Cooperação e organização em laboratório

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  • 7/23/2019 Cooperao e organizao em laboratrio

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    Preldios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 29

    Israel de Jesus Rocha

    COOPERAO E ORGANIZAO EM UM

    LABORATRIO DE TERAPIA CELULAR: NOTAS

    SOBRE UMA SOCIOLOGIA DA PRTICA

    CIENTFICA

    ResumoO presente texto tem como objetivo analisar, luz dos estudos sociais, em cincia e tec-nologia (STS) a organizao de um laboratrio e o modo como se d a cooperao entreos pesquisadores associados ao mesmo. Para tanto, as evidncias empricas partem dequatro entrevistas realizadas com os pesquisadores que desenvolvem pesquisas comclulas-tronco em um laboratrio de terapia celular. O laboratrio possui uma confi-gurao em que ao mesmo tempo est organizado em termos de projetos individuaisde pesquisadores associados, ele pode ser visto como uma unidade integrada graas aovnculo mantido por todos com o lder do laboratrio e a possibilidade de cooperaoentre os cientistas do laboratrio. Por fim pode-se perceber que muito da organizaodo laboratrio centra-se em seu lder, acentuando o seu papel articulador, bem comoa dificuldade de relaes de cooperao entre os pesquisadores.Palavras-chave: clulas-tronco; cooperao; organizao; sociologia da cincia; antro-pologia da cincia.

    INTRODUO

    Este artigo tem um duplo movimento. De um lado, ele pretende apre-

    sentar em linhas gerais algumas perspectivas do que comumente chamamos

    de estudos sociais sobre a cincia e tecnologia. Uma rea de estudos que tm

    ganhado espao entre os pesquisadores brasileiros e inspirada, sobretudo, emtrabalhos como Vida de laboratrio: a produo dos fatos cientficosde Bruno Latour

    e Steve Woolgar (1997), resultado de uma etnografia feita no Instituto Salk, na

    Califrnia, envolvendo as pesquisas com hormnios. Por outro, h uma tenta-

    tiva de discutir algumas questes de pesquisa proposta por aquela rea. Desse

    modo, o segundo movimento situa-se na descrio e anlise de dados coletados

    em um laboratrio de imunologia e terapia celular, tentando desdobrar as tra-

    mas que ligam laboratrios, cientistas em redes sociotcnicas, numa rea de

    inovao das cincias naturais.

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    Entre os anos de 2008 e 2009 foi desenvolvido o projeto 1 que originou

    dados para este artigo. Desenvolvido num laboratrio de pesquisa cientfica,vinculado a um centro de pesquisa em terapia celular, a questo central estava

    na compreenso do modo como as trajetrias dos mdicos e pesquisadores en-

    volvidos com inovao mobilizavam uma extensa e complexa rede de sustenta-

    o da cincia. Aqui h uma tentativa de analisar alguns dados coletados do pro-

    jeto, mais como uma prtica do que como um corpo de enunciados que ensina

    o caminho da razo. O projeto considerava as cincias, e no a Cincia2, a partir

    de sua vida ordinria, nas bancadas e refeitrios, entre os percursos de distra-

    o dos pesquisadores e a seriedade dos experimentos. No buscava, portanto,

    as justificativas dadas pelos cientistas para as suas pesquisas de maneira isola-

    da, mas o modo como eles construam as cincias, a partir da prtica cotidiana

    no laboratrio e alm de seus muros.

    Acompanhamos, durante um ano, o cotidiano dos pesquisadores de um

    dos laboratrios que desenvolvia pesquisas com terapia celular para tratamento

    de doena de Chagas, com visitas peridicas ao laboratrio, participao nas

    reunies de comunicao de resultados, promovidas entre os prprios cientis-

    tas, participao em encontros com pblicos externos ao laboratrio e entrevis-

    tas semiestruturadas com os pesquisadores envolvidos nos experimentos com

    clulas-tronco, tanto no laboratrio como nas aplicaes clnicas em um hospi-

    tal da rede pblica. Aqui, manuseamos as anotaes de contexto do campo e asentrevistas utilizamos dados de quatro do total de nove que foram realizadas.

    Buscou-se, nessas entrevistas, recuperar os caminhos percorridos pelos

    pesquisadores at o momento que trabalhavam com pesquisas que envolvem

    uso de clulas-tronco, elemento central de nosso projeto. Atentamos para as

    histrias pessoais, motivaes, treinamentos, diferentes experincias profissio-

    nais e relaes sociais estabelecidas, as carreiras e as contingncias que envol-

    vem a produo e a prtica cientfica no pas, imprimindo uma circulao dos

    pesquisadores entre muitos centros e institutos no Brasil e em outros pases.

    Alm destas questes relacionadas com a trajetria, procuramos evidenciar asprticas cotidianas destes pesquisadores no laboratrio, a maneira como lidam

    com as questes e problemas levantados por seus projetos individuais e os usos

    que fazem de um espao coletivo como o laboratrio.

    1 Este trabalho foi desenvolvido a partir de dados coletados durante uma pesquisa de iniciao cientfica naFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFBA.

    2 Ao estudar a prtica cientfica preciso observar uma distino elaborada por Bruno Latour (2000) entre aCincia, com inicial maiscula, essa que conhecemos apenas pelo modo que se apresenta nos manuais, nateleviso e nas jornadas de descobertas picas, e as cincias, minscula e plural, que destaca os aspectosprticos e idiossincrticos da atividade ordinria de produo dos fatos.

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    Neste sentido, h aqui um argumento terico-metodolgico originado na

    rea de sociologia da cincia e posteriormente estendido de um modo geral paraas pesquisas em cincias sociais, em que para compreender dinmicas sociais

    preciso seguir o trabalho de feitura promovido pelos atores envolvidos com suas

    prticas. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 2005) Pressuposto

    esse que permeia todo artigo. A partir desses elementos, toma-se como questo

    central desse artigo, os modos pelos quais os cientistas cooperam e organizam

    pesquisas em um laboratrio de terapia celular, considerando os elementos hu-

    manos e no-humanos que permitem tal cooperao e organizao.

    Portanto, comearemos pela delineao, em termos gerais, do que se

    chama estudos sociais de cincia, mesmo com uma complexa heterogenei-

    dade de perspectivas, que envolve o campo, e apontaremos caminhos que

    delineiam nossa perspectiva de anlise dos dados que sero apresentados na

    segunda parte do artigo.

    AS PRTICAS DE LABORATRIO A PARTIR DOS ESTUDOS SOCIAISSOBRE A CINCIA E TECNOLOGIA

    O leitor deve estar se perguntando as razes de um estudo sociolgi-

    co sobre laboratrios de pesquisa em biologia molecular. As prticas cientficasat o final da dcada de 70 eram pouco destacadas nos estudos clssicos sobre

    a cincia. Autores como Robert K. Merton (2013), Thomas Kuhn (2009) e Pierre

    Bourdieu (1969), trataram da cincia em diversas perspectivas que transitaram

    desde os aspectos normativos e os valores at a questo da produo e repro-

    duo do poder no campo cientfico, passando pelos aspectos culturais que en-

    volvem a cultura na cincia. Por mais relevantes que tenham sido as anlises

    propostas por essas perspectivas, elas ainda no trataram com detalhes os aspec-

    tos que envolvem a prtica da cincia. Pouco discutida, a dimenso prtica sur-

    gia apenas como ilustrao de argumentos que envolviam questes como valores

    e interesses e as normas que organizam e regem a comunidade cientfica.

    Diferenas considerveis nas perspectivas tornam os estudos de cin-

    cia um campo heterogneo e aqui no analisaremos os conceitos que envolvem

    cada perspectiva. Nos interessa, para este estudo, uma mudana terico-meto-

    dolgica, ocorrida em torno das pesquisas interessadas em estudar a cincia e

    suas relaes com a sociedade. A partir do final da dcada de 70 diversas pro-

    postas de pesquisa comearam a destacar o papel da prtica cientfica para a

    compreenso da cincia. Esses estudos tiveram uma considervel orientao

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    antropolgica em que muitos de seus propositores resolveram investigar a pr-

    tica cientfica a partir de um local privilegiado. O laboratrio.Os estudos sociais sobre cincia e tecnologia comearam a enfatizar

    que a produo da cincia marcada por inmeras redes que se estendem, des-

    de a organizao dos equipamentos no interior do laboratrio at os inmeros

    espaos externos a ele. (LATOUR, 2000; LATOUR; WOOLGAR, 1997; LAW, 1992)

    Polticas de financiamento, congressos, nmeros de pesquisadores envolvidos,

    camundongos e equipamentos passam a ser considerados como mediadores

    no processo de estabilizao dos fatos da cincia. No interior do laboratrio, as

    decises sobre os equipamentos adequados para realizao de determinados

    experimentos, os testes dos artigos publicados em outros laboratrios e a ma-

    neira como as decises sobre tal e qual procedimento, tecnologia e instrumen-

    to so tomadas, produzem certos efeitos tcnicos que configuram as particula-

    ridades locais desses espaos de produo de fatos. (LATOUR, 2000; LATOUR;

    WOOLGAR, 1997; LAW, 1992 KNORR-CETINA, 1983) Desde ento, no s o labo-

    ratrio se tornou um locusprivilegiado de pesquisa, como tambm outros ele-

    mentos tratados de maneira residual ganharam destaque nos estudos sobre a

    cincia.

    Diferente do ponto de vista que at ento tratava a cincia apenas em

    seus aspectos normativos e culturais (MERTON, 2013; KUHN, 2009), e em ter-

    mos de conflitos a partir de um Campo gerador de Habitus(BOURDIEU, 1969),produzindo anlises que pouco consideraram as prticas cientficas e o modo

    como os fatores sociais de produo da cincia permeavam as relaes entre

    humanos e no humanos, os estudos produzidos a partir da virada terico-

    -metodolgica sobre a cincia e tecnologia enfatizaram o carter contextual e

    contingente, inserido num processo de construo contnuo. (LATOUR; WOOL-

    GAR, 1997; KNORR-CETINA, 1983) Desse modo, muitos socilogos e filsofos

    iniciaram pesquisas etnogrficas com o objetivo de colocar sob o escrutnio da

    rea, enunciados que at ento eram interpretados a partir das perspectivas

    mais tradicionais.No lastro dos resultados dos primeiros trabalhos etnogrficos, Latour

    (2000) sugere que o caminho seja o de estudar as cincias abertas e incertas

    permeadas de fontes de controvrsias. Para isso, era necessrio superar e, em

    certa medida, estender algumas proposies j colocadas pelo programa forte

    de David Bloor (2009). Segundo este autor, para compreender a cincia preci-

    so traar um movimento simtrico de tratamento tanto do erro como do acerto.

    Apenas este ltimo era tratado quando se falava em cincia, atribuindo ao erro

    a interferncia de fatores sociais e psicolgicos, e assim explicados sociologi-

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    camente. Era preciso tratar ambos simetricamente e usar os fatores externos

    cincia tanto para um quanto para o outro. (LATOUR; WOOLGAR, 1997) O princ-pio da simetria proposto por Bloor possibilitou uma srie de investigaes sobre

    o estatuto do erro e o papel da linguagem na cincia (GILBERT; MULKAY, 2009)

    e constituiu-se como um relevante programa de pesquisa envolvendo os aspec-

    tos sociais que interferiam na produo dos fatos cientficos. Lanou, assim, as

    bases para pesquisas sobre a prtica da cincia.

    Se por um lado Bloor (2009) configurou-se como um dos pontos centrais

    na virada de perspectiva sobre a cincia, com as abordagens construtivistas

    que experimentamos relatos sobre a prtica, a partir de dados etnogrficos, em

    que tanto as explicaes para os erros passaram a ser descritos pelas cincias

    sociais, como tambm o processo de fechamento das caixas pretas e a produo

    mesma dos fatos cientficos. Este princpio de simetria proposto no programa

    forte foi de algum modo radicalizado nas etnografias, que procuravam alm de

    igualar vencedores e vencidos, simetrizar natureza e sociedade nas explicaes

    dos fatos cientficos.

    Esta perspectiva construtivista da cincia pode ser apresentada nos seguin-

    tes pontos: os objetos cientficos no se referem a entidades externas, dadas na na-

    tureza, nem se referem ao simples pensamento do cientista, mas so o resultado

    de uma fabricao. Quatro aspectos so destacados desta concepo: a) o carter

    artifactualda realidade que os cientistas lidam; b) a especificao de propriedadesdo processo de produo artifactual; c) o carter transformacional da cincia e d)

    o aspecto autorreferente das operaes construtivas. (KNORR-CETINA, 1983)

    As fontes de informao dos cientistas em boa parte so manipuladas,

    selecionadas, alimentadas, criadas, nutridas, purificadas com o fim de serem

    usadas no laboratrio. Esta seleo sugere que a natureza est menos presen-

    te no ambiente do laboratrio e que os modos como so feitas as observaes

    neste espao, com uso de instrumentos de medida, tornam ainda mais distinta

    a qualquer observao ordinria. As habilidades e a preocupao com que as

    coisas funcionem de forma prevista indicam que as atividades no laborat-rio procuram produzir mais efeitos tcnicos do que observaes da natureza.

    A observao tambm sugere uma forma de produo da prpria natureza.

    Segundo, os objetos cientficos so antes o resultado de uma constru-

    o e o que acontece neste processo no pode ser considerado irrelevante para

    o que obtido. Alm de envolver o uso de instrumentos e materiais, esse proces-

    so envolve tambm decises e interpretaes. Estas selees e escolhas no curso

    da ao sugerem que o objeto cientfico tem pouca probabilidade de ser repro-

    duzido em circunstncias diferentes. Desse modo, as selees podem ser postas

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    em questo e desconstrudas quando desafiadas, desde que outros laboratrios

    consigam reproduzir condies anlogas ao experimento original.Outro ponto destacado o carter transformacional dos objetos cient-

    ficos. Estas transformaes comumente so caracterizadas como selees feitas

    para deslocar o subjetivo para o objetivo, o fabricado no que foi encontrado, ope-

    rando um velamento dos rastros de sua produo, como Latour (2000) sugere,

    o fechamento em black box. Estes argumentos, no entanto, no apontam para

    um sentido ao qual se poderia considerar a fabricao como algo falso. A fabri-

    cao aponta para a dimenso contextual que envolve diversos elementos hete-

    rogneos, desde a produo das culturas de clulas at a aprovao dos projetos

    de pesquisa por agncias de fomento que est no cerne da prtica cientfica.

    Em Cincia em ao, Latour (2000) sugere que esses passos sejam dados

    de forma a tornar o que extremamente contingente em fatos que j possuem

    uma fora que permite transbordar seu contexto local de produo. Podem exis-

    tir como fatos da prpria natureza, em nada problemticos. Os enunciados que

    marcam o primeiro momento geralmente so afirmaes vagas em torno de al-

    gum experimento, de alguma observao da literatura. Neste sentido, uma srie

    de mediaes dos inscritores3no laboratrio produzem incessantemente provas

    e mais provas que tornam enunciados frgeis em fortalezas inquestionveis.

    Por fim, h de se destacar o aspecto autorreferente dessas operaes

    construtivas. A cincia no algo externo, mas opera como qualquer outraprtica social. Ela se refere s suas condies de reproduo, principalmen-

    te quando os cientistas preocupam-se em estabelecer distines entre fato e

    artefato. Quando um cientista defronta-se com um artefato, este atribudo

    mais a um resultado de engano do cientista ou a algo que deu errado durante

    o experimento. (KNORR-CETINA, 1983)

    Neste sentido, uma das caractersticas mais relevantes desses estudos

    reside no fato de revelar como as selees contextuais e contingentes so sus-

    tentadas e atravessadas por relaes que transcendem o laboratrio, e so per-

    meadas de relaes que envolvem humanos e no-humanos.A dimenso prtica da cincia aqui assume contornos relevantes para

    o argumento central deste artigo. Consideramos os elementos que permeiam a

    prtica cientfica a partir das consideraes feitas pelos cientistas de um labora-

    trio que realiza pesquisas, como terapia celular. As entrevistas so uma fonte

    3 Inscrio um conceito que permeia as obras de Bruno Latour desde a publicao de Vida de Laboratrio.Refere-se aos numerosos registros produzidos por equipamentos no interior de um laboratrio. Registros quepossibilitam uma simples afirmao trocada entre colegas no refeitrio de se tornar um fato inquestionveldepois de uma cadeia de mediaes que o tornam resistente a prova.

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    de acesso aos dados manuseados neste artigo, bem como observaes realizadas

    durante as visitas ao laboratrio. Essas observaes ajudaram a compreender aprtica cientfica e diversos elementos que surgiram nas entrevistas. Elementos

    estes que chamavam ateno para dados contextuais de produo do laborat-

    rio estudado.

    Essa breve introduo aos estudos de cincia serve-nos para localizar os

    argumentos e o modo como uma observao prtica da cincia est inserida em

    um conjunto de perspectivas, s vezes dispares, do que a cincia como prti-

    ca e instituio. Nos localizamos a partir dos argumentos que pautam a prti-

    ca como um dado relevante para a compreenso da cincia. Isso nos aproxima

    do argumento de autores como Bruno Latour (2000), Michael Callon (2007)

    e John Law (1992), que formam o escopo do que conhecemos por Teoria Ator

    Rede (TAR) ou Sociologia das Associaes.

    Para os autores da Teoria Ator Rede ou sociologia das associaes a pr-

    tica cientfica mobiliza uma srie de elementos heterogneos que produzem

    redes com uma estabilidade precria. (CALLON, 2007) A precariedade relaciona-

    -se com o esforo constante de manuteno das realidades como coisas durveis

    no tempo e espao. Neste sentido, um fato pode se tornar fonte de controvrsia

    permanente ou mesmo permanecer uma caixa preta aps os inmeros atores

    provocarem mediaes constantes.

    Destacamos que a organizao do laboratrio como ser descrita naspginas seguintes procura mostrar como este carter contextual e prtico

    est presente no laboratrio em estudo. No trataremos, ento, de considerar

    as abordagens clssicas, mostrando apenas como o campo passa por diversos

    deslocamentos at a considerao sobre a prtica cientfica como um dado im-

    portante para a compreenso da cincia. E o laboratrio (seja ele de cincias

    naturais ou sociais) surge como local privilegiado para tratar da prtica cientfi-

    ca. Para isso, estaremos atentos prtica dos pesquisadores, desde o acesso ao

    correio eletrnico e aos peridicos, at a seleo e preparao dos experimentos

    dirios, tpicas atividades de rotina dos cientistas.

    O LABORATRIO ORGANIZADO COMO PROJETOS INDIVIDUAIS

    Uma das primeiras questes que nos deparamos quando iniciamos uma

    pesquisa sobre a prtica cientfica diz respeito ao modo como um laboratrio

    de terapia celular se organiza? Podemos falar de cooperao entre os pesquisa-

    dores? Qual o papel do chefe do laboratrio na articulao ente os diversos pro-

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    jetos que encontramos no laboratrio? Estas e outras perguntas que procura-

    remos tratar nesta seo. Para isso, achamos por bem dividi-la em duas sees.Na primeira, destacaremos a questo da organizao do laboratrio como pro-

    jetos individuais centrados no lder do laboratrio. Na segunda, discutiremos

    algumas questes relativas cooperao no laboratrio, sendo este um espao

    coletivo. Para ambas utilizaremos trechos das entrevistas concedidas pelos pes-

    quisadores e observaes feitas nas sesses cientficas em que os pesquisadores

    trocavam informaes sobre as pesquisas. Para manter o anonimato, no sero

    apresentados os nomes dos pesquisadores entrevistados, apenas farei refern-

    cias s falas utilizando letras que identificaro os relatos.

    Praticamente em todas as entrevistas concedidas pelos pesquisadores,

    existem referncias ao chefe do laboratrio. Esta ocorrncia no parece ser

    fortuita e demonstra a importncia do lder para o entendimento da organi-

    zao do laboratrio. Os relatos dos pesquisadores sugerem que a organizao

    do laboratrio est centrada nos projetos individuais de cada um que participa

    e ocupa o espao com seus projetos. Portanto, partiremos inicialmente de bre-

    ves descries destes trabalhos no laboratrio.

    O que h de comum em muitos projetos desenvolvidos no laboratrio

    estudado o fato de aplicarem a terapia celular. Entretanto, outros tipos de ex-

    perimentos como a fitoterapia, o uso de frmacos para as diversas metas e ob-

    jetivos dos projetos tambm so desenvolvidos. No objetivo aqui detalh-los.Aqui trataremos da organizao de duas maneiras. Primeiro, relacionado aos

    projetos individuais de cada pesquisador e, em seguida, como o chefe eviden-

    ciado como o articulador de todos estes projetos.

    Os projetos dos cientistas so marcados por suas metas, atividades expe-

    rimentais e tarefas nas quais procuram apresentar como seus projetos prprios.

    Estes projetos agregam lado a lado com cientistas, materiais, instrumentos,

    bancadas, ajuda de tcnicos ou estudantes e formam pequenos ambientes no

    interior do laboratrio. Alm destas contribuies, os pesquisadores comumen-

    te procuram contribuies em outros laboratrios com o objetivo de sustentaro andamento de suas pesquisas. (KNORR-CETINA, 1999)

    Estes pequenos arranjos podem ser vistos em termos de habilidades.

    Esses so componentes fundamentais na composio de um arranjo no labo-

    ratrio. A simples presena de uma tcnica especializada em um equipamento

    raro produz significativas diferenas nos outputsdo laboratrio, como muitos

    pesquisadores evidenciaram. Ao chegarem ao laboratrio, ou mesmo serem

    convidados, estes pesquisadores trazem uma gama de tcnicas e maneiras de

    lidar com certos instrumentos, que podem ser desenvolvidas no laboratrio.

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    M: [...] a gente no sabe por que novo o trabalho n, ningum tinha feito

    isso, mas uns cinco meses talvez, por a, a gente no sabe que tudo mui-

    to novo esse equipamento nico em toda Amrica Latina, s tem aqui,

    ento o tratamento com ecocardiograma um equipamento antigo, mas

    pra fazer em camundongo muito complicado porque de humano, pra

    usar em camundongo voc no tem a mesma qualidade de imagem [...]

    (Informao verbal)

    Essa pesquisadora tinha poucos meses trabalhando no laboratrio.

    Chegou nele a partir de um ps-doutorado e com uma habilidade de manejo

    do equipamento que poucos dominavam integralmente no laboratrio. Alm da

    operao, um dos seus trabalhos tambm era treinar jovens pesquisadores em

    habilidades e usos do equipamento. Para um leitor desavisado, pensar que um

    ps-doc mobilizado para operar um equipamento parece um dado irrelevante

    diante da posio e titulao que esta pessoa j possui. Nas prticas de laborat-

    rio, desenvolver habilidades de operao (o que parece meramente do ambiente

    tcnico) configura-se como uma porta de acesso aos recursos de inmeros labo-

    ratrios pelo pas e o mundo. Foi no cenrio de congresso que o lder do labora-

    trio o convidou para integrar a equipe.

    O prprio aparelho configura-se como um ator que produz mediaes

    em torno do laboratrio. Torna o laboratrio o ponto de convergncia de mui-

    tas pesquisas que dependem das inscries produzidas a partir do aparelho.O deslocamento feito para produzir inscries envolvendo camundongos

    o desafio colocado pelo equipamento no laboratrio. A pesquisadora, alm do

    treinamento dos jovens pesquisadores no uso do aparelho, precisou desdobrar

    uma srie de elementos para estabilizao daquele no-humano no laboratrio.

    O que parecia estabilizado em um contexto, tratamento com humanos, em ou-

    tro demandou novos arranjos e adequaes, sobretudo o deslocamento de pes-

    soas qualificadas para sua operao.

    Do ponto de vista do chefe do laboratrio, estes pequenos arranjos po-

    dem melhorar tanto o trabalho como a projeo do laboratrio. A pesquisado-ra acima foi uma de duas apenas que receberam o treinamento para operar

    o novo ecocardiograma capaz de fazer leituras de coraes de camundongos.

    Esse aparelho requer certas habilidades que a pesquisadora j desenvolvia,

    como demonstra no trecho seguinte:

    M: [...] me deram a maior fora a eu vim pra c porque eu tenho habi-

    lidade pra fazer ecocardiograma, que mexer naquele equipamento de

    ultrassom, Dr. R. tinha acabado de comprar um ultrassom aqui, que eu

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    no conhecia [...] estou vendo agora, estou montando, estou fazendo, ai

    ele falou: olha voc vem continua na rea de cardiologia porque aqui eles

    trabalham com a doena de chagas e ainda continua mais ou menos na

    sua rea que rea do ultrassom, s que ao invs de fazer terapia com

    genes agente faz a terapia com clulas-tronco [...]

    Quando as habilidades no esto diretamente ligadas ao uso de um apa-

    relho especfico, podem envolver interesses em novas linhas de pesquisa.

    C: [...]pra conversar com voc... ela disse pode vir na mesma hora... ai eu

    fui, eu amei ela foi muito receptiva, no pode vir, vem pro laboratrio,

    desenvolve aqui, [...] ai ele falou... vem vamos desenvolver, o que que voc

    quer comprar, pode montar farmacologia da dor aqui a gente tem inte-

    resse tal e ai a gente comeou a comprar as coisas pra montar essa parte

    l pra fazer dor l [...]

    Neste relato, a pesquisadora demonstra o interesse que o chefe do la-

    boratrio tem em desenvolver outra rea de pesquisa que ainda no est sen-

    do desenvolvida no laboratrio. Relata j no mesmo instante os equipamentos

    necessrios para montagem dos experimentos e a aquisio pelo laboratrio.

    Um dos elementos que destacam as habilidades do chefe do laboratrio est

    em mobilizar e prospectar futuras linhas de pesquisa e frentes de trabalho paramanter o laboratrio em funcionamento. Os pesquisadores de bancada en-

    volvidos nos experimentos dirios so conectados a partir dessa referncia ao

    esforo do lder em articular muitos projetos e experimentos inovadores para

    o laboratrio. Seu esforo no a bancada. Como o cientista empresrio, descri-

    to por John Law (2005), o chefe desse laboratrio exerce o trabalho de prospec-

    o entre agncias de financiamento e espaos de socializao dos resultados,

    ao mesmo tempo em que capta novos pesquisadores para os trabalhos de ban-

    cada.

    Estas habilidades sugerem uma organizao do laboratrio em termos

    de projetos individuais, no qual se tem desde pesquisadores desenvolvendo ini-

    ciao cientfica at ps-doutorado, que parecem estar ligados ao laboratrio

    pela presena do chefe. Em parte das entrevistas discutidas neste texto, os pes-

    quisadores, ao traarem suas trajetrias, apontam contatos, indicaes e refe-

    rncias ao chefe do laboratrio. Neste sentido, o lder articula no apenas o que

    acontece no interior do laboratrio, mas tambm as suas redes alm dos muros.

    So nos congressos, encontros e eventos que se reforam contatos e conhecem

    pesquisadores que desenvolvem determinadas habilidades, como no caso das

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    Preldios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 39

    pesquisadoras C e M. E o laboratrio, diferente do que uma viso externalista da

    cincia parece sugerir, agrega mais habilidades para manusear e criar experin-cias a partir dos arranjos locais, do que uma simples referncia a titulao dos

    membros pode sugerir. Ser um ps-doc tambm significa realizar um trabalho

    de bancada, de forma a produzir resultados interessantes para laboratrio.

    Para Knorr-Cetina (1999), assim como em Law (1992), tornar-se um lder

    de laboratrio parece ser um estgio final na carreira de pesquisador. Argumen-

    ta que alm do pesquisador permanecer nos seus projetos individuais ele passa

    por vrios estgios em sua carreira, desde o nvel de estudante at o estgio de

    pesquisador maduro. O ltimo estgio parece ser o de tornar-se chefe. Muitos

    pesquisadores entrevistados, mesmo que ainda no estejam cursando o douto-

    rado, j demonstram o desejo de ter o seu prprio espao. Este espao sem-

    pre descrito como o prprio laboratrio, um local para desenvolver um trabalho

    mais autnomo, com mais liberdade.

    R: Minha expectativa provavelmente ps-doutorado, ensino, pesquisa,

    continuar em laboratrio v se monta uma estrutura que a gente possa

    t comandando [...] continuar ligado e fazendo coisas mais independen-

    tes quando a gente tem autonomia para fazer, por exemplo, nas univer-

    sidades que a gente comea a dar aula, na faculdade, na Baiana, nessa,

    naquela faculdade que existe possibilidade de montar uma coisa a partir

    de ns, agora ns, sendo os propulsores daquela instituio, daquele am-biente tal, isso eu acho que o crescimento normal, a ambio normal

    que a gente tem, um trabalho rduo, bvio que a gente vai ter a raiz

    ligada pesquisa central, ao local central que o laboratrio, mas agente

    na medida do possvel vai estar fazendo coisas que a gente imaginava ter

    feito, ou que a gente pensa ter feito, que as vezes no podem ser feitas

    porque o laboratrio tem uma linha, tem um determinao [...] ter o nos-

    so laboratrio de pesquisa pblico trabalhando para atender a sociedade,

    que so anseios nossos[...]

    Outra pesquisadora descreve nestes termos:

    M: ...penso em dar aula, eu penso muito em entrar na universidade fede-

    ral pra d aula e ter meu prprio grupo de pesquisa, acho que isso acaba

    sendo uma vontade da maioria que est fazendo pesquisa, porque orien-

    tar um aluno, formar um aluno muito prazeroso, uma coisa muito boa,

    ento quem sabe ter um, no sei se um laboratrio de pesquisa, no mui-

    ta coisa talvez, mas ter a minha linha de pesquisa, ainda que aqui dentro

    dessa instituio, mas eu poderia dar aula na federal, ter minha linha de

    pesquisa aqui dentro, ter alguns alunos e trabalhar em colaborao aqui

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    com o laboratrio Dr. R. com Dr. M. com o pessoal do INCOR como agen-

    te j colabora, montar mais uma srie [...]

    O caminho da independncia ainda descrito por outra pesquisadora

    que deseja construir seu prprio espao:

    C: [...]acho que hoje o que t conseguindo fazer com que eu caminhe,

    mas eu tenho total convico que o caminho da independncia o melhor

    [...] ento eu pensei eu preciso ter um espao meu, eu at agora fiz pes-

    quisas na casa dos outros, e eu preciso ter a minha casa, mesmo que seja

    pequena, mesmo que seja simples, eu preciso comear aqui, ento, o que

    eu fiz, desde que eu cheguei aqui, comecei a abrir os editais[...]

    Todos os relatos descrevem uma situao em que apenas a criao de

    um espao prprio pode realizar um pesquisador profissionalmente. Antes

    de ser um lder de laboratrio, um pesquisador, dentro da organizao expos-

    ta aqui, parece ser apenas um elemento no arranjo do laboratrio. Depois que

    feita a transio, o laboratrio passa a ser o prprio arranjo. Tornar-se o chefe

    do laboratrio parece ser o que completa um pesquisador. (KNORR-CETINA,

    1999) Ao mesmo tempo, como sugere Andrew Pickering (1995), a autonomia

    pode ser descrita como uma forma de no ingressar numa lgica de big Scien-

    ce, mantendo-se em pequenos espaos de construo de fatos. Mesmo com ascaractersticas apontadas pelos pesquisadores no sentido de buscar um espao

    em que possam liderar, essa autonomia est ligada a habilidade de desenvolver

    resultados que produzam diferena na rea.

    Esta mudana de um pesquisador centrado em seus projetos individuais

    para um pesquisador que mobiliza no apenas objetos como tambm uma rede

    de relaes sociais fora do laboratrio evidenciado num relato do trabalho do

    lder feito por um pesquisador no laboratrio trabalhado:

    R: Dr. R. tem se afastado de algumas coisas de docncia etc. para meio que

    fazer o despacho, vamos dizer, despachar as prioridades do laboratrioem termos burocrticos, em termos de angariamento de recursos e etc [...]

    Este lder j no realiza o trabalho de bancada e atravs da sumariza-

    o, explicao e definio do trabalho do laboratrio para o pblico externo.

    Constri e amplia redes, relaes pessoais, obtendo financiamento e reconhe-

    cimento para o laboratrio. (KNORR-CETINA, 1999) Seus atributos passam a

    ser o de revisar o campo de pesquisa, escrever parte de artigos, organizar infor-

    maes, conversar com outros pesquisadores e sustentar a rede que se estende

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    Preldios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 41

    laboratrio afora. (LATOUR, 2005; LAW, 1992) Entretanto, o lder ainda tem de

    sustentar laos com o trabalho do laboratrio, pois este trabalho est sendo con-tinuamente observado e avaliado e os interesses dos pesquisadores e do lder

    precisam a todo o momento ser negociados. (KNORR-CETINA, 1999) Em muitos

    arranjos, essa ligao feita por pesquisadores intermedirios, que assumem as

    orientaes, as mediaes diretas entre a bancada e os projetos individuais com

    a sumarizao e divulgao fora do laboratrio.

    A COOPERAO NO LABORATRIO

    Esta segunda seo tratar de aspectos relacionados cooperao nolaboratrio. Segundo Knorr-Cetina (1999), em laboratrios de biologia molecu-

    lar, o que tende a unir os pesquisadores como unidades individuais, o mesmo

    que os divide, criam tenses, conflitos e resistncias. A cooperao surge como

    uma tentativa de retribuio de servios prestados em diversos momentos da

    carreira do pesquisador em suas trajetrias; dos produtos obtidos por certos ex-

    perimentos que s so realizados em laboratrios devidamente equipados; do

    uso instrumentos que requerem certas habilidades adquiridas com a trajetria

    e atravs da troca de informaes que circulam pela rede a qual o pesquisador

    circula.Ainda que haja cooperao entre os pesquisadores, como evidenciare-

    mos nos relatos a seguir, encontramos relaes conflitantes devido ao uso cole-

    tivo do espao do laboratrio. Ao mesmo tempo em que fala do uso coletivo do

    espao, a pesquisadora, mencionada abaixo, se refere s tenses frequentes que

    ocorrem no laboratrio por conta de uma organizao com hierarquia diluda,

    caso diferente do que acontece nos laboratrios industriais, em que as hierar-

    quias se desdobram de maneira mais rgida:

    RE: [...] aqui no centro e uma coisa cada um, eu tenho que lavar o que eu

    sujo no laboratrio, eu tenho que lavar as minhas coisas, ento total-mente diferente a forma como funciona n [...] as pessoas to o tempo

    todo muito discutindo, e um discute com outro, um discute com o orien-

    tador do outro, por que no tem muito essa hierarquia n, ento l [na

    indstria] tudo feito pra que as coisas ocorram na maior produtividade

    e no menor estresse interpessoal possvel [...]

    Muitas questes relacionadas cooperao dizem respeito ao uso dos

    equipamentos e troca de informaes entre os pesquisadores do laboratrio.

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    No trecho abaixo, a cooperao acontece ao nvel de aprendizados sobre as tc-

    nicas utilizadas no laboratrio.

    M: [...] ento a gente t trabalhando juntos, R. e eu acho que a pessoa que

    mais sabe aqui dentro do laboratrio, ele o brao direito de Dr. R. e ele

    sabe todas as tcnicas que so utilizadas, ento ele que est me treinando,

    apesar dele ainda no ter o doutorado, mas o nvel dele t muito alm do

    ttulo que ele ainda no pegou, por falta do prazo, de defesa de tese, s

    uma questo burocrtica, mas ele sabe, e muito [...]

    A cooperao pode ocorrer no apenas ao nvel interno do laboratrio,

    mas estender as suas cooperaes para outros laboratrios. Este argumento

    est presente em algumas entrevistas em que a transferncia de pesquisado-

    res para outro acaba gerando uma rede de colaborao entre os laboratrios.

    Frequentemente, esta cooperao acontece a partir de trocas de materiais,

    quando h um impedimento da burocracia na compra dos mesmos, ou, na es-

    crita de artigos, ou no uso de alguns equipamentos especficos:

    M: [...] a colaborao assim, a gente precisa de alguma coisa, tem alguma

    dvida eles tambm, eles tambm fixam metas l, eles querem mandar

    camundongos pra gente examinar aqui, ento, s vezes, a gente precisa

    de alguma coisa em biologia molecular que eles tem l, ou na hora de es-

    crever o artigo, eu escrevo uma parte, eles escreve outra, a gente faz essas

    colaboraes em pesquisa [...]

    Este tipo de colaborao entre laboratrios pressupe que ambos estejam

    preparados para suprir as necessidades do outro. Estes servios comumente pare-

    cem acontecer numa lgica da troca. Isto porque a cooperao nestes laboratrios

    surge da complexidade de manuteno da pesquisa e da competio, o que faz

    acelerar os passos da pesquisa. (KNORR-CETINA, 1999) Muitos pesquisadores en-

    trevistados demonstraram a necessidade de uma relativa rapidez nas publicaes

    dos resultados obtidos nos experimentos, pelo elevado grau de competio.H ainda trs questes que precisamos discutir. A cooperao implica

    no entendimento que os pesquisadores tm de que o produto dos seus projetos

    no individual, mesmo que o laboratrio esteja organizado a partir de proje-

    tos individuais. Estes produtos so frequentemente aes coletivas no interior

    do laboratrio, em que nem todas as etapas de experimentos so realizadas pelo

    pesquisador. O segundo ponto que as largas unidades criadas a partir de ativi-

    dades individuais tendem a tornar-se individualizadas atravs da figura do lder.

    A funo do lder, como mostra Knorr-Cetina (1999), a de representar o laborat-

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    Preldios, Salvador, v. 4, n.4, p. 29-45 set./mar. 2015 / 43

    rio. A terceira questo que a individualizao do lder construda em parte pela

    invisibilidade do suporte da pesquisa no laboratrio. No laboratrio estudado,enquanto o lder realiza as atividades externas ao laboratrio, outra pesquisadora

    d suporte internamente:

    R: ... Sempre [quem orientou] foi Dr. R, agora ultimamente, Dr. M. Dr R.

    como tem essa responsabilidade com um monte de coisa a mais ele no es-

    tava podendo d tempo, sempre foi Dr. R. no papel e sempre Dr. M. no labo-

    ratrio, que quem fica geralmente a maior parte do tempo no laboratrio...

    Ocupando posio de confiana, esta pesquisadora faz a mediao entre

    as rotinas nas bancadas e as rotinas de fora da bancada. Ainda movimenta-se

    com frequncia pelo laboratrio a partir das orientaes, mas j ocupa uma po-

    sio de articulao entre os diferentes inputse outputsque configuram o traba-

    lho no laboratrio. Este aspecto a coloca numa zona de traduo entre os an-

    damentos dos experimentos e os aspectos mais contingenciais que so vividos

    fora do laboratrio, sobretudo pelo lder, que rene uma agenda considervel de

    rotinas fora dos muros e dos limites do laboratrio.

    CONCLUINDO ORGANIZAO E COOPERAO

    Procurando entender a maneira como o laboratrio se organiza, em

    torno de projetos individuais, e como a questo da cooperao acontece no la-

    boratrio, apresentamos alguns relatos de pesquisadores que trabalham num

    laboratrio em Salvador. A organizao do laboratrio centra-se muito nos pro-

    jetos que so desenvolvidos pelos pesquisadores e no pode ser entendida se no

    for considerada essa questo. Ao passo que formam unidades individuais, estes

    projetos so articulados em torno da presena de um lder, atravs do qual as

    pesquisas ganham uma dimenso de um laboratrio. Quando o chefe do labora-

    trio fala em presena de outros pblicos, sua referncia sempre a uma lista deatividades que o laboratrio desenvolve. Os projetos individuais so deslocados

    para uma perspectiva que os coloca em termos da fora que o laboratrio possui

    a partir de seus resultados. (KNORR-CETINA, 1999)

    O trabalho do lder parece ser o do cientista empresrio descrito por Law.

    Seu trabalho o de associar um conjunto heterogneo de elementos diversos em

    seu laboratrio. Estes elementos podem vir dos arranjos no interior do prprio la-

    boratrio, atravs da maneira como so, junto aos processos, ordenados, ganhando

    uma nova forma. Podem vir tambm de redes exteriores diretamente associadas

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    ao trabalho do lder, como no caso de pesquisadores que desenvolvem determina-

    das habilidades e que podem ser importantes peas no laboratrio (LAW, [s.d]).Sua face pblica destacada pelas conexes que estabelece com outros laborat-

    rios. Obter crditos com as agncias de financiamento e com diversos atores que

    conformam a rede do laboratrio, mantenha o pblico externo informado sobre

    o trabalho desenvolvido no laboratrio, concedendo entrevistas.

    O laboratrio apresenta esta organizao peculiar centrada nos proje-

    tos individuais e articulada pela presena de um chefe, que ao mesmo tempo

    a face externa do laboratrio e mediador de conflitos e cooperao no interior do

    laboratrio. Ao nvel da cooperao, o laboratrio estende suas relaes a outros,

    alm da cooperao interna. Esta acontece no uso de equipamentos, treinamen-

    to e traduo, ao nvel dos estudantes, de tcnicas e procedimentos utilizados

    no laboratrio, o uso de substncias produzidas por outro pesquisador, entre

    outras. A nvel externo, a troca de materiais e a cooperao na produo de arti-

    gos se do devido as articulaes que o chefe e outros pesquisadores conseguem

    estabelecer com outros ambientes, seja laboratrio ou indstria.

    As questes colocadas aqui direcionam uma perspectiva do laboratrio

    a partir de suas prticas. Neste sentido, procura-se mais tratar dos aspectos que

    demonstram como os arranjos espaciais e pessoais configuram uma dinmica e

    produo local, a partir do que possvel fazer com a atrao de novos talentos

    para a pesquisa no laboratrio. Este parece sobreviver a partir da dinmica deproduo de fatos que produzam diferenas no mundo, atendendo tambm aos

    interesses coletivos, empresariais e tambm individuais. No parece ser uma

    realidade nas cincias sociais um jovem socilogo desejar um Prmio Nobel,

    mas configura-se no horizonte de muitos pesquisadores, ainda na iniciao

    cientfica, que trabalham em reas de inovao como as clulas-tronco, nas

    quais as controvrsias esto em pleno vapor e os fatos pouco estabilizados.

    Referncias como essas, captamos em diversos momentos que tivemos contato

    indireto com os pesquisadores no campo, como em uma interao ao final de

    reunies cientficas de discusso dos resultados, em que sem muita dificuldade,comentavam entre si possveis consequncias de suas pesquisas.

    COOPERATION AND ORGANIZATION IN A LABORATORY CELL THERAPY: NOTESON A SOCIOLOGY OF SCIENTIFIC PRACTICE.

    AbstractIn this article the aims to analyze the light of the social studies of science and technology(STS) the organization of a laboratory and how it gives the cooperation among resear-

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    chers associated with it. In addiction, empirical evidence run four interviews conductedwith researchers developing research with stem cells in a laboratory cell therapy. The

    laboratory has a particular structure because the same time that is organized in terms ofindividual projects associated researchers, it can be seen as an integrated unit thanks tothe connection maintained by all with the leader of the laboratory and the possibility ofcooperation between laboratory scientists. Finally it can be perceived that much of theorganization of the laboratory focuses on its leader, emphasizing its coordinating role,as well as the difficulty of cooperation relations among researchers.

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