Coração Das Trevas - Joseph Conrad

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  • JOSEPH CONRAD

    EDIO BILNGUE

    HEART OF THE DARKNESS

    2011

  • Copyright 2011 by EDITORA LANDMARK LTDA.Todos os direitos reservados EDITORA LANDMARK LTDA.

    Primeira edio: J. M. Dent & Sons Ltd. : Londres, 1902.Publicado inicialmente na Blackwood Edinburgh Magazine entre fevereiro e abril de 1899.

    Texto adaptado nova ortografia da lngua portuguesa Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008Diretor editorial: Fabio Cyrino

    Diagramao e Capa: Arqutipo Design+ComunicaoTraduo e Notas : Fabio Cyrino

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    CONRAD, Joseph (1857-1924)O CORAO DAS TREVAS - Heart of the Darkness

    Joseph Conrad; {traduo e notas Fabio Cyrino}So Paulo : Editora Landmark, 2011.

    Ttulo Original: Heart of the DarknessEdio bilngue : ingls / portugus

    ISBN 978-85-88781-95-5e-ISBN 978-85-88781-96-2

    1. Fico inglesa I. Ttulo. II . Ttulo: Heart of the Darkness11-01954 / CDD - 823

    ndices para catlogo sistemtico:1. Fico: Literatura inglesa 823

    Textos originais em ingls de domnio pblico.Reservados todos os direitos desta traduo e produo.

    Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida por fotocpia microfilme, processofotomecnico ou eletrnico sem permisso expressa da Editora Landmark,

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  • Impresso em So Paulo, SP, BrasilPrinted in Brazil

    2011

  • Nota do Autor[1]

    As trs histrias deste volume no pretendem possuir um propsito artsticounificado. O nico lao existente entre elas a poca em que foram escritas. Elaspertencem ao perodo imediatamente posterior publicao d O Negro abordo doNarciso e precedem concepo de Nostromo, dois livros que, para mim, aparentamestar afastados um do outro dentro do corpo de minha obra. tambm a pocadurante a qual contribu para Maga[2]; um perodo dominado por Lorde Jim eassociado dentro da mais agradvel lembrana da til bondade e do encorajamentoprestados pelo finado senhor William Blackwood.

    Juventude no foi a minha primeira contribuio para Maga. Foi a segunda.Mas aquela histria marca a primeira apario no mundo de Marlow, o personagemcom o qual minhas relaes cresceram em intimidade ao longo dos anos. As origensdaquele cavalheiro (ningum at onde eu sei sequer suspeitou que ele fosse algo menordo que isto) as origens dele tenho o prazer de dizer foram temas de algumasespeculaes literrias de qualidades bem amigveis.

    Algum poderia pensar que somente eu poderia apropriadamente lanar certaluz sobre a questo, mas, na verdade, mas descobri que no assim to fcil. prazeroso lembrar que ningum o acusou de possuir propsitos fraudulentos ou terolhado para ele com superioridade como se ele fosse um charlato apesar de ele tersido classificado com todo tipo de adjetivos: um filtro engenhoso, um mero instrumento,um impostor, um esprito familiar, um demnio murmurante. Eu mesmo sou suspeitode integrar um plano premeditado para a captura dele.

    Mas no assim. Eu no tinha feito nenhum planejamento. O homem Marlow eeu nos encontramos de modo casual, como aqueles conhecidos de balnerios quemuitas vezes se tornam grandes amigos. Nossa amizade amadureceu. Apesar de todaa positividade dele com relao a certas opinies ele no uma pessoa revoltada. Eleassombra as minhas horas de solido, quando, no silncio, ns deitamos as nossascabeas juntos com grande conforto e harmonia, mas quando nos despedimos ao finalde um conto nunca podemos ter certeza de que no ser a ltima vez. Ainda que euno acredite que qualquer um de ns pudesse sobreviver ao outro. No caso dele, dequalquer modo, a ocupao dele continuaria e ele sofreria daquela extino, poissuspeito que ele seja de algum modo vaidoso. No me refiro vaidade em um sentidosalomnico. De todas as minhas criaes ele o nico que nunca me perturbou oesprito. Um homem compreensivo e na maioria das vezes discreto...

    Mesmo antes de ser publicado no formato de livro Juventude foi muito bemrecebido. Ele depende de mim para confessar o mnimo, e este um lugar to bompara ele quanto para qualquer outro, o melhor lugar que tive em minha vida emminhas duas vidas o filho adotado e mimado da Gr-Bretanha e mesmo do Imprio,

  • pois a Austrlia foi quem me deu o meu primeiro comando. Eu subdivido estadeclarao no por causa de uma tendncia oculta megalomania, mas, ao contrrio,por ser um homem que no tem muitas iluses insignes sobre si mesmo. Eu sigo osinstintos do orgulho e da humildade natural de toda a humanidade. Pois muito difcilnegar que no so pelos seus prprios mritos que os homens se orgulham, masparticularmente pela sua sorte extraordinria e por sua fortuna maravilhosa: orgulhosospor tudo aquilo que em suas vidas so sacrificadas e oferecidas graas sobre osaltares de deuses inescrutveis.

    O Corao das Trevas tambm recebeu certa ateno a principio; e sobre asua origem algo precisa ser dito: bem sabido que os homens curiosos se lanam atoda sorte de lugares (onde no se possui qualquer vnculo) e saem de l com todo tipode esplio. Esta histria e uma outra, que no fazem parte deste volume, so osdespojos que eu trouxe das regies centrais da frica, onde na verdade eu no possuaqualquer vnculo. Mais ambicioso em seu escopo e maior em sua narrativa, O Coraodas Trevas to autntico quanto aos seus fundamentos quanto Juventude.Obviamente escrito de outra maneira. No vou descrever o estilo precisamente, masqualquer pessoa pode ver que ele possui qualquer coisa menos um estilo repleto demelancolia e de ternura reminiscente.

    Uma outra observao pode ser adicionada. Juventude uma proeza derecordao. um registro de vivncia; mas aquela vivncia, em seus fatos, suaintimidade e sua tonalidade exterior, comea e termina em mim mesmo. O Coraodas Trevas tambm uma vivncia, mas uma vivncia um pouco alterada (esomente um pouco) para alm dos fatos reais do caso de uma legitimidade perfeita assim acredito com o propsito de torn-la reconhecvel s mentes e anseios dosleitores. No h nela nada mais que uma questo de sincera colorao. No geral, elaera como qualquer outra forma de arte. quele tema sombrio tinha que ser dado umaressonncia sinistra, uma tonalidade em todo particular, uma vibrao contnua que, euesperava, permanecesse no ar e ecoasse aos ouvidos aps a ltima nota ser tocada.

    Aps dizer tanto, ainda resta o ltimo conto do livro, ainda intacto. O Fim daCorrente uma histria sobre a vida no mar apresentada de um modo muito especial; a observao mais prxima que eu posso dizer sobre ele, pois tendo vivido aquelavida completamente, por entre homens, pensamentos e sensaes, descobri serpossvel, sem o mais leve temor, com toda a sinceridade de corao e paz deconscincia, conceber a existncia da personalidade do capito Whalley e relacion-lade alguma maneira ao seu fim. Esta declarao adquiriu certa fora a partir dascircunstncias existentes nas pginas daquela histria uma boa parte do livro poistambm o produto de uma vivncia. Aquela vivncia pertence (como no caso deJuventude) aos tempos anteriores quando eu sequer imaginava transmitir algo comminha pena para o papel. O quanto dela realidade, cabe aos leitores determinar.Algum poder conseguir capturar alguns fatos aqui e acol. Os mais hbeis poderotorn-los mais reais e, com isso, toda a composio mais interessante. Mas neste

  • ponto nos aproximamos da regio oculta dos valores artsticos, uma regio imprpria ede fato muito perigosa para eu ingressar. Examinei as provas, corrigi um ou dois errosde impresso, alterei uma ou outra palavra isso foi tudo. No muito provvel que eureleia O Fim da Corrente novamente. Nada mais precisa ser dito. Ele se harmonizaperfeitamente com os meus sentimentos ao se separar do capito Whalley atravs deum silncio afetuoso.

    J. C.1917

    [1] A presente Nota do Autor foi elaborada por Joseph Conrad em 1917 como parte integrante da edio conjunta detrs de seus contos, publicada em 1923. Naquela edio em conjunto das obras O Corao das Trevas, Juventude:Uma narrativa (publicada inicialmente em 1898) e O Fim da Corrente (publicado em 1902), Conrad apresenta ospontos que o nortearam na elaborao de suas histrias.

    [2] Maga ou mais formalmente conhecida Blackwoods Edinburgh Magazine foi uma das mais importantes revistasliterrias da Inglaterra, publicada entre 1817 e 1980. A mistura de stiras, resenhas e crticas, ao mesmo tempogrosseiras e significativas, a tornaram extremamente popular. Publicou trabalhos dos romnticos Percy Shelley,Samuel Coloridge e William Wordswoth e recebeu contribuies de George Eliot, John Buchan e Joseph Conrad, ondeo mesmo publicaria a verso original de O Corao das Trevas em trs captulos mensais, entre fevereiro e abril de1899.

  • IO Nellie, um veleiro de cruzeiro, lanou sua ancora sem, contudo, sacudirsuas velas, e ficou parado. A mar tinha subido e o vento praticamente havia parado e,uma vez que descia rio abaixo, a nica coisa que podia ser feita era descansar eesperar a mar abaixar.

    O esturio do Tmisa se estendia diante de ns como o incio de uminterminvel canal. Ao largo, o mar e o cu se uniam, sem que houvesse uma juno, eas velas dos barcos, amareladas pelo sol, que eram levados pela corrente pareciamimveis, agrupadas em lonas vermelhas, pontuadas severamente com o brilho dosmastros envernizados. Uma neblina repousava sobre as terras baixas que corriam parao mar em uma plancie que desaparecia aos poucos. O ar foi tomado pela penumbralogo acima de Gravesend e um pouco antes dela ainda parecia condensado em umamelancolia desoladora, lanando uma imobilidade sobre a maior e mais grandiosacidade do mundo.

    O Diretor das Companhias era nosso capito e nosso anfitrio. Ns quatroolhvamos com grande carinho para as suas costas enquanto ele permanecia de p naproa do navio olhando para o lado da praia. Em todo rio no havia nada que parecesseto nutico. Ele se assemelhava a um prtico o que para um marinheiro era apersonificao da confiana. Era difcil perceber que o trabalho dele no estava l fora,no esturio reluzente, mas atrs dele, dentro da melancolia desoladora.

    Entre ns havia, e isso eu j disse em algum outro lugar, certa ligao com omar. Alm de manter os nossos coraes unidos atravs de longos perodos deseparao, ele tinha o efeito de nos tornar tolerantes com as histrias e asconvices de cada um de ns. O Advogado o melhor de nossos velhoscompanheiros por causa de sua idade e de suas inmeras virtudes possua a nicaalmofada do tombadilho e estava deitado sobre a nica manta de viagem. O Contadortinha trazido uma caixa de domins e estava brincando com eles, montando estruturasarquitetnicas com as peas de marfim. Marlow sentava-se com as pernas cruzadasdiante da popa, recostado ao mastro de mezena. Ele tinha as bochechas afundadas,uma compleio amarelada, as costas muitas eretas, um aspecto asctico e, com osbraos cruzados, com as palmas voltadas para dentro, fazia lembrar a imagem de umdolo. O Diretor, assegurando-se de que a ncora havia sido bem lanada, retornou emdireo popa e sentou-se entre ns. Ns trocamos poucas palavras, estas mesmascheias de preguia. Depois de um tempo, um silncio se apoderou de todo o veleiro.Por alguma razo ou outra, ns no comeamos a jogar domin. Ficamos meditando,lanados a mais nada alm do que a plcida contemplao. O dia estava terminandocom uma serenidade de um fulgor calmo e delicado. As guas brilhavam calmamente; ocu, sem uma ndoa sequer, era de uma imensido benigna de luz purificada. A nvoa

  • caracterstica dos pntanos de Essex se assemelhava a um tecido transparente eradiante, dependurado nas elevaes arborizadas de terra dentro e drapeando osbaixios do litoral com pregas translcidas. Somente a escurido vinda do oeste,derramando-se sobre o curso superior do rio, tornava-se mais sombria a cada minuto,como se ela se irritasse com a aproximao do sol.

    E por fim, em sua queda curvada e imperceptvel, o sol mergulhou logo abaixo,e de um branco radiante transformou-se em um vermelho desbotado, sem raios e semcalor, como se estivesse pronto para desaparecer de repente, tocado de morte pelagarra daquela escurido que se estendia sobre a multido dos homens.

    Logo em seguida, uma mudana se apoderou das guas e a serenidadetornou-se menos brilhante, mas muito mais profunda. O velho rio em suas amplidodescansou serenamente no declnio do dia, aps eras de bons servios realizados raa daquelas pessoas que habitavam suas margens, derramando-se na dignidadetranquila de um canal que conduzia aos confins mais extremos da terra. Olhvamospara aquela corrente de gua venervel, no sob a luz que vividamente flua atravs docurto dia que vinha e ia como sempre, mas sob a augusta luz de lembranaspermanentes. E, na verdade, nada mais fcil para um homem que tem, como diz oadgio, seguido o mar com reverncia e afeio, que evocar o grande esprito dopassado que habita os baixios das margens do Tmisa. O fluxo das mars tem subidoe descido em seu incansvel servio, coroando as lembranas de homens e navios porelas transportadas para o descanso dos lares ou para as batalhas dos mares.Conheceu e serviu a todos os homens de quem a nao se orgulha, de sir FrancisDrake a sir John Franklin, cavaleiros todos, com ou sem ttulos os grandes cavaleiros errantes do mar. Transportou todos os navios, cujos nomes so como jias cintilantesna noite do tempo, desde o Golden Hind, retornando com as suas muradastransbordando de tesouros, sendo visitado por Sua Alteza, a Rainha, e assim passandopara a enormidade da histria, at o Erebus e o Terror, ligados a outras conquistas eque nunca retornaram[1]. Conheceu os navios e os homens. Eles velejaram partindo deDeptford, de Greenwich e de Erith os aventureiros e os colonos; navios de reis enavios de homens a trabalho; capites, almirantes, atravessadores sombrios docomrcio com o Oriente e os generais comissionados das frotas das ndias Orientais.Caadores de tesouros ou perseguidores da fama, todos eles percorreram aquelasguas, portando suas espadas e seus archotes, mensageiros do poder na terra,portadores de uma centelha do fogo sagrado. Que grandeza no flutuou sobre a marbaixa daquele rio em direo ao mistrio de uma terra desconhecida! Os sonhos dehomens, a semente de naes, os princpios de imprios.

    O sol se ps; o anoitecer estendeu-se sobre as guas e as luzes comearam asurgir ao longo da costa. O farol de Chapman, uma criatura de trs pernas erigidasobre o lodaal, brilhava com toda fora. As luzes das embarcaes moviam-se distncia um grande rodopio de luzes que ia e vinha. E mais ao oeste, na parte maissuperior do curso do rio o local da monstruosa cidade ainda era marcado de modo

  • ameaador sobre o cu, uma escurido refletida contra o brilho do sol, uma claridadetenebrosa sob as estrelas.

    E mesmo assim, disse Marlow de repente, tem sido um dos lugares maissombrios do mundo.

    Ele era o nico homem entre ns que ainda seguia o mar. O pior que poderiaser dito sobre ele era que ele no representava a sua classe. Ele era um marinheiro,mas ele era tambm um andarilho, enquanto que a maioria dos marinheiros leva, sealgum pode se expressar desse modo, uma vida sedentria. Suas mentes so do tipocaseiro e os seus lares esto sempre junto deles o navio; e do mesmo modo os seuspases o mar. Um navio muito parecido um com os outros; e o mar sempre omesmo. Na imutabilidade de suas cercanias, os litorais estrangeiros, os rostosestrangeiros, a imensido mutvel da vida, o passado fugidio, encoberto no por umsenso de mistrio, mas por uma leve ignorncia desdenhosa; pois no h nada demisterioso para um marinheiro alm do prprio mar que o senhor de sua existncia eto impenetrvel quanto o Destino. Para o descanso, aps suas horas de trabalho, umacaminhada casual ou um divertimento casual no litoral so suficientes para lhe desvelaro secreto de um continente inteiro e geralmente ele descobre que o secreto no vale apena ser descoberto. As histrias dos marinheiros possuem uma simplicidade direta, otodo do seu significado cabendo dentro de uma casca de uma noz partida. Mas Marlowno era tpico (se pudermos deixar de lado sua propenso em contar histrias), e paraele o significado de um episdio no estava dentro tal qual uma semente, mas sim, dolado de fora, envolvendo o conto que o revelava, tal qual o brilho que escapa daneblina, do mesmo modo que os halos enevoados que s vezes se tornavam visveispela iluminao espectral da luz do luar.

    Seu comentrio no era de todo surpreendente. Era algo tpico de Marlow e foiaceito em silncio. Ningum sequer teve o trabalho de resmungar algo; e, nesteinstante, ele disse, vagarosamente:

    Estava pensando nos velhos tempos, quando os primeiros romanos vierampara c dezenove sculos atrs, justo outro dia... a luz emanava do rio, desde ento talvez Cavaleiros? Sim, mas ela como as labaredas que correm pela plancie, como orelmpago nas nuvens. Ns somos a luz que tremula que ela possa durar tantoquanto o mundo continue girando! Mas a escurido estava por aqui ontem. Imagine ossentimentos de um comandante de um belo como podemos chamar mesmo? trirreme no Mediterrneo ao ordenar repentinamente que seguisse para o norte; cruzarapressadamente a terra dos gauleses; por uma dessas naus ao cargo de um desseslegionrios que maravilhoso grupo de trabalhadores eles devem ter sido tambm acostumados a construir, aparentemente por centenas deles, em um ms ou dois, seacreditarmos naquilo que lemos. Imagine-o aqui nos extremos do fim do mundo, ummar com a cor do chumbo, um cu com a cor da fumaa, um barco to firme quantouma concertina subindo este rio com mercadorias ou ordens militares ou com o quevoc desejar. Bancos de areia, pntanos, florestas e brbaros muito pouco o que se

  • comer, adequado para um homem civilizado, nada alm da gua do Tmisa para sebeber. Sem o vinho da Falernia por aqui; sem desembarcar. Aqui e acol um campomilitar nas pradarias, tal qual uma agulha perdida no meio do palheiro frio, neblina,tempestades, doenas, exlio e morte a morte espreitando-se pelo ar, nas guas eflorestas Eles deviam morrer como moscas por aqui. Ah sim, eles conseguiram sim. Efez muito bem, tambm, sem dvida e, tampouco, sem pensar muito sobre tudo isso,exceto tempos depois, talvez para se vangloriar do que ele tinha feito atravs de suapoca. Eles eram homens o suficiente para encarar a escurido. E talvez ele fosseencorajado pela perspectiva de uma oportunidade de uma breve promoo para a frotaem Ravena, se ele tivesse bons amigos em Roma e sobrevivesse ao horrvel clima. Ouimaginem um jovem e honrado cidado de toga talvez muito ligado aos dados, comovocs sabem vindo para c na comitiva de algum pretor, de um cobrador de impostosou mesmo de algum mercador, para melhorar suas fortunas. Desembarcando em umpntano, marchando atravs dos bosques e, em algum entreposto do interior, sentirque a selvageria, a selvageria primitiva, o havia circundado toda aquela vidamisteriosa que h na vastido e que se mistura s florestas, nas selvas e nos coraesdos homens selvagens. No h uma iniciao a esses mistrios, tampouco. Ele tem queviver no meio do que incompreensvel e, ao mesmo tempo, detestvel. E h tambmuma fascinao que vem trabalhar sobre ele. A fascinao pela abominao, comovocs bem sabem. Imaginem os arrependimentos cada vez maiores, o desejo de fuga,a repulsa impotente, a capitulao e a ira.

    Ele fez uma pausa.Imaginem, ele comeou novamente, libertando um dos braos a partir do

    cotovelo, a palma da mo para fora, e assim, com suas pernas dobradas diante dele,assemelhando-se a um Buda que pregava, vestindo roupas europeias e a uma flor-de-ltus, Imaginem que nenhum de ns sentiria exatamente como era isso. O que nossalva a eficincia a devoo eficincia. Mas esses camaradas no era grandecoisa, a final. Eles no eram colonizadores; eu suspeito que a administrao delesfosse meramente uma forma de extorso e nada mais. Eles eram conquistadores epara tal voc precisa apenas de fora bruta nada para se vangloriar, quando se apossui, uma vez que sua fora seja apenas um acidente surgido a partir da fraquezados outros. Eles se apoderavam do que conseguiam tomar, apenas pelo fato de estarali para ser tomado. Tudo era apenas roubo com violncia, agravado pelosassassinatos em larga escala, e homens avanando s cegas como bemapropriado queles que enfrentam a escurido. A conquista da terra, que na maioriadas vezes significa toma-la daqueles que possuem um aspecto diferente ou narizeslevemente mais achatados que os nossos, no algo bonito quando voc o olha maisde perto. O que nos redime a ideia em si. Uma ideia que existe por detrs disso no um pretenso sentimento, mas sim uma ideia. E uma crena altrusta na ideia algoque voc possa elevar, se curvar diante e oferecer sacrifcios para...

    Ele parou de falar. Labaredas surgiram no rio, pequenas labaredas

  • esverdeadas, labaredas avermelhadas, labaredas embranquecidas, prosseguindo,unindo-se, sobrepondo-se, cruzando umas s outras e ento se separando rpida ouvagarosamente. O trfego da grande cidade continuava na profundeza da noite porsobre o rio insone. Ns observvamos, esperando pacientemente no restava maisnada a se fazer at o fim da mar alta; mas foi somente aps um longo silncio,quando ele disse, com uma voz hesitante, suponho que os meus companheiros selembrem que eu tambm j fui um marinheiro de primeira viagem, que nos demos contade que estvamos destinados a ouvir umas das experincias inconclusivas de Marlow,pelo menos at que a mar baixa comeasse a vazar.

    No desejo aborrecer-lhes muito com o que aconteceu comigo pessoalmente,comeou ele, mostrando com esta observao a fraqueza de muitos dos contadores dehistrias que parecem to frequentemente ignorarem o que aqueles que o estavamouvindo desejavam realmente ouvir; ainda assim, para entenderem o efeito daquilosobre mim vocs devem saber como eu cheguei l, o que eu vi, como eu subi o rio ato ponto aonde eu viria a encontrar o pobre diabo. Era o ponto mais distante denavegao e o ponto culminante de minha experincia. Parecia que de algum modouma luz particular era lanada em tudo que havia em torno de mim e em todos osmeus pensamentos. Tambm era tudo muito sombrio e pattico de algum modopouco extraordinrio nem muito claro tampouco. No, nada muito claro. E aindaassim, parecia irradiar algum tipo de luz.

    Eu tinha por aquela poca, como vocs se lembram, acabado de retornar Londres aps uma volta pelo oceano ndico, pelo Pacfico, pelos mares da China umadose considervel de Oriente seis anos ou mais, e estava vagabundeando por a,importunando-os, meus camaradas, em seus trabalhos e invadindo as suas casas,como se eu possusse uma misso divina de lhes civilizar. Tudo isso foi muito bom porum tempo, mas aps um tempo, eu realmente me cansei de descansar. Ento eucomecei a procurar por um navio acredito que seja o trabalho mais difcil que h nomundo. Mas os navios no estavam interessados em mim. E acabei me cansandodaquele jogo tambm.

    Vejam bem, quando eu era apenas um pirralho, eu tinha uma verdadeirapaixo por mapas. Eu ficava olhando por horas para a Amrica do Sul, para a frica,ou para a Austrlia, e perdia-me em todas as glrias da explorao. quele tempohavia muitos espaos em branco no mundo e quando eu via um desses espaosparticularmente convidativo em um mapa (apesar de todos parecerem assim) eu logopunha o meu dedo sobre ele e dizia, Quando eu crescer eu irei para l. O plo norteera um desses lugares, isso eu bem me lembro. Bem, eu ainda no estive l, e notentarei ir para l agora. O glamour se esvaiu. Outros lugares se estendiam ao longodo Equador e em toda parte, em toda latitude por ambos os hemisfrios. Eu estive emalguns deles, e... bem, eu no lhes contarei sobre isso. Mas ainda havia um o maiordeles, o mais vazio de todos, por assim dizer que eu ainda ansiava.

    Verdade seja dita, que nessa altura ele no era mais um espao vazio. Desde

  • minha infncia, ele tinha sido preenchido com rios e lagos e nomes. Ele tinha deixadode ser um espao vazio, mistrio delicioso uma mancha em branco para um meninoque sonhava gloriosamente sobre ele. Ele tinha se tornado um lugar de escurido. Masl havia um rio em particular, um poderoso e enorme rio que, ao se olhar no mapa, seassemelhava a uma imensa cobra desenrolada com sua cabea junto ao mar, seucorpo em descanso se alongando por sobre a vastido do pas, e com a cauda perdidanas profundezas da terra. E assim que eu vi um mapa dele na vitrina de uma loja, eleme hipnotizou como uma cobra faz com um passarinho um pequeno passarinho tolo.Ento eu me lembrei que havia uma grande empresa comercial, uma Companhia quecomercializava naquele rio. Maldio! Pensei comigo mesmo, eles no podemcomercializar se no tiverem algum tipo de embarcao naquele monte de gua fresca barcos a vapor! Por que eu no procurava me empregar em algum deles? Eu seguipara a Rua Fleet, mas no parava de pensar nessa ideia. A cobra tinha mehipnotizado.

    Vocs compreendem que aquela sociedade comercial era uma empresa comsede no continente?; mas eu tenho um monte de conhecidos meus que vivem nocontinente, pois mais barato que aqui e no parece ser to sujo quanto parece, pelomenos o que dizem.

    Devo, contudo, admitir que comecei a preocup-los. Aquilo era um novoexpediente para mim. Eu no estava acostumado a obter coisas daquela maneira,como vocs bem sabem. Eu sempre percorri o meu prprio caminho e atravs deminhas prprias pernas, at onde a minha mente me levava. Eu mesmo no acreditavaem mim; mas, vejam, que eu tinha que chegar l a qualquer custo. Mas vocsacreditariam que eu tentei tudo isso atravs das mulheres? Eu, Charlie Marlow,coloquei as mulheres para trabalhar, para que me conseguissem um emprego. Mascus! Bem, vejam vocs, esse pensamento me guiou. Eu tinha uma tia, uma querida eentusistica alma. Ela me escreveu: Ser um prazer. Eu j estou pronta para tentarqualquer coisa, qualquer coisa por voc. uma ideia gloriosa. Conheo a esposa deuma pessoa muito importante na Administrao, e tambm um homem que tem muitainfluncia com..., e etc. e etc. Ela estava determinada a fazer o barulho que fossenecessrio para conseguir-me uma indicao como comandante de um navio fluvial avapor, se esse fosse o meu desejo.

    Eu consegui a minha nomeao claro; e a consegui muito rpido, por sinal.Parece que a Companhia tinha recebido a notcia de que um de seus capites tinhasido morto em uma disputa com os nativos. Aquela era a minha oportunidade e tudoisso me tornou mais ansioso ainda para partir. Foi somente meses e meses depois,quando tentei resgatar o que sobrara do corpo que ouvi que a querela original resultarade um desentendimento a respeito de algumas galinhas. Sim, duas galinhas pretas.Fresleven este era o nome do camarada, um dinamarqus achou que havia algo deerrado com a barganha e foi ao litoral, onde comeou a golpear o chefe do vilarejo comum pedao de pau. Oh, no me surpreendi em nada com o que eu ouvi, mesmo quando

  • me contaram que Fresleven era a mais gentil e tranquila criatura que j caminhou sobreduas pernas neste mundo. Sem dvida alguma de que ele o era; mas j fazia um bompar de anos que ele estava envolvido com essa nobre causa, como vocs bem sabem,e ele provavelmente sentiu necessidade afinal de afirmar o seu respeito prprio dealgum modo. Desse modo, ele golpeou o velho negro sem qualquer misericrdia,enquanto uma grande multido o observava, sem acreditar no que viam, at que umoutro homem disseram-me que era o filho do chefe desesperado por ouvir os gritosdo velho, tentou afastar aquele homem branco com uma lana e, claro, perfurou-ofacilmente por entre as omoplatas. Toda a populao do vilarejo fugiu para a floresta,diante da expectativa de toda sorte de calamidades, enquanto, ao mesmo tempo, ovapor que era comandado por Fresleven tambm partia em pnico, sob as ordens doengenheiro de bordo, acredito eu. Depois de tudo isso, ningum parecia se importarcom os restos mortais de Fresleven, at que eu aparecesse e tomasse o seu lugar. Euno poderia deix-lo l, afinal; mas quando surgiu uma oportunidade afinal de encontraro meu predecessor, a grama que crescia por entre as suas costelas j estava alta osuficiente para lhe esconder os ossos. Eles estavam todos l. O ser sobrenatural nohavia sido tocado desde que tombara. E o vilarejo estava deserto, as choupanasenegrecidas, apodrecendo, e tudo arruinado dentro das cercas cadas. Umacalamidade se abatera sobre o local, sem dvida alguma. As pessoas tinhamdesaparecido. Um terror alucinado tinha se abatido sobre eles, homens, mulheres ecrianas se lanaram floresta e nunca mais retornaram. O que foi feito das galinhastambm no consegui descobrir. Suponho que a causa do progresso as tenhacapturado, de qualquer forma. Contudo, por meio desse glorioso negcio, obtive minhanomeao, antes mesmo de ter nutrido alguma esperana de obt-la.

    Eu corri como um louco para me aprontar e em menos de 48 horas j estavacruzando o Canal para me apresentar pessoalmente aos meus empregadores e assinaro contrato de trabalho. Em algumas poucas horas, cheguei cidade que sempre mefazia lembrar um tmulo branco. Preconceito, sem dvida alguma. No tive dificuldadeem encontrar os escritrios da Companhia. Era a maior construo da cidade e todomundo com quem me encontrava se orgulhava muito dela. Eles estavam se preparandopara se tornar um imprio ultramarino e estavam ganhando rios de dinheiro com onegcio.

    Uma rua, estreita e deserta, lanada em profundas sombras, casas altas,inmeras janelas com venezianas, um silncio mortal, a grama brotando por entre aspedras, imponentes passagens arcadas para as carruagens, tanto direita quanto esquerda, imensas portas duplas ponderadamente entreabertas. Deslizei-me por umadessas aberturas, subi por uma escada limpa e sem quaisquer enfeites, to ridaquanto um deserto, e abri a primeira porta que encontrei. Duas mulheres, uma gorda eoutra magra, sentadas em cadeiras de palha, tricotando com l preta. A mais magra selevantou e caminhou diretamente at mim, ainda tricotando com os olhos baixos esomente quando eu comecei a pensar em sair de seu caminho, como voc faria diantede um sonmbulo, ela parou e levantou os olhos. Seu vestido era to simples quanto

  • uma capa de guarda-chuva e, voltando-se sem dizer uma palavra sequer, dirigiu-me atuma sala de espera. Eu lhe forneci o meu nome e olhei em volta. Uma mesa de pinhono meio, cadeiras de espaldar alto ao redor junto das paredes, e por fim um mapaenorme e resplandecente, marcado com todas as cores de um arco-ris. Havia umaquantidade enorme de pontos em vermelho fceis de serem vistos em qualquertempo, pois qualquer um sabe que algum trabalho de verdade feito l, uma boa partede pontos em azul, um pouco de verde, algumas reas em laranja, e, na CostaOriental, trechos em roxo, mostrando onde os alegres pioneiros do progresso bebiam adeliciosa cerveja alem. Entretanto, eu no iria para nenhum desses lugares. Eu estavaindo para as reas amarelas. Bem para o meio delas. E o rio estava l fascinante mortalmente fascinante como uma cobra. Finalmente, uma porta se abriu, umacabea de secretrio com cabelos encanecidos, que apresentava uma expresso cheiade compaixo, apareceu e um indicador magricelo chamou-me para dentro dosanturio. A luz era turva e uma escrivaninha pesada se estendia no meio da sala. Pordetrs daquela estrutura, surgiu uma imagem plida e gordurosa, vestindosobrecasaca. O todo-poderoso em pessoa. Ele tinha cerca de um metro e setenta,pelo que pude ver, e o seu aperto de mo tinha o peso de milhes. Cumprimentamo-nos; ele murmurou algo e pelo que percebi ficou satisfeito com o meu francs. Bonvoyage.

    Aproximadamente quarenta e cinco segundos depois, encontrei-me novamentena sala de espera em companhia do secretrio misericordioso que, cheio de desolaoe simpatia, fez com que eu assinasse um documento. Acredito que me comprometi,entre outras coisas, a no revelar nenhum segredo comercial. Bem, eu no pretendiafaz-lo.

    Comecei a me sentir um pouco desconfortvel. Vocs sabem que no costumoser muito de cerimnias e havia algo de ameaador no ar. Era exatamente como se eutivesse sido levado para dentro de alguma conspirao no sei bem algo que decerta forma no era correto; e fiquei feliz em sair de l. Na sala anterior, as duasmulheres tricotavam a l preta com grande fervor. Algumas pessoas chegaram e amais nova delas andava de um lado para o outro, apresentando-os. A mais velha delaspermanecia sentada em sua cadeira. Suas pantufas de pano liso apoiavam-se sobreum aquecedor para os ps e um gato dormia em seu colo. Ela usava um pano brancoengomado sobre sua cabea, tinha uma verruga em uma de suas bochechas e culosde aros prateados equilibravam-se na ponta de seu nariz. Ela olhou para mim por cimados culos. A placidez suave e indiferente daquele olhar me perturbou. Dois jovens comaparncia tola e sorridente estavam sendo introduzidos ali e ela lhes lanou o mesmoolhar gil de sabedoria indiferente. Ela parecia saber tudo a respeito deles e de mimtambm. Um sentimento assustador se apoderou de mim. Ela parecia misteriosa efunesta. Por vrias vezes, j longe dali, pensei naquelas duas como guardis dasportas da Escurido, tricotando a l preta como se fosse uma dura mortalha, umadelas conduzindo e conduzindo continuamente para o desconhecido e a outra

  • escrutinando os rostos tolos e sorridentes com os seus velhos olhos indiferentes. Ave!Velha tricoteira de l preta. Morituri te salutant[2]. Muitos destes que ela contemplouno foram capazes de v-la novamente nem a metade deles, se tanto.

    Ainda deveria realizar uma visita ao mdico. Uma simples formalidade,assegurou-me o secretrio, com um ar de quem compartilhava imensamente parte detodas as minhas dores. Logo em seguida, um jovem indivduo, usando um chapu quelhe cobria a sobrancelha esquerda algum funcionrio, eu supus, pois deveria haveralguns funcionrios no negcio apesar da edificao estar to em silncio quanto ummausolu na cidade dos mortos surgiu de algum lugar, vindo dos andares superiorespara me conduzir. Tinha um aspecto surrado e descuidado, com manchas de tinta nasmangas de seu casaco e com uma charpe grande e encapelada atada sob um queixoque mais lembrava a ponta de uma bota velha. Ainda era um pouco cedo para o mdicochegar e, deste modo, sugeri tomarmos algo e por causa disso ele se mostrou maisanimado. Enquanto nos entregvamos aos vermutes, ele glorificava os negcios daCompanhia e, aos poucos, expressei casualmente minha surpresa por ele nunca ter idoat l. De repente, ele tornou-se muito frio e contido. No sou to tolo quanto pareo,disse Plato aos seus discpulos, afirmou ele laconicamente, esvaziando o seu copocom grande resoluo e se levantando.

    Um mdico idoso tomou-me o pulso, evidentemente pensando em qualqueroutra coisa, enquanto isso. Bom, bom para l, ele murmurou e ento, com certoentusiasmo perguntou-me se ele poderia tirar as medidas de minha cabea. Meiotomado de surpresa, respondi que sim, no que ele pegou um instrumento, semelhante aum compasso de calibre e tirou as dimenses da frente e do fundo e as demaistambm, fazendo anotaes minuciosas de tudo. Ele era um homem baixo, com barbapor fazer, usando um jaleco esfarrapado de gabardina, com os ps metidos empantufas, o que lhe dava um aspecto meio tolo, inofensivo at. Sempre peo para medeixarem tirar as medidas do crnio daqueles que vo para l, no interesse da cincia,disse ele. E quando eles retornam tambm?, perguntei-lhe. Oh, eu nunca mais osvejo, observou ele; e, alm disso, as mudanas acontecem nas partes internas, comovoc deve saber. Ele sorriu, como se isso fosse algum tipo de piada. Ento, voc estindo para l. Excelente. Interessante tambm. Ele olhou atentamente para mim, e fezoutra anotao. H algum sinal de insanidade em sua famlia?, perguntou-me, de ummodo trivial. Senti-me muito incomodado com isso. Essa pergunta tambm pelointeresse da cincia?. Sem demonstrar qualquer irritao, ele disse, Seria interessantepara a cincia observar as mudanas mentais dos indivduos em situaes difceis,mas.... Voc um alienista?[3], eu o interrompi. Todo mdico deveria ser umpouco, respondeu-me aquele ser to original, sem nem sequer se perturbar comaquilo. Eu tenho uma teoria que vocs, messieurs, que vo para l devem me ajudar aprovar. Esta a minha participao nas vantagens auferidas pelo meu pas pela possede tal colnia magnfica. A mera riqueza eu deixo para os outros. Perdoe-me as minhasperguntas, mas voc o primeiro ingls que eu posso examinar.... Apressei-me emassegurar-lhe que eu era uma pessoa muito comum. Se eu fosse especial, disse eu,

  • no estaria conversando com voc nesses termos. O que voc diz bastanteprofundo e provavelmente muito equivocado, disse ele, gargalhando. Evito me irritarmais do que me expor ao sol. Adieu. Ou como dizem vocs ingleses, Good-bye. Ah,Good-bye, Adieu. Nos trpicos devemos, antes de qualquer coisa, manter a calma... Eergueu o indicador em sinal de advertncia... Du calme, du calme, Adieu.

    Ainda restava uma coisa a ser feita dizer adeus minha excelente tia. Achei-a triunfante. Tomei uma xcara de ch a ltima xcara de ch decente em muitos dias e, em uma sala, cuja aparncia tranquilizadora era o que se deveria esperar de umasala de estar de uma dama, tivemos uma longa e calma conversa ao p da lareira. Aolongo dessas confidncias, ficou bastante claro para mim que eu tinha sido indicadopara a esposa de um alto dignitrio, e sabe-se l para quantas outras pessoas mais,como sendo uma criatura abenoada e excepcional uma pea de boa ventura para aCompanhia um homem que no se conseguia encontrar todos os dias. Por Cus! Eeu estaria assumindo um barco fluvial a vapor de meros dois centavos e meio com umapito de um centavo! Entretanto, parecia que eu seria um dos Trabalhadores, com Tmaisculo, vocs sabem. Algo semelhante a um emissrio da luz, ou a um tipo menorde apstolo. Havia muito desse tipo de sandice circulando quela poca, tantoimpresso quanto falado, e uma excelente mulher, vivendo corretamente no meio detanto engodo, acabou por deixar se levar. Ela falou tanto em livrar aqueles milhes deignorantes daqueles horrveis vcios, que, acreditem, deixaram-me muitodesconfortvel. Cheguei mesmo a insinuar-lhe que a Companhia buscava apenaslucros, isso sim.

    Voc se esquece, meu querido Charlie, que o trabalhador vale pelo querecebe, ela disse cheia de orgulho. extraordinrio o quanto as mulheres esto parte da verdade. Elas vivem em um mundo prprio e nunca houve nada como isso nemnunca poder haver. Mas no geral, isso muito bonito e se fosse revelado elas sedespedaariam antes do primeiro pr-do-sol. Qualquer fato embaraoso com o qualns homens vivemos com satisfao desde os dias da criao arrancaria de suasbases e derrubaria a coisa toda.

    Aps esse encontro, fui abraado, orientado a usar roupas quentes, escreverfrequentemente e outras coisas mais... e parti. Na rua, no sei bem o porqu, umsentimento estranho se apoderou de mim, como se eu fosse um impostor.Curiosamente eu que me acostumara a estar preparado para partir para qualquer partedo mundo vinte e quatro horas aps o aviso, com menos preocupao que a maioriados homens ao atravessar uma rua, tive um momento, no diria de hesitao, mas deuma pausa cheio de temor diante daquele assunto to corriqueiro. A melhor maneira delhes explicar isto dizendo que, por um segundo ou dois, eu me senti como seestivesse pronto para me dirigir para o centro da terra, ao invs de me dirigir para ocentro de um continente.

    Eu parti em um vapor francs e esse parou em cada porto amaldioado queeles tinham por l, pelo que pude ver, com o nico propsito de desembarcar soldados

  • e oficiais alfandegrios. Observei a costa. Observar a orla enquanto esta desliza aolado de um navio como refletir sobre um enigma. Ela permanece diante de vocs,sorridente, carrancuda, convidativa, grandiosa, perversa, inspida ou selvagem e, namaioria das vezes, calada com um ar de quem suspira, venha e me decifre. Aquela eraquase sem sinais particulares, como se estivesse em formao, com um aspecto deuma crueldade montona. As margens de uma selva colossal, de um verde to escuroque quase era negro, debruadas com ondas brancas, corria reta, como uma linhatraada por uma rgua, bem ao longo de um mar azul, cujo brilho era diminudo poruma nvoa rasteira. O sol era violento, a terra parecia resplandecer e gotejar com ovapor. Aqui e acol, pontos brancos e acinzentados surgiam, agrupados dentro dasondas brancas, talvez como uma bandeira que tremulava do alto. Assentamentos comalguns sculos de idade e que ainda no eram maiores que uma cabea de alfinetecolocados sobre a extenso intocvel daquele pano de fundo. Ns ramos sacudidos,parvamos, desembarcvamos soldados; continuvamos, desembarcvamos oficiaisalfandegrios para cobrar impostos do que parecia uma vastido esquecida por Deus,apenas com um galpo de telhas de zinco e um mastro de bandeira; desembarcvamosmais soldados para tomar conta dos funcionrios das aduanas, provavelmente.Alguns, pelo o que eu ouvi, se afogavam na arrebentao; mas se era ou no verdade,ningum parecia realmente se importar. Eles simplesmente eram largados l e depoisprosseguamos. O litoral parecia o mesmo, dia aps dia, como se ns no tivssemosnos movido; entretanto, passamos por vrios lugares pontos de comrcio comnomes como GranBassam e Little Popo, nomes que pareciam pertencer a algumasrdida farsa, encenada diante de uma cortina sinistra. A indolncia de um passageiro,meu isolamento entre todos aqueles homens com os quais no tive nenhum contato, omar lnguido e escorregadio, a uniforme melancolia do litoral, pareciam me manterafastado da verdade das coisas, dentro do duro trabalho de uma iluso estpida edesolada. O barulho das ondas, ouvido de vez em quando, era o nico prazer positivo,como o discurso de um irmo. Era algo natural que tinha sua prpria razo esignificado. De vez em quando, um escaler vindo do litoral nos trazia um contatomomentneo com a realidade. Era remado por nativos negros. Podia-se ver de longe abrancura de seus olhos cintilando. Eles gritavam e cantavam; de seus corpos corriatranspirao; os rostos desses camaradas eram como mscaras grotescas,entretanto, eles tinham ossos, msculos e vitalidade selvagens, uma intensa energia demovimento que era to natural e verdadeira como a arrebentao ao longo da costa.No precisavam de nenhuma desculpa por estarem ali. Era uma grande satisfaoolhar para eles. Por um momento, eu me senti como se ainda pertencesse a um mundoverdadeiramente justo, entretanto, este sentimento no durou muito tempo. Algosurgiria para espant-lo. Lembro-me uma vez que nos encontramos com uma nau deguerra fundeada na costa. No havia sequer um barraco ali, mas ela bombardeava aselva. Parecia que os franceses estavam em guerra por aquelas paragens. Suasinsgnias pendiam como trapos de seus mastros; as bocas dos grandes canhes deoito polegadas se lanavam por todo o casco inferior; a mar enlameada e oleosa o

  • erguia e o abaixava indolentemente, oscilando os seus finos mastros. Ele ficava ali,incompreensivelmente disparando contra o continente, diante da imensido vazia daterra, do cu e da gua. Disparando por um de seus canhes de oito polegadas; umapequena labareda era lanada e desaparecia, uma pequena nuvem branca sedissipava, um pequeno projtil lanava um chiado franzino e nada acontecia. Nadapoderia acontecer. Havia um toque de insanidade naquele procedimento, um sentimentocmico e lgubre naquela viso toda; e que no se dissipou quando algum a bordo meassegurou seriamente que l havia um acampamento de nativos... ele os chamou deinimigos... escondidos ali em algum lugar fora de nossa viso.

    Entregamos as cartas a eles destinadas (ouvi que os homens daquelaembarcao solitria estavam morrendo de febre dentro de uma mdia de trs por dia)e prosseguimos. Passamos por alguns outros lugares com nomes estranhos, aonde aalegre dana da morte e do comrcio prosseguia sob uma atmosfera inerte e terrosacomo se fosse uma catacumba escaldante; ao longo daquele litoral sem forma,emoldurado por ondas perigosas, como se a prpria Natureza tentasse repelir osintrusos; entrando e saindo de rios com correntezas mortais, mesmo em vida, cujasmargens apodreciam sob o lodo, cujas guas, engrossadas com o limo, invadiammangues deformados que pareciam se contorcer diante de ns ao cabo de umdesespero impotente. No paramos tempo suficiente em lugar nenhum para obtermosalguma impresso detalhada, mas o sentimento geral de um espanto vago e opressivocrescia dentro de mim. Era como uma peregrinao fatigante por entre caminhosrepletos de pesadelos.

    Levou mais de trinta dias antes de eu conseguir ver a foz do grande rio.Fundeamos prximo sede do governo. Mas meu trabalho no comearia seno amais de trezentos e vinte quilmetros dali. Deste modo e assim que eu pude, comecei ajornada at uma localidade 48 quilmetros mais acima.

    Eu tinha uma passagem em um pequeno navio a vapor de alto-mar. Seucapito era um sueco e, ao descobrir que eu era um marinheiro, convidou-me pontede comando. Ele era um homem jovem, magro, belo e de poucas palavras, comcabelos ralos e um andar arrastado. Assim que deixamos aquele pequeno caismiservel, fez um gesto cheio de desdm com a cabea em direo ao litoral. Estevemorando ali?, perguntou-me. Respondi-lhe que sim. Esses camaradas do governo sogente boa, no so?, prosseguiu ele, falando em um ingls com grande preciso econsidervel amargura. engraado o que alguns pessoas fazem por uns poucosfrancos por ms. Imagino que tipo de pessoas se tornam quando vo para o interior.Respondi-lhe que eu logo veria. !, ele exclamou, enquanto se arrastava at ooutro lado, sempre vigilante. No esteja to certo disso, continuou. Outro dia euapanhei um homem que se enforcou na estrada. Ele era sueco tambm. Enforcou-se!Mas por que, em nome de Deus?, exclamei. Ele continuou a olhar para foraatentamente. Quem sabe? Talvez o sol tenha sido demais para ele ou quem sabe aregio.

  • Por fim, chegamos a um brao aberto. Um penhasco rochoso apareceu,montes de terra reviradas sobre o litoral, casas sobre um morro, outras, com tetos demetal, por entre os restos de uma escavao ou dependuradas em um declive. Umrudo contnuo das corredeiras acima pairava sobre aquela cena de devastaohabitada. Um grande nmero de pessoas, a maioria negras e nuas, movia-se comoformigas. Um ancoradouro se projetava para dentro do rio. Uma luz do sol ofuscantemergulhava tudo aquilo, de tempos em tempos, em uma repentina renovao declaridade. Eis o seu entreposto da Companhia, disse o sueco, apontado para trsbarraces de estrutura de madeira em uma inclinao rochosa. Vou pedir para quedescarreguem as suas coisas. Quatro caixas voc disse? Muito bem ento. Adeus.

    Deparei-me com uma caldeira deleitando-se sobre a relva, at encontrar umcaminho que me conduziu morro acima. Ele contornava um macio de rochas, bemcomo um vago de estrada de ferro, de tamanho menor que o habitual, que estavajogado de lado com as rodas voltadas para o ar. Faltava uma roda ali. A coisa todaparecia to morta quanto uma carcaa de um animal qualquer. Passei por maisalgumas peas de maquinrio deterioradas, uma pilha de trilhos enferrujados. esquerda, uma massa de rvores produzia uma mancha sombria, onde coisasenegrecidas pareciam se mover com fraqueza. Pisquei os olhos, pois a trilha erangreme. Uma sirene soou direita e eu vi os negros correrem. Uma detonao pesadae entorpecente sacudiu o cho, uma fumarada saiu dos rochedos e isto foi tudo.Nenhuma mudana pode ser notada nas faces da rocha. Eles estavam construindo umaestrada de ferro. O rochedo no estava no caminho da via ou de qualquer outra coisa,mas a exploso sem propsito era o nico trabalho a ser feito.

    Um leve tilintar atrs de mim fez com que eu virasse minha cabea. Seisnegros avanavam em fila, escalando a trilha. Eles caminhavam eretos e devagar,equilibrando pequenos cestos cheios de terra em suas cabeas, e o tilintar marcava opasso deles. Trapos pretos estavam enrolados em torno de seus quadris e as pontascadas para trs, balanavam de um lado para o outro como se fossem rabos. Eupodia ver cada uma das costelas, as juntas de seus membros pareciam ns de umacorda; cada um deles possua um colar de ferro no pescoo e todos aqueles estavamunidos por meio de uma corrente, cujos elos balanavam entre eles, em um tilintarritmado. Outro aviso vindo do rochedo me fez lembrar de repente do navio de guerraque eu vira disparar contra o continente. Era o mesmo tipo de voz ameaadora, masesses homens no possuam o mnimo de imaginao para serem classificados comoinimigos. Eram chamados de criminosos e a lei ultrajante, como mariscosdespedaados, havia se abatido sobre eles, em um mistrio insolvel oriundo de alm-mar. Todos os peitos magros arfavam ao mesmo tempo, as narinas violentamentedilatadas tremiam, os olhos fitavam com dureza colina acima. Eles passaram a menosde quinze centmetros de mim, sem ao menos, me olhar, com aquela completaindiferena moral dos selvagens infelizes. Por detrs daquela matria bruta, um dosregenerados, o produto das novas foras do trabalho, seguia indolentemente,

  • carregando uma espingarda pelo meio. Usava um casaco de uniforme com um botofaltando e, ao ver um homem branco pelo caminho, colocava sua arma em seu ombrocom diligncia. Era uma simples questo de prudncia, pois os homens brancos eramtodos parecidos distncia e ele no poderia afirmar quem eu poderia ser. Elerapidamente se acalmou e com um sorriso forado, largo, branco e perverso e um olharde relance para o seu fardo, pareceu tomar-me como parceiro de sua exaltadaconfiana. Afinal, eu tambm fazia parte da grande causa daqueles nobres e justosprocedimentos.

    Ao invs de continuar subindo, virei e desci pela esquerda. Minha ideia eradeixar aquele grupo de acorrentados fora de minha viso antes de subir a colina. Vocssabem que eu no sou particularmente delicado com certas coisas: eu j tive que batere tive que me defender. Eu resisti e ataquei algumas vezes pois, s vezes, o nicomeio de se resistir sem contar o custo exato de acordo com as exigncias do tipo devida em que eu me metera. Eu j testemunhei o diabo da violncia e o diabo daganncia, alm do diabo do desejo ardente, mas, por todas as estrelas do cu, aqueleseram demnios de olhos vermelhos, fortes e robustos que governam e conduzem oshomens... mas homens, isso posso lhes dizer. Mas, de p ali naquela ribanceira, euantevi que, sob a luz ofuscante do sol naquela terra, eu conheceria um demnio flcido,dissimulado, de olhos dbeis de uma estupidez opressora e cruel. O quo insidioso eletambm poderia ser, eu somente descobriria alguns meses mais tarde e a milhares dequilmetros dali. Por um momento, eu parei horrorizado, como se tocado por umaadvertncia. Finalmente, desci a colina, pela diagonal, em direo s rvores que euhavia visto.

    Evitei passar por um grande buraco artificial que algum havia cavado naladeira, cujo propsito, julguei impossvel de se adivinhar. De qualquer forma, no eranem uma pedreira nem um poo de areia. Era apenas um buraco. Poderia estar ligadoao desejo filantrpico de dar aos criminosos algo para se fazer. No sei bem. Logodepois, eu quase despenquei em uma ravina estreita, praticamente uma cicatriz naencosta da colina. Descobri que muitos dos canos de tubulao para drenagemimportados para o assentamento tinham sido lanados l. No havia um sequer que noestivesse quebrado. Era uma destruio vergonhosa. Por fim, cheguei sob as rvores.Meu propsito era o de passear um pouco pela sombra, contudo, logo parecia que euhavia adentrado a algum dos crculos sombrios do Inferno. As corredeiras estavam aliperto e um rudo ininterrupto, uniforme, rpido e precipitado preenchia a desoladoraimobilidade do bosque, onde nenhuma brisa se agitava, nenhuma folha se movia, comum som misterioso como se o ritmo lacrimejante da terra rasgada de repente setornasse audvel.

    Formas negras se agachavam, se recostavam e se sentavam entre asrvores, recostando-se contra os troncos, agarrando-se terra, metades visveis,metades apagadas dentro da penumbra, todas elas em atitudes de dor, de abandono ede desespero. Outra mina no penhasco explodiu, seguida por um leve tremor no solo

  • sob meus ps. O trabalho continuava. O trabalho! E este era o lugar onde alguns dosajudantes tinham sido lanados para morrer.

    Eles estavam morrendo lentamente isso era bem claro. Eles no eraminimigos, eles no eram criminosos, eles no eram nada mais na terra, alm desombras negras de doenas e fome, lanados de maneira confusa dentro de trevasesverdeadas. Trazidos de todos os recessos da costa, dentro de toda legalidade decontratos temporrios, perdidos nas cercanias incompatveis, alimentados com umacomida desconhecida, eles adoeciam, tornavam-se ineficientes e, ento, lhes erapermitido rastejar at ali e descansar. Essas formas moribundas eram livres como o are, to transparentes quanto ele. Comecei a distinguir o brilho dos olhos sob as rvores.Ento, ao olhar para baixo, vi um rosto perto de minha mo. Os ossos negros sereclinavam por completo com um dos ombros apoiados contra a rvore e, lentamente,as plpebras se ergueram e os olhos fundos me encararam, enormes e vazios, iguais aum tipo de cegueira, uma leve centelha nas profundezas das rbitas que morrialentamente. O homem parecia ser jovem quase um menino mas vocs sabem como difcil se determinar isto. No soube o que fazer alm de lhe oferecer um dosbiscoitos do navio do bom sueco que ainda mantinha em um dos meus bolsos. Osdedos se fecharam lentamente em torno do biscoito e o seguraram no houvequalquer outro movimento, nem qualquer outro olhar. Ele tinha atado um pedao de lbranca em torno de seu pescoo Por qu? Onde ele tinha conseguido isso? Era umsinal, um ornamento, um amuleto, um ato propiciatrio? Haveria algum propsito emtudo que estivesse ligado a ele? Era impressionante aquele pedao de l branca vindode alm-mar atado em torno de seu pescoo negro.

    Prximo da mesma rvore, mais dois montes de ngulos agudos se sentavamcom suas pernas encolhidas. Um deles, com o queixo apoiado sobre os seus joelhos,olhava para o vazio de um modo intolervel e pavoroso; seu irmo fantasmagricodescansava sua testa como se tomado por uma grande fraqueza; e todos os demaisestavam espalhados na mesma posio de um colapso contorcido, como em umaimagem atingida por um massacre ou por uma peste. Enquanto eu permanecia ali,horrorizado, uma daquelas criaturas se ergueu, e apoiado-se sobre suas mos ejoelhos, prosseguiu de quatro at o rio para beber de suas guas. Ele lambeu a guade suas mos e, ento, sentou-se sob o sol, cruzando suas pernas diante do corpo;depois de um tempo, deixou sua cabea de carrapicho cair sobre seu peito.

    No quis mais me demorar ali nas sombras e segui apressadamente para oentreposto. Prximo dos edifcios, eu encontrei um homem branco, com uma elegnciano se vestir to inesperada que, em um primeiro momento, julguei-me tomado por umaviso. Eu vi um colarinho alto e engomado, punhos brancos, um casaco de alpaca leve,calas brancas como a neve, uma gravata limpa e botas engraxadas. Sem chapu.Cabelos divididos ao meio, escovados e untados, sob uma sombrinha com alinhavadosverdes, segurada por uma grande mo branca. Ele era impressionante e tinha umportacanetas atrs de sua orelha.

  • Cumprimentei aquela maravilha e descobri que ele era o contador-chefe daCompanhia e que toda a contabilidade era feita nesse entreposto. Ele havia acabadode sair por um momento, como me afirmou, para tomar um pouco de ar fresco. Aexpresso pareceu-me maravilhosamente curiosa, por sugerir uma vida sedentria pordetrs de uma escrivaninha. Eu nem sequer mencionaria a presena daquele sujeito avocs se no fosse dos lbios deles que eu ouviria pela primeira vez o nome do homemque est to indissoluvelmente associado s lembranas daquele tempo. Alm disso,eu respeitava aquele sujeito. Sim, eu respeitava aqueles colarinhos, seus punhoslargos, seu cabelo escovado. Sua aparncia era certamente a de um manequim decabeleireiros, mas diante da grande degradao da terra, ele mantinha uma aparnciaalinhada. Demonstrava determinao. Seu colarinho engomado e o peitilho eleganteeram demonstraes de carter. J fazia trs anos que ele estava ali,aproximadamente; e, mais tarde, no pude me conter e lhe perguntei como eleconseguia se manter to alinhado. Ele ficou por um momento um pouco encabulado edisse, modestamente, eu tenho ensinado uma das nativas que trabalha no entreposto.Foi difcil, pois ela tinha certo desgosto pelo trabalho. Este homem verdadeiramentehavia conseguido algo. E era devotado aos seus livros, mantidos na mais perfeitaorganizao.

    Tudo o mais no entreposto estava em uma baguna homens, coisas einstalaes. Filas de negros empoeirados com seus ps chatos chegavam e partiam;uma srie de produtos manufaturados, peas de algodo cru, colares de contas epulseiras de lato que seguiam para as profundezas das trevas e, em troca, se obtinhapreciosos filetes de marfim.

    Tive que esperar no entreposto por dez dias uma eternidade. Morei em umbarraco no ptio, mas para fugir do caos, muitas vezes me refugiava no escritrio docontador. Este era construdo com pranchas horizontais de madeira, to porcamenteencaixadas, que o contador, ao se inclinar sobre o balco, ficava marcado da cabeaaos ps com finas linhas formadas pela luz do sol. No havia necessidade de se abrir agrande persiana. L tambm era muito quente; grandes mosquitos voavam zunindosatanicamente e esses no picavam, apunhalavam. Costumava me sentar no cho,enquanto que ele, com uma aparncia impecvel (e mesmo levemente perfumado), seempoleirava no alto de uma banqueta, escrevendo, escrevendo sem parar. s vezes,ele se levantava para se esticar. Quando uma maca, com um doente (algum agenteinvlido oriundo de algum lugar do interior) foi colocada l, ele demonstrou certoaborrecimento moderado. Os gemidos desta pessoa doente, dizia ele, distraem aminha ateno. E sem esta, extremamente difcil evitar algum erro na contabilidadecom este clima.

    Certo dia, sem sequer levantar a cabea, comentou, Com certeza, vocencontrar o senhor Kurtz no interior. Ao perguntar-lhe quem era o senhor Kurtz, eleme respondeu que se tratava de um agente de primeira-classe; e percebendo o meudesapontamento quanto quela informao, complementou, vagarosamente, enquanto

  • deitava sua pena, Ele uma pessoa notvel. Perguntas posteriores extraram dele queo senhor Kurtz estava atualmente a cargo de um entreposto comercial, um dos maisrelevantes, na importante regio do marfim, bem nos confins do territrio. Eledespacha tanto marfim quanto todos os demais juntos... Ele voltou a escrever. Ohomem doente estava enfermo demais para gemer. As moscas zumbiam em grandepaz.

    De repente, ouvimos um grande e crescente murmurar de vozes e um grandebater de ps. Uma caravana havia chegado. Um violento balbuciar de sons grosseirosoriundos do outro lado das pranchas de madeira. Todos os carregadores estavamfalando ao mesmo tempo e, em meio baderna, ouvia-se a voz lamuriosa do chefe dosagentes entregando os pontos dolorosamente pela vigsima vez naquele dia... Elelevantou-se devagar. Que discusso assustadora, disse ele, cruzando a sala e olhandogentilmente para o homem doente e, ao retornar, disse para mim, Ele no ouve. Oqu? Morreu?, perguntei aterrorizado. No, ainda no, respondeu com grandecompostura. E, indicando com um meneio de cabea o tumulto no ptio do entreposto,disse Quando algum tem que fazer os lanamentos corretos na contabilidade, comcerteza deve odiar esses selvagens odiar a ponto de mat-los. Ele permaneceupensativo por um momento. Quando voc se encontrar com o senhor Kurtz, continuou,diga-lhe de minha parte que tudo aqui, olhando para o balco, continua muitosatisfatrio. Eu no gosto de lhe escrever pois, com mensageiros como os nossos,nunca sabemos o que se pode acontecer com as nossas cartas... ao chegar aoentreposto central. Ele ficou me encarando por um momento com seus olhos suaves earregalados. Oh, ele ir longe, muito longe, comeou novamente. Ele ser algum naadministrao logo, logo. Eles, l, no Conselho, na Europa, como voc bem sabe,pretendem que ele seja.

    Ele retornou para o seu trabalho. O barulho do lado de fora havia terminado e,naquele instante, ao sair, detive-me porta. No constante zumbido das moscas, oagente que se dirigia de volta ptria estava deitado, corado e insensvel; o outro,inclinado sobre seus livros, estava produzindo alguns registros corretos de algumastransaes perfeitamente corretas; e uns quinze metros abaixo dos degraus da portaeu pude ver os tranquilos topos das rvores do bosque da morte.

    No dia seguinte, eu afinal deixei aquele entreposto, com uma caravana desessenta homens para uma viagem de uns 320 quilmetros.

    Nem vou lhes dar muitos detalhes sobre a viagem. Trilhas e mais trilhas portoda parte; uma rede de trilhas estampadas e espalhadas na terra vazia, atravs darelva alta, atravs da relva queimada, atravs dos bosques cerrados, subindo edescendo ravinas assustadoras, subindo e descendo colinas pedregosas,incandescentes com o calor; e, uma solido, uma solido... ningum... nem umacasinha sequer. A populao havia se retirado dali j h muito tempo. Bem, se umgrupo de negros misteriosos armados com todo tipo de armas aterrorizadoras, derepente decidisse viajar pela estrada entre Deal e Gravesend, obrigando os

  • campesinos a torto e a direito a carregarem fardos pesados para eles, tambmimagino que cada fazenda e cabana por aquelas paradas ficariam desertasrapidamente. S que ali mesmo as habitaes tinham desaparecido tambm. Tambmpassei por diversos vilarejos abandonados. Havia certa infantilidade pattica nas runasdaquelas paredes de palha. Dia aps dia, com o trote e o arrastar de sessenta paresde ps descalos atrs de mim, cada par sob trinta quilos de carga. Acampar,cozinhar, dormir, levantar acampamento, marchar. De vez em quando, um carregadormorto pelo excesso de trabalho, jazendo na relva alta prxima da trilha, com umacabaa vazia e sua longa vara estendida ao seu lado. Um grande silncio por todos oslados. Talvez em alguma noite mais tranquila o bater de tambores distantes, diminuindo,crescendo, grandes e pequenas batidas; um som estranho, suplicante, sugestivo eselvagem e talvez com uma profundidade to significativa quanto o som de sinos emuma regio crist. Vez ou outra, um homem branco revestido com seu uniformedesabotoado, acampava ao longo da trilha com uma escolta armada de zanzibarisaltos, muito hospitaleiros e festivos, para no dizer bbados. Estava ali para cuidar damanuteno da estrada, assim ele declarou. No posso dizer que tenha visto algumaestrada ou mesmo alguma manuteno, a no ser que o corpo de um negro de meia-idade, com um buraco de bala bem no meio da testa, com o qual tropecei literalmenteuns quatro quilmetros mais frente, possa ser considerada como uma melhoriapermanente. Eu tambm tinha um companheiro branco nessa empreitada, um bomcamarada de qualquer modo, um tanto gorducho e com o hbito irritante de desmaiarnos barrancos ensolarados, a quilmetros de qualquer sombra ou gua. Vocs sabemo quanto irritante ficar segurando o nosso prprio casaco, como uma sombrinha,sobre a cabea de um homem enquanto ele no se recupera. No pude deixar de lheperguntar, uma das vezes, o que diabos ele estava fazendo ali afinal. Para se ganhardinheiro, certamente. O que mais poderia ser?, disse ele, com grande desdm. Foiquando ele teve febre e precisou ser carregado em uma rede presa a uma vara. Comoele pesava mais que dezesseis pedras, minhas discusses com os carregadores notinham fim. Eles se afastavam, fugiam, se evadiam com os seus carregamentos nomeio da noite praticamente um motim. Ento, numa noite, fiz um discurso em inglsrecheado com gestos que no passaram despercebidos pelos sessenta pares de olhosdiante de mim, e na manh seguinte ordenei que a rede seguisse nossa frente. Umahora mais tarde, encontrei toda a composio lanada no meio dos arbustos ocidado, a rede, os gemidos, os cobertores... um horror. A vara pesada haviadespelado o nariz do coitado. Ele estava ansioso para que eu matasse algum, masno havia nem sombra dos carregadores por ali. Lembrei-me do velho doutor, Seriainteressante para a cincia observar as mudanas mentais dos indivduos, frente ssituaes difceis. Senti que estava me tornando cientificamente interessante.Entretanto, tudo isso na verdade no importava. Quinze dias depois do incio de nossajornada, avistei novamente o grande rio e cambaleei at o entreposto central. Ele ficavajunto a um pequeno manguezal, cercado por canios e pela floresta, com uma belamargem de lodo malcheiroso de um dos lados e os demais trs lados cercados por

  • uma cerca mal-construda feita de juncos. Uma brecha mal cuidada era o nico acessoque ele possua e olhando o lugar pela primeira vez pude ver que o diabo daquelegorducho estava a cargo de tudo aquilo. Homens brancos com longas varas em suasmos apareceram languidamente entre os edifcios, surgindo para dar uma boa olhadaem mim e, ento, se retiraram para algum lugar fora de vista. Um deles, um sujeitograndalho, um camarada agitado com bigodes pretos, informou-me com grandetagarelice e muitas evasivas, to longo eu lhe contei quem era eu, que o meu vapor seencontrava no fundo do rio. Fiquei estupefato. O que, como, por qu? Oh, mas estavatudo bem. O gerente em pessoa estava ali. Tudo muito correto. Todos secomportaram esplendidamente! Esplendidamente! Ele ainda me disse, do alto de suaagitao, voc precisa seguir e se encontrar com o gerente geral, o quanto antes. Eleest lhe esperando!.

    Em um primeiro momento, no compreendi muito bem qual o verdadeirosignificado daquele naufrgio. Talvez agora eu perceba, mas, mesmo assim, no comtanta certeza. Certamente o ocorrido deveria ter sido algo estpido demais quandose pensa nele para ter sido algo natural. Mesmo assim... mas naquele momento,parecia simplesmente que era um inconveniente embaraoso. O vapor havia afundado.Dois dias antes, eles tinham zarpado, rio acima, com o gerente a bordo, sob mando deum comandante voluntrio e, antes que se passassem trs horas, rasgaram o fundo danave em algumas pedras e o afundaram prximo da margem sul do rio. Cheguei a meperguntar o que eu estava fazendo ali, uma vez que agora o meu barco estava perdido.Na realidade, tinha muito a ser feito para pescar o objeto do meu comando do fundo dorio. Tinha que comear j no dia seguinte. Tudo aquilo e os reparos, quando conseguitrazer as partes para o entreposto, levaram alguns meses.

    Minha primeira entrevista com o gerente foi bem curiosa. Ele no pediu paraque eu me sentasse mesmo aps uma caminhada de quase trinta quilmetros quelamanh. Possua aparncia, gestos, maneiras e voz bem normais. Sua altura eramediana e sua constituio bem comum. Seus olhos, de um azul sem nada especial,eram consideravelmente frios e, com certeza, ele era capaz de lanar um olhar topenetrante e pesado quanto um machado. Mas mesmo naqueles tempos, o restante desua pessoa parecia rechaar tal inteno. Por outro lado, havia somente umaexpresso dbil e indefinvel sobre os seus lbios, algo furtivo um sorriso no, umsorriso no lembro-me agora, mas no sei bem explicar. Era algo inconsciente, talsorriso, embora se intensificasse por uns instantes logo aps ele dizer algo. Ele surgiasempre ao final de seus comentrios, como um selo aplicado sobre as palavras demodo a produzir, no significado da mais comum das frases, uma aparnciaabsolutamente inescrutvel. Ele era um comerciante comum, trabalhando naquelasparagens desde a juventude nada mais. Ele era obedecido, ainda que no inspirassenem amor, nem temor, nem mesmo respeito. Ele inspirava constrangimentos. Era isso!Constrangimentos. No uma desconfiana definitiva apenas constrangimentos nadamais. Vocs no tm ideia de como uma... uma... qualidade como esta pode ser. Eleno era nenhum gnio na organizao, em iniciativas ou mesmo em dar ordens. O que

  • era evidente pelo estado deplorvel do entreposto. Ele no possua nem estudo, neminteligncia. Seu cargo fora dado a ele, no conquistado... e por qu? Talvez porqueele nunca tivesse ficado doente... Ele tinha servido trs temporadas de trs anos cadabem ali naquele lugar... Porque uma sade triunfante, entre a mirade geral deconstituies, talvez seja um tipo de poder, afinal. Quando ele se dirigia para casa, aodesembarcar, criava grande confuso pomposamente. Um marinheiro em terra comuma diferena apenas em sua aparncia. Podia se notar por sua conversa informal.Ele no conseguia criar absolutamente nada, mantendo apenas a rotina funcionando isso era tudo. Mas de qualquer forma, era grandioso. Era grandioso por apenas umdetalhe, ou seja, era impossvel descobrir o que era capaz de controlar aquele homem.Ele nunca chegou a divulgar aquele segredo. Talvez no houvesse nada por dentrodele... vazio. Tal suspeita era o que nos intrigava uma vez que ali no havia qualquersinal exterior. Quando, numa ocasio, vrias doenas tropicais se abateram sobrequase todos os agentes do entreposto, podia-se ouvi-lo dizer, Os homens que vmpara c no deveriam ter entranhas. E selava a expresso com aquele seu sorrisopeculiar, como se tivesse aberto uma porta para a escurido que habitava dentro doseu ser. Vocs poderiam pensar que estivessem vendo coisas mas a marca estaval. Quando se irritou com as constantes discusses dos brancos hora das refeiessobre quem se serviria primeiro, ordenou que uma imensa mesa redonda fosse feita,para qual uma construo especial tambm teve que ser construda. Era o refeitrio doentreposto. Aonde ele se sentasse era o lugar principal os restantes no possuamlugar determinado. Percebia-se que aquela era uma de suas convices inabalveis.No era nem gentil, nem descorts. Era simplesmente calado. Ele permitia que o seumenino um jovem negro e gorducho trazido do litoral se relacionasse com oshomens brancos, bem diante de seus olhos, com uma insolncia provocadora.

    Ele comeou a falar assim que ps os olhos sobre mim. Eu tinha medemorado demais e ele no poderia mais esperar. Teve que comear sem mim. Ospostos, rio acima, tinham que ser substitudos. Havia atrasos demais j que ele nosabia quem estava morto ou quem estava vivo, e como estavam sobrevivendo eassim por diante, e assim por diante. Ele no prestou ateno em minhas explicaes,e, manuseando entre os dedos um basto de lacre, repetiu por vrias vezes que asituao era muito grave, muito grave. Havia rumores que um dos mais importantespostos estivesse em perigo e que o seu chefe, senhor Kurtz, estava doente. Esperava-se que no fosse verdade. Senhor Kurtz era..., senti-me cansado e irritado. O que meimporta o senhor Kurtz, pensei. Eu o interrompi dizendo que j ouvira falar do senhorKurtz no litoral. Ah! Ento eles falam dele por aquelas bandas, murmurou consigomesmo. Ento, reiniciou, assegurando-me que o senhor Kurtz era o melhor dos agentesque ele tinha, um homem excepcional, de grande importncia para a Companhia; foi aque eu pude entender a sua ansiedade. Ele disse que ele estava muito, mas muito,apreensivo. E ajeitando-se desconfortavelmente em sua cadeira, como se algo oincomodasse, exclamou, Ah, o senhor Kurtz!, quebrando o basto de lacre eparecendo espantado com o acontecido. Em seguida ele quis saber quanto tempo

  • levar para..., sendo que eu o interrompi novamente. Estando com fome, e comovocs j sabem, estando ainda de p, comecei a ficar irritado. Como eu posso lhedizer isso, disse, se eu ainda nem pude ver o desastre ainda... alguns meses, semdvida. Toda essa conversa sem sentido parecia to ftil para mim. Alguns meses...,ele repetiu. Bem, vamos dizer que trs meses, antes que possamos comear algo.Sim, deve ser o suficiente para resolver o assunto. Eu corri daquele lugar (ele viviasozinho em uma choupana de barro amassado com uma espcie de varanda),murmurando comigo mesmo a opinio que tinha tido dele. Ele era um idiota falastro.Mais tarde, acabei mudando minha viso, quando descobri, de uma forma assustadora,a extrema exatido com que ele estimara o tempo necessrio para a soluo donegcio.

    Comecei a trabalhar no dia seguinte, dando s costas aos assuntos doentreposto, por assim dizer. Somente daquele modo, eu poderia manter minha atenovoltada para os fatos que redimem a vida. Ainda assim, s vezes devemos olhar aoredor; e, ento, eu vi aquele entreposto, aqueles homens vagando pelo ptio, sem umobjetivo sob o sol. Perguntava-me s vezes qual era o propsito daquilo tudo. Eleszanzavam de um lado para outro com suas varas absurdamente grandes s suas mos,como um bando de peregrinos incrdulos enfeitiados dentro de um cercadoapodrecido. A palavra marfim vagava pelo ar, era murmurada, era suspirada. Vocspoderiam pensar que eles estavam rezando diante dela. Uma mcula de umabrutalidade imbecil soprava atravs de tudo aquilo, como o odor exalado de algumcadver. Em nome de Deus! Eu nunca havia visto algo to irreal em toda minha vida. Efora dali, o silncio da floresta que cercava aquele entreponto perdido no mundo seabatia sobre mim como algo grande e invencvel, como o mal ou a verdade, esperandopacientemente pela morte desta fantstica invaso.

    Oh, mas que meses! Bem, no importam afinal. Diversas coisas aconteceram.Em uma noite, um barraco feito de sap, repleto de morim, de algodo estampado,colares de contas e sei mais l o que, irrompeu em chamas to de repente que vocspensariam que a terra teria se aberto para deixar que as labaredas vingadorasconsumissem tudo que fosse desnecessrio. Estava fumando meu cachimbosossegadamente, ao lado do meu vapor desmantelado, e vendo todos aqueles saltosmordazes contra a luz, com os braos levantados, quando o sujeito grandalhobigodudo chegou at o rio, lacrimejando, com um balde de lata nas mos, e meassegurando que todo mundo estava se comportando esplendidamente,esplendidamente, apanhando aproximadamente um quarto de gua e correndo de voltanovamente. Notei que havia um furo no fundo de seu balde.

    Caminhei devagar at l em cima. No havia pressa. Vejam vocs que a coisatoda queimou qual uma caixa de fsforos. No havia nada a ser feito, desde o incio. Ofogo saltou a grande altura, pondo todo mundo para correr, e consumindo tudo e,logo depois, se extinguiu. O barraco j tinha se transformado violentamente em ummonte de brasas incandescentes. Um dos negros, perto dali, estava apanhando. Diziam

  • que tinha sido ele que causara, de algum modo, o incndio; seja como for, dava gritosterrveis. Eu o vi mais tarde, e por vrios dias, sentado sob a sombra, aparentandoestar muito doente e tentando se recuperar: logo depois, ele se levantou e saiu e afloresta, sem emitir um som sequer, o tomou entre as suas entranhas novamente.Aproximando-me da claridade, vindo de um trecho mais escuro, deparei-me com doishomens conversando. Ouvi o nome de Kurtz sendo pronunciado e, ento, as palavras,tomar vantagem deste infeliz incidente. Um dos homens era o gerente. Eu lhe desejeiboa noite. Voc por acaso j viu algo como isso antes, hein? incrvel, disse ele e seafastou. O outro homem ficou por ali. Ele era um agente de primeira classe, jovem,muito distinto, um pouco reservado, com uma barba repartida ao meio e um narizaquilino. Ele se mantinha afastado dos demais agentes e, por causa disso, todos diziamque ele era um espio do gerente. De minha parte, eu dificilmente lhe dirigira a palavraantes. Comeamos a conversar e, aos poucos, nos afastamos das runas sibilantes.Foi quando ele me convidou para o seu quarto, que se localizava no edifcio principal doentreposto. Ele acendeu um fsforo e foi quando eu percebi que este jovem aristocratano possua apenas um estojo de toucador com moldura prateada, mas tambmpossua uma vela com castial s para ele. quele tempo, o gerente era o nicohomem que poderia ter o direito de ter velas. Esteiras feitas pelos nativos cobriam asparedes de barro; uma coleo de lanas, azagaias, escudos e facas estavapendurada como trofus. A tarefa confiada quele camarada era a fabricao de tijolos como me informaram mais tarde; mas no havia um s fragmento de tijolo emnenhuma parte do entreposto e j fazia mais de um ano que ele estava ali esperando.Parecia que ele no podia produzir os tijolos sem alguma coisa, no sei bem o que palha talvez; De qualquer modo, no se podia encontrar aquilo por l e, como pareciaque no podia ser mandado da Europa, no era claro para mim o que ele estavaesperando afinal. Por um ato da criao especial, talvez. Entretanto, todos elesestavam esperando por algo todos os dezesseis ou vinte peregrinos; e, dou-lhesminha palavra, no parecia ser uma ocupao das mais desagradveis do modo queeles encaravam, se bem que a nica coisa que chegou at eles, foi algum tipo dedoena pelo o que eu pude ver. Eles passavam o tempo fofocando e fazendo intrigauns contra os outros da maneira mais tola que pudesse existir. Havia um ar deconspirao por todo o entreposto, mas nada acontecia ali, claro. Era to irrealquanto tudo o mais como a pretensa filantropia da empreitada, como a conversadeles, como o governo deles, como o trabalho que faziam. O nico sentimento real erao desejo de ser indicado para um entreposto comercial aonde houvesse marfim, paraque pudessem ganhar alguma porcentagem com isso. Eles faziam intriga, difamavam eodiavam uns aos outros apenas por causa disso mas para se erguer efetivamente umdedinho sequer... oh, no. Por cus! Deve haver algo mais no mundo que permita umhomem roubar um cavalo enquanto outro sequer olha para o cabresto. Roubar umcavalo, com toda determinao. Muito bem. Ele tinha feito isso. Talvez ele possacavalg-lo. Mas h um meio de se olhar para um cabresto, de um modo que fizessecom que o mais caridoso dos santos desse um pontap.

  • Eu no tinha ideia do porqu de tanta sociabilidade por parte dele, mas namedida em que conversvamos, ocorreu-me que o camarada estivesse tentandoconseguir alguma coisa de fato, estava me sondando completamente.Constantemente ele se referia Europa e s pessoas que eu poderia conhecer l fazendo perguntas diretas sobre os meus contatos na cidade sepulcral, e por ai emdiante. Seus olhos midos brilhavam como discos de mica cheios de curiosidade embora ele tentasse manter um pouco de superioridade. A princpio, fiquei surpreso,mas logo em seguida fui tomado de uma curiosidade sem tamanho para ver o que eledescobriria de mim. No podia sequer imaginar o que haveria em mim que valesse apena por sua vez. Era bonito de se ver como ele ficava desnorteado com tudo isso,pois na verdade a nica coisa que ele descobriria que meu corpo estava tomado decalafrios e, em minha mente, no havia nada alm dos assuntos relacionados com oacidente do meu vapor. Era evidente que ele me tomava por um perfeito edesavergonhado prevaricador. Por fim, acabou se irritando e para disfarar ummovimento de irritao furiosa, bocejou. Levantei-me. Foi quando eu notei um pequenodesenho a leo sobre tela, representando uma mulher vendada e envolta emdrapeados, carregando um archote aceso. O fundo era sombrio, quase preto. Apostura da mulher era grandiosa e o efeito da iluminao do archote sobre o rosto erasinistro.

    Detive-me por causa do quadro e ele, por educao, ps-se ao lado,segurando uma garrafa de um quarto de litro de champanhe (um agrado medicinal, semdvida) com uma vela enfiada nela. minha pergunta, ele respondeu que o senhorKurtz havia pintado o quadro naquele mesmo entreposto h mais de um ano enquanto esperava por um meio de prosseguir para o seu entreposto comercial. Diga-me, por obsquio, disse, quem este senhor Kurtz?

    O chefe do entreposto do interior, respondeu-me quase sussurrando edesviando o olhar. Muito obrigado, disse, sorrindo. E voc o oleiro do entrepostocentral. Todo mundo sabe disso. Ele ficou em silncio, por um momento. Ele umprodgio, disse afinal. Ele um emissrio da misericrdia, da cincia, do progresso equem sabe mais do qu. Precisamos, comeou a declamar de repente, para nos guiarpara a causa a qual fomos confiados pela Europa, por assim dizer, de uma intelignciasuperior, ampla compreenso e uma simplicidade de propsitos. Quem disse isso?,perguntei. Muitos deles, ele respondeu. Alguns chegam mesmo a escrever sobre isso;ento ele veio para c, um ser especial, como voc deve bem saber. Por que eudeveria?, eu o interrompi, cheio de surpresa. Ele no prestou ateno no que eudissera. Sim. Hoje ele o chefe do melhor entreposto, no prximo ano ele ser ogerente-assistente, mais dois anos e ele ser... bem, eu ouso dizer o que voc j devesaber sobre o que ele ser daqui a dois anos. Voc novo no grupo em nosso grupoda virtude. As mesmas pessoas que o recomendaram para c tambm enviaram osenhor Kurtz. Oh, no diga que no. Confio no que me mostram os meus olhos. Foinesse momento que compreendi tudo. Os conhecidos influentes de minha querida tia

  • estavam produzindo um efeito inesperado sobre aquele jovem homem. No conseguisegurar a risada. Voc leu a correspondncia confidencial da Companhia?, perguntei-lhe. Ele no disse uma palavra sequer. Tudo era muito divertido. Quando o senhorKurtz, continuei cruelmente, for o gerente geral, voc no ter mais oportunidade defaz-lo.

    Ele assoprou a vela de repente e seguiu para fora. A lua estava se elevando.Figuras negras perambulavam com indiferena, jogando gua no braseiro o queproduzia o som de um assobio; o vapor subia contra a luz da lua, enquanto se ouvia osgritos do negro espancado vindos de algum lugar. Que alarde aquele selvagem faz,disse o infatigvel homem com bigodes, surgindo de repente junto de ns. Fez-lhebem. Transgresso punio pauladas! Sem piedade, sem piedade. o nico jeito.Isto ir prevenir todas as tentativas semelhantes no futuro. Eu estava justamentedizendo isso ao gerente... Foi quando ele notou o meu companheiro e tornou-sedesapontado de repente. Ningum ainda para a cama, disse ele, com um tipo decordialidade servil; isso to natural. H! Perigo agitao. Ele desapareceu. Seguipela margem do rio e o outro veio me seguir. Ouvi um murmrio lastimador perto demeu ouvido, Montes de fracassados veja s. Os peregrinos podiam ser vistos, embandos, gesticulando, discutindo. Muitos deles ainda portavam suas varas nas mos.Eu realmente acreditava que eles levavam aqueles bastes junto com eles para acama. Alm do cercado, a floresta permanecia com um ar fantasmagrico luz do luare, no meio de todo aquele tumulto sombrio, no meio de todos os sons distantesoriundos do ptio lastimvel, o silncio da terra penetrava fundo no corao de cada um o seus mistrios, a sua grandeza, a fantstica realidade de sua vida oculta. O negroferido gemia com fraqueza em algum lugar prximo dali e, produzindo um profundosuspiro, fez-me apertar o passo e me retirar logo de l. Senti uma mo tomando o meubrao. Meu caro senhor, disse o camarada, No quero ser mal interpretado,especialmente por voc, que se encontrar com o senhor Kurtz antes que eu tenha estasatisfao. No desejaria que ele tivesse uma falsa ideia de meu carter....

    Deixei-o continuar, aquele Mefistfeles de papel mach, e pareceu para mimque, se eu tentasse atravess-lo com o meu polegar, talvez no encontrasse nadadentro dele alm de um pouco de terra frouxa. Ele, no sei se vocs perceberam,planejava ser gerente-assistente, ainda sobre o comando do atual gerente, e pude verque a chegada daquele Kurtz tinha muito aborrecido a ambos. Ele havia se precipitadoao falar e procurei no interromp-lo. Eu estava recostado contra os destroos do meuvapor, rebocado margem acima como a carcaa de algum grande animal fluvial. Ocheiro de lodo, de um lodo primordial em nome de Deus! tomava as minhas narinase a grande imobilidade da floresta primitiva preenchia os meus olhos; havia manchasluminosas no manguezal escuro. A lua derramava, sobre tudo que havia ali, uma finacamada prateada sobre o capim espesso, sobre o lodo, sobre a muralha devegetao desbotada, mais alta do que a parede de um templo, sobre o grande rio queeu podia ver atravs de uma brecha sombria, resplandecendo, resplandecendo,enquanto flua de um modo geral sem um rudo sequer. Tudo isso era grandioso,

  • expectante, quieto, enquanto que o homem no parava de dizer coisas sem sentidosobre si mesmo. Cheguei a imaginar se a imobilidade sobre a face da imensido queolhava para ns dois significava um apelo ou uma ameaa. O que era que ns tnhamosenganado ali? Poderamos tocar aquela coisa taciturna ou ela que nos tocaria? Senti oquo imenso, o quo confuso e imenso, era aquilo que no podia falar e que,provavelmente, tambm era surda. O que era aquilo que estava ali? Eu podia ver umpouco de marfim chegando de l e cheguei a ouvir que o senhor Kurtz estava l. Eu jouvira o suficiente sobre tudo aquilo, bem sabe Deus! Ainda que, de alguma forma,nenhuma imagem viesse acompanhada com isso mesmo que se me dissessem queum anjo ou um demnio estivesse l. Eu acreditei do mesmo modo que qualquer um devocs pudesse acreditar que havia habitantes no planeta Marte. Conheci uma vez ummarinheiro escocs que tinha certeza, uma certeza mortal, que existiam pessoas emMarte. Se vocs lhe perguntassem se ele tinha alguma ideia de como eles se pareciame como se comportavam, ele se acanhava e murmurava algo como eles caminham dequatro. Se vocs por acaso esboassem algum sorriso, ele brigaria com vocs,mesmo sendo um homem de seus sessenta anos. Eu no iria to longe na defesa deKurtz, mas quase cheguei a mentir por ele. Vocs sabem o quanto eu odeio isso,detesto, e no mantenho uma mentira, no por eu ser um homem mais correto que osdemais, mas simplesmente porque isso me aterroriza. H uma mancha mortal, umsabor de mortalidade nas mentiras que exatamente o que eu mais detesto e odeio nomundo o que eu gostaria de esquecer. A mentira me torna miservel e doente, comose mordssemos alguma coisa podre. Suponho que seja algo do meu temperamento.Bem, eu cheguei bem prximo de mentir ao deixar que aquele jovem tolo acreditasseem qualquer coisa que ele gostaria de imaginar referente minha influncia na Europa.Tornei-me num instante to pretensioso quanto o restante dos peregrinos enfeitiados.Assim simplesmente, porque acreditava que de algum modo isto seria til ao tal doKurtz que poca no conhecia ainda vocs compreendem? Ele era apenas umnome para mim. Eu no conhecia o homem por detrs do nome mais do que vocs.Vocs entendem? Esto acompanhando a histria? Esto acompanhando algumacoisa? Parece que estou tentando contar-lhes um sonho fazendo uma v tentativa,porque nenhum relato de sonho pode transportar-nos sensao do sonho, aquelamistura de absurdo, surpresa e atordoamento em meio a um tremor de incontidarevolta, aquela noo de ser capturado pelo incrvel que no nada mais do que aprecisa essncia dos sonhos....

    Ele permaneceu em silncio por um momento....No, impossvel; impossvel transportar-nos sensao vital de qualquer

    poca determinada da existncia de algum com a qual se produz a sua verdade e oseu significado, seu tema e sua essncia penetrante. impossvel. Ns vivemos domesmo modo que sonhamos... sozinhos...

    Ele parou novamente como se estivesse refletindo, logo depois, complementou,Claro que com relao a isto, vocs, meus camaradas, veem mais do que eu podia

  • ento. Vocs podem me ver e vocs me conhecem....A noite havia se tornado to escura que ns, os ouvintes, dificilmente vamos

    uns aos outros. J h muito tempo que ele, sentando-se parte, j era para ns nadamais do que uma voz. No se ouvia uma s palavra de ningum. Os outros podiammesmo estar dormindo, mas eu estava acordado. Eu escutava e escutava, atento acada sentena, a cada palavra que pudesse me fornecer a ponta do novelo para aqueledbil mal-estar, inspirado por esta narrativa que parecia se moldar por si mesma, semlbios humanos, no pesado ar noturno junto ao rio.

    Sim, deixei-o matraquear, Marlow comeou novamente, e lucubrar vontade sobre os poderes que estavam ocultos por detrs de mim. Deixei-o de fato! Eno havia nada por detrs de mim! No havia nada alm daquele navio a vaporarruinado, velho e mutilado, no qual eu estava recostado, enquanto ele tagarelavafluentemente sobre a necessidade de cada homem em evoluir. E quando algum enviado para c, voc bem sabe, no para ficar admirando a lua. O senhor Kurtz eraum gnio universal, mas mesmo um gnio sabe que muito mais fcil se trabalhar comas ferramentas adequadas e com homens de inteligncia. Ele no produzia nenhumtijolo, porque havia uma impossibilidade fsica no processo como eu mesmo pudeconstatar; e se ele fizera trabalho de secretrio para o gerente era porque nenhumhomem sensvel pode rejeitar de forma petulante a confiana depositada por seussuperiores. Se eu entendi? Sim, entendi. O que mais eu precisava? Por Deus, o que eurealmente precisava era de rebites! Rebites. Para continuar com o meu trabalho, paraconsertar o buraco. Rebites era o que eu queria. Havia caixas deles l embaixo nolitoral caixas pilhas deles estouradas transbordando! Vocs chutavam um rebiteperdido a cada dois passos no ptio daquele entreposto junto colina. Rebites rolavampara dentro do bosque da morte. Vocs podiam encher os seus bolsos com rebitesapenas se abaixando para peg-los e l no havia um rebite sequer quando maisprecisvamos deles. Tnhamos as placas necessrias, mas nada para fix-las. E cadasemana, o mensageiro, um negro solitrio, sacola de cartas nos ombros e vara mo,deixava nosso entreposto em direo ao litoral. E muitas vezes ao longo da semana,uma caravana oriunda do litoral chegava carregada com mercadorias paracomercializao um morim, um encerado medonho que nos fazia estremecer s de seolhar, contas de vidros no valor aproximado de quatro centavos o quilo, uns malditoslenos de algodo estampado. Mas nenhum rebite. Trs carregamentos poderiamtrazer tudo o que me era necessrio para fazer aquele vapor flutuar.

    Ele estava se tornando ma