Corpo e temporalidade

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_______________________________________________________________________________________________________ Ger-Ações – Centro de Ações e Pesquisas em Gerontologia

CNPJ: 09.290.454/0001-19 / CCM: 3.722.8927 www.geracoes.org.br

CORPO E TEMPORALIDADE

Delia Catullo Goldfarb

RESUMO: Este breve artigo oferece uma síntese do livro “Corpo, tempo e envelhecimento” também disponível neste site. Aborda alguns eixos possíveis para pensar as vicissitudes da subjetividade no processo do envelhecimento

Quando ouvimos frases como: “eu quero fazer tantas coisas mas meu corpo já não me deixa” ou “ainda há tanto para ser feito mas acho que meu tempo já está acabando” nos encontramos ante um discurso altamente significativo de alguém que fala de limites e limitações muito frequentemente irreversíveis. De alguém que fala do corpo e do tempo.

Esclareçamos primeiramente a questão do corpo. Perguntemo-nos de que nos fala um idoso quando se refere a seu corpo com estas palavras. O que esta nos dizendo quando se refere a seu corpo como um estranho, um outro, algo que o prejudica.

Quando sentimos prazer e estamos bem com “nosso” corpo o sentimos como próprio, é algo que nos pertence; mas quando o sofrimento se faz presente, sentimos que alguma coisa que nos ataca de fora, esse nosso corpo se revela incontrolável desconhecido e estranho. Rugas, cabelos brancos, doenças degenerativas, presbiopia, etc, são sentidos como esses agressores externos que vêm questionar nossa imagem de potência, saúde e beleza. Então quando um idoso fala de seu corpo com estas palavras, está falando de um corpo de sofrimento, está falando de uma contradição, de um psiquismo desejante, vivo, com vontade de fazer muitas coisas, e de um corpo que já não serve como instrumento. O que jamais poderemos esquecer e que este corpo sofredor ou decadente pôde continuar sendo objeto de investimentos amorosos suficientemente significativos que façam uma ponte com o prazer. Mas, este corpo é diferente do abordado por outras áreas do conhecimento.

Quando falamos de corpo desde o ponto de vista da psicanálise não nos referimos ao organismo natural objeto de estudo das ciências biológicas; falamos de um corpo sobre o qual os afetos, os prazeres e sofrimentos e as emoções vão deixando marcas, construindo história, criando uma imagem corporal que quer ser permanente, imagem que nos permitirá nos reconhecermos sempre os mesmos, apesar das mudanças que o tempo ou as circunstâncias de vida venham nos impor.

Este corpo passará por significativas transformações ao longo da vida. Na adolescência esse corpo que cresce desordenadamente a mercê das vissicitudes

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hormonais, fará o sujeito se sentir estranho. Mas o jovem sabe que essas mudanças não são outra coisa que o prelúdio de um futuro de pleno uso de sua capacidade corporal.

Mas quando o idoso se olha no espelho, (ou no olhar dos outros) este lhe devolve uma imagem ligada a uma deterioração das capacidades corpóreas e de perda de beleza, imagem na qual o idoso não se reconhece e diz: “esse não sou eu”. Embora saiba que aquela imagem lhe pertence, ela produz uma impressão de estranheza, frequentemente apavorante porque não se liga a um futuro pleno de realizações mas antecipa ou confirma a velhice, enquanto que a imagem da memória é uma imagem idealizada que remete a completude e onipotência.

Quando a pessoa que envelhece diz: “esse não sou eu”, diz que o rosto em que poderia se reconhecer tranquilamente não é aquele. Quero novamente esclarecer que a falta de reconhecimento de que falo não se refere ao sujeito como tal, pois tanto o adolescente quanto o idoso sabem que aquela imagem lhes pertence, mas experimentam ante ela uma estranheza, um susto. Chamo este momento singular de estranheza ante a própria imagem de “espelho negativo”. É um fenômeno que anuncia a proximidade da velhice em termos de estética e que se acompanha de outros que dizem sobre a funcionalidade do corpo e sobre o valor social que cada cultura outorga a esta fase da vida.

Ele acontece antes da velhice se instalar como vivência existencial do sujeito e geralmente relacionado a um acontecimento na vida do sujeito que aparece sempre como externo a ele, uma perda, uma doença, ou um dado que vêm do social. É sempre algo que vem “de fora” e localiza o sujeito em um novo tempo. Este é justamente o sentimento predominante. Alguma coisa que nos acontece subitamente, como se um relógio que marcava sempre a mesma hora começasse a funcionar bruscamente marcando um tempo que passa aceleradamente. Então, bem antes da velhice chegar assiste-se mais o menos de forma impotente ao declínio corporal.

Dizemos que o tempo da vida se desenvolve entre o nascimento e a morte. Mas este tempo vivido é diferente do tempo medido. O tempo medido, o da idade cronológica pouco têm a ver com o tempo vivido ou subjetivo. No entrecruzamento destes dois tempos se encontra o sujeito que envelhece, aquele que além de medir o tempo vivido, começa a contar o que lhe resta para viver e, no melhor dos casos, faz planos para esse tempo que ainda está por vir. Assim, o tempo psicológico é a percepção da passagem de nossa vida, e todo o que é vivo é perecedouro e está sujeito a mudanças.

O tempo do envelhecimento está ligado à consciência da finitude, que se instaura a partir de diferentes experiências de proximidade com a morte durante a vida toda, mas que na velhice adquire a dimensão do iniludível. Em uma pessoa jovem este

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tipo de experiências provocam mudanças consideráveis, mas ele sabe que têm a vida toda pela frente para reparar, modificar, construir. Na pessoa mais idosa o elemento mais angustiante é o estreitamento do horizonte de futuro, já não tem mais todo o tempo pela frente, só resta mais um pouco e pode não ser suficiente para abrigar tanto desejo. Este tempo subjetivo é o tempo que interessa à psicanálise.

Neste sentido vale a pena repensar a questão da reminiscência, esta forma especial de fantasia que se desenvolve especialmente na velhice mais avançada. Contrariamente ao que se acredita, a reminiscência não representa um sinal de decrepitude ou depressão. Ela realiza uma articulação entre as três dimensões temporais outorgando ao ser um sentido de comando da realidade e continuidade do ser.

A perda de objetos significativos de difícil substituição, somadas às dificuldades provocadas pelas limitações físicas funcionais e a consciência de finitude incrementam no idoso a necessidade de bem estar. Assim, a reminiscência pode ser entendida como uma forma de exercício da memória histórica que será elaborativa se achar um eco, uma escuta apropriada e um aproveitamento social, impedindo a depressão do vazio de objetos. A reminiscência é a insistência da história.

Quando não é possível investir no porvir, o psiquismo se defende da destruição investindo no passado idealizado. Assim, além de se manter vínculos no presente, se evita que as lembranças se evaporem e a história subjetiva se perca sob os efeitos da demência.

Não devemos confundir a reminiscência com a nostalgia onde a lembrança se refere sempre a um objeto perdido, irrecuperável e em poder dos outros, como por exemplo, a juventude. A nostalgia é uma experiência sempre dolorosa, que não consegue recriar o prazer no ato de contar porque não pode recriar o objeto. O velho nostálgico e deprimido fala de suas lembranças com tristeza e raiva enquanto o velho reminiscente o faz sempre com um certo orgulho e satisfação.

Agora, de que falamos quando falamos de velhos? Falamos de um sujeito psíquico em constante crescimento e evolução, altamente afetado pela representação de um corpo que declina e pela consciência da finitude. Mas, estamos falando de um limite e não de uma limitação. Limite que será o do corpo biológico que sofre uma involução, mas não daquele outro que sabemos capaz de prazer, instrumento de amor e que deverá ser incentivado a sentir e se sensibilizar com a proximidade dos outros e a força dos vínculos.

Limite que será o da finitude elaborativa orientando investimentos adequados, promovendo reflexão e não desespero, solidariedade e não solidão.

Limite enfim que não feche a porta à paixão sempre possível.

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Delia Catullo Goldfarb Psicóloga e psicanalista com mestrado pela PUC-SP e doutorado em psicologia pela USP-SP. Tem especialização em Gerontologia pela SBGG e FLACSO. Além de atuar em clínica particular é consultora do PNUD, assessora em políticas públicas e criadora do curso “Psicogerontologia: fundamentos e perspectivas” na COGEAE/PUC-SP. É membro fundador da Rede Ibero-americana de Psicogerontologia e da Associação Nacional de Gerontologia. Como pesquisadora se dedica principalmente aos temas: Alzheimer, depressão, cuidados e cuidadores, demências, acompanhamento terapêutico com idosos, psicanálise e envelhecimento, finitude, fragilidade, dependência, família e políticas públicas. Tem publicado os livros "Corpo, tempo e envelhecimento" e "Demências" pela editora Casa do Psicólogo, além de diversos artigos no Brasil e no exterior.

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