ser-no-mundo", existe na compreenso do entrelaamento de significados que quer dizer "mundo". E aquelas so dores da existncia, que s podem ser sentidas por um ente que compreende significados. Elas podem ser to intensas que chegam a se encarnar no corpo do homem, j que corporeamente que o homem existe. Talvez algum diga que, ao mexer nessas dores, a terapia vai machucar mais. Isso acontece mesmo. Mas elas afloram exatamente porque o paciente sabe que aquilo que o faz sofrer cabe naquele espao. Ningum vai lhe dizer: "Bobagem sofrer por causa disso". Muitas vezes, essa uma experincia totalmente nova para ele. claro que ele tem com quem conversar entre as pessoas com quem convive, mas ele reserva certas coisas para, como dizamos antigamente, conversar com seus botes ou com o travesseiro. Ou, ainda, como dizia Cartola, queixa-se s rosas... So essas as conversas que cabem na terapia; ali uma pessoa ouve e acolhe suas palavras. 28Ento, terapia tambm um pouco isto: ocasio de ouvir a prpria voz a dizer coisas que, uma vez ditas, encorpadas na voz, so acolhidas por ouvidos humanos. Tomando corpo assim, elas se mostram com mais nitidez. Pensamentos e sentimentos expressos dessa forma podem ser compreendidos melhor em suas propores e significados. Mesmo se no houver um grande sofrimento, pelo menos em alguns pontos a existncia de quem procura a terapia deve ter se complicado. Mas o que se complicou algo dentro dela ou algo do mundo em que ela vive? E dentro ou fora dela? Se considerarmos que existir "ser-no-mundo", essa pergunta j no cabe, no h mais dentro ou fora. "Ser-no-mundo" no quer dizer apenas estar fisicamente dentro de um mundo fsico; no tambm estar dentro de um mundo cujas presses sociais, culturais ou de qualquer outra natureza modelam o psicolgico do homem; no tambm a intemalizao de um mundo que, na origem fora do homem, passa a ser vivido "psicologicamente" como sendo dele ou como sendo o seu interior; tambm no aquele bvio dizer que "cada pessoa v o mundo de um jeito subjetivo". A concepo de existncia como "ser-no-mundo" representa modificaes radicais de ordem filosfica e epistemolgica. A existncia o "lugar", o "a" onde 29h "mundo", e "mundo" j sempre o "a" onde a existncia . Existncia e "mundo" so co-originrios. Um no anterior ao outro. Se voc concebe a existncia como esse ser num mundo de significados, ser sempre diante de um a fim de que, e isso quer dizer achar sentido, voc vai perceber o quanto o sofrimento do paciente tem a ver com a dificuldade de encontrar sentido no que est vivendo ou de ir ao encontro do que daria sentido a sua vida, ou seja, a dificuldade est exatamente no cerne do existir. nessa dimenso que a terapia fenomenolgica profunda. Terapia ento tambm isto: momento em que possvel aprofundar o pensamento, de uma maneira inteiramente pessoal, na questo bsica do sentido da vida prpria. Quando falamos em sentido das coisas da vida tocamos na questo dos valores, pois algum v sentido em caminhar na direo de algo que valoriza. inevitvel que esse tema esteja presente de alguma forma na terapia, e no pode deixar de ser pensado pelo terapeuta. Assim, vamos introduzi-lo aqui. Numa brincadeira de faz-de-conta, voc pode imaginar que se encontra por ai com as cincias caminhando ou correndo, ocupadas nos exerccios que as tomam fortes. Se elas pararem URV pouquinho, e voc puder perguntar a elas "como vo vocs?", elas 30respondero satisfeitas: "Ah, estamos timas, felizmente, talvez em nossa melhor forma". Se, em seguida, voc se encontrar com os valores humanos - o que j vai ser difcil, visto que eles vivem meio encostados pelos cantos -, ver que eles esto muito mal-tratados, alguns meio deprimidos, outros raquticos. E talvez eles nem respondam, andam quietos. Tm medo de que os chamem de velhos caretas. Agora, brincadeira parte, parece que, nas cincias, no h crise. A crise e dos valores, na rea dos significados das coisas em geral, dos significados que dizem respeito existncia do homem. As pessoas pensam cada vez menos nisso e, quando querem ou precisam pensar, no encontram a hora, o lugar; s vezes, j no encontram nem mais a linguagem que facilitaria esse pensar. Terapia no pode deixar tambm de ser isto: o lugar onde se pode ouvir a prpria resposta pergunta inevitvel: o que tem valor para mim? Uma resposta, num exemplo hipottico, poderia ser esta: "Meu valor maior foi sempre fazer uma carreira brilhante. Eu quero nada menos que o primeiro lugar em tudo. Na empresa em que trabalho agora, posso ser promovido para um cargo legal, o mais alto, mas h um outro cara que super capaz, e eu sei que desempenhar essa funo o sonho da vida dele. Preciso impedir, de 31qualquer jeito, que ele consiga. Tenho inventado e espalhado algumas coisas sobre ele e garanto que ele sai do preo, j, j. A gente tem de tirar do caminho quem est atrapalhando e, se for preciso, a gente pisa e passa por cima. Sei que isso no honesto com ele, mas, enfim... No que eu goste de prejudicar os outros, mas, neste caso, ele ou eu. Depois ele se arruma de outro jeito. Se a gente ficar pensando nos outros no chega a lugar algum". Dito em qualquer outro lugar, isso provocaria comentrios como: agir assim e errado, e imoral; ou v em frente, cada um cuida de si. Mas, quando falado numa sesso de terapia, mesmo que o terapeuta no queira se manifestar no momento, isso suscitaria que tipo de pensamento nele? Ser que o terapeuta ficaria entre os dois comentrios imaginados acima, tendendo ora para um lado, ora para outro? Ou ele diria para si mesmo que isso no questo para terapia, uma questo de valores, e cada um tem os seus? Ou diria que no funo da terapia dar orientao moral? Ou acharia que a pessoa deve ser e agir o mais possvel de acordo consigo mesma, com o que sente que bom para si, e que isso at mesmo uma questo de autenticidade? Ou ser que o terapeuta iria ficar procurando uma interpretao daquelas que, de to mirabolantes, acabam de uma vez com esse assunto incomodo? Ora, mas natural que a terapia se 32demore nos assuntos incmodos, pois sempre h muito o que pensar naquilo que incomoda. No exemplo imaginado, no mnimo seria possvel pensar em qual o significado do "outro" para aquela pessoa. O terapeuta poderia se lembrar das palavras do poeta ingls John Donne (1572-1631): Homem algum uma ilha completa em si mesma; todo homem um pedao do continente, uma parte do todo; (...) a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou envolvido na humanidade. E, portanto, nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.1 Isso quer dizer tambm que o sofrimento, a dor, a injustia, impostos sobre um homem, dizem respeito humanidade toda, a cada um, a mim, a voc. As palavras desse escritor ressoaram tanto que inspiraram dois ttulos de livros, Homem algum e uma ilha, de Thomas Merton (1915-1968), e Por quem as sinos dobram? de Hemingway (1898-1961), que se transformou em filme. Essas palavras lembram que os homens existem de tal modo que no podem eliminar de sua essncia o ter de ser sempre ligados aos outros. 1. The complete poetry and selected prose of John Donne. Coffin, Charles M. (ed.). New York, The Modern Library, 2001. 33

Na pea de Sartre, de 1944, Entre quatro paredes,2 trs pessoas condenadas ao inferno descobrem que a condenao consiste nisto: em no poder se livrar do olhar do outro, do pensamento do outro. A personagem Ins diz a Garcin: Voc um covarde, Garcin, porque eu quero que seja. Eu quero, compreende? Eu quero! No entanto, veja que fraquinha que sou, um sopro. Sou apenas o olhar que est vendo voc, o pensamento incolor que est pensando em voc. Ento, isto que o inferno? Nunca imaginei... No se lembram? 0 enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno... so os Outros. So palavras duras. Essa nossa condio existencial bsica pode mesmo ser vivida como o pior, mas tambm pode ser vivida como o melhor que temos. Isso de que falamos aqui no significa a mesma coisa que a noo heideggeriana de "ser-com". Entretanto, ______________________________________________________2. SARTRE, J. P. Entre quatro paredes. Trad. Guilherme de Almeida. So Paulo, Abril Cultural, 1977.

34as palavras desses outros pensadores nos ajudam a compreender alguns desdobramentos do que est contido naquela noo. Ao concebermos 0 "ser-com" como uma caracterstica bsica da existncia, dizemos que esse "ser-com" o outro faz parte tambm da estrutura do "ser-no-mundo". Eu levo o outro comigo, mesmo se no me importo com ele; se sou hostil ao outro; se me afasto do outro numa renncia necessria em vista de outros ideais; se me afasto do outro porque no gosto de gente; se prejudico o outro; se digo "o outro que se dane". Basta ver que, at para poder articular esses pensamentos, em todos eles, a est sempre o outro. E quando algum o elimina, mesmo concretamente, matando-o, a estar sempre o outro que algum matou. Mesmo sem lhe tirar a vida, possvel infligir ao outro aquelas pequenas mortes, quando algum intervm na vida dele, deliberada, injustamente, s vezes s por capricho ou por irresponsabilidade, matando seus sonhos e mesmo a sua capacidade de sonhar. Se voc se lembrar daquele triste dobrar de sinos, embora no os escutemos, talvez alguns sinos dobrem no s pela tristeza do outro que foi machucado, mas tambm pela diminuio humana daquele por meio de quem a tristeza e a injustia se instalaram no mundo, e tambm pelo mundo que se tornou mais feio. Terapia um pouco isto: uma rara ocasio de aprofundar o pensamento em coisas que, 35 primeira vista, parecem ser simplesmente questes de opinio, j resolvidas, mas que, na verdade, precisam ser pensadas. Naquele exemplo em que o paciente se prope a passar por cima do colega, inventando coisas sobre ele, como se posiciona o terapeuta? Ser o caso de bancar o grilo falante do Pinquio e dizer que ele no est sendo honesto com o colega e isso errado? Ou ser que ele vai ficar s no clssico "apontar": parece que voc precisa estar sempre em destaque, na frente de tudo; voc no tolera frustrao; parece que nada pode se interpor entre voc e seus objetivos; voc no consegue ver ningum alm de voc e nada alm de seus interesses, etc. O paciente dir ainda alguma coisa mais e ... no se fala mais nisso - que alvio! -, esse assunto incmodo acabou; na prxima sesso ele trar outra coisa para falar. Um terapeuta com mais pacincia e sensibilidade talvez ache um modo de manifestar a ele a sua estranheza por uma atitude to desleal, pergunte se isso no o incomoda e, dependendo da sua resposta, no diga mais nada. No por achar o assunto sem importncia ou para no ser moralista, mas porque reconhece que h horas em que falar precipitadamente estraga tudo. H certas falas do terapeuta cujo efeito a banalizao de uma coisa sria. 36 No exemplo suposto, ainda no houve tempo para a compreenso do que significa tal comportamento para aquela pessoa em particular. Qual o sentido mais profundo disso? O paciente expressou o que para ele tem valor e at contou o que faz concretamente para conseguir seu objetivo. Mas, alm disso, que outras coisas ele valoriza? O que mais constitui a sua existncia? Aonde o leva esse seu modo de ser? Dentro de que contexto de significados o que ele descreve faz sentido? E o terapeuta j tem idia desse contexto de significados que o mundo dele? Ser que aquilo que ele disse que seu maior valor mesmo o mais importante ou, quem sabe, ser um meio para outra coisa, que representa at mais, outra coisa que ele ainda no conseguiu ver e, se conseguisse v-la, talvez a buscasse de algum outro modo? Ento, preciso calma, facilitar que essa conversa se prolongue que puxe outras, e talvez isso leve tempo. Com aquele terapeuta que se apressa em dizer qualquer coisa, uma dessas coisas prontas que vm cabea, o paciente se apressa em responder tambm qualquer coisa: "Esse o meu jeito mesmo, assim que eu sou. E da?". O terapeuta ainda pode entrar com possveis explicaes: deve haver muita insegurana por trs dessa sua necessidade de ganhar sempre; voc precisa de um cargo importante para sentir que vale alguma coisa; O outro sempre visto por voc como uma ameaa, e voc 37tem necessidade de destruir essa ameaa; voc continua como uma criana que precisa mostrar para os pais o quanto "o bom"; voc precisa ser o primeiro para poder superar seu pai. E vai por a afora. Mas o que resulta de conversas pr-fabricadas desse tipo? Pois se eu, que no conheo esse paciente, visto que ele nem existe, acaba de ser inventado, posso dizer essas coisas sobre ele, por a voc pode ver o quanto determinadas falas de terapeutas so estereotipadas: valem para qualquer paciente e no valem propriamente para nenhum. Por isso que a terapia deve ser um trabalho artesanal, de criao exclusiva para aquele paciente, e no um produto pret-a-porter. Suponha que o terapeuta ouviu o que o paciente disse, conteve-se, e parece que agora ele quem tem um problema. O que ele pensa sobre o ato de, deliberadamente, prejudicar outra pessoa para se sair bem? Provavelmente, ele acha que isso no certo. Mas isso um valor dele. E os valores do terapeuta podem afetar a terapia? No funo da terapia dar lies de moral. Mas prprio da terapia lidar com as questes importantes que afetam a existncia do paciente. E aquela questo trazida pelo paciente, que representa sua maneira de ser-no-mundo, de ser-com o outro, isso importante? Se for importante, preciso cuidar dela. Mas importante 38por que? Ser que porque preciso evitar que as pessoas sejam prejudicadas pelos espertos da vida? (No caso, o colega do paciente.) Embora haja a uma boa inteno, isso foge do prop6sito da terapia, no o que ela se prope a fazer (porque no especfico dela e porque no somos onipotentes ). Nosso mundo est sendo aquele do vale-tudo, do salve-se-quem-puder, e isso ruim, mas, ainda assim, o compromisso da terapia , em primeiro lugar, o cuidado do paciente. Quando o paciente entra em sua sala, o cuidado dirigido a ele; o mundo l fora est fora; mas lembre-se de que o paciente ele mesmo um mundo, e, quando voc cuida bem dele, do mundo que voc est cuidando - homem algum uma ilha. Voltando pergunta acima, por que, ento, importante lidar com o assunto trazido por aquele paciente? Se no para proteger os outros, se o paciente, ao agir daquele modo, est de acordo com o que ele acha que d sentido vida dele, se lealdade um valor do terapeuta e no do paciente, por que, ento? No seria mais apropriado nos mantermos na neutralidade, imparcialidade, na indiferena? Mas como manter indiferena diante de certas coisas? possvel dizer que tanto faz gostar ou no de futebol, mas no indiferente que algum mate o torcedor contrrio quando seu time 39 perde; tanto faz comer pera ou ma, mas no pode ser indiferente ver algum, a seu lado, passar fome; tanto faz preferir cerveja ou vinho, mas voc no vai ficar indiferente se seu filho estiver se tornando alcolatra, com cerveja, vinho ou outra coisa. Aquelas situaes que agridem os significados mais importantes que temos no suportam indiferena. Elas solicitam interesse, solicitam cuidado. Mas aquele relato do paciente mexe com algum significado importante para que merea ser cuidado? Em primeiro lugar, para o terapeuta que estou imaginando, mexe com algo que significa muito para ele: a existncia de seu paciente. Mas por que esse terapeuta se preocupa, por que ele v naquele modo de ser que descrito pelo paciente algo que solicita o seu cuidado? O paciente diz que est fazendo o que acha certo, parece que no est sofrendo nem um pouco e at vai se dar muito bem. Ento, por que no olhar esse "pisar no outro", descrito por ele, com neutralidade? que esse terapeuta tocado quando se aproxima de uma existncia que, entre tantas outras possibilidades, desenvolve exatamente essa que a atrofia. Mas atrofia por que? Seu paciente vai pisar no outro, vai conseguir o cargo, chegar ao topo da carreira, ganhar muito dinheiro, comprara o que quiser, viajar muito, ter as mulheres mais lindas. Ser que o terapeuta 40acha isso pouca coisa? No, at coisa demais. Mas seu paciente d uma amostra do muito pouco que ele sabe fazer para ser feliz. Se sua existncia, de acordo com a amostra que ele d entrar nessa bitola, sempre haver mais uma meta a ser atingida, provavelmente pelos mesmos meios, e sempre haver outros pisados ao longo do caminho; e sempre haver outros de quem ele talvez quisesse se aproximar ou que ele quisesse manter junto de si, e que vo se afastar dele. Se existir e "ser-com" o outro, que forma triste essa de levar o outro consigo em sua vida: sempre o outro que se precisa driblar, o outro que vai servir de ponte para outra coisa, o outro que no est no seu corao, o outro em cujo corao no se consegue estar. Se existir "ser-no-mundo", como devem ficar encolhidos os significados de um tal mundo. Que significados pode ser capaz de dar para as palavras amor, amizade, compaixo, respeito, solidariedade, vida, vida humana, Terra, algum cujo grande objetivo ser o primeiro a qualquer preo, o mais bem sucedido, o poderoso? Essa no a nica, mas uma das formas de se empobrecer uma existncia. Mas por que chamar de pobre a existncia de algum cuja vida caminha em direo ao sucesso? Talvez porque essa existncia siga em frente como aquele cavalo que, com uma cenoura pendurada a sua frente, marcha sempre visando a cenoura, e, com viseiras, no 41enxerga mais nada ao longo do percurso. Pisa no que estiver frente e segue; periodicamente come uma cenoura, e sempre aparece outra diante dele que o obriga a continuar. Essa busca da cenoura, isto , do sucesso e do poder, extremamente auto-estimulante e acaba por ser predominante na vida, porque o sucesso exige muito empenho para ser mantido, o poder exige vigilncia perene. Por isso, esse um modo de ser que tende a se tornar absorvente, e o restante da existncia fica atrofiado. Isso 0 que a torna pobre. Talvez seja esse o motivo pelo qual o terapeuta, ao pensar no desdobrar-se da existncia daquele paciente, sente que aquela sua fala indica algo que precisa ser cuidado. E, como a existncia do paciente tem significado para ele (0 terapeuta), esse um daqueles casos diante dos quais difcil permanecer indiferente. Ento, diante daquela fala do paciente, o terapeuta ouve... e depois? Deixa que ele continue a falar, a abrir a sua vida. Ser que ele se limita a ser o cara capaz de ser desleal com seu colega? E do que mais a vida dele feita? Ele ter outros sonhos? o que ser que ele j sofreu? o que di nele? ou ele no capaz de sentir que algo di? Mas, de qualquer forma, ele deve sentir que algo est difcil, pois, afinal, ele procurou a terapia. Por que ser que ele procurou a terapia? Abrir tudo isso leva tempo. E o tempo, na terapia, para isso mesmo; ocasio para 42que a vida se mostre, com ele que contamos para fazer a fenomenologia de uma existncia; o tempo pode trabalhar a favor da desocultao. Mas aquilo que na desocultao pode se dar s se d quando encontra a abertura humana que o acolhe. O terapeuta est l para ser essa abertura, numa disponibilidade para a compreenso daquilo que chega e se mostra; daquilo que no se mostra diretamente, mas se insinua, e, com pacincia, acaba por aparecer; e tambm daquilo que nem sequer se insinua, visto que dele nem podemos dizer que "", mas que passa a "ser ll quando pode, enfim, articular-se na linguagem - a "linguagem" a morada do ser" -; e, para isso, vai ser preciso mais pacincia ainda. Pacincia no aquele esperar flutuante pelo momento em que, enfim, entre em cena algo suficientemente interessante em que voc se digne concentrar sua ateno. Essa pacincia desatenta desinteresse por quem est com voc na sala. Tudo que se passa ali merece uma ateno concentrada. Mesmo aquela fala do paciente que pode, primeira vista, parecer uma evaso das coisas mais srias que pode mesmo ser isso, precisa ser bem ouvida. No sem sentido o seu aparecimento. Tanto que de umas coisas, e no de outras, que ele prefere falar em seus desvios. Por mais que sua fala, s vezes, seja impessoal e distanciada do si-mesmo, ela conta sempre algo do paciente. 43 A pacincia e pronta; atenta no s ao que dito, mas ao como dito, a voz mais solta ou embargada, aos rodeios, aos desvios, aos silncios; e atenta aos gestos do paciente, a sua postura. Essa pacincia a que permite estar em sintonia com a tristeza dele e, s vezes, sem achar que isso perder tempo, poder rir com ele - a terapia no feita s de lgrimas -, quando naquele dia o paciente traz o seu lado bem-humorado e as coisas boas da sua vida, porque isso tambm faz parte da vida dele. A boa pacincia faz parceria com o tempo, no o apressa, mas aproveita todas as deixas que ele d, no desperdia oportunidades. E, para isso, preciso que no se esteja ansioso para "mostrar servio" - a ansiedade faz enxergar torto -, mas disponvel o tempo todo. Talvez um bom nome para essa pacincia disponvel e envolvida seja serenidade. E a serenidade que facilita o pensar que essencial na terapia. Este diferente daquele pensar que consiste em colocar o que se apresenta em termos de um problema - equacionar o problema, como dizemos -, levantar as alternativas, examin-las, calcular risco e vantagem de cada uma, optar pela alternativa que melhor soluciona o problema, isto , que acaba com o problema, e do modo mais rpido possvel, de preferncia. Solucionado esse, passamos para outro. Diante de algumas situaes possvel fazer isso. 44 Mas como seguir esse esquema com algum que sofre a decepo de um abandono, de uma perda muito grande; que se depara, de repente, com uma impossibilidade arrasadora de todos os seus planos; ou algum que, como aquele paciente que imaginei (e larguei l atrs, nesta conversa, diante do terapeuta), nem sequer v o seu modo de ser como uma questo a ser pensada? Voc j tentou colocar uma situao dessas naquele esquema de pensar que resolve problemas? Como que se faz isso? Eu no sei. So experincias da vida que precisam ser vividas, pensadas, e, aqui, o pensar de outra ordem; e se forem experincias muito amargas, vai ser preciso curti-las, naquele sentido em que dizemos que a cidra um certo tipo de laranja tm de ser curtidas, por algum tempo, deixando-as numa gua que vai sendo trocada at que percam todo o amargo, para depois serem transformadas em doce. Jung tem razo ao dizer que h problemas na vida que no so solucionados, so ultrapassados. Agora, voltando quele terapeuta diante do seu paciente, que mesmo que ele vai fazer alm de ouvi-lo cuidadosamente, de favorecer que a existncia dele se mostre o mais possvel, de, junto a ele, compreender e explicitar os significados que compem o seu mundo, de alargar sua capacidade de ver significados, de ver o 45sentido ou 0 rumo que sua vida segue, de repensar com ele o que, na verdade, ele quer fazer de sua vida? Alm disso, tudo, o que mais deve ocorrer na terapia? Talvez algo que no foi dito aqui, mas que, certamente, j foi se dando no decorrer do tempo, pois terapia tambm isto: possibilidade de algum perceber que tem do seu lado uma pessoa que o conhece bem e que confia na sua capacidade de mudana, caso ele sinta que quer modificar algumas coisas da prpria vida. Se o terapeuta tem um fazer que contribui para que algumas coisas aconteam, o que isso que, concretamente, constitui esse fazer? o que se faz ouvir e falar? Mas, ento, e s uma conversa! mesmo s uma conversa, muito especial, em que se exercita o essencial do conversar: ouvir, falar, silenciar. E olhe que isso no fcil! No fcil ouvir uma coisa at o fim, sem ficar interrompendo, sem querer antecipar o que o outro pretende falar; no fcil achar a linguagem apropriada ao falar; no fcil silenciar nem suportar silncio. Sobretudo, no que diz respeito fala do terapeuta, ele precisa prestar muita ateno no sentido dela, isto : por que ele est dizendo tal coisa para este paciente? A fim de que? Ao dizer isto para o paciente, o que ele pretende? Mostrar que est prestando ateno? Mostrar que conhece uma teoria que explica isso? Fazer por merecer 46o dinheiro que ele paga - ora, afinal, precisamos ter alguma coisa para dizer? E pelo costume de ter sempre algo interessante a dizer? s para que o outro veja como ele perspicaz? Ele quer mostrar que sabe mais que o paciente? E isso uma demonstrao de poder? E, no caso de ele j ter compreendido algo a respeito do paciente, mas algo cuja compreenso, pelo paciente, possa ser ainda prematura, por que a pressa de falar sem considerar antes se o momento? Ele faz isso em nome do que? Ser em nome da verdade? E o que o paciente vai fazer com isso? Com calma, vai chegar o momento em que aquilo vai poder ser dito, vai dever ser dito e, embora possa doer, vai fazer sentido para o paciente. O terapeuta deveria ter cuidado tambm ao falar, apressadamente, determinadas coisas que, no momento em que o paciente est vivendo, podem ser mal compreendidas por ele. Por exemplo: O paciente diz que tem vontade de fazer algo que, por respeito a determinadas regras ou convenes, ele mesmo acha que no deve fazer; o terapeuta, ento, com a inteno de aproxim-lo daquilo que mais "propriamente" ele - daquilo que talvez at sejam os verdadeiros motivos pelos quais ele no faz aquilo que diz desejar fazer -, na pressa, pergunta: "E por que no faz?". Para o terapeuta, essa pergunta tem todo um sentido. Mas, para o paciente, isso pode soar como: "Pois faa!". E o paciente, em seguida, vai e faz. 47De uma hora para outra, sem tempo de ter sido colocado nada no lugar, o terapeuta derrubou um limite que, embora a partir da "impropriedade", estava tendo a funo de manter alguns significados muito importantes na vida do paciente. O terapeuta faz isso em nome do qu? Ele no podia esperar que o paciente, aos poucos, chegasse aos verdadeiros motivos do seu fazer ou do seu no fazer, chegasse aos seus porqus? O terapeuta cuidadoso no falar corre menos risco de dizer bobagem e de falar fora de hora. D para vermos que essa conversa que constitui a terapia e especial, e delicada, porque o que est em jogo a existncia de algum que, em princpio, confia no terapeuta. Isso no quer dizer que o tempo todo tenha de ser uma conversa sisuda, profunda, sempre centrada num tema srio. Uma sesso comporta alguma brincadeira, algum comentrio leve sobre um assunto qualquer. Com alguns pacientes, essas coisas aparecem em algum momento da sesso, e podem at ajudar na formao de um vnculo facilitador de confiana; podem favorecer a entrada em assuntos mais srios; mas, mesmo que no consigamos essa entrada, no foi tempo perdido. Provavelmente, naquele dia, o paciente precisava daquela vivncia mais descontrada com seu terapeuta. Ela no ter sido intil, pois, numa conversa aparentemente ftil na 48terapia, muito do paciente se mostra, e isso, num outro momento, vai ajudar na compreenso que o terapeuta tem dele. Essas pequenas falas "sem importncia" que podem acontecer numa sesso, que terapeuta e paciente sabem que so pequenos parnteses no desenrolar de uma hist6ria sofrida, no so elas as bobagens que devem ser evitadas na terapia. Bobagens so algumas coisas sem nexo, deslocadas ou inadequadas, e, o que pior, fantasiadas de coisa sria, que so ditas por alguns terapeutas. Tambm uma outra coisa a ser considerada que, com alguns pacientes, no cabe nenhuma brincadeira. O terapeuta precisa discriminar as situaes. Algumas pessoas podem se sentir pressionadas a ter de descobrir algum sentido oculto em qualquer coisa dita pelo terapeuta. s vezes, a dificuldade daquele paciente exatamente esta: poder perceber diferenas entre os contextos em que as coisas so ditas. Bem, se terapia uma conversa, mas uma conversa muito especial, ser que h uma tcnica definida para o seu acontecer? Se voc entender tcnica como um jeito de conduzir a sesso (por exemplo: permitir-se ou no fazer perguntas; responder ou no a perguntas mais diretas feitas pelo paciente; fazer ou no interferncias em 49seus relatos; dizer algo a cada momento em que voc percebe que aquela fala do paciente faz sentido para voc ou deixar para mais no final da sesso fazer um apanhado mais amplo, etc.), claro que sim, e cada terapeuta vai se sentir mais vontade de um jeito, vai fazer isso de uma maneira. Nesse caso, poderia ser dito que cada terapeuta desenvolve uma tcnica, ou seja, o seu jeito de estar na sesso. E, alm do fato de cada terapeuta desenvolver um modo de trabalhar que o mais propriamente seu, esse seu modo pode precisar se adequar s condies diversas de cada paciente. Por isso, importante a troca de experincias entre terapeutas. Isso permite saber como o outro trabalha e pode ser enriquecedor para todos. Mas o que vai sair enriquecido ser sempre o jeito de cada um. Mas se voc entender tcnica no seu sentido atual da poca chamada tecnolgica, a resposta para aquela pergunta no, pois aqui tcnica a aplicao pratica de um conhecimento cientfico-terico a um campo de atividade. Ela pode ser traduzida em um conjunto de regras ou procedimentos que tem em vista um resultado; tais procedimentos so o mais possvel, padronizados. cincia aplicada numa situao concreta. E como falarmos em cincia aplicada quando o trabalho que fazemos se fundamenta nos pressupostos da 50fenomenologia? Qual a teoria cientfica a ser aplicada? Pois teoria cientfica (a no ser que estejamos falando em cincia num sentido muito amplo, em que estariam includos conhecimentos de vrias naturezas, mas a ento j teramos sado do mbito da tecnologia atual) um conjunto de hipteses sistematicamente organizadas, que pretende, atravs de sua verificao, confirmao ou refutao, explicar uma determinada realidade (por exemplo: a teoria da relatividade, a teoria da evoluo). As cincias naturais correspondem bem a essa definio de teoria cientfica. Compreendemos que aquela psicologia, que tem como seu objeto de estudo seja o comportamento humano, seja o funcionamento cerebral em sua relao com os aspectos mentais, seja um psiquismo concebido como uma estrutura regida por leis - de qualquer forma, sempre algo que possa ser equiparado, em sua condio de objeto de estudo, aquele das cincias naturais -, aspire ao nome de cincia e merea-o, mesmo que nem sempre possa ser uma cincia rigorosamente experimental. Ela prope hipteses, procura verific-las, pretende chegar a leis explicativas de um fato. Est interessada em explicar mecanismos de funcionamento, em estabelecer relaes causais de algum tipo. A psicologia que faz isso tem sua razo de ser, ela nos informa sobre muita coisa que diz respeito ao homem. 51

S como exemplo, muito importante o que aprendemos, desde Skinner, sobre o papel do reforo na explicao do condicionamento operante, sempre to presente. E a psicologia comportamental no parou de evoluir. Mas se voc escolheu o referencial da fenomenologia para trabalhar, e ainda mais especificamente a Daseinsanalyse, voc no est trabalhando com base numa teoria cientfica de psicologia (o que no implica ser contra a cincia nem ficar impedido de usar informaes provindas de qualquer teoria de psicologia quando sentir que elas vo ajud-lo a compreender alguma coisa do seu paciente). Se a tcnica a aplicao de uma teoria cientifica em vista de um resultado, e no estamos partindo de uma tal teoria, de onde vamos derivar uma tcnica? Dizer que no partimos de uma teoria cientfica, nem mesmo de uma teoria "cientifica" que possa ter tido inspirao fenomenolgica, no significa que trabalhemos sem referncias a priori, num vazio intelectual, numa improvisao irresponsvel. Ao contrrio, trata-se de um fazer que exige uma fundamentao de outra natureza e muita responsabilidade. Num dizer mais rigoroso, o fenmeno com o qual lidamos no um "psiquismo", que precisaria de uma teoria psicolgica cientfica para explic-lo. Lidamos com o fenmeno da existncia, e, segundo a concepo de que 52partimos, a existncia , em cada caso, a minha, a sua, a do paciente em sua sala. Ora, embora em outros tempos cincia j tenha significado algo diferente, no mundo em que vivemos damos o nome de cincia elaborao de um conhecimento que trabalha com hipteses que devem ser verificadas, que estabelece suas condies de refutabilidade, que usa procedimentos estatsticos, que chega a leis gerais. Voc acha que a fenomenologia faz isso que a cincia faz? Como ela poderia fazer cincia, tal como est e compreendida, com caso nico? A chamada teoria cientifica, tal como descrita acima, no ponto de partida nem de chegada da fenomenologia. A pesquisa fenomenolgica precisa buscar a sua especificidade. E com paciente em nossa sala, o fenmeno que buscamos compreender e explicitar, para ele principalmente, a existncia dele. Se estivssemos ancorados em uma teoria, talvez isso facilitasse nosso trabalho. Como no estamos, somos solicitados a ter para cada um deles um olhar especial, nico, atento ao sentido daquela vida; mas esse olhar ser to mais profundo e apropriado quanta mais tivermos nos aprofundado na compreenso do que caracteriza a existncia humana. Essa compreenso fundamentada em tudo aquilo que, de alguma forma, nos conta o que o ser humano, ou seja: a literatura, a histria, a religio, a mitologia, a arte em geral, as informaes cientficas, as informaes 53da psicologia e, especialmente, uma filosofia que tenha como preocupao especfica uma compreenso da existncia; em nosso caso, contamos com o pensamento da Daseinsanalyse. Se o que voc faz no puder ser chamado de cincia, de acordo com o que a palavra cincia significa hoje, isso torna menor ou menos valioso o que voc faz? Por qu? Voc acredita que a cincia o nico caminho? Voc faz fenomenologia, e esse , simplesmente, um outro caminho. Algum diria: que situao! No temos uma teoria cientfica, no temos uma tcnica definida e padronizada. Ento, o que isso que fazemos? A resposta , novamente, a mesma: uma fenomenologia da existncia, e isso teraputico. Fenomenologia no uma teoria. um modo de se aproximar de um fenmeno, que se caracteriza, principalmente, por deixar que ele se mostre tal como se apresenta o mais possvel sem a interferncia das teorias j existentes sobre ele. Mas o fenmeno s se mostra quando algum olha para ele, aproxima-se dele na procura de compreend-lo e explicita-o na linguagem. Na terapia, o fenmeno em questo a existncia do paciente. isso o que se revela no decorrer das sesses. Mas por que isso seria teraputico? 54 Terapia vem da palavra grega therapeia-as, de therapeein, e tem os significados de: servir, honrar, assistir, cuidar, tratar. O cuidado com alguma coisa, por exemplo, uma planta, supe que ela deva ser plantada no solo adequado, tenha a luminosidade de que precisa, receba gua, etc. Supe tambm precisar interferir, s vezes, naquilo que est prejudicando o seu desenvolvimento: a terra que se tona pobre, as pragas que atacam o tronco que se entorta. Essa interferncia significa cuidado, e podemos dizer que tal cuidado teraputico para a planta. Mas cuidamos a fim de que? Cuidamos dela para que se torne o melhor possvel, a planta que est destinada a ser: para que ela d as peras mais gostosas ou as margaridas mais bonitas. Ou, ento, quando se trata de uma criana, algum procura dar a ela todas as condies para uma boa sade ou para que cresa bem. Isso no garante, entretanto, que ela no venha a sofrer de alguma doena, que no esteja sujeita a algum acidente. Se isso acontecer, ento, vai ser preciso interferir; trataremos dela com exerccios especiais, remdios, cirurgia, com tudo enfim que conhecido como capaz de devolv-la ao seu rumo de desenvolvimento na direo da plenitude que sonhamos para ela. Esses sero cuidados teraputicos. Num exemplo mais delimitado: algum pode ter sua mo impedida de desempenhar suas funes mais 55essenciais por causa de doenas, de traumatismos. Um cuidado teraputico tentar fazer com que aquela mo se reaproxime de novo daquilo que ela, na condio de mo, deve ser. Trata-se de devolver a ela, o melhor que pudermos aquilo que prprio da mo ou, dito de outro modo, trata-se de devolver a mo ao que ela destinada. Ento, qualquer cuidado teraputico tem a ver com o devolver, recuperar ou resgatar para aquilo que cuidado algo que diz respeito a ele e que por algum motivo foi perdido ou prejudicado; isso quer dizer: favorecer que aquilo de que se cuida retome mais plenamente aquilo que se espera dele, ao que prprio dele. Visto que aquilo de que se cuida na terapia o fenmeno existncia, e permitir que esse fenmeno se revele, compreend-lo, explicitar essa compreenso numa linguagem fazer sua fenomenologia, ser que fazer isso um cuidado teraputico? teraputico porque fazer essa fenomenologia desoculta os sonhos, as perdas, os ganhos, o sentido ou a falta de sentido da vida. E o falar disso tudo acaba por constituir a abertura que possibilita ao paciente compreender que dele a responsabilidade por sua existncia e que existir dedicar-se ao "cuidado". (Considerado ontologicamente, o cuidado" um carter essencial do Dasein, mas sua realizao ntica exatamente o difcil do existir. 56O ser humano vive o cuidado, na maior parte do tempo, em seus modos privativos, ou seja: descuidando - na negligncia -; cuidando pouco; cuidando muito de muitas coisas, mas se desviando daquilo que seria o essencial para o sentido de sua vida; destruindo o que encontra em seu caminho.) Ao falar de sua existncia, o paciente pode perceber como tem sido, em seu cotidiano, o seu "cuidar" de si, dos outros, das coisas. Quando tudo isso compreendido na terapia, aquele modo de ser cuidadoso, que realiza plenamente uma existncia, pode ser devolvido pessoa ou mesmo inaugurado por ela. Ou, dito de outro modo, aquela existncia particular pode se aproximar mais daquilo que essencial a ela, daquilo a que ela destinada, o "cuidado". Terapia tambm isto: momento de cuidado pela existncia do paciente, cuidado esse que consiste em devolver a ele, o paciente, a obrigao do cuidado. Entre os que desconhecem o que fenomenologia, h os que a consideram, como a palavra poderia sugerir primeira vista, um modo de pensar que fica "s" nos fenmenos, e isso significaria ficar na superficialidade de tudo. Esses acham que, como o fenmeno, segundo eles, mera aparncia, quem faz fenomenologia est sempre muito longe de conhecer qualquer coisa que, esta sim, mais no fundo, seria a verdade. 57 No que diz respeito ao que e fenmeno e ao que conhecer, estamos diante de questes que so da filosofia, da epistemologia. Quem trabalha com fenomenologia precisa estudar muito para saber o que est fazendo. Ao pensar nessa histria de ficar "s" no fenmeno, tendo em vista aquela fenomenologia da existncia que acontece na sala de terapia, isso me faz lembrar uma outra coisa, dos versos de Fernando Pessoa em "O Guardador de rebanhos": a ele diz que, diferentemente do Tejo, que faz pensar em lugares distantes, "o rio da minha aldeia no faz pensar em nada. Quem est ao p dele, est s ao p dele".3 paciente na minha sala como o rio da minha aldeia: quando estou com ele, "s" estou com ele. No somos eu, ele e a minha teoria; eu, ele e minhas preferncias pessoais; eu, ele e uma tcnica. S "permanecer" junto a ele j e suficientemente pleno em termos de possibilidades de compreender o que o mais importante dele, de aprofundar o prprio olhar em direo ao que mais propriamente ele. A superfcie de um rio a primeira coisa que aparece. Voc diria que ela mera aparncia? No, ela verdadeiramente a superfcie daquele rio, e est l para ser vista: provavelmente, ela reflete o cu, as arvores que _____________________________3. Pessoa, F. Obra potica. Rio de Janeiro, Companhia Jose Aguilar, 1969.

58esto ao redor; se houver peixes, alguns subiro tona; se tiver chovido muito, a gua se tornara turva, se houver poluio, a gua ser suja; pode ser at que por ali passe um barco. A superfcie do rio no menos rio, e ela no sempre igual, pois o rio corre. Ha terapeutas que ficam sempre to preocupados em descobrir alguma coisa que deve estar no fundo, sempre por trs do que est sendo dito, do evidente, que desqualificam tudo o que est diante dele. Interessante que h pacientes que acabam por se acostumar com esse estilo, e acreditam no poder do terapeuta de descobrir coisas que s ele, o terapeuta, sabe, no importa se aquilo faz ou no sentido para eles, os pacientes. De um rio, assim como de todos os objetos que ocupam um lugar no espao fsico e tem comprimento, largura e altura, fcil dizer o que profundidade e o que superfcie. Mas do fenmeno existncia, cujo ser espacial significa algo de natureza completamente diferente, j no to simples dizer o que dela superficial e o que, no seu caso, significa profundo. Temos a tendncia de achar que aquilo que a pessoa "de verdade" o profundo, e fica "no fundo", escondido at dela mesma. O que aparece, como a palavra pode sugerir, seria s aparncia. Mas para quem faz uma fenomenologia da existncia, nada da existncia mera aparncia. Ao mostrar-se, 59ela o faz como tudo aquilo que se mostra, que se apresenta: sempre ocultando e sempre desocultando algo. E h sempre alguma verdade no que se desoculta. Algum poderia perguntar: e como se conhece a verdade toda? Mas ser que algum pode conhecer a verdade toda sobre alguma coisa? Com relao ao paciente, talvez mais superficial ou mais profundo seja o olhar do terapeuta, seu modo de compreender. Uma compreenso no mais profunda porque perfura mais "camadas", mas porque abarca melhor o que se manifesta, que nunca um item isolado, mas sempre algo que deve fazer sentido dentro da rede de significados que o mundo daquele paciente. Para motivar esta conversa, tnhamos imaginado aquele paciente que descrevia para o terapeuta o seu modo de ser com as outras pessoas. Isso exemplifica apenas uma das inmeras maneiras de desconsiderao pelo outro. A desconsiderao pode existir nas relaes amorosas, familiares, de amizade, ostensivamente ou no. Mas o terapeuta se depara tambm com o tipo oposto: aquela pessoa cuja existncia parece ser o banquinho onde o outro sobe para alcanar algo ou o piso sobre o qual o outro anda; ora ela um utenslio, ora um brinquedo, ora uma jia, mas sempre ao sabor dos interesses do outro, e acaba por j no saber bem quem 60Ela ; sua existncia se empobrece por falta de um sentido que lhe seja prprio. Essa forma de ser no se confunde com aquela da pessoa solcita, solidaria, atenta s necessidades do outro, o que pode implicar mesmo algum sacrifcio pelo outro; nesse caso, a pessoa sabe que seu ser solcito diz respeito a ela, d sentido sua vida. Quando esse modo de ser trazido para a sesso, podemos perceber que ele surge numa afinao que indica que tal pessoa est em paz com o que faz. Ao contrrio, aquele se deixar usar, que caracteriza a pessoa que assim porque no consegue ser de outro jeito, surge misturado com um sentimento em que transparece um qu amargo, mesmo quando disfarado por uma aceitao. O terapeuta compreende o sentimento da pessoa e teria vontade de que ela percebesse logo o que acontece e mudasse sua forma de ser. Mas a vida do paciente diz respeito primeiramente a ele mesmo, e ele quem primeiro conhece seus limites, quem sabe se quer ou no fazer mudanas em sua vida, e, no caso de querer, saber a hora de faz-las. O terapeuta deve se lembrar de que aquele jeito de ser do seu paciente est vinculado a outros significados da sua vida: por exemplo, aquele pode ser para ele, que conhece bem a pessoa com quem convive, o nico meio que encontra para garantir algo 61importante na sua vida; pode significar o quanto ele se percebe limitado; pode representar a necessidade de aceitao de um destino previamente traado, etc. Ento, no simples para algum alterar algo j instalado em sua vida; as possibilidades de mudana podem parecer muito assustadoras. H pacientes que querem e precisam se queixar da vida que levam, durante muito tempo, e no vislumbram nenhuma possibilidade de mudana. O terapeuta poderia se perguntar: "Mas, ento, por que ele no para de se queixar?". Talvez porque ele precise daquele espao para isso, precise de algum que possibilite que ele fale e escute a si mesmo descrevendo a prpria vida, e assim possa, aos poucos, acreditar que a vida dele e mesmo aquilo que ele descreve, ou seja, no o que ele deseja para si. Pequenos toques do terapeuta podem ajud-lo, ao menos, a perceber que ele tem uma questo a ser pensada, uma questo a ser cuidada: a sua vida. So muitos os motivos pelos quais as pessoas sofrem: umas, porque so abandonadas, outras, porque precisam abandonar algum; umas, porque no tm opes de escolha, outras, porque no conseguem se decidir entre tantas opes; algumas trazem uma histria diante da qual pensamos: "Mas como ela agentou isso?". Diante de outras, demoramos a perceber por que esto to infelizes - mas elas esto realmente infelizes. 62 Alguns reconhecem que, vista de fora, a vida deles parece muito boa, at privilegiada, quando comparada com os sofrimentos de certas pessoas; mas saber disso no impede que eles estejam muito infelizes. Sabem que esto deprimidos, que esto entediados, que no esto se agentando. O sofrimento no d para ser medido e pode quase nem ser notado por algum mais distrado. Uma arvore pode cair despedaada por um raio ou esmagada por uma grande pedra, e todo mundo v. Uma outra, a gente quase nem percebe, mas ela vai perdendo o vio e, l um dia, est seca. Foi prejudicada por parasitas ou por pragas que se instalaram nela. Acontece isso tambm com algumas plantas que comeam a murchar em seus vasos. So atacadas por pulges, por cochonilhas, que lhes roubam o vigor. s vezes, demoramos a perceber o que est acontecendo; e como difcil, depois, livrar a planta dessas pragas quase invisveis! Com as pessoas tambm se passa algo assim. Podem ser invadidas por certos sentimentos, certas vivncias de mgoa, de desamor, de desencanto, que parecem insignificantes, mas, como as plantas, elas tambm murcham; mais outra forma de uma existncia empobrecida. Voc pode ter em sua sala algum que est assim, quem sabe tambm perdendo o vigor da vida. uma moa 63 que dispara a falar, como se estivesse passando em revista a sua vida e, j no fim da sesso, diz, entre outras coisas: "Mas est tudo certo, tudo no lugar, tenho tudo, mas sabe como , fica sempre uma coisa que eu no sei bem o que , mas no me falta nada; claro que tenho uns probleminhas com as crianas, voc sabe o que criana, mas isso todo mundo tem, no ? s no tendo filho, mas a tambm a vida ia ficar sem graa; nossa, no sei o que seria de mim sem eles; as vezes eu falo isso pro meu marido; ele diz que eu sou exagerada; homem meio desligado chegado a romantismos, diz que isso bobagem; o que interessa que tudo o que ele faz pra gente, e verdade mesmo, ele no deixa faltar nada em casa, no posso reclamar, tenho at medo de ser injusta, nem sei por que estou falando disso; mas, sabe, ele diferente de um outro cara que eu namorei quando eu era mais menina, ah ... , muito diferente; j sei, acho que estou falando disso porque eu sonhei com esse cara ontem, cada sonho bobo que a gente tem, mas isso coisa do passado; minha me diz que guas passadas no movem moinhos, o que interessa o dia de hoje; e, alis, por falar em hoje, no sei o que vou mandar minha empregada fazer pro jantar; elas nunca sabem, todo dia isso; eu no devia 64nem reclamar, tem gente que nem tem o que comer e eu aqui reclamando; vida de dona de casa essa; tambm, quem mandou eu largar o meu trabalho de professora de ingls quando eu casei, eu gostava, mas at que foi bom largar, eu no ganhava grande coisa mesmo; tenho uma amiga que continuou dando aula, trabalha o dia todo, de noite ainda tem que ver a lio de casa do filho dela; tambm o menino est ficando insuportvel, dando o maior trabalho, tambm, com a me fora o dia todo; pelo menos os meus esto indo bem na escola, eu estou ali o dia inteiro, presente, sou o tipo da me presente, essa culpa eu no tenho; criana, se a gente larga, voc no sabe o que vai ser, ainda mais nos dias de hoje; diferente de quando eu era menina, minha me era legal, mas no dava moleza; cheguei a apanhar uma vez do meu pai, eu nem merecia daquela vez, mas eu era meio maluquinha mesmo, at que pelo menos eu aproveitei meus bons tempos; sabe que uma vez eu at ganhei um concurso de dana no colgio? Eu adorava danar, era bem diferente de hoje, at que eu criei juzo, agora tratar de esperar que as crianas cresam mais, quem sabe meu marido resolve viajar comigo um pouco pra qualquer lugar a; o problema vai ser ter com quem deixar os meninos; bom, mas at l se resolve, no h nada que no se resolva no ? S pra morte que no tem remdio, o resto a gente vai levando, mas, sabe, tem hora que no sei o que me65d, parece que eu no agento, eu perco a pacincia com os meninos, depois fico com d, eles no tm culpa, mas que eu fico estressada, no sei por que; mas deixa isso pra l; nossa, falei muito hoje, acho que j deu o nosso tempo". E agora? Voc ouviu tudo? Ouviu nas entrelinhas? difcil, no ? 0 que foi feito daquela menina que adorava danar? Nada. Ou melhor, dela, alguma coisa foi feita, sim essa mulher que est murchando, tomando-se amarga -, e no demora o dia em que algum vai dizer a ela: "No t dando pra agentar essa tua depresso; para de ser chata!". Imaginei essa moa falando daquele jeito, em disparada, sem poder se deter nas suas mgoas. Por que ser que ela fala assim? Em trs minutos ela passa por alto sobre seus dissabores, pequenos dissabores, diria algum. Ningum morreu ningum est doente, filhos perfeitos, marido bom, no falta dinheiro, tem de tudo; ela quer o que? Ser que ela pensava que ia para sempre continuar aquela vidinha do colgio - ah, minha filha, a vida no um salo de baile, no; chega a hora em que preciso enfrentar a realidade, e a dela, por sinal, muito boa. Tomara que ela enfrente a realidade mesmo, que ela veja o que est sendo feito de sua vida. Tomara que o seu 66terapeuta, aos poucos, consiga que ela possa integrar na sua vida de mulher adulta tudo o que havia de vivo naquela menina que gostava de danar. Naquela sesso, de relance, ela indica algumas coisas que fogem daquele "est tudo certo" ou talvez at esteja - tudo em volta est deserto, tudo certo... como dois e dois so cinco -, tal como na msica do Caetano. Voc v o esforo que ela faz para se certificar de que no se arrepende de ter deixado sua profisso? O desencanto com o jeito seco do seu marido? Uma certa culpa por estar "reclamando de barriga cheia"? Voc v a impresso triste de que agora tarde e os sonhos ficaram definitivamente para trs? E h mais coisas ainda. trabalho para muito tempo de terapia. E ela diz tudo em mais ou menos trs minutos! Voc j pensou se o terapeuta dessa moa, no digo em trs minutos ou em trs meses ou num tempo qualquer predeterminado, resolve que, para o bem dela, ela precisa mudar de jeito? D para imaginarmos uma fala mais ou menos assim: "Voc precisa se abrir com seu marido e cobrar dele mais romantismo no casamento, dizer a ele que ele precisa se dedicar menos ao trabalho e mais a voc, que ele precisa ajudar com os filhos; faa valer seus direitos. E aquele ex-namorado, voc nunca mais o viu? Voc j pensou que talvez tenha escolhido a pessoa errada para marido? Ha tantas escolas de dana 67

por a; por que voc no volta a danar? Mas um absurdo voc ter parado de trabalhar porque ganhava pouco naquela poca; acho que voc deixou o trabalho para fazer a vontade dele, que era ter a mulher dentro de casa. Voc no pode ficar assim to grudada nos filhos, isso vai sufoc-los, vai fazer mal para eles. "Uma mulher tem de ter sua vida prpria". E podem vir tambm os clichs: "Voc est se deixando anular como pessoa" e "no deixe que invadam 0 seu espao". Ser que esse terapeuta acredita que ele "sabe" realmente o que melhor para a paciente? E ser que ele no v que em cada uma dessas recomendaes h uma cobrana para que ela seja capaz de fazer coisas que, se pudesse, j teria feito? Ser que ele pensa que fcil para a mulher que deixou de trabalhar fora, de repente, retomar uma vida profissional? E o que ele pensa de acrescentar para ela ainda mais uma cu1pa ao dizer que o cuidado dela com os filhos e um mal que ela est fazendo a eles? O empenho apressado em dizer tudo isso a ela visa ao que? Se 0 terapeuta for capaz de pensar na sua paciente como o que basicamente ela , um "ser-no-mundo", ele vai, antes de tudo, compreender que cada uma das coisas que ela faz ou deixa de fazer, no importa se certas ou erradas, tem significados imbricados uns nos outros, imbricados em outros significados mais amplos; ele vai 68compreender que, mesmo quando uma pessoa sente que o sentido que sua vida est tomando no aquele que ela pretendia, mudar essa direo no to fcil como quando algum percebe que tomou o nibus errado, desce no primeiro ponto e toma outro. exatamente por no ser fcil essa retomada do sentido que a pessoa precisa de terapia precisa de tempo para pensar a sua vida, junto de algum cujo pensamento tenha aquele carter artesanal, aquele pensamento que dedicado existncia dela e no j pronto para mulheres modernas em geral. Nesse pensar que aprofunda significados, a pessoa tem chance de retomar sua capacidade de sonhar de novo: sonhos novos; velhos sonhos que podem ser recuperados, compatveis com o que faz parte do seu mundo agora. E quanta queles sonhos que no cabem mais em sua vida, talvez seja preciso renunciar a eles. Se ela mudar o seu modo de existir, no ter sido por cobranas externas de qualquer natureza, mas por ter se aberto a descoberta da necessidade, que inerente a sua prpria existncia, a necessidade de responder ao chamado para a realizao do que ela sente que um projeto pessoal. Aquele rapaz, exemplo do tipo de pessoa que no sabe o que respeito pelo outro, continua a terapia. Ele 69conseguiu o cargo desejado est bastante feliz com seu sucesso. O terapeuta perguntou a ele o que sentiu quando seu colega pediu demisso, j que sua situao na empresa tinha ficado insuportvel. Ele disse que se sentiu muito bem quando viu que seu caminho estava livre. Quando o terapeuta perguntou o que ele sentiria se estivesse no lugar do outro, ele respondeu: "Essa sua pergunta meio idiota, pois se eu estivesse no lugar daquele tipo, eu seria ele, eu no seria eu, eu seria um perdedor, e, nesse caso, eu responderia como um perdedor. Eu, sendo eu, s posso responder do meu lugar de vencedor". Acrescentou que, na vida, uns perdem, outros ganham, e at na teoria da evoluo a coisa assim: sobrevivem os mais aptos. Nesse dia, a sesso foi pesada para o terapeuta. Ha uma coisa sobre ele, porm, que eu quero contar para voc, s6 como curiosidade. algo que nunca apareceu na terapia dele. Um dia, reuniram-se vrios ex-alunos de um certo colgio na casa de um deles para comemorar a volta de uma amiga que havia passado anos estudando fora. Como costuma acontecer nesses encontros, foi um tal de querer saber de tudo. - E a fulaninha casou? E a sicraninha, continua bonita como era? Como est aquela, como era mesmo o nome, que estudava tudo, a "cdf" da turma? E o coisinha, o que foi feito dele? 70 Da, algum perguntou quem era esse coisinha. Ento uma das moas disse: - Ah, no se lembra? que voc mudou de escola antes, voc no estava mais l quando o apelido dele se espalhou. Era o fulano, aquele cara que uma vez roubou a bolsa da professora de francs e deixou a culpa cair naquele garoto da oitava srie, que at foi expulso; aquele que, depois de ter levado um fora daquela garota que sentava do meu lado, aquela que tinha cabelos bem pretos, espalhou pela escola toda que ela era a maior galinha, inventou sobre ela coisas to graves que algumas mes no deixavam mais as filhas sarem com ela. Lembra? Ela chegou at a apanhar do pai - No sei quem era essa menina. - Claro que voc se lembra, ela era uma gracinha, sempre alegre, e, uma vez, numa festa beneficente em que houve um concurso de dana, ela ganhou o primeiro lugar. Lembra agora? Pois , ele arrasou a vida da menina. Ela precisou sair do colgio, foi morar uns tempos com uns tios nos Estados Unidos. Na ltima vez que eu soube dela, me contaram que ela voltou falando um ingls perfeito e era professora de ingls. - Mas por que o apelido do cara? - que o nosso grupinho se revoltou contra ele, mas ningum conseguia acabar com o falatrio que ele 71comeou. Comeamos a cham-lo de o coisa-ruim, no na frente dele, claro; depois ele passou a ser o coisa, e, no fim, era s o coisinha. Veja s. Aquele vencedor que voc viu falando na terapia, que passa por cima dos outros e manda hoje naquela empresa, o coisinha. Ele nunca soube disso. Voltando ao assunto da terapia dele, outro dia, ele comentou com o terapeuta o quanto duro ter de lidar com gente invejosa. So seus irmos que deram para criar caso, por um motivo bobo. Quando teve certeza de que aquele cargo seria dele, j comeou a gastar, contando com o dinheiro a mais que iria ganhar. Mas, como isso demorou uns trs meses, obviamente ele teve de fazer dvidas. Os irmos esto achando ruim, dizendo que ele obrigou a me a assinar cheques para saldar suas dvidas. Mas a quem mais ele poderia recorrer? No vai fazer falta para ela. E, alm de tudo, o dinheiro dos pais dos filhos, e ele est precisando agora. Ser que ningum entende isso? Seu terapeuta tem feito tudo o que possvel para compreender essa pessoa. Ele e o paciente de quem poderia ser dito: est em boas mos. Mas o terapeuta sente que a h algumas barreiras intransponveis. 72Em outro dia ele falou: - Cara, tenho sado com uma gata, coisa fina; no do meu nvel social, alis, est bem longe disso, mas bem produzida, de causar inveja quando saio com ela; corpo perfeito, e o rosto, ento, difcil um mais bonito; mas no nada srio, mesmo porque, mulher pra mim s muda a embalagem; so todas iguais, gostam de carres, de bons restaurantes, presentes caros, e, como amante, eu no deixo nada a desejar. Enfim, estou me sentindo timo. Em seguida, pela primeira vez, ele falou de um fato acontecido em seu tempo de colgio. - S uma vez, eu quase gostei de uma menina da minha escola; ela era super gracinha, mas boboquinha como ela s; era aquele tipo que sonha com casamento, que diz que um dia quer ter filhos, enfim, aquele tipo que voc deve saber como ; um dia, ela teve a cara-de-pau de me dizer que, embora me amasse, embora eu fosse todo carinhoso com ela, achava que eu tinha um jeito estranho de pensar sobre as coisas da vida, s vezes ela tinha medo de mim, e no ia ser legal a gente continuar; e terminou o namoro naquele dia mesmo, a tontinha; no era preciso ela se apressar, pois eu ia mesmo terminar logo. E, o dilogo continuou. 73- 0 que voc quer dizer com esse "quase" gostei? Ser que voc no gostou mesmo dela? - Voc ta louco? o que eu quis dizer que foi uma fraqueza, bobagem de moleque; no nego que ela era gostosinha mesmo, mas imagine s, eu gostando daquela bobinha. - Por que voc a achava to bobinha? Os sonhos dela incomodavam voc? - Esse assunto to sem sentido que nem vale a pena ser comentado. Pra que eu vou querer saber dos sonhos dos outros? Alm de tudo, isso j ficou l atrs; o que vale hoje, e a gata de hoje incrvel. Na sesso seguinte, ele chega com um p enfaixado, curativos no brao e um arranho na testa, e diz, meio brincando: - Cara, a gata deu zebra. O que vale que sou um cara de sorte. A gente estava voltando da praia, e voc sabe que eu corro mesmo, e ainda mais depois de ter tomado todas e meio chapado; s sei que eu derrapei e a gente rolou num precipcio. O carro acabou. Eu quebrei o p e tive uns cortes no brao. Mas ela, voc precisava ver, nem sei como est viva; O resto, ento, estraalhado, no d nem pra contar. Socorreram a gente, e, no hospital, eu ouvi quando disseram: "Coitadinha, essa a no vai haver plstica que recupere". Para o delegado, eu disse 74Que era ela quem estava dirigindo. Depois a me dela ainda quis reclamar; ela no tem pai. Mas uma boa grana - meu pai raspou do banco toda a poupana dele e ainda emprestou do meu tio - fez com que a histria acabasse por a ela acaba consertando um pouco o rosto, e ainda sobra aquele corpao..., ela vai aprender a se virar muito bem. - E voc no sentiu nada quando viu o rosto dela inteiro desfigurado? Ele respondeu muito srio: - Claro, eu sou muito sensvel pra essas coisas, no agento ver sangue. Senti nojo. Nesse dia, o terapeuta se sentiu muito mal e encerrou a sesso um pouco antes da hora. Desmarcou o ltimo paciente do dia e foi para casa mais cedo. Ao entrar, sua filha disse: "Oi, pai j chegou!". Ele fez um carinho demorado no rosto dela, e foi nesse momento que teve a plena certeza de que no atenderia mais aquele paciente. Mais tarde, sozinho, perguntou a si mesmo: "O que eu sinto por ele? E a resposta foi: raiva, muita raiva. Lembrou-se de suas aulas de psicopatologia, quando lhe falaram do psicopata, algum que no capaz de sentir culpa. Seus pensamentos dispararam em todas as direes: aquilo no gente, no humano, aquilo uma coisa. 75 Ele pensava: "Mas, como seu terapeuta, posso ter essa raiva toda dele? Ser que eu no deveria encarar tudo isso como a doena dele? E ser que a falha no foi minha? Ser que no fui firme o suficiente para faz-lo compreender que seus atos eram imorais? Ser que eu tambm sou responsvel pela deformao do rosto daquela garota? Mas tenho certeza de que tudo que eu sabia e que podia fazer eu fiz. Procurei compreender com ele o significado de seus atos, de seus projetos de vida; procurei por muito tempo pensar com ele e mostrar a ele sua forma de ser com as pessoas, o uso que ele faz das pessoas. Sempre ouvi com pacincia e aproveitei todas as oportunidades de dizer a ele o que me parecia apropriado dizer. O que faltou fazer? Com todos os outros pacientes que atendo eu consigo me comunicar; somos sempre ali duas pessoas conversando, eles sabem do que estou falando cada vez, eles conhecem o sentido do que falado. Algumas vezes eles dizem: "no concordo com o que voc fala, eu penso diferente"; mas sinto que estamos falando da mesma coisa. Com ele foi sempre diferente. Ao poucos comecei a perceber que ele no fazia a mnima idia do significado do que eu falava, no por falta de conhecer as palavras; at que o vocabulrio dele dos melhores, ele e superinteligente. Mas ele estava sempre de um outro lado de uma grande brecha entre ns, e eu no tinha como nem sequer jogar uma corda 76

que enroscasse do outro lado e que me permitisse, por meio dela, chegar at ele; do outro lado no havia nada que pudesse sustentar a corda que eu jogava, e ela tambm caa num vazio, num buraco enorme. Falta nele uma coisa que no sei o que . Mas falta. Curioso, aquela menina que ele namorou no tempo do colgio, sobre quem ele comentou numa das ltimas vezes que veio, parece que intuiu alguma coisa; ela percebeu algo nele que era diferente, e caiu fora. como se ele fosse incapaz de saber o que significa pessoa; ele no sabe que os outros existem que tm projetos de vida. J no entendo mais nada. Se ele incapaz dessas coisas, se isso falta a ele, onde est a sua culpa? Mas se culpa essencialmente falta, ser que a vida dele no exatamente o prottipo da culpa? Binswanger tem aquele livro, chamado Trs formas da existncia malograda. Ser que a dele no uma outra forma de existncia malograda? Aquela existncia culpada, e no naquele sentido heideggeriano da culpa existencial, enquanto o ser sempre devedor, o sentir-se devedor porque sempre falta o que realizar. Mas aquela existncia culpada, sim, porque s espalha sofrimento ao redor, que torna o mundo um lugar injusto, triste. Uma existncia culpada que no sabe o que culpa, que jamais vai se sentir devedora. J estou confuso, no sei mais o que penso, o que sinto com relao a ele. A minha raiva se misturou com o sentimento de uma profunda 77lstima pelo ser humano, que capaz de fazer tanto mal; porque esse cara gente, ele humano, isso tambm prprio do humano; mas como eu queria que no fosse assim! S sei que no tenho mais condio de tratar dele; talvez outra pessoa consiga. Amanh cedo, ligo pra meu ex-terapeuta e vou voltar pra terapia". E ele foi dormir se lembrando de um artigo que tinha lido, de um seu ex-professor, em que o terapeuta era comparado a uma lente de aumento que amplia para o paciente o que este ainda no consegue enxergar sozinho, e que seria bom que ele enxergasse. Ele disse, ento, para si mesmo: "Eu no consegui; que lente embaada devo ser!". que ele, nesse momento, no estava em condio de pensar que, por melhor que seja a capacidade de ampliar de uma lente, a possibilidade de ver tem de ser da pessoa. E aquela moa que falava sem tomar flego, lembra-se dela? Ela continua a sua terapia h alguns meses. Sua terapeuta, felizmente, no daquele jeito que eu tinha imaginado, toda aflita e cobrando mudanas da paciente. Um dia ela chegou e contou um sonho: - Eu andava por umas ruas, todas elas asfaltadas, absolutamente planas. No havia caladas dos lados. Era tudo s rua mesmo. Os carros e as pessoas se misturavam. As pessoas todas tinham capas de chuva cor de cinza. 78Eu no tinha capa. No estava chovendo, mas o cho era escorregadio. Uma rua sempre acabava em outra, do mesmo jeito, e ia tudo se repetindo. A terapeuta notou a presena da cor cinza, a presena do asfalto e a nfase com que ela se referiu ao absolutamente plano das ruas. E comearam um dilogo. - Voc gosta de cinza? - No desgosto, at acho o cinza uma cor que combina com muita coisa. Uma cala cinza, por exemplo, voc usa com uma poro de blusas. Vai com tudo, porque uma cor neutra. Mas uma cor apagada; eu no colocaria, numa festa dos meus filhos, bolas e outros enfeites cor de cinza. - E o asfalto tambm, em geral, tende para o cinza, no ? E por que ser que no sonho est destacado o fato do asfalto nas ruas? Pois, geralmente, as ruas so mesmo asfaltadas. - No sei. Mas me chamava a ateno o asfalto da rua, meio escorregadio, acho que tinha chovido. - E fora do sonho, na vida acordada, o asfalto chama sua ateno por algum motivo? - Acho timo quando o asfalto da estrada ou da rua est legal, sem buracos. Mas adoro tambm quando a gente vai pra algum stio e a estradinha de terra, contanto, lgico, que esteja bem conservada. Mas, sabe, aquela estradinha que fica colorida pelo verde do mato e pela 79Cor de algumas plantinhas que nascem espalhadas, isso eu acho muito mais bonito. Perto do stio da minha cunhada assim. Quando chove, fica um cheiro de terra molhada, uma delcia. Agora, o asfalto uma coisa rida. - O asfalto das ruas do seu sonho, molhado de chuva, no tinha cheiro de terra molhada, nem florzinha por perto. Parece que l no h nada que lembre vida. Predomina no seu sonho a aridez, a neutralidade do cinza. E o que voc acha do absolutamente plano das ruas? - claro que gosto de ruas planas. - E o que mais o plano significa para voc? Como so as superfcies planas em geral? - As coisas deslizam mais facilmente no plano. Mas tem tambm outra coisa. Quando voc sabe que uma estrada, por exemplo, no plana, voc pode ter surpresas, e at preciso ter mais cuidado na direo. J, no plano, parece que no vai haver surpresa, e isso bom, mas tambm fica montono. Me vem agora a lembrana da montanha-russa: s susto e emoo o tempo todo. Sabe que eu gostava muito desses brinquedos dos parques de diverses? - Voc repara que em seu sonho esto presentes essas coisas que lembram a aridez, a neutralidade, a monotonia, a falta de emoo? Voc diria que a sua vida, atualmente, tem sido mais ou menos assim como o seu sonho? Voc j notou que, s vezes, na sua forma de falar 80aqui, voc vai dizendo tudo num mesmo tom, meio que neutralizando tudo, nivelando tudo? como se o fato de o seu menino ter esquecido a lancheira na escola, como voc contou outro dia, ficasse no mesmo plano da mgoa sentida quando seu marido esqueceu que tinha combinado com voc que iriam sair naquela noite e voc ficou esperando toda arrumada. Lembra-se disso? Voc contou as duas coisas manifestando a mesma emoo. Ser que tudo a mesma coisa mesmo? Ser que a sua vida est to sem cor? -