Corpo Modificado

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Corpo modificado Talita Gabriela Robles Esquivel, Antonio Carlos Vargas Sant’Anna PPGAV-UDESC Corpo; modificação; grotesco ST 47 - Convenções sociais, marcadores de diferença e biotecnologias: entre permanências, transformações e debates ético-políticos Em nossa sociedade, muitos são os conflitos ocorridos devido ao aspecto corporal, muitas violências são forçadas e/ou impostas ao corpo, assim como muitas são as auto-violações, ou auto- mutilações. O corpo vem sendo utilizado como base para trabalhos artísticos e ganha atenção na contemporaneidade. As percepções das práticas corporais podem ser de caráter histórico, religioso, étnico, social, cultural. Uma das explicações sobre a relação com o corpo, a partir do paradigma de normalidade, em geral base para julgamentos, é de Denise Sant’Anna (1995). Segundo a autora, tal paradigma relaciona-se com aquilo que é considerado artificial em cada época. No início do século XX, começa a haver concursos de beleza femininos nos quais o padrão físico idealizado era masculinizado. Era proibido se mostrar o corpo e os músculos aparecem como uma vestimenta corporal. Esses concursos estavam embasados no ideal clássico de beleza corporal, corrente na época. Segundo Courtine (1995), com os concursos, começa a haver uma permissividade maior às mulheres, que passam, por exemplo, a poder fumar nas ruas. As mulheres tornam-se mais individualistas. O corpo as liberta. A busca pelo prazer imediato e temporal, condenada pelo puritanismo, passa a ser corrente e esta é obtida pela prática física. O corpo é tido como reflexo da moral. No século XVII era corrente o uso de aparelhos de correção corporal. A princípio eram utilizados com fins funcionais, mas nesse período o conceito desses aparelhos é ampliado. Visando a prevenção de alguma deformidade estética futura, o espartilho torna-se obrigatório, o que alcançou também as crianças (SANT’ANNA, 1995, 26). Essa prevenção, já não mais correção, chega a ser um fetiche, ou objeto estético sem fins funcionais, avançando para sinônimo de educação e requinte, por tornar a mulher mecanizada. Na Idade Média, segundo Célia Antonacci Ramos (2001), o corpo só podia ser tocado em rituais sagrados realizados pela igreja católica. Fora deste contexto, nem mesmo pelo médico. Tendo uma série de depoimentos como apoio, Jocelyne Vaysse (1995), abordando a manipulação do corpo no século XX, coloca que, no caso de um transplante, junto com o coração “real”, há o “coração imaginário”. Segundo Vaysse, o coração carrega uma carga simbólica muito forte, como se fosse o centro do corpo, das emoções, o que pode se confirmar em diversos ditos populares

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Talita Gabriela Robles Esquivel, Antonio Carlos Vargas Sant’Anna PPGAV-UDESC Corpo; modificação; grotesco ST 47 - Convenções sociais, marcadores de diferença e biotecnologias: entre permanências, transformações e debates ético-políticos

Em nossa sociedade, muitos são os conflitos ocorridos devido ao aspecto corporal, muitas

violências são forçadas e/ou impostas ao corpo, assim como muitas são as auto-violações, ou auto-

mutilações. O corpo vem sendo utilizado como base para trabalhos artísticos e ganha atenção na

contemporaneidade. As percepções das práticas corporais podem ser de caráter histórico, religioso,

étnico, social, cultural. Uma das explicações sobre a relação com o corpo, a partir do paradigma de

normalidade, em geral base para julgamentos, é de Denise Sant’Anna (1995). Segundo a autora, tal

paradigma relaciona-se com aquilo que é considerado artificial em cada época.

No início do século XX, começa a haver concursos de beleza femininos nos quais o padrão

físico idealizado era masculinizado. Era proibido se mostrar o corpo e os músculos aparecem como

uma vestimenta corporal. Esses concursos estavam embasados no ideal clássico de beleza corporal,

corrente na época. Segundo Courtine (1995), com os concursos, começa a haver uma

permissividade maior às mulheres, que passam, por exemplo, a poder fumar nas ruas. As mulheres

tornam-se mais individualistas. O corpo as liberta. A busca pelo prazer imediato e temporal,

condenada pelo puritanismo, passa a ser corrente e esta é obtida pela prática física. O corpo é tido

como reflexo da moral.

No século XVII era corrente o uso de aparelhos de correção corporal. A princípio eram

utilizados com fins funcionais, mas nesse período o conceito desses aparelhos é ampliado. Visando

a prevenção de alguma deformidade estética futura, o espartilho torna-se obrigatório, o que

alcançou também as crianças (SANT’ANNA, 1995, 26). Essa prevenção, já não mais correção,

chega a ser um fetiche, ou objeto estético sem fins funcionais, avançando para sinônimo de

educação e requinte, por tornar a mulher mecanizada.

Na Idade Média, segundo Célia Antonacci Ramos (2001), o corpo só podia ser tocado em

rituais sagrados realizados pela igreja católica. Fora deste contexto, nem mesmo pelo médico.

Tendo uma série de depoimentos como apoio, Jocelyne Vaysse (1995), abordando a manipulação

do corpo no século XX, coloca que, no caso de um transplante, junto com o coração “real”, há o

“coração imaginário”. Segundo Vaysse, o coração carrega uma carga simbólica muito forte, como

se fosse o centro do corpo, das emoções, o que pode se confirmar em diversos ditos populares

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referentes ao amor, ao sofrimento. Para Vaysse, este “imaginário” é tido como algo

cultural e, após transplantado, o sujeito acabaria lidando com suas emoções e pensamentos até

incorporar imaginativamente este coração ao seu ser.

Nossas ansiedades, ambições, experiência de vida, aprendizagem, frustrações ficam

armazenadas e são visivelmente refletidas no corpo. Exemplo disso é a tatuagem. A tatuagem é uma

dessas ânsias de vida guardadas no corpo e exposta através dele, mostrando uma necessidade de

salientar singularidade diante da massa populosa. O que chamamos de memória corporal vai muito

além de uma simples habilidade física.

Le Breton (1995) discorre sobre o quanto o corpo é cada vez mais visto e tratado como

obsoleto pela ciência e pela sociedade. A ambição de cientistas e médicos de tratar todas as doenças

e proporcionar uma vida cada vez mais longa, leva-os também a desrespeitar a condição humana e a

banalizar os indivíduos, tratando seus corpos como produtos. Segundo Le Breton, o psiquiatra W.

Gaylin propõe a criação de um bioempório, um lugar onde pessoas em estado de coma crônico

ficariam com todas as partes de seus corpos disponíveis para transplante e para todo e qualquer tipo

de experiências da medicina. Estes “pacientes” seriam realmente pacientes durante anos, sendo

cortados, implantados, testados com todo tipo de doença e remédio, até que finalmente seus corpos

parassem de funcionar. A pessoa passa a ser apenas um corpo, como Le Breton mesmo coloca,

como em um açougue. O senso comum da sociedade ocidental, em geral, acompanha esta

“filosofia”, quando discrimina qualquer discrepância neurológica e determinadas modificações

corporais.

Dessa forma, é possível afirmar que, não havendo conhecimento suficiente a respeito do que

acontece com o indivíduo quando não há sintomas de atividade cerebral, não se sabe o que fazer

com este corpo que ainda é vivo, mas não é mais considerado uma pessoa. As modificações

corporais, segundo Le Breton, indicam uma modificação cerebral e moral, para os indivíduos em

geral. O autor coloca que a única forma de passear pelas ruas sem chamar a atenção é ser um

indivíduo comum, sem qualquer diferenciação corporal. Se o corpo é o que nos distingue uns dos

outros, torna cada ser singular, forma identidades, Le Breton afirma que qualquer modificação é

considerada plausível de julgamento pela sociedade e uma das maneiras de estudar as formas

sociais é a partir do corpo, pois a perturbação introduzida na configuração do corpo é uma

perturbação introduzida na coerência do mundo. (LE BRETON, 1995, 64 e 65).

A tatuagem é como uma cirurgia, coloca Célia Antonacci Ramos (2001). Feita em ambiente

esterilizado, com suas ferramentas de incisão, deixa uma marca indelével no corpo. No entanto, não

só este corpo marcado, tocado, é vítima de preconceito, mas outros corpos modificados, por serem

diferentes do ideal de beleza corrente. O preconceito pode ainda possuir fundamentação religiosa,

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no momento em que determinadas formas corporais são concebidas como dádiva ou

castigo. Os obesos e os body-builders têm a atenção dos olhares julgadores.

Para Fischler (1995), a corpulência passa um significado mais profundo na medida em que

socialmente é associado ao quanto o indivíduo atribui para si simbolicamente, através da comida, na

distribuição da riqueza social. Segundo o autor, no imaginário popular, há dois tipos de gordo, o

benigno e o maligno. Por meio de entrevistas, o autor pôde constatar que as pessoas fazem uma

idéia do gordo, um estereótipo. O obeso é tido como transgressor, o ser incontrolável que se

apropria de uma parte maior do que lhe é de direito: Ora, a divisão da comida, na maior parte das

sociedades, simboliza a essência mesma do vínculo social (FISCHLER, 1995, 74). Tido como um

ameaçador da paz social, o obeso tem de compensar a sociedade através do uso da força ou

proporcionando diversão. Outro aspecto interessante que podemos perceber é a denominação de

Flischler para os dois tipos de obeso imaginário: maligno e benigno. Pelos títulos, o obeso aparece

como um grande tumor para a sociedade.

O body-building é uma modificação corporal diferente da obesidade, dentre outros aspectos,

por ser proposital. Muitas agressões, ou violentas modificações ao corpo, tornaram-se comuns no

mundo contemporâneo. A aversão é explicada por Le Breton (1995) por meio da afirmação de que

qualquer modificação no corpo é suscetível de julgamento. Por que então os body-builders parecem

chamar mais atenção para a questão do que as operações, plásticas, mutilações, implantes? Talvez

porque estas sejam mais usuais. Se não se é condenado de um jeito, não se deveria ser condenado de

outro, nem mesmo por ser tão extravagante. Se condenarmos quaisquer práticas corporais,

desrespeitamos a vontade alheia. Todos somos seres singulares e não temos como saber a

complexidade que envolve esta prática para o outro. Se condenarmos esta prática, acabamos por

condenar o obeso, o deficiente, o homossexual, o negro, a mulher, o estrábico, enfim, tudo que não

faz parte do ideal de beleza, ou de poder, corrente. Mas isso mostra uma outra direção, a

condenação social daquele que não adere à prática mutiladora, quem possui algum traço corporal

considerado defeito e escolhe não realizar uma cirurgia plástica, por exemplo. As práticas

mutiladoras cotidianas são impostas para nós pela sociedade, pela cultura e pelas mídias em geral, e

não é de agora.

Indícios de tatuagens foram encontrados em múmias do Antigo Egito, como conta Célia

Antonacci Ramos (2001). Sendo um critério cultural, nem sempre as modificações corporais são

mal vistas. Segundo Ramos, diversas tribos indígenas tratam a prática da tatuagem como uma

capacidade de suportar a dor. Na Nova Zelândia, a mulher só consegue arranjar um marido, ou

mesmo um paquera, depois que tiver alguma tatuagem. A tatuagem é o que embeleza o corpo. A

dor causada por qualquer tipo de modificação corporal, algumas vezes causa traumas, outras não.

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Segundo Ramos, a dor e o sofrimento só causam traumas quando não há uma promessa de

prazer. Quando traz algum benefício, satisfação, não há traumas, como é o caso das cirurgias

plásticas, das tatuagens como concebemos hoje, ou qualquer outra “agressão boa” para o indivíduo

que a pratica, como as pequenas mutilações cotidianas.

Temos que nos mutilar constantemente, nos moldar às exigências de determinada profissão,

vestir determinadas roupas; cortar e pintar os cabelos e as unhas; retirar as cutícula; arrancar os

pêlos das pernas, das virilhas, das axilas, das sobrancelhas; pintar o rosto; retirar a barba; furar as

orelhas; implantar silicone; retirar gordura localizada; tomar anabolizantes, hormônios; ter filhos;

ser magro(a), ser alto, ser forte, enfeitar-se, embelezar-se. Devemos nos mutilar, mas não muito;

implantar silicone, mas não muito; ser magra(o), mas não muito; ser forte, mas não muito, ou então

viramos espetáculo. Devemos furar as orelhas, mas apenas um furo por orelha, ou a modificação no

corpo já se “torna” rebeldia. Ainda hoje perdura a idéia, em uma sociedade conservadora, de que

tatuagem é sinônimo de marginalidade. Supondo que esta idéia tenha vindo do Holocausto, os

judeus, ciganos e homossexuais não foram vítimas? Então a idéia que deveria vir com a tatuagem

não seria de acolhimento em vez de exclusão? Os seres humanos eram tratados como animais e

pior, tratar como animal significa tratar com desrespeito, como não-seres humanos, como o corpo

em coma, como produto. As declarações, colhidas por Ramos, mostram absurdos incompreensíveis

praticados contra a raça humana. Parece que quando homens são considerados apenas corpos,

fecham-se nossos olhos para as maldades permitidas.

Depois do Holocausto, depois de guerras, sangrias, matanças de animais, procedimentos

cirúrgicos estéticos, como condenar uma prática como o body-building? Embora agressiva, esta

parece até uma prática bastante inofensiva e se limita ao próprio corpo do praticante. Há algum

limite às imposições do corpo? Sabe-se o que se deve fazer, mas não se sabe até onde se pode ir.

Um outro motivo para as imposições de padrões corporais seria o sentimento de conforto perante a

solidão. Vivendo em sociedade e parecendo mais uns com os outros, como em um grande rebanho,

talvez surja o sentimento de bem-estar e aconchego para uns, como em um enorme útero. Essa

possibilidade acabaria provocando atitudes de repressão a qualquer alteração que ponha em dúvida

tal ilusão. Essas mesmas práticas de padronização acabaram sendo usadas também como de

diferenciação. Como impor limites para as mutilações cotidianas se são um tanto abstratas, nada

calculável, numérico, mais ligadas às sensações do que a algo concreto? É possível que estas

práticas cotidianas sejam saudáveis, como uma válvula de escape, nos mutilando ao invés de

mutilar, matar uns aos outros? Cuidamos de nosso corpo ao invés de cuidar e julgar o corpo do

outro?

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Courtine (1995) nos lembra que o corpo masculino foi o primeiro a ser mostrado nu

e a ser cultuado. Hoje, ele se encontra em segundo lugar nas imagens usadas pela mídia. A nudez

masculina, segundo o autor, proporcionou uma maior liberdade às mulheres. O puritanismo

exagerado no século XIX cedeu lugar ao hedonismo, ao narcisismo, ao individualismo do século

XX.

A identidade masculina, segundo Pociello (1995), encontra-se em uma profunda crise e as

únicas formas de auto-afirmação têm sido com a violência, um exemplo seriam os esportes

violentos. Outro aspecto interessante colocado por Pociello é que a prática física se tornou uma

atividade elegante e a preocupação com a saúde acabou servindo para camuflar uma preocupação

maior, que é a exibição do próprio corpo. Dessa forma, para muitos, o objetivo essencial da

atividade física seria tornar o corpo apto para uma espécie de desfile coletivo e cotidiano,

culminando em um narcisismo geral, como em um banquete onde os pratos são mostrados aos

compradores.

Há um exagero na quantidade de padrões e a observação de Courtine se faz pertinente.

Parece haver uma fobia em relação a tudo que está fora do que é idealizado, ou melhor, a tudo que é

verdadeiramente humano. Como Denise Sant’Anna (1995) coloca, conforme já foi dito, o que se

considera natural define-se a partir do que se considera artificial em cada época. Estamos

idolatrando o virtual, a máquina, a informação e deixando em segundo plano o sentimento, os

sentidos, o que é carnal, o humano.

O corpo idealizado que circula pelas mídias e é imposto pela sociedade não é natural, então

o corpo dos indivíduos em geral pode passar a ser grotesco. Usado como matéria-prima,

abordagem, suporte de muitos artistas plásticos contemporâneos, o corpo apresentado das mais

diversas formas, remete-se não apenas ao corpo existente no mundo tangível, não estão

representando, mas se apresentando como corpo presente no espaço, remetendo portando ao próprio

corpo, à própria condição da arte.

É assim que diversos artistas utilizam o próprio corpo em seus trabalhos. Na performance

Shoot de Chris Burden (1971), o corpo do próprio artista é usado como alvo para o tiro. O artista

neste caso realmente foi baleado no braço dentro da galeria. Cindy Sherman realiza um trabalho de

body art que Philip Auslander (2006) chama de “fotografia performada”, em que sua obra acontece

apenas no espaço da fotografia, o que não deixa de ser também uma performance, assim como

Rrose Selavy (1920) de Marcel Duchamp. Já Herman Nitsch utiliza corpos de animais e de seres

humanos em seus trabalhos, que podem ser comparados a uma espécie de ritual coletivo.

A imagem do corpo pode ser usada como fonte icônica quando serve de base para que

determinada imagem seja realizada. As pinturas de Jenny Saville abordam o corpo apresentando

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imagens que não fazem parte do ideal de beleza contemporâneo. Nas imagens de Saville, o

corpo se apresenta com aspectos grotescos. Para Mijail Bajtin (1987), a concepção do todo corporal

e seus limites está na base das imagens grotescas. Segundo Bajtin, a imagem grotesca traz em sua

essência uma cosmovisão carnavalesca do mundo, é ambivalente, pois não está focado na superfície

corpórea, mas nas entranhas, na parte interna do corpo, naquilo que é comum a todos. Um aspecto

saliente nas imagens de Saville, são os limites corporais da vida efêmera, assim como em Andrés

Serrano, que trabalha com imagens que abordam os padrões, a hipocrisia social, o corpo, a morte.

Jeff Koons, os irmãos Chapman e Paul MacCarthy são artistas importantes neste cenário.

Eduardo Kac, o artista que criou o primeiro coelho fosforescente do mundo e faz uma série

de outros experimentos, coloca em questão a relação entre corpo, vida e tecnologia. Stelarc faz o

mesmo quando propõe órgãos artificiais e supõe um futuro momento no qual a única parte humana

que restaria em um corpo seria o cérebro. Isso também nos lembra a série de operações cirúrgicas

que a artista Orlan realiza em seu próprio rosto. Jean Rustin, John Currin, Marina Abramovic, assim

como Lucian Freud são também artistas em cujas obras a temática do corpo possui uma presença

muito forte. No cenário nacional, encontramos Fernanda Magalhães como uma artista que vem se

destacando desde a década de 1990, abordando a temática dos padrões culturais de beleza com

enfoque no corpo gordo feminino.

O corpo mutilado ou auto-mutilado, gordo ou deficiente; padrões impostos pela sociedade; a

solidão, o abandono; o corpo como objeto; o corpo como corpo; a carcaça, a carniça, o cadáver, a

morte; as entranhas, as excrescências, os órgãos, o estranhamento; a expressividade, o realismo, o

surrealismo, o hiper-realismo; a abundância, a exuberância, a deformidade, o exagero, o absurdo; a

combinação de elementos icônicos distintos. O lugar de cada corpo no mundo depende de seu

aspecto visual, porém na arte tais corpos ganham lugar e se estabelecem como relevante tema para

uma abordagem. Os trabalhos que os artistas citados desenvolvem causam, normalmente, um

grande impacto no público.

Resumindo, o corpo como algo sagrado, intocável, impedido de ser modificado, faz parte do

rastro deixado pela Idade Média e ainda tem forte presença nos dias atuais. Para Le Breton (1995),

no imaginário popular, a modificação no corpo significa uma modificação moral. É interessante

notar como determinadas práticas corporais, modificações e violações do corpo não causam

qualquer mal-estar nos indivíduos em geral, porém quando é uma prática realizada por uma minoria

e se, ainda, por uma minoria sem poder, há uma discriminação muito forte. Parece que não é a

prática da modificação corporal em si que causa aversão às pessoas, mas a prática realizada por

determinado grupo de pessoas. A prática corporal realizada em pessoas que têm poder, e isso não

apenas significa apenas poder aquisitivo, parece ser relevada, e até mesmo adorada. Um exemplo

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recente é a prática realizada por pop-stars da música, cujas modificações são quase uma

regra. Para a sociedade em geral, a tatuagem é tida muitas vezes como uma prática de prisioneiros,

marginais, porém, uma prática mais agressiva, como a cirurgia plástica, não é recebida com muita

aversão, talvez por ser uma atividade que até pouco tempo era apenas acessível a uma alta classe

social, o que chega a ser sinônimo de poder, talvez por ser uma solução para corrigir “defeitos” no

corpo e esta insatisfação seja comum a muitos.

Inúmeros artistas trabalham com a questão do corpo, colocando em evidência tudo o que é

próprio do corpo, do conhecimento sensível, do carnal, do humano. Não nos apresentam respostas,

mas abordagens e questionamentos visuais, capazes de nos levar a um devir, a uma alteração na

nossa relação com o próprio corpo e com o corpo do outro, nos fazendo questionar os paradigmas, o

próprio conhecimento, as imposições sociais, culturais, étnicas e religiosas de padrões de beleza, de

comportamento, de crença.

Referências

BAJTIN, Mijail. La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. Alianza Editorial, S.A, Madrid, 1987. COURTINE, Jean-Jacques. Os Stakhanovistas do Narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatório na cultura do corpo. In : SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. FISCHLER, Claude. Obeso Benigno Obeso Maligno. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas

do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. LE BRETON, David. A síndrome de Frankenstein. In : SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas

do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. VAYSSE, Jocelyne. Coração estrangeiro em corpo de acolhimento. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. AUSLANDER, Philip. The performativity of performance documentation. Performance Art Journal (PAJ), 2006. PERROT, Michelle. De Marianne a Lulu: As imagens da mulher. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. POCIELLO, Christian. Os desafios da leveza: As práticas corporais em mutação. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. RAMOS, Célia Maria Antonacci. Teorias da tatuagem: corpo tatuado - uma análise da loja Stoppa Tatoo da Pedra. Florianópolis: UDESC, 2001. _____. As nazi-tatuagens: inscrições ou injúrias no corpo humano? São Paulo: Perspectiva, 2006. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. _____. Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In :

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SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. SENRA, Stella. Corpos, cinema e vídeo. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.