Corpo Sofredor Dramaturgia

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  • MENDES, Edilberto. A imagem do corpo sofredor como operao esttico-poltica: um estudo a partir da personagem do retirante na dramaturgia. Fortaleza: Faculdade Maurcio de Nassau. Faculdade Maurcio de Nassau; Docente. Dramaturgo.

    RESUMO

    Este trabalho faz parte de uma pesquisa sobre criao dramatrgica e produo do imaginrio. A partir da teoria do imaginrio em Gilbert Durand (2012), Gaston Bachelard (2001; 2013) e Jacques Racire (2005) efetua-se uma leitura da pea teatral Morte e Vida Severina, de Joo Cabral de Melo Neto (1994), evidenciando como a criao de imagens literrias do retirante nessa obra suscita sentimentos que determinam regimes de visibilidade e afirmam modos especficos de subjetivao e de posicionamento sensvel diante do mundo, particularmente diante do sofrimento de seres humanos em estado extremo de excluso. Opera-se numa perspectiva arqueolgica, buscando, pela reviso crtica do processo de construo esttica do retirante nas artes da escrita ficcional nacional, compreender e problematizar a sensibilidade social para com a pobreza e a excluso social e o lugar da escrita dramtica nessa dinmica. Conclui-se que a pea pe em funcionamento um modelo de subjetivao de fundo religioso alicerado numa relao pastoral entre Deus e os homens (Foucault, 2008) e um sentimento poltico para com a pobreza segundo o qual os pobres so a figura do prprio Deus encarnado.

    PALAVRAS-CHAVE: Esttica; Poltica; Dramaturgia; Excluso Social; Imaginrio.

    ABSTRACT

    This article is part of a research that investigates the relation between playwriting and the imaginary. The concept of imaginary as developed by Gilbert Durand (2012), Gaston Bachelard (2001; 2013) and Jacques Racire (2005) is applied to an analysis of the play Morte e Vida Severina, by Joo Cabral de Melo Neto (1994). The analysis focus on how literary images of the retirante, in this play, evoque certain feelings that determine regimes of visibility and patterns for subjetivity and sensibility, particularly regarding the suffering of those in extreme state of social exclusion. Through an archaeological perspective, it investigates the aesthetics construction of the retirante in brazilian literature and drama, so as to understand and discuss the social sensibility towards poverty and social exclusion, and the role of dramatic writing in this process. It is concluded that the play reaffirms a pattern of subjectivity which background is religious, based on a pastoral relationship between God and men (Foucault, 2008) and a political feeling towards poverty in which the poor are the figure of the incarnate God.

    KEYWORDS: Aesthetics; Politics; Playwriting; Social Exclusion; Imaginary.

    A questo da imaginao potica sobre as minorias sociais assume lugar central num mundo cada vez mais tensionado e desestabilizado por processos

    iinte_000Nota como Carimbo

  • de excluso, opresso e discriminao. Sabemos que esses processos se do numa complexa dinmica de fluxos de discursos e prticas articulados pelas diferentes instituies sociais. Essa pesquisa busca explicitar e problematizar o lugar das artes da escrita dramtica na produo do imaginrio sobre os sujeitos excludos no Brasil, evidenciando as formas como a imaginao potica desses sujeitos elabora imagens que pem em funcionamento certos modelos de posicionamento sensvel diante dessa questo social. Nesse artigo, essa discusso ser articulada a partir da pea Morte e Vida Severina (1954), de Joo Cabral de Melo Neto. Imaginao potica e ao poltica Para Durand (1984) pela imaginao que passa a doao do sentido e que funciona o processo de simbolizao, por ela que o pensamento do homem se desaliena dos objectos que a divertem, como os sonhos e os delrios que a pervertem e a engolem nos desejos tomados por realidade (DURAND, 1984a, p. 37 apud ARAUJO e TEIXEIRA, 2009, p. 8). Essa funo libertadora da imaginao enquanto atividade simblica est em consonncia com a proposio de Bachelard (2001) de que a imaginao, ao contrrio do que sugerem as pesquisas que, orientando-se pela etimologia da palavra , entendem-na como a faculdade de formar imagens, consiste em deformar as imagens fornecidas pela percepo. Nesse sentido, a imaginao nos liberta das imagens primeiras:

    Se no h mudana de imagens, unio inesperada das imagens, no h imaginao, no h ao imaginante. Se uma imagem presente no faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional no determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma exploso de imagens, no h imaginao. H percepo, lembrana de uma percepo, memria familiar, hbito de cores e formas (BACHELARD, 2001, p. 1).

    Imaginar, nesse sentido, ausentar-se, lanar-se a uma vida nova (BACHELARD, 2001, p. 3) e a funo da literatura e da poesia, enquanto instncias privilegiadas do exerccio da imaginao, justamente reanimar uma linguagem criando novas imagens. Essa perspectiva exaustivamente enfatizada em toda a obra desse autor. Para ele, as imagens literrias perturbam o esprito:

    Ora, no mpeto e no fulgor das imagens literrias, as ramificaes se multiplicam; as palavras j no so simples termos. No se terminam por pensamentos; tm o porvir da imagem. A poesia faz o sentido da palavra ramificar-se, envolvendo-a numa atmosfera de imagens [...] que lanam o esprito em vrias direes, que agrupam elementos inconscientes diversos, que realizam sobreposies de sentidos de maneira que a imaginao literria tenha tambm seus subentendidos (BACHELARD, 2013, p. 5-6).

    Essa perturbao do esprito pode ser considerada como a fora poltica da imagem literria. E, de fato, Bachelard (2001) prope que a imaginao uma das formas da audcia humana (BACHELARD, 2001, p. 6). Aqui cabe a distino de Rancire (2012), para quem a imagem artstica se caracteriza exatamente pelo trabalho da imaginao que produz uma alterao da semelhana por meio dos mais diversos procedimentos, podendo ser, por

  • exemplo, a visibilidade conferida a pinceladas inteis para nos fazer saber o que representado num retrato ou, nas artes da escrita, uma locuo que exacerba a expresso de um sentimento ou torna mais complexa a percepo de uma ideia, ou simplesmente a insero inesperada de um elemento a palavra no poema ou um plano no cinema no lugar daqueles que pareciam inevitveis. As imagens da arte, nesse sentido:

    so operaes que produzem uma distncia, uma dessemelhana. Palavras descrevem o que o olho poderia ver ou expressam o que jamais ver, esclarecem ou obscurecem propositalmente uma ideia. Formas visveis propem uma significao a ser compreendida ou a subtraem. Um movimento de cmera antecipa um espetculo e descobre outro, um pianista inicia uma frase musical atrs de uma tela escura. Todas essas relaes definem imagens. (RANCIRE, 2012, p. 14-15).

    Para esse autor, a escrita tem efeito no real na medida em que define modos de dizer, agir e sentir; na medida em que traa mapas que definem trajetrias a serem percorridas entre o visvel e o dizvel, orientando as percepes e, consequentemente, as capacidades dos corpos, a forma como se posicionam subjetivamente. O homem, diz ele, um animal poltico porque um animal literrio, que se deixa desviar de sua destinao natural pelo poder das palavras (RANCIRE, 2005, p. 59-60), ou seja, pela ao imaginante no sentido proposto por Bachelard (2001). A imagem do retirante como operao esttico-poltica Morte e Vida Severina ganhou destaque nacional e internacional a partir da montagem do Teatro da Universidade Catlica (TUCA), de 1965, sob a coordenao de Roberto Freire, direo de Silnei Siqueira, e direo musical de Chico Buarque de Holanda. O poema dramtico foi traduzido para o alemo, o francs, o ingls, o espanhol, o italiano e o holands, estabelecendo-se como uma das obras mais conhecidas e difundidas do autor e um marco da dramaturgia brasileira. O drama de Severino em sua jornada do serto, de onde foi expulso pela seca, para o litoral, sempre s voltas com o sofrimento de outros sujeitos em situao de misria e opresso, , sem dvida, uma das referncias basilares da construo esttica dos excludos pela arte da escrita dramtica. A pea teatral est estruturada em 18 unidades dramticas. Na primeira, a personagem central, Severino, apresenta a si mesmo e o conflito: a seca associada a uma estrutura fundiria marcada pela concentrao de terras e explorao do trabalho do pequeno agricultor que o fora a emigrar. Em sua jornada, Severino s encontra sofrimento: morte em emboscada por conflito de terras; falta de trabalho; os privilgios dos mais ricos e a penria dos mais pobres, etc. No auge de sua decepo, cogita suicidar-se nas guas do Capibaribe, mas salvo pelo anncio do nascimento de uma criana. Os moradores do lugar, ao celebrarem a chegada da criana, assumem as funes das personagens caractersticos do prespio natalino. A ao se encerra com a afirmao de que a vida, ainda que sofrida, severina, vale a pena.

  • Nunes (1974) prope que a estrutura dramtica da trajetria de Severino pode ser lida como um auto dentro do auto. De fato, o anncio do nascimento do filho de Seu Jos, mestre carpina, efetua uma ruptura na curva ascendente de encontros do retirante com a morte, a misria, a desesperana. A partir desse evento, a atmosfera sombria e ftida do lamaal milagrosamente transformada. Solo seco, perfume de alfazema, gua cristalina espelhando estrelas compem um novo cenrio para os habitantes do lamaal que, imbudos pelo esprito de comunho, transmudam os signos de pobreza em ddivas:

    Minha pobreza tal que no trago presente grande: trago para a me caranguejos pescados por esses mangues; mamando leite de lama conservar nosso sangue. Minha pobreza tal que coisa no posso ofertar: somente o leite que tenho para meu filho amamentar; aqui so todos irmos, de leite, de lama, de ar. Minha pobreza tal que no tenho presente melhor: trago papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. (MELO NETO, 1994, p. 196-197)

    Nesses termos, o acontecimento terreno do nascimento de mais um

    membro daquela comunidade miservel, narrado na forma dramtica do auto de natal, torna-se uma figura da encarnao de Cristo que , no imaginrio cristo, a expresso mxima da graa divina j que o prprio Deus se faz carne par vir em auxlio do homem ameaado pela confuso e pela desgraa terrenas (AUERBACH, 1997, p. 79). Por um lado, o recm-nascido apenas mais um que cumprir a mesma sina dos habitantes do mangue, como profetiza uma cigana:

    Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar de pescar siris; (MELO NETO, 1994, p. 198)

    Por outro lado, ele representa a beleza da boa nova, a afirmao da fora da vida que supera todas as adversidades. E aqui no se trata mais de profecia das ciganas do Egito, mas da crena dos que vieram celebrar o nascimento, acentuando que o menino :

    Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. [...] belo porque com o novo todo o velho contagia. Belo porque corrompe

  • com sangue novo a anemia. Infecciona a misria com vida nova e sadia. Com osis, o deserto, com ventos, a calmaria (MELO NETO, 1994, p. 198).

    Para Carvalho (2012) Joo Cabral opera uma inverso ao tomar a forma do Auto de Natal tradicional para afirmar a esperana na vida terrena, mesmo que seja uma esperana minguada, franzina, severina e no uma esperana na vida eterna, aps a morte (CARVALHO, 2012, p. 54), o que seria, em certa medida, uma desconstruo prpria de uma escrita reflexiva e crtica. Mesmo assim, a resposta ao conflito do retirante Severino, em forma de Auto de Natal, evocando as figuras do evangelho relacionadas encarnao de Cristo, reafirma um modelo de subjetivao poltica de fundo religioso alicerado numa relao pastoral entre Deus e os homens, segundo a qual Cristo o bom pastor que o rebanho deve seguir. Como esclarece Foucault (2008):

    A relao pastoral, em sua forma plena e em sua forma positiva, portanto, essencialmente, a relao entre Deus e os homens. um poder de tipo religioso que tems eu princpio, seu fundamento, sua perfeio no poder que Deus exerce sobre seu povo. [...] O poder do pastor um poder que no se exerce sobre um territrio, um poder que, por definio, se exerce sobre um rebanho. [...] fundamentalmente um poder benfazejo. [...] um poder de cuidado (FOUCAULT, 2008, p. 168-170).

    A forma pastoral, segundo Foucault (2008), foi um operador fundamental na formao da subjetividade nas sociedades ocidentais crists. Isso porque ela instituiu um modo de individuao centrado na questo da salvao que assegurada por uma complexa rede de relaes de reciprocidade entre o pastor (Deus) e suas ovelhas (sujeitos). Essa rede de relaes se fundamenta na submisso ordem, lei, aos mandamentos, vontade de Deus, e o que possibilita essa submisso aceitao das Escrituras como produo de verdade. Cabe destacar que o Severino retirante, assim como todos os demais severinos da pea, camponeses ou citadinos, enquanto personagens-figuras desse modelo de subjetivao pastoral, se inscrevem na economia de mritos e demritos da salvao principalmente pelo lugar social que ocupam. So pobres, desfavorecidos por uma ordem social excludente, vtimas da seca, das emboscadas, da ganncia dos latifundirios e usineiros. So uma gente sofrida, que vive s margens, condenada p, enxada, foice, ao lamaal, ao enterro indigente. Esse desprestgio na ordem terrena revertido em privilgio na produo da salvao. Isso fica muito evidente no auto natalino de Morte e Vida Severina. O beb de Seu Jos, mestre carpina, , ao mesmo tempo, uma figura de Cristo, da vida, e de todos os severinos da pea que, por essa operao potica, igualam seu rosto sofrido ao belo rosto do Salvador.

  • Referncias bibliogrficas ARAJO, Alberto Filipe; TEIXEIRA, Maria Ceclia Sanchez. Gilbert Durand e a pedagogia do imaginrio. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 4, p. 7-13, out./dez. 2009. Disponvel em: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/.../4746, acesso em 28/03/14. AUERBACH, Erich. Figura. So Paulo: tica, 1997. BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. So Paulo: Martins Fontes, 2001. ___________________. A terra e os devaneios da vontade. So Paulo: Martins Fontes, 2013. CARVALHO, Francisco Israel de. Teatro da morte e da vida: a escrita barroca de Joo Cabral de Melo Neto. Curitiba: Appris, 2012. FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008. MELO NETO, Joo Cabral de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. NUNES, Benedito. Joo Cabral de Melo Neto Poetas modernos do Brasil v. 1. Petrpolis/RJ: Vozes, 1974. RANCIRE, Jacques. A partilha do sensvel: esttica e poltica. So Paulo: Ed. 34, 2005. __________________. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.