Corpo e Conhecimento: um pano conceitual sobre o lugar do corpo na história do pensamento...

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    10 Simposio de Ensino de Graduao

    CORPO E CONHECIMENTO: UM PANORAMA CONCEITUAL SOBRE O LUGAR DO CORPO NAHISTRIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL

    Autor(es)

    NATALIA PUKE

    Orientador(es)

    RAIMUNDO DONATO DO PRADO RIBEIRO

    1. Introduo

    A filosofia apresenta-se como uma forma de conhecimento, cujo referencial medida racional. Ao valorizar a racionalidade afilosofia desenvolve-se no mbito conceitual, das ideias, do pensar. Desse modo, embora o saber filosfico construa as basesfundamentais para o campo da prtica, a teoria o principal sustentculo da sua atividade. Assim sendo, percebe-se que a apreciaodos aspectos abstratos inerentes a faculdade intelectual passa a ofuscar os atributos que esto na esfera do mundo sensvel,principalmente no mbito corpreo. Observa-se que nos principais pensadores, o corpo considerado como um dado secundrio doprocesso de conhecimento, alis, ele fora, para muitos, um entrave no mbito do saber. da que se instaura e prevalece por muitos

    sculos a noo de dualidade, que consiste pensar o humano divido em duas instncias: corpo e alma, corpo e esprito ou corpo erazo. Um sobrevoo na histria da filosofia nos permite identificar que esse entendimento se construiu a partir da oposio entreinvisvel e visvel, talvez porque, o termo corpo advindo do latim corpus adquiriu na conscincia lingustica latina um sentidogenrico de designao dos objetos em sua organizao sensvel, estabelecendo assim, a separao entre animado e inanimado. Dessemodo, se atribuiu ao corpo um sentido de oposio a alma, o que veio conotar o sentido de cadver, defunto (FONTES, 2004).Apesar dessa mentalidade que deprecia o corpo, observa-se na filosofia contempornea uma mudana de referencial, principalmenteem Merleau-Ponty. Assim, a partir desses pressupostos faremos uma breve viagem a Teoria do conhecimento.

    2. Objetivos

    O trabalho prope-se construir um panorama conceitual sobre o lugar do corpo na Teoria do Conhecimento desde a Filosofia Antiga

    at a Filosofia Contempornea.

    3. Desenvolvimento

    O trabalho foi realizado por pesquisa bibliogrfica, considerando tambm os contedos trabalhados nas disciplinas da graduao docurso de filosofia.

    4. Resultado e Discusso

    A discusso filosfica sobre o corpo comea a tomar forma no pensamento idealista de Plato (1977), que constri em termos de

    episteme, a primeira grande dicotomia entre corpo (material) e alma (espiritual e consciente), construindo assim, a representatividadede um homem dual, cujas bases conceituais influenciaram o legado hermenutico do homem ocidental, fundamentando, sobretudo, a

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    leitura teolgica crist. No platonismo, a dualidade est na estrutura da realidade que se constitui em dois mundos: Mundo dasideias e Mundo da matria. A alma provinda do Mundo das Ideias perfeita, eterna e imutvel e responsvel pela atividadeintelectiva. O corpo, por sua vez, ligado ao Mundo da Matria inferior e efmero, portanto susceptvel aos enganos dos sentidos.Sendo feito de matria, o corpo uma cpia distorcida da verdadeira realidade - a ideia -, o que significa o mesmo que dizer que todaa apreciao sensria e sensaes corporais so experincias ilusrias e at mesmo perigosas, capazes de levar o homem a decadnciae ao distanciamento do bem. Acerca dessa tica, o corpo se apresenta como um crcere ou na metfora do prprio filsofo, como umacaverna que aprisiona a alma na busca da verdade. Por conta destes aspectos, o conhecimento em Plato no depende da experinciacorprea, alis, ele inato, requer o processo de reminiscncia, ou seja, o exerccio contemplativo de relembrar as ideias impressas naalma. Neste mesmo contexto, Aristteles (384 322 a.C) desenvolve uma teoria epistmica considerando que o indivduo e o

    conhecimento so invariavelmente compostos de matria (hyle) e forma (eidos) - a matria o princpio de individuao e a forma amaneira como, em cada indivduo, a matria se organiza (ARISTTELES apud MARCONDES, 1998, p. 72). Desse modo, matriae forma so indissociveis e constituem, portanto, uma unidade, e no mais uma dualidade como inferiu Plato. No que se refereespecificamente ao corpo, Aristteles atribu um adjetivo de instrumentalidade natural que tende a atender a alma (ABBAGNANO,2007). O corpo enquanto matria um princpio potencial para a atualizao da alma, porm, a alma que assegura a sua forma, ouseja, sua especificidade e funcionalidade. Assim, a alma como forma do corpo tambm o seu princpio dinmico e regula todo o seudesenvolvimento. Nesse sentido, o corpo est para a alma, assim como o machado est para o corte, o que ressalta ser o intelecto oaspecto mais elevado do humano e consequentemente, a categoria responsvel pela sabedoria na moderao da experincia sensvel edesenvolvimento tico. Nos desdobramentos do pensamento filosfico clssico, encontramos os filsofos do perodo helnico.Destacamos nesse perodo a tendncia fundada por Epicuro (1988) que fundamentando-se no atomismo de Demcrito atribui umamaterialidade a alma e ao corpo, considerando a correspondncia e interdependncia entre ambos. Por esses aspectos, na mortehaveria a dissoluo do aglomerado de tomos que constitui o corpo e a alma e ambos desapareceriam. Sendo a alma intrinsecamente

    vinculada ao corpo e a materialidade das coisas, sua filosofia anuncia uma ateno ao homem em seu estado imanente, valorizando acorporeidade na construo do conhecimento e do saber tico, que pode ser expresso sinteticamente na economia dos desejos e medosatravs do equilbrio intelectual com a natureza. Ao valorizar o mbito corpreo sua filosofia foi depreciada e deturpada,principalmente no medievo, passando a designar equivocadamente a uma abordagem hedonstica, relacionada ao prazer imediato efugaz. Nesse percurso histrico, filosofia medieval no apresenta novidades naquilo que se refere ao corpo, uma vez que resgatou,sobretudo, a concepo platnica, persistindo na compreenso de homem dual, cuja definio se constitua nas distines entre corpoe alma. Neste momento, Santo Agostinho construiu a primeira grande sntese entre a filosofia grega e o pensamento cristo,apresentando corpo como uma danao para o pecado, uma ponte para o malfico em contraposio as qualidades da espiritualidadedivina inerentes a alma. Observa-se uma sutil mudana representativa em meio a emergncia da modernidade e das cinciasempricas, onde o corpo passa a ser considerado na sua existncia objetiva, enquanto uma natureza a ser desbravada. Em Descartes(2007), sua analogia funcional relaciona-se a uma mquina perfeita independente da razo, cujos atributos estariam para as leis damecnica. Embora, esse pensador tenha libertado o corpo da noo pecaminosa, conduziu a representatividade de um homem

    dicotmico, formado pela res cogitans e res extensa. Para Descartes o corpo enquanto coisa extensa estaria para a natureza e, portanto,nada influiria no processo do conhecimento, visto que a essncia do pensar garantiria clara e distintamente o raciocnio correto.Alguns sculos mais tarde os empiristas postulam que todo o conhecimento humano fundamentalmente derivado da experinciasensvel provinda dos sentidos, o que significa dar ao corpo uma ateno razovel. Locke (1999) concebe a alma humana no momentodo seu nascimento como uma Tbula Rasa, ou seja, uma folha em branco e no h nada em seu interior at quando se estabelecida uma relao com o objeto. Essa afirmao desenvolve como uma crtica noo idealista sobre o inatismo das ideias,presente, tanto no cartesianismo, quanto no platonismo. Ao valorizar a experincia como fonte primordial do conhecimento suaanlise terica migra do dado abstrato para o concreto. Contudo, o autor assenta-se na dualidade epistmica, na medida em queclassifica que todas as ideias derivam de duas fontes de conhecimento - sensao e reflexo. No curso da modernidade, Kant (1983)elabora a fuso conceitual entre o empirismo e o racionalismo, considerando ser o conhecimento uma sntese entre entendimento esensibilidade. Entretanto, como um dos idealizadores do Iluminismo alemo, Kant assume ser razo a luz irredutvel de todo osaber, o que veio a suprimir, de certo modo, o corpo na sua integridade facultativa. Ainda no sculo das luzes, Condillac (1973)

    construiu a teoria sensualista contrapondo o principal referencial discursivo do perodo, o que nos permite relacion-lo aos filsofossubsequentes da Filosofia Contempornea. O sensualismo valorizou o corpo volitivo, considerando todas as ideias como sensaestransformadas, o que significou nesse dado momento, provocar a mutao da identidade do sujeito na modernidade (MONZANI,1995) que viria abrir o caminho para se pensar as peripcias do conhecimento a partir da vivncia corprea. Nos desdobramentosdessa nova representao, no sculo XIX enunciando a crise do cogito, Nietzsche (1999) rompe definitivamente com a abordagem dafilosofia tradicional, descontruindo os valores epistmicos at ento hegemnicos. Considerando o homem demasiadamente humanoem sua existncia corprea, esse pensador emancipou a filosofia de toda a especulao metafsica, atribuindo ao corpo o status sumoda vontade de potncia, que se entende aqui como afirmao da vida. Nesse sentido, no para uma vida racionalizada que o homemdeve voltar-se, mas para a apreciao esttica, conduzindo o corpo como uma obra de arte. Pode-se considerar que a inverso dereferencial enunciada por Condillac e Nietzsche encontra no sculo XX, uma sistemtica abordagem na fenomenologia deMerleau-Ponty. A maior contribuio da fenomenologia a ruptura entre os dualismos psicofsicos atravs conceito deintencionalidade. Este diz que a conscincia sempre tende para um alvo e que no h conhecimento alheio subjetividade, uma vez

    que no conhecemos o mundo como um dado bruto, mas sim revestidos de significados (ARANHA & MARTINS, 1991), ou seja, omundo que percebo um mundo para-mim. Merleau-Ponty amplia essa abordagem inferindo que essa particularidade da

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    conscincia se desenvolve no mbito da percepo corprea. Nessa tica o corpo considerado um trusmo, um locus indubitvel detodo o processo de constituio do conhecimento e da subjetividade, uma vez que tempo, espao, fala e motricidade. Assim, o corpo o veculo do ser no mundo (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 129) onde se mantm intimamente, todas as dimenses da existncia,isto , a relao constante com o Umwelt (meio circundante). Desse modo, o corpo no est separado do mundo, alis, ele feito damesma carne [...] ele a reflete, e ambos se imbricam mutuamente (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 225). A partir dessa premissa oautor infere que h uma interioridade que se propaga de um para outro numa reversibilidade permanente, o que significa, em certamedida, dizer que o mundo est todo dentro e o eu est todo fora (MARLEAU-PONTY, 1984). Observa-se assim, que no hdicotomias constitutivas da realidade, pois o homem participante e atuante ntimo das coisas, um ser-no-mundo onde todaexperincia e significao s so possveis porque o corpo se encontra como que atado no tecido da estrutura do mundo.

    5. Consideraes Finais

    Seguindo no percurso da histria da filosofia observamos uma valorizao da razo e da alma em detrimento das categorias sensveis,principalmente no idealismo platnico, cartesianismo e kantismo. Apesar de encontrarmos alguma ateno sobre o corpo no decorrerda histria do pensamento, mantm-se a representao de um homem dual, formado ou pela matria e forma ou corpo e pensamentoou sensao e reflexo ou sensibilidade e entendimento. Sobre essas questes, observamos que o embate conceitual na Teoria doconhecimento se desenvolveu nos referenciais construdos pelo idealismo e materialismo, que dizem respectivamente, sobre asobreposio da ideia sobre o objeto e do objeto sobre a ideia, o que vem a configurar a oposio entre visvel e invisvel. Contudo, nodesenrolar dessas concepes encontramos na perspectiva fenomenologia um nivelamento dessas tenses. Sob esses aspectos,conclumos que nas relaes entre sujeito e objeto no se possvel demarcar ou separar onde se inicia e finda a construo da

    atividade do conhecer, uma vez que esse processo se d num emaranhado de relaes de um com e para outro - no se sabequem toca e quem tocado, na medida em que a conscincia sempre conscincia de alguma coisa e homem um ser-no-mundo epartcipe intencional do tapete do real. Assim, pode-se considerar que antes de toda a especulao metafsica que insiste noimaginrio de um mundo transcendente ou categorizao dualista da realidade entre intelecto e corpo - somos carne -, e essa a nossaprimeira visibilidade, o campo de batalha onde se atravessam e brotam as dimenses do real cognoscvel. Diante disso, sob o olhar deMerleau-Ponty (1996) conclu-se que o corpo se revela como um campo de presena permanente que habita o espao e o tempo, e noqual, no podemos nos distanciar, observar na sua totalidade ou considerar como um objeto, pois no conhecemos o corpo prprio,apenas o percebemos, ao passo que existimos com ele e no sabemos o que ser sem ele.

    Referncias Bibliogrficas

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