Corpos, gestos e movimentos: um estudo sobre a dimensão ...… · Resumo A presente pesquisa de...
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Corpos, gestos e movimentos: um estudo sobre a dimensão brincalhona
das professoras da Educação Infantil
Relatório Final de Iniciação Científica
apresentado como exigência do
Programa Institucional de Bolsas –
Modalidade: Bolsa Institucional
(RUSP) junto à Faculdade de
Educação da USP/SP.
Aluna: VIVIANE SOARES ANSELMO – nº usp 6794435
Orientadora: Profª Drª PATRÍCIA DIAS PRADO
JULHO
2013
Dedico este trabalho aos pequenos (as) e grandes
brincantes que me inspiram todos os dias.
AGRADECIMENTOS
À Pró Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo que apoiou esta pesquisa.
À Profª Drª Patricia Dias Prado, pela orientação, paciência e contribuições muito
valiosas durante todo o percurso da pesquisa.
A todas as integrantes do Grupo de Estudos “Pesquisa e Primeira Infância: Linguagens
e Culturas Infantis”, por compartilharem em nossos encontros minhas certezas e
incertezas neste processo.
Aos gestores, professoras e crianças das instituições pesquisadas, por me receberem e
permitirem que essa pesquisa acontecesse.
Aos meus pais e irmãs, pelo apoio e incentivo em todas as minhas escolhas.
Ao Bruno, por estar sempre disposto a ouvir minhas ideias e inquietações.
Resumo
A presente pesquisa de Iniciação Científica, junto à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo/SP, com apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa desta
universidade, consiste na investigação de como estão e o que propõem os corpos, gestos
e movimentos das professoras da Educação Infantil, elementos fundamentais para a
(re)construção da dimensão brincalhona e pré-requisito desta profissão docente,
buscando uma reflexão acerca da importância da formação de corpos inteiros de
professoras e crianças pequenas. A pesquisa foi realizada por meio de observações de
encontros de um curso de formação: Brincando com histórias, oferecido pela DRE
Butantã, no município de São Paulo, às professoras de Educação Infantil da região; e
das jornadas educativas de duas professoras participantes do referido curso e de suas
turmas de crianças em duas instituições públicas de Educação Infantil, nos diversos
momentos da jornada educativa, com registro posterior em caderno de campo e por
meio de entrevistas semi-estruturadas com as professoras.
Com a análise dos dados coletados, a pesquisa aponta para a necessidade
emergente de ampliação de propostas formativas que tenham os corpos e os
movimentos como centro, pois, apesar de observar um envolvimento das professoras
com as propostas lúdicas durante o curso de formação, seus planejamentos educativos
com as crianças, nas escolas, permaneciam priorizando a escolarização dos corpos e das
mentes das crianças (e delas mesmas), em detrimento da brincadeira, das múltiplas
linguagens e da educação de corpos inteiros. Além disso, a pesquisa apresenta a
necessidade das profissionais que atuam com as crianças pequenas de reconstruírem e
tomarem posse de suas dimensões brincalhonas de ser, não somente no contexto de
formação, mas especialmente estendendo essas experiências, de corpo inteiro, à
centralidade da organização e planejamento dos tempos e espaços educativos para as
crianças pequenas, com elas e por meio delas - principais referências brincantes.
Palavras-chave: Educação Infantil - Dimensão brincalhona - Professoras de crianças
pequenas - corpo e movimento.
SUMÁRIO
Introdução .......................................................................................................................... 05
1. Problemas e justificativas .............................................................................................. 07
2. Objetivos ......................................................................................................................... 08
3. Metodologia .................................................................................................................... 09
4. Principais resultados da pesquisa .................................................................................. 13
4.1. Corpos, gestos e movimentos no dia a dia da Educação Infantil ................. 13
4.2. Ser professora e professor da Educação Infantil: percursos formativos
e possibilidades ..................................................................................................... 22
4.3. As crianças pequenas e pequenininhas como protagonistas da
(re)construção da dimensão brincalhona das professoras .................................. 27
5. Considerações finais ....................................................................................................... 31
Referências ......................................................................................................................... 32
ANEXOS:
Anexo 1 - Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Anexo 2 - Roteiro de Observações de campo
Anexo 3 - Roteiro de Entrevista semi-estruturada com as Professoras
Anexo 4 - Certificado do I Seminário Internacional Educação Infantil e Diferença
(Ufscar)
Anexo 5 - Declaração de atividades junto ao Grupo de Estudos: Pesquisa e primeira
infância: linguagens e culturas infantis (FEUSP) no I Seminário Internacional sobre
Infâncias e Pós-Colonialismo (UNICAMP)
Anexo 6 - Resumo apresentado ao 21º Simpósio Internacional de Iniciação Científica da
USP (SIICUSP)
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Introdução
Pesquisas recentes no campo da Educação Infantil têm revelado a ausência de
uma concepção educativa em que os corpos de crianças e professoras sejam vistos em
sua totalidade, pois o enfoque na mente e nos sentidos da visão e da audição, tão
valorizados no Ensino Fundamental, vêm se aplicado, cada vez mais precocemente, às
creches e pré-escolas, em detrimento das linguagens do corpo inteiro, dos gestos e dos
movimentos – formas de comunicação prioritárias e legítimas das crianças pequenas,
principalmente, quando elas ainda não falam (BUFALO 1997, PRADO 2009).
Segundo SAYÃO (2009, p. 93), a separação e a dicotomia entre corpos e
cabeças, no contexto educativo, não é possível, pois “ambos compõem um todo
indissociável”. A educação das crianças, vistas como sujeitos que constroem culturas e
que se expressam por meio de múltiplas linguagens desde o nascimento, não pode ser
concebida em um ambiente educativo no qual seus movimentos sejam controlados,
cerceados ou inibidos. Com relação aos/às pequenininhos/as, é a partir de brincadeiras,
de diversas linguagens, de seus sentimentos, de suas expressões, de gestos e de
movimentos que empreendem com seus corpos em diferentes espaços, que os/as eles/as
vão dando sentido à infância. Seus corpos possibilitam-lhes a experiência sensorial,
sendo assim, seus primeiros brinquedos (SAYÃO, 2009, p.94).
Sendo assim, as manifestações expressivas de corpos e mentes, juntos, são
essenciais para meninos e meninas pequenas. Apesar disso, há uma crescente
escolarização de seus corpos, talvez por desconhecimento das profissionais docentes do
que fazer com elas, que insistem em se movimentar, ou por acreditar que elas devam ser
treinadas e preparadas para o Ensino Fundamental, pois: “O próprio espaço da pré-
escola, organizado com mesas e cadeiras, não permite esse movimento” (FINCO, 2007,
p. 96).
Isso significa que, se é indispensável que as crianças pequenas sejam vistas de
corpo inteiro, as professoras também precisam alfabetizar-se nas múltiplas linguagens
das crianças, pelo envolvimento de seus corpos, também inteiros, nas relações com elas,
na observação atenta de seus corpos, gestos e movimentos, para o planejamento e
organização dos tempos e espaços educativos e para a elaboração das propostas de
brincadeiras - eixo do trabalho educativo da Educação Infantil (BRASIL, 1995 e 2009),
pois:
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Brincar com as crianças e permitir o tempo necessário para que
elas possam criar, requer do adulto-educador conhecimento
teórico sobre o brinquedo e o brincar, e muita paciência e
disciplina para observar, sem interferir em determinadas
atividades infantis, além da disponibilidade para (re)aprender a
brincar, recuperando/construindo sua dimensão brincalhona
(FARIA, 1999, p. 213).
Foi exatamente a ausência desta dimensão brincalhona das professoras da
Educação Infantil que me chamou a atenção nos estágios que já realizei como aluna do
curso de Pedagogia (FEUSP). Observei que os momentos das brincadeiras livres,
restritos a um pequeno e determinado período da jornada educativa, como um intervalo,
não contavam com a participação ou com a observação atenta das professoras. Ao
contrário, eram momentos privilegiados para suas pausas e descansos, para confecção e
preparação de materiais, ou para trocas de informações sobre suas práticas. Isso revela
uma defasagem na formação das profissionais que trabalham com as crianças pequenas
no Brasil, que ainda discute o perfil dessa professora e os conteúdos curriculares
necessários para sua formação. Além disso, “as nossas áreas de pesquisa sobre educação
infantil, na universidade, ainda são pouco significativas”. (ARELARO, 2005, p. 45)
Como uma das dimensões humanas e não só infantil, furtada dos adultos e
oposta ao mundo do trabalho, no capitalismo (MARCELLINO, 1990), a dimensão
brincalhona de ser é o principal pré-requisito da profissão (em construção) de professora
da Educação Infantil (GHEDINI 1994, PRADO 1999b) e contempla, portanto, os
corpos, os movimentos, as gestualidades, as linguagens teatrais e dançantes, entre tantas
outras formas de expressão e comunicação de corpos inteiros.
Para além das técnicas específicas da educação física, da dança ou do teatro,
priorizando as “sensações corporais” (FINCO, 2007), as trocas, encontros e confrontos
que podem proporcionar às crianças e professoras, as brincadeiras com o corpo, como
correr, rolar, pular, parar, gritar, dependurar, balançar, rodopiar..., as mímicas, as
encenações, a presença de elementos do circo, do teatro, dos ritmos e das danças
brasileiras, clássicas, modernas, contemporâneas, urbanas, etc. aproximando corpos e
mentes, professoras e crianças, reprodução e invenção, realidade e poesia/fantasia, além
de trazer implicações para a construção de uma Pedagogia da Educação Infantil
fundamentada nas experiências estéticas e artísticas (FARIA e RICHTER 2009).
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1. Problemas e Justificativas
Uma das questões mais importantes na construção de uma Pedagogia da infância
que respeite o direito das crianças à infância e à brincadeira (BRASIL 1995 e 2009) está
relacionada aos lugares do corpo e de suas experiências nas instituições da Educação
Infantil. Pois se as crianças pequenas dão sentido à infância por meio de brincadeiras, de
diversas linguagens, de seus sentimentos, de suas expressões, de gestos, de movimentos
que empreendem com seus corpos em diferentes espaços (SAYÃO 2008), por que razão
os cursos de formação docente e as teorias da educação insistem em nos dizer pouco
sobre os nossos corpos e os corpos dos pequenos?
Pesquisas recentes mostram que as instituições de Educação Infantil muito têm
se pautado nos referenciais do Ensino Fundamental, escolarizando cada vez mais
precocemente os corpos e as brincadeiras, não reconhecendo as crianças como sujeitos
de direitos e, até mesmo, negando o direito de movimentarem-se (SAYÃO 2002).
Diante disso, se esperamos que o referencial venha das próprias crianças, reconhecidas
como produtoras e não somente reprodutoras de culturas, faz-se necessário um olhar
para nós mesmas e para nossos corpos, para efetivamente pensarmos na profissão (em
construção) de professora da Educação Infantil. Como seria possível para nós adultos,
excessivamente discursivos e racionais, tão esquecidos de nossa comunicação pelo
corpo, reconstruirmos nossa dimensão brincalhona de ser e não impormos o contrário às
crianças pequenas?
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2. Objetivos da pesquisa
Esta pesquisa teve como propósito investigar a dimensão brincalhona das
professoras de crianças pequenas, pré-requisito desta profissão docente, em contextos
educativos e coletivos na esfera pública, com ênfase nos corpos, gestos e movimentos,
além de buscar uma reflexão sobre a importância da formação de corpos inteiros das
profissionais que atuam nessa área. Analisou como estavam e o que propunham os
corpos das professoras, nas instituições de Educação Infantil e fora delas (em um curso
de formação docente), à procura de elementos constitutivos de uma Pedagogia da
Educação Infantil que considere, permita, provoque a construção de uma
“disponibilidade corporal” das profissionais docentes para compreender os sentidos e
significados das linguagens infantis.
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3. Metodologia
A presente pesquisa caracteriza-se por um estudo de caso, de caráter qualitativo,
(LUDKE e ANDRÉ 1986) em duas instituições públicas de Educação Infantil da cidade
de São Paulo, cujas professoras participaram do curso de formação: Brincando com
histórias.
O curso foi promovido graças a uma parceria entre a Diretoria Regional de
Educação do Butantã, o Instituto Bacuri e a Cooperação Criativa, e compreendeu três
encontros de quatro horas cada, abordando temáticas como “o brincar na Educação
Infantil, a imaginação das crianças e a contação de histórias, por meio de atividades
práticas de experimentação de técnicas narrativas e utilização de recursos na
construção de uma narrativa expressiva, articulada a atividades motoras e de artes
plásticas”1. O público-alvo do curso foram as professoras e professores das unidades
de Educação Infantil vinculadas à DRE - Butantã.
Meu contato inicial com a Cooperação Criativa aconteceu por um convite de
uma das integrantes do grupo às alunas e alunos da disciplina Artes e Educação
Infantil II: Dança e Teatro, do curso de Pedagogia (FEUSP) para uma vivência no
Galpão do Circo, assistindo a uma das atividades realizadas com as crianças naquele
espaço. Eu não cursava a disciplina, mas o convite estendeu-se a mim por ser
integrante do Grupo de Pesquisa: “Pesquisa e primeira infância: linguagens e culturas
infantis” (FEUSP), coordenado pela orientadora desta pesquisa e professora da
referida disciplina - uma oportunidade para o desenvolvimento do meu tema. Dada a
ausência dos fundamentos e experiências artísticas na formação docente, minha
expectativa era investigar a dimensão brincalhona das professoras em cena (nos
encontros do curso) e também com as crianças (nos cotidianos educativos).
A partir deste primeiro contato com a Cooperação Criativa, tive a oportunidade
de expor meu interesse pela pesquisa e tomei conhecimento da futura realização do
referido curso de formação pelos mesmos professores e coordenadores2, que
demonstraram abertura e empenho em compartilhar comigo os caminhos da pesquisa,
uma vez que este diálogo entre artistas e pesquisadoras/es tem revelado um campo de
1 Conteúdos e metodologia sobre o curso “Brincando com histórias”, publicados no Diário Oficial do
Estado de São Paulo (DOSP) DE 24/08/2009. 2 Agradeço a Francisco Igliori Gonzáles e Fernanda Gonzáles, diretor pedagógico e diretora artística do
grupo Cooperação Criativa, respectivamente, pela oportunidade de parceria e interesse explícito em
discutir as análises e resultados de pesquisa.
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possibilidades para a construção de novos conhecimentos sobre a educação de corpo
inteiro, de professoras e de crianças pequenas, como evidenciam alguns estudos
desenvolvidos em meu grupo de pesquisa, em relação às linguagens teatrais, por
exemplo (SOUZA 2010; SILVA 2012).
Os três encontros do referido curso (em agosto de 2012) abordaram temáticas
centrais para a pesquisa, como reflexões sobre o corpo e através dele, de vivências
corporais com elementos imaginários, da fantasia, da literatura, das brincadeiras
infantis e do circo. De todas as escolas participantes do curso, algumas puderam levar
as crianças para dois dias de atividades programadas pelo curso, que também incluiu
brincadeiras, histórias e experiências circenses. Selecionei uma dessas escolas para as
observações de campo, numa primeira etapa da pesquisa: uma Escola Municipal de
Educação Infantil (EMEI).
Observei os encontros por meio de observação e registros em caderno de campo,
além de realizar as propostas corporais do último encontro, a convite do coordenador.
Em setembro de 2012, obtive autorização da Diretoria Regional de Educação do
Butantã (São Paulo/SP) para iniciar a pesquisa de campo na primeira instituição
selecionada.
A gestão da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) selecionada indicou-
me uma das turmas de crianças e suas professoras para realizar a pesquisa, composta
por 27 crianças de cinco anos de idade e duas professoras: uma que acompanhava a
turma das 7 às 11h e outra até 13h. Observei a turma numa frequência de duas vezes por
semana, nos meses de setembro, outubro e novembro (de 2012), com a professora do
primeiro período, pois ela havia participado do curso de formação. Acompanhei os
momentos da chegada das crianças, atividades propostas pela professora, brincadeiras
livres, lanche, parque, entre outros, com o objetivo de observar como estavam e o que
propunham os corpos de professoras, meninas e meninos pequenos, nos diversos
momentos da jornada educativa, com foco na dimensão brincalhona das professoras e
com registro posterior em caderno de campo.
Iniciei a etapa seguinte da pesquisa, em uma segunda instituição, somente no
mês de abril, devido às dificuldades de conseguir autorização dos gestores das escolas
participantes do curso para as observações e acompanhamento da jornada educativa. A
instituição observada foi um Centro de Educação Infantil (CEI) que educa crianças a
partir de um ano de idade, localizada também no município de São Paulo. Os contatos
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com a instituição também foram travados mediante autorização prévia da Diretoria
Regional de Educação do Butantã.
A gestão da CEI indicou-me a professora que participou do curso Brincando
com Histórias no ano anterior e seu grupo, composto por 20 crianças de dois anos, para
a viabilização da pesquisa. As crianças ficavam na instituição em período integral, com
duas professoras no período da manhã, das 7h30 às 12h30, e outras duas na parte da
tarde, até 17h30. Acompanhei o grupo nos meses de abril, maio e início de junho (de
2013) na frequência de duas vezes por semana. Presenciei os momentos de chegada das
crianças, café da manhã, atividades em sala, parque, entre outros, com registro posterior
em caderno de campo.
Foram conduzidas também entrevistas semi-estruturadas (Anexo 3) com as
professoras que acompanhei nas duas instituições investigadas, abordando questões
sobre suas formações iniciais e continuadas, inclusive o curso de formação em questão,
suas concepções sobre infância, Educação Infantil, profissão docente, corporeidade,
brincadeira, dentre outras.
Os dados coletados foram analisados de forma articulada à luz da produção
recente no campo das pesquisas em Educação Infantil, na interface com as Ciências
Sociais e com as Artes Corpóreas na primeira infância, além dos encontros de
orientação e das discussões e estudos coletivos junto ao Grupo de Estudos citado, que
também oportunizou minha participação em congressos, como no I Seminário
Internacional: Infância e Diferença, na UFSCar (São Carlos/SP) e no I Seminário
Internacional sobre Infâncias e Pós-colonialismo: pesquisas em busca de Pedagogias
Descolonizadoras, na UNICAMP em Campinas/SP (certificados nos Anexos 4 e 5).
Uma das principais finalidades do grupo citado, que permeia as temáticas
centrais dos estudos e discussões realizadas, bem como desta pesquisa, é buscar a
ampliação das concepções desenvolvimentistas sobre a infância. Estas tradicionalmente
analisaram esta faixa etária (principalmente as crianças bem pequenas), nos campos das
Ciências Sociais (como na Antropologia da Criança e na Sociologia da Infância) na
interface com as Artes na primeira infância, privilegiando o desenvolvimento de
metodologias de pesquisas com crianças pequenas que rompessem com os modelos e
procedimentos investigativos convencionais e racionalizadores incapazes de responder à
emergência de uma nova epistemologia da infância que legitima as “vozes” das crianças
mesmo quando elas ainda não falam, na defesa de que elas têm direito de protagonizar
uma sociedade e uma educação emancipatória. Isto por que as crianças são produtoras e
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não somente reprodutoras de culturas, desde o nascimento – capazes de manifestações e
expressões culturais, estéticas e artísticas em diferentes linguagens, especialmente, as do
corpo, do movimento e da brincadeira. (PRADO et al, 2012)
Neste mês de julho, finalizando meu curso de Pedagogia e este relatório final
também realizei minha inscrição para o 21º SIICUSP (Anexo 6), no qual pretendo
apresentar e discutir a pesquisa finalizada e vislumbrar desdobramentos possíveis às
minhas novas investidas de pesquisa para o mestrado.
A pesquisa de campo foi promovida com o consentimento livre e esclarecido
(em Anexo 1) das(os) diretoras(es) responsáveis pelas instituições e das professoras,
assim como dos professores responsáveis pelo curso de formação oferecido às
professoras pesquisadas, respeitando os requisitos éticos, tais como: participação
voluntária, linguagem clara e acessível, confidencialidade das informações, privacidade
dos sujeitos e retorno da pesquisa.
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4. Principais resultados da pesquisa
4.1 Corpos, gestos e movimentos no dia a dia da Educação Infantil
As observações nas instituições de Educação Infantil iniciaram-se pela reflexão
sobre como o espaço e o tempo estavam organizados, o que sugeriam e propunham
essas organizações e como os corpos ocupavam, movimentavam-se e se apropriavam ou
não desses espaços-tempos, considerando que “a pedagogia faz-se no espaço e o espaço,
por sua vez consolida a pedagogia”. (FARIA 1997, p. 70).
A primeira instituição observada (EMEI) possuía, além das salas, um refeitório,
uma pequena biblioteca, sala de vídeo, de informática e de brinquedos e grandes
espaços externos: um parque com areia, uma quadra de futebol e um espaço livre.
Apesar desses espaços externos serem bem amplos, as crianças passavam a maior parte
do tempo dentro das salas.
A sala da turma de crianças que observei continha dez mesas quadradas com
quatro cadeiras em cada, além de armários, um banheiro, uma mesa com cadeira para a
professora e uma lousa grande. Com essa disposição haveria lugares suficientes para se
sentarem 40 crianças simultaneamente, sendo que o grupo era composto de apenas 27.
Ou seja, além da sala reproduzir o modelo de uma sala de aula do Ensino Fundamental,
em que as cadeiras, mesas e a lousa parecem estar lá para doutrinar e escolarizar os
corpos das crianças (FINCO 2007), o excesso de mesas ainda fazia com que não
restasse nenhum espaço livre para as crianças e a professora. O espaço era totalmente
preenchido por esses móveis, inclusive pela mesa da professora à frente, o que
pressupunha que ela e as crianças permaneciam boa parte do tempo sentadas. As
brincadeiras que ali aconteciam eram, portanto, contidas e sobre as mesas:
O brincar sentado, além de facilitar o controle do corpo das
crianças, pode ser considerado uma forma de legitimar a
brincadeira: brinca-se, mas esse brincar só é considerado dentro
dos padrões da escola do ensino fundamental (FINCO 2007, p.
96).
Na maior parte da jornada educativa observada, as propostas de atividades
exigiam que os corpos das crianças se mantivessem parados – ou quase, já que gestos e
movimentos são formas de comunicação prioritárias das crianças pequenas, mesmo
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aquelas que já falam e, por isso, dificilmente elas conseguiam permanecer sentadas e
paradas o tempo todo, como desejava a professora. Desde o momento da entrada, as
crianças sentavam-se no chão em filas correspondentes ao seu grupo, em frente à
professora, no grande espaço aberto e livre próximo ao portão de entrada. Enquanto
aguardavam o horário de ir para a sala, eram propostas músicas para que as crianças
cantassem, desde que continuassem sentadas e viradas para a frente.
Na sala, cada criança sentava em uma cadeira e eram propostas atividades de
linguagem ou matemática, geralmente, em folhas mimeografadas dadas pela professora.
Ela pedia muitas vezes para que as crianças não conversassem, nem levantassem, pois
era preciso que se concentrassem na atividade. Quando se dirigiam ao refeitório, deviam
ir em filas, pegar o lanche e sentar-se às mesas. Este era o intervalo que a professora
tinha, de 15 minutos, quando as crianças ficavam sob supervisão dos inspetores, um
homem e uma mulher, os quais controlavam rigidamente se estavam sentadas, de que
formas estavam sentadas e se estavam conversando ou brincando em demasia.
Observei muitas brincadeiras acontecendo às escondidas dos inspetores,
evidenciando a capacidade de transgressão das crianças (SAYÂO, 2008; PRADO
1999b, BUFALO 1997), como um grupo de meninas que já havia se alimentado e
precisava esperar a professora voltar para levantar e ir para a fila. Elas improvisaram um
“futebol com os dedos” na mesa, com a presilha de cabelo de uma delas, que servia
como a bola e as mãos como traves. Cada vez que um dos inspetores olhava, elas
paravam. E assim conseguiram fazer vários gols e brincar silenciosamente. “Felizmente,
apesar de toda coerção, as crianças brincam em qualquer circunstância; sempre
encontram um jeito para se divertir.” (FINCO 2007, p. 97)
Quando retornavam à sala, após a higiene, as crianças geralmente faziam mais
uma ou duas atividades, sentadas. Quem acabava podia brincar com as caixas de blocos,
em cima das mesas, desde que se mantivessem quietas para não atrapalhar as outras. Em
determinado momento, chegava a tão esperada hora do parque. As crianças
demonstravam gostar muito, o espaço era bem amplo, com alguns brinquedões fixos e
diferentes brinquedos de areia, caixas e ferramentas. Elas ficavam por uma hora no
parque, todos os dias e podiam brincar do que quisessem, juntamente com outro grupo.
As professoras pouco intervinham nas brincadeiras das crianças no parque e
ficavam sentadas em um banco perto da entrada do parque conversando, sem privilegiar
este momento para observar as construções das crianças e/ou participar delas, mas como
um intervalo para as crianças brincarem mais livremente, um descanso, uma pausa para
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ambas, das atividades consideradas “mais importantes”, “mais pedagógicas”, que
privilegiam sim, a mente, a razão, o espaço da sala, o corpo sentado, as práticas
escolarizadas, as propostas mimeografadas, a cópia, a repetição, a espera, a obediência –
como se fosse possível separá-las dos corpos inteiros das crianças. Como ressalta
FRANCISCO (2011, p. 173):
O parque, para os adultos, não aparece como espaço central para
estabelecer relações de conhecimento com as crianças. O espaço
interno é mais privilegiado nesse sentido, desprezando-se o
espaço de ampliação do conhecimento da criança em várias
situações. (p.173)
Observei que o planejamento educativo buscava uma divisão entre “tempo para
a mente” e “tempo para o corpo” das crianças que, ao contrário, revelavam lidar com
esses tempos de formas diferentes. Ocorriam diversos conflitos na sala, nas filas e no
refeitório, e a professora via-se obrigada a pedir exaustivamente que as crianças
parassem de se agredir. Havia um clima de tensão e as intervenções para que as crianças
não se machucassem eram constantes, além das ordens, pedidos, broncas e punições.
Quando estavam no parque, no entanto, percebi que as brincadeiras fluíam e os
conflitos eram pouco frequentes. Quando estes aconteciam, as crianças conseguiam
resolvê-los rapidamente. Aparentemente, as tentativas de dominação sobre as crianças e
seus corpos e a tensão que advinha dessas cobranças constantes agravavam ainda mais
os conflitos e tornavam as relações mais conturbadas. MARCELLINO (1990, p. 114)
acredita que “não são necessárias imposições, vigilâncias, punições, sisudez, ou ranços
de moralismo, uma vez que a coletividade das próprias crianças encarrega-se das
inevitáveis compensações morais e correções”.
Os momentos de parque, portanto, deveriam ser privilegiados para as
professoras observarem as crianças e participarem de suas brincadeiras, hipóteses,
construções, aprendendo sobre elas e sobre suas preferências, suas diferentes
linguagens, sentimentos, gestos, movimentos, expressões e formas de empreender seus
corpos nos espaços. Esta seria uma das formas prioritárias de alfabetização dos adultos e
adultas nas múltiplas formas de linguagens das crianças, no lugar de lhes impor uma
realidade adultocêntrica, baseada na fala, no raciocínio, no discurso e no corpo sentado.
O adulto, com muita fadiga, aprendeu a frear as suas emoções e
sensações corporais dando às mesmas uma forma discursiva. A
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criança pequena, ao contrário, se contrapõe ao adulto como
analfabeta, incapaz de palavras sensatas, cheia de uma invasiva
e escandalosa corporeidade, com necessidades corporais
raivosas e impelentes – de corpo inteiro (SIEBERT 1998, p. 80).
A tentativa de separação entre corpos e cabeças das crianças no contexto
educativo também foi evidenciada nas falas das professoras. Quando fui apresentada às
professoras da escola e falei sobre a pesquisa, elas ressaltaram que o tempo das crianças
era dividido entre duas professoras e que a primeira era “mais responsável pela parte
das lições” e a segunda “cuida mais da parte dos movimentos”. Todavia, acompanhei a
primeira professora na maior parte do tempo, por ter sido ela a participante do curso de
formação observado e também pelos objetivos da pesquisa, que dizem respeito à
observação de toda a jornada educativa e não somente de momentos isolados,
considerando impossível a dicotomia de corpos e cabeças que se tenta fazer cada vez
mais precocemente.
A escola contava com três professoras substitutas e cada uma delas era
responsável por desenvolver um projeto: movimento, leitura e informática. A proposta
da professora de movimento era que cada turma saísse com ela, uma vez por semana,
para brincar no espaço externo, sendo que o grupo era dividido e cada metade ficava
com ela por 20 minutos. Acompanhei um desses momentos com as crianças de quatro
anos, quando ela propôs duas brincadeiras rápidas com bolas.
As crianças demonstraram muito entusiasmo para as brincadeiras, nestes
momentos, mas o tempo era curto e, muitas vezes, a mesma professora de movimento
estava substituindo a professora de alguma turma, o que impossibilitava a saída para
brincar. Isso acontecia porque as professoras que desenvolviam projetos específicos,
como os de movimento, também eram as responsáveis por fazer as substituições, que
eram muitas. As faltas eram constantes, o que impossibilitava que o projeto de
movimento fosse desenvolvido. Além disso, a quantidade de crianças de toda a EMEI
era grande e os grupos, divididos uma vez por semana para a atividade de movimento,
eram pequenos, o que levava a uma demora excessiva para chegar o dia de cada criança
participar.
Quando a professora responsável pelo projeto de movimento fez uma
substituição na sala em que observei, porque a professora havia faltado, percebi que a
postura e a forma como se relacionou com as crianças foi mais rígida do que durante as
brincadeiras, quando assumia sua função de professora do movimento - o que mostra
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que a divisão corpo e mente, momento do corpo de descontração e da mente de
seriedade, está “profundamente radicada em nossa cultura ocidental” (SIEBERT 1998,
p.80), apesar do que demonstravam insistentemente as próprias crianças. Elas
brincavam quando não era permitido e transgrediam às regras mesmo diante dos
pedidos e ordens da professora substituta para que controlassem seus corpos e se
mantivessem sentadas e concentradas nas lições propostas.
Durante o tempo em que estive na escola, ficou muito evidente o distanciamento
entre os corpos das professoras e das crianças e o predomínio da forma discursiva
dos(as) adultos(as) da instituição. A dimensão brincalhona de ser, principal requisito da
profissão (em construção) de professora da Educação Infantil (GHEDINI 1994;
PRADO 1999a), parecia estar distante do dia-a-dia dos(as) adultos(as), furtada destes/as
por ser oposta ao mundo do trabalho, no capitalismo, como afirma MARCELLINO
(2009).
As professoras evidenciavam ter aprendido a “frear suas emoções e sensações
corporais” (SIEBERT 1998) e a demonstrar seriedade e racionalidade, mesmo ao lidar
com as crianças pequenas. Estas, ao contrário, faziam tudo de corpo inteiro, brincavam,
exprimiam suas emoções e se relacionavam intensamente umas com as outras. Quando
cheguei à escola, muitas crianças me receberam com abraços, carinhos, muitas
perguntas e mexidas em meus cabelos, mesmo diante dos pedidos dos(as) adultos(as)
para que parassem e fossem fazer “suas coisas”, “ir brincar com as outras crianças”.
Os espaços da CEI, segunda instituição observada na pesquisa, consistiam em
nove salas destinadas a cada um dos grupos de crianças pequenininhas de um a três
anos, um refeitório grande, um espaço externo cimentado localizado ao lado de um
parque bem grande e arborizado, com terra, tanque de areia e diversos brinquedos, como
balanços, escorregadores, brinquedões para escalada, dentre outros. No segundo andar,
além de algumas salas, havia ainda um lactário e um solário que era um pequeno espaço
livre descoberto.
Logo ao entrar na sala do segundo grupo observado, composto por 20 crianças
de dois anos de idade, chamou-me a atenção o fato de que as mesas e cadeiras ficavam
todas empilhadas num canto, deixando livre o espaço restante. Apesar das salas não
serem espaços grandes e, portanto, limitarem as possibilidades de vivência corporal,
essa configuração permitia uma mobilidade maior do que se as mesas estivessem
dispostas de maneira convencional. O próprio ato de colocar o mobiliário no canto,
empilhando mesas à procura de um espaço vazio, mostrou que a expectativa da
18
professora não era a de que os corpos das crianças passassem o tempo todo sentados e
contidos. STRAZZACAPA (2008) destaca a necessidade de se buscar espaços vazios
nas instituições de ensino formal para que as propostas de dança e teatro aconteçam,
para além das formas convencionais de ensino das artes. Mesmo na Educação Infantil
em que, diferentemente do espaço escolar, o foco não é o processo de ensino-
aprendizagem (PRADO, 2012a), chama a atenção o fato de que estes espaços vazios
também são raros, quando não, adaptados provisoriamente, como na CEI observada,
contraditoriamente às especificidades das crianças pequenas e de sua educação.
Ao se pensar na construção de uma pedagogia da Educação infantil, própria
das crianças pequenas, para elas e com elas, vale refletir sobre os espaços organizados e
o que eles dizem sobre esta pedagogia. A respeito das instituições formais de educação,
STRAZZACAPA (2008, p.03) comenta que “não estão preparadas nem equipadas para
acolher outras formas de ensino-aprendizagem que não seja a convencional: sala de aula
com carteiras e lousa, para os alunos permanecerem sentados e o professor à frente
falando”.
A produção recente no campo das pesquisas em Educação Infantil no Brasil
tem revelado ainda que instituições de Educação Infantil, como a EMEI observada na
primeira etapa da pesquisa, comumente seguem o referencial de organização escolar das
escolas de Ensino Fundamental, quando deveria ser o contrário - espaços construídos e
organizados para uma vivência mais plena da infância, possibilitando a comunicação de
corpos inteiros, de movimentos, gestualidades, linguagens teatrais, dançantes e
brincantes de crianças e professoras, como pontuam SOUZA (2010) e SILVA (2012),
quando ressaltam as linguagens artísticas, especialmente, as teatrais, como formas de
construção de culturas entre as crianças e entre elas e as professoras nos espaços
educativos e fora deles.
Quando as crianças chegavam ao CEI, geralmente trazidas por suas mães até a
sala, era o espaço vazio que as esperava, às vezes, com algum brinquedo, como peças de
encaixe no chão. Quem chegava pegava uma peça para brincar, sentava em algum canto
ou caminhava pela sala, brincando sozinha ou com outras que já estavam por ali. Outras
poucas crianças ainda choravam na despedida da mãe e ficavam certo tempo mais
quietas. Uma das professoras costumava receber as crianças e suas mães na porta da
sala, enquanto a outra professora organizava as mochilas e as agendas.
Depois de aproximadamente 30 minutos do horário de entrada, as crianças
seguiam para o refeitório para tomar café da manhã, a pedido das professoras. Na
19
circulação entre os espaços, como este trajeto da sala para o refeitório, as crianças
sempre iam muito à vontade, sem a necessidade de filas, percorrendo os demais
ambientes caminhando de forma tranquila.
Após o café da manhã, a proposta era que houvesse uma atividade dirigida na
sala, pensada previamente e registrada no planejamento. Tive acesso aos registros, que
consistiam em descrições breves das atividades e dos seus objetivos. Em cada dia eram
previstas uma proposta de manhã e uma à tarde, planejadas pelas professoras de cada
período e assinadas pela coordenadora.3 No dia a dia, no entanto, poucas propostas da
manhã, nos dias que observei, foram realizadas. As atividades previstas mais
observadas, ainda que não com muita frequência, relacionavam-se com alguma proposta
gráfica, de desenho ou pintura, ou ao projeto anual de música, de toda a escola, como a
confecção de instrumentos musicais com sucata. As propostas que previam vivências
corporais, quando apareciam no planejamento, raramente foram observadas.
Depois deste momento de atividade dirigida, as crianças tomavam um copo de
suco, levado para a sala e, em seguida, iam para o espaço cimentado externo,
considerado momento de “parque”. As vezes eram disponibilizadas motocas, uma para
cada criança, para passearem pelo espaço ou alguma caixa de brinquedos – muitos deles
quebrados ou insuficientes para a quantidade de crianças. Geralmente o tempo neste
espaço era de aproximadamente uma hora e meia, com dois grupos juntos (média de 40
crianças).
Em nenhum dia da pesquisa de campo identifiquei alguma proposta de
brincadeira pelas professoras às crianças, ou a participação das professoras nas
brincadeiras construídas pelas crianças. As observações das adultas presentes neste
tempo livre eram para a vigilância e controle das crianças, para assegurar que não se
machucassem ou entrassem em conflito. A maioria das professoras levava uma cadeira
para este espaço e passava a maior parte do tempo conversando umas com as outras,
atentando para as crianças conforme algum conflito acontecia, quando alguém se
machucava ou precisava ir ao banheiro.
Como já descrito, ao lado deste espaço havia um grande parque de terra, com
árvores e muitos brinquedos para subir, montar e escalar. Porém, em apenas um dos
dias de pesquisa de campo presenciei as crianças brincando neste parque. Em todos os
outros dias, no horário de “parque”, elas ficavam observando as crianças maiores
3 Não havia efetivamente uma troca de ideias entre a gestão e as professoras neste caderno de registros e
erros ortográficos recorrentes passavam despercebidos.
20
brincando no parque grande de terra, pois os espaços eram separados apenas por uma
grade.
Perguntei à professora da turma observada se elas também frequentavam o
parque em algum momento. Esta respondeu que não muito, pois o parque era úmido e
acabava molhando e sujando as roupas das crianças. A preocupação com a limpeza e o
cuidado com as crianças pequenininhas, então, desconsiderava as necessidades e
direitos das crianças de brincarem e se movimentarem em espaços amplos e abertos.
(BRASIL 1995 e 2009). Além disso, a utilização dos espaços da instituição delimitada
de acordo com critérios de idade mostra uma visão de “compartimentalização do
desenvolvimento das crianças” (PRADO, 2012a), definindo o que as crianças
pequenininhas ainda não podiam fazer, os espaços que ainda não podiam frequentar e
que, portanto, só poderiam observar de longe.
“Os critérios fornecidos à Educação Infantil são aqueles que
agrupam, dividem, segregam, isolam cada vez mais as crianças
somente segundo sua dita evolução cronológica, em termos de
suas aptidões e capacidades cognitivas específicas – os espaços,
o funcionamento, a estrutura e as relações que se tecem nas
instituições de Educação Infantil são, por sua vez, organizados
de acordo com as exigências do mundo do trabalho nas
sociedades capitalistas.” (PRADO, 2012b, p. 162)
Após esse tempo “livre”, as crianças almoçavam e em seguida iam dormir para,
então, começar a segunda parte do dia com outras professoras. Na maior parte do
tempo, no período da manhã, as crianças ficavam ociosas, ora dentro da sala, ora no
espaço externo, sem muito cerceamento por parte dos adultos, aos seus desejos de
movimentarem-se, brincarem e criarem possibilidades. Esses tempos não planejados
permitiam que o imprevisto acontecesse e que as crianças se expressassem em suas
múltiplas linguagens, na relação com as outras crianças e com o espaço, mas eram
limitadas por outros fatores, como o distanciamento das professoras nestas propostas,
além dos espaços impróprios, dos materiais inadequados e da ausência de propostas
planejadas pelas professoras em que as crianças fossem a referência.
Quando as professoras propunham atividades para o grupo, muitas vezes
consistiam em assistir a vídeos de desenhos comerciais, amplamente veiculados pela
mídia e muito conhecidos pelas crianças. Nestes momentos elas tinham de ficar bastante
tempo sentadas nas cadeiras e algumas vezes acompanhavam repetições do mesmo
21
vídeo. Nas rodas de história ou de música, as cadeiras eram colocadas formando um
círculo e as crianças precisavam manter-se nelas até o fim da proposta, o que
evidenciava uma tentativa de cercear seus corpos para tais atividades mais “formais” da
jornada educativa. Quando a professora pegava as cadeiras as crianças já tinham clareza
de que se tratava de uma atividade mais séria.
As jornadas educativas observadas nas duas instituições pesquisadas revelam
que não havia uma clareza sobre o papel docente das professoras da Educação Infantil,
pois estas oscilavam entre uma postura disciplinadora, nos moldes do Ensino
Fundamental, e um papel de “guarda” das crianças, apenas garantindo que elas fossem
cuidadas - o que ainda remete ao caráter assistencialista de origem histórica das creches
no Brasil.
22
4.2 Ser professora e professor da Educação Infantil: percursos formativos e
possibilidades
Os primeiros encontros do curso de formação para as professoras (Brincando
com histórias) possibilitaram um olhar inicial sobre elas fora do ambiente de trabalho
com as crianças e anterior às minhas observações de suas jornadas educativas nas
instituições, o que permitiu que eu as analisasse em um contexto diferente. Nesses
momentos, elas eram ora espectadoras, ora convidadas a participar das reflexões ou
atividades planejadas, mas em um papel diferente do que exerciam no dia a dia do
trabalho educativo com as crianças. Elas estavam entre seus pares, trocando com as
colegas e participando de propostas lúdicas e brincantes de forma tranquila, relaxada,
corpos brincantes e sensíveis ao que era sugerido: experiências táteis, com músicas,
odores, estórias, dentre outras.
Na jornada educativa da primeira escola, no entanto, observei espantada,
posturas bastante distintas das mesmas professoras, muito sérias, centradas e
controladoras, tão distantes daquilo que se permitiram nos encontros do curso. Isso pode
significar que as oportunidades que vivenciaram no curso, conhecendo a si mesmas e
seus corpos brincantes abriram possibilidades formativas de reconstrução de uma
pedagogia dos gestos, das brincadeiras e dos movimentos, mas ainda não apropriadas
por elas a ponto de ser norteadoras de suas propostas educativas com as crianças no
cotidiano da instituição.
FRITZEN e MOREIRA (2008) apontam para a importância da presença das
artes em toda a formação humana – o que justifica a necessidade contínua de cursos de
formação como este em que as professoras tenham a oportunidade de se expressar, de
brincar com o corpo e de refletir sobre isso, como ressalta SAYÃO (2002, p. 61):
Quando pensamos na intersecção entre corpo e movimento e nas
interações que profissionais e crianças estabelecem em seu
cotidiano na creche, pensamos no quanto é importante que os
adultos se conheçam não só por intermédio daquilo que seus
corpos espelham exteriormente, mas igualmente por intermédio
daquilo que seus corpos espelham interiormente. É preciso que
nos conheçamos melhor não só oralmente, como fazemos a todo
momento, mas também é preciso que conheçamos as
possibilidades de nossos corpos: seus gestos, movimentos,
expressões. Para tal, nos processos de formação das
profissionais que atuam com as crianças pequenas, faz-se
necessário incluir o olhar para nós mesmas, é preciso aprender a
23
conhecer as reações de nossos corpo ao toque, à música aos
odores. Isso é possível também no contato com as crianças
(SAYÃO 2002, p. 61).
A postura das professoras durante os encontros do curso mostraram uma
disposição para se conhecerem corporalmente, para brincarem com seus corpos, mas
isso não foi identificado nas relações com as crianças, no dia a dia das escolas,
confirmando que a educação de crianças e adultas/os se dá num processo formativo que
se consolida por meio de experiências, vivências, relações, concepções e reflexões
construídas durante toda a vida. Sendo assim, dificilmente observaria algo diferente, já
que vivemos em uma sociedade na qual as professoras foram formadas por uma escola
que não valorizou suas experiências de culturas infantis (PRADO 1999b e 2009) e
continuam sendo educadas pela lógica da produtividade e do consumismo que pouco
valoriza as dimensões humanas brincantes, poéticas, sensíveis, consideradas pelo
capitalismo como de “não-seriedade” (MARCELLINO 1990).
Apesar de as professoras participarem ativamente das propostas do curso, notei
uma resistência inicial às atividades que envolviam o corpo. Em um dos encontros
foram avisadas previamente que deveriam estar com roupas confortáveis para executar
as propostas que envolveriam atividades físicas. A maior parte das professoras estava de
calças jeans e muitas demoraram certo tempo para se envolver. Elas demonstravam
receio de entrar na brincadeira quando esta apresentava desafios com o corpo, como os
movimentos circenses, mas aos poucos a participação aumentou e logo todas estavam
muito envolvidas. Essa timidez inicial pode estar relacionada também a uma condição
cultural de excessiva proteção dos corpos e da sexualidade feminina, e à imposição às
mulheres, desde muito pequenas, de evitar contatos físicos e jogos que seriam contrários
aos ideais de feminilidade (SAYÃO 2002).
LARROSA (2002) propõe pensar a educação a partir do par experiência/sentido,
considerando experiência como o que efetivamente “nos passa, nos acontece, nos toca”
(p. 21), diferente e até oposta ao conceito de informação, tão enfatizado na atualidade. A
busca obsessiva por informações e a ênfase em aprender tudo ao mesmo tempo acaba
anulando nossas possibilidades de experiência, de sentir, de ser tocada(o) e
transformada(o). Como consequência, estamos cada vez mais bombardeadas(os) por
informações e cada vez menos sentindo o que nos passa.
Pensar, então, em uma educação de corpo inteiro, com o envolvimento e a
entrega que envolve a experiência compartilhada entre todas(os) as(os) que estão nas
24
instituições de Educação Infantil, implica refletir sobre as experiências formativas que
efetivamente toquem e transformem as profissionais que atuam com os pequenos.
Cursos, palestras, oficinas, reuniões e tantas outras atividades propostas para a formação
continuada das professoras têm priorizado a informação em detrimento da experiência
que transforma e que é, literalmente, incorporada às práticas educativas cotidianas com
as crianças.
Assim, mesmo entendendo o curso Brincando com Histórias como uma
oportunidade valiosa, de corpo inteiro, para reflexão desta profissão docente com
centralidade nas brincadeiras, nas histórias, nos corpos e movimentos na Educação
Infantil, ele parece ter sido uma vivência pontual, como destaca LARROSA (2002,
p.23), “o acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, na vivência
instantânea, pontual e fragmentada”. Os momentos vivenciados pelas professoras no
curso, durante três manhãs de sábado, não foram (e não poderiam ser) suficientes para
romper com a lógica de formação de uma vida inteira, de uma educação pautada na
produtividade, no consumismo e na desvalorização das dimensões humanas brincantes,
sensíveis e poéticas.
Formadas por essa sociedade que preconiza a informação em detrimento da
experiência, as próprias professoras buscavam nos cursos mais oportunidades de
formação técnica e modelos a ser seguidos do que experiências que as tocassem e,
consequentemente, transformassem suas práticas. Isso ficou evidente em conversas
informais que tive com as professoras observadas. Uma delas me relatou que o curso foi
interessante, divertido, mas que não foram passadas atividades que pudessem ser
repassadas às crianças:
“-Aquelas coisas de picadeiro, cama elástica, tecido foram mais
pra gente mesmo, não dá pra fazer com eles, né? Então eu não
aproveitei muito o curso não. Você vai ver que eu faço mais as
coisas do meu jeito, as ideias deles são mais para as crianças
maiores.” (Relato da professora do CEI - Caderno de campo -
16/04/2013)
As discussões e vivências do curso não consistiram em experiências
transformadoras para as professoras, nem atenderam suas expectativas de ter um caráter
prescritivo, com ideias e técnicas que pudessem ser facilmente adotadas e reproduzidas
com as crianças. Este caráter não pareceu ser, de fato, objetivo do curso, pois suas
propostas priorizavam que as professoras brincassem com seus corpos, participassem de
25
encenações, contassem e ouvissem diferentes histórias. Essas formas de pensar, falar e
ouvir com o corpo inteiro, em vez de apenas discutir técnicas para colocá-las em
movimento, aproximava-se muito mais de uma experiência possível de transformar
práticas. Mas para isso, deveriam estar presentes nos processos formativos de uma vida
toda.
Sobre as expectativas das professoras em relação ao curso, STRAZZACAPA
(2001) ressalta que elas não acreditam em seus potenciais criativos e, por isso, buscam
fórmulas prontas, orientações pontuais sobre o que fazer com as crianças. A Educação
Infantil não é priorizada nas formações iniciais em Pedagogia, bem como, as questões
relacionadas ao corpo e ao movimento. As duas professoras observadas tinham
formação em Pedagogia, atuavam com crianças pequenas há mais de 15 anos e
destacaram esta lacuna em suas formações iniciais e continuadas. Por isso, não havia
clareza sobre seu papel profissional, sobre sua função docente na Educação Infantil,
evidenciada na fala da professora – esta me antecipou que eu a veria fazer as coisas do
jeito dela, do jeito que ela achava que tinha de fazer.
A primeira professora entrevistada ressaltou sua dificuldade em sustentar um
trabalho mais voltado para o corpo, quando havia outras cobranças externas:
“-A gente tenta priorizar isso, mas a família não quer isso, a
família quer aquele ensino formal, que a criança já saia daqui
lendo, escrevendo. (...) Então quer dizer, tem uma cobrança
muito forte. E nós, como escola, a gente sempre está batendo na
tecla de que não é o momento, não é a hora. Não que a gente
não faça, que a gente não trabalhe. A gente trabalha tudo, letra,
número, tudo que a família pede, também, mas nossa prioridade
não é essa.” (Entrevista com a professora da EMEI –
28.02.2013).
A partir da análise dos dados coletados nas observações de campo, nas conversas
informais e nas entrevistas com as professoras ficou evidente o cerceamento e o
controle constantes dos corpos das crianças, com a centralidade na realização de
propostas “com letras e números”, citada pela professora da EMEI, por exemplo. Não
há, portanto, clareza e segurança dos que atuam nessa instituição (e provavelmente em
muitas outras) para justificar uma Educação Infantil diferente desta, com um referencial
nas múltiplas linguagens das crianças e não em uma escolarização cada vez mais
precoce. Assim, se pretendemos nos comunicar mais efetivamente com a infância, faz-
26
se necessária uma Pedagogia que não seja voltada aos conteúdos que preparam as
crianças para o Ensino Fundamental, como critica ARELARO (2005), mas sim, às
vivências e experiências entre as crianças e entre elas e suas professoras.
A ênfase na alfabetização (precoce) nas salas de Educação Infantil, como
destacado pela professora, como uma cobrança externa, tem enfocado muito mais o
ensino de técnicas e códigos do que propriamente possibilitar que as crianças “tenham
condições de operar criticamente com os modos de pensar e produzir da cultura escrita.”
(BRITTO 2005, p. XV).
“O desafio da educação infantil não é o de ensinar letras, mas o
de construir as bases para que as crianças possam desenvolver-
se como pessoas plenas de direito e, assim, participar
criticamente da cultura escrita, convivendo com essa
organização discursiva, experimentar, de diferentes formas, os
modos de pensar típicos do escrito.” (BRITTO, 2005, p. XVI)
27
4.3 As crianças pequenas e pequenininhas como protagonistas da (re)construção
da dimensão brincalhona das professoras
Pensando nas crianças pequenas e na sua invasiva e escandalosa corporeidade,
que se contrapõe à racionalidade adulta aprendida e incorporada para o controle das
emoções e sensações físicas (SIEBERT 1998), como tomar posse novamente de nossa
dimensão brincalhona de ser? A resposta vem das próprias crianças e de nossa
disponibilidade para compreender os sentidos e significados das linguagens pelas quais
elas se expressam intensamente. Não podemos, “como pedagogos(as), como pessoas
que conhecemos as crianças e a educação, reduzir a infância a algo que, de antemão, já
sabemos o que é, o que quer ou do que necessita.” (LARROSA, 1998, p. 188, grifo
meu). É preciso disposição para observar, escutar, ensinar e (re)aprender a brincar, com
as crianças ou como elas, não importa (PRADO 1999b).
Se a presença enigmática da infância é a presença de algo
radical e irredutivelmente outro, ter-se-á de pensá-la na medida
em que sempre nos escapa: na medida em que inquieta o que
sabemos (e inquieta a soberba da nossa vontade de saber), na
medida em que suspende o que podemos ( e a arrogância da
nossa vontade de poder) e na medida em que coloca em questão
os lugares que construímos para ela (e a presunção da nossa
vontade de abarcá-la). Aí está a vertigem: no como a alteridade
da infância nos leva a uma região em que não comandam as
medidas do nosso saber e do nosso poder. (LARROSA, 1998,
p.185)
Presenciei diversas construções das crianças, em todos os momentos da jornada
das duas instituições. Desde as mais escondidas, subvertendo as regras e afrontando o
estabelecido, até as que aconteciam nos momentos privilegiados de parque, em que as
crianças estavam mais “livres” das coerções e limitações adultocêntricas.
A maior parte dessas cenas, brincadeiras e conversas que presenciei passou
despercebida aos olhos das(os) adultas(os). Os elementos trazidos pelas próprias
crianças, ou construídos nas relações delas com seus pares, pareciam não ser
valorizados como objeto de observação, de escuta atenta, de reflexão, ou como dicas ao
planejamento, sendo ora inibidos e limitados, ora ignorados como nos momentos em
que as crianças extravasavam e as professoras descansavam ou conversavam.
Essa pausa para descansar é essencial no trabalho com crianças pequenas, mas se
está prevista ou permitida somente nos momentos de parque revela o desconhecimento e
28
a desvalorização das culturas infantis pelas instituições, considerando culturas infantis
como as capacidades das crianças pequenas e bem pequenas de produzir culturas por
meio da transformação da natureza, estabelecendo múltiplas relações com adultos e
outras crianças, criando e inventando novas brincadeiras e novos significados (Prado,
1999b).
Na segunda instituição, em que a jornada era mais flexível, mas sem muitas
atividades planejadas, o imprevisto acontecia mais frequentemente, como quando uma
das meninas pequenininhas da turma colocou-se em frente ao espelho grande que havia
na sala e começou a cantar e dançar com um microfone improvisado, fazendo caras e
bocas e movimentos de agradecimento ao público, muito animada e envolvida com a
encenação que criou. Os colchões deixados no canto da sala foram empilhados, num
outro dia, por outra menina e várias outras crianças os usaram para pular em cima e
deslizar. As caixas em que os brinquedos eram guardados viravam muitas coisas todos
os dias.
Também observei a criação de trens, cabines (com a caixa de plástico usada para
guardar os brinquedos, colocada na vertical) em que as crianças se revezavam para
encaixar seus corpos, como trampolim para pular em cima dos colchões, como palco
para apresentações e encenações, entre muitos outros objetos resignificados pelas
crianças. Um espaço abaixo das prateleiras, que nada mais era do que um buraco no
canto da sala, transformou-se em um esconderijo da brincadeira de guerra. Quatro
crianças espremeram-se lá dentro, protegidas e muito envolvidas com a guerra que
acontecia “lá fora”. Uma menina “lia” um livro para outra, que escutava atentamente
junto de sua “filhinha”, uma boneca sentada ao lado. Um menino deitava-se em um
colchão e uma menina o cobria com um pano, desejando boa noite e dizendo que
precisava ir trabalhar, fingindo que segurava uma bolsa nos ombros. Todas essas
construções e muitas outras aconteciam sempre, simultaneamente, enquanto as
professoras preparavam ou organizavam coisas e interferiam apenas para resolver os
conflitos que apareciam.
Nas duas instituições foram observadas inúmeras brincadeiras, danças, mímicas,
conversas e performances das crianças nos momentos de parque, muito mais na EMEI
pelo grande espaço disponível, com areia e brinquedões, que enriqueciam as ideias dos
pequenos. Comidinhas feitas de areia, caça a “objetos brilhantes” (como descrito pelas
próprias crianças que brincavam), brincadeiras na balança como se esta fosse um tecido
do circo, colocando as pernas pra cima e a cabeça para baixo, casinha em cima do
29
brinquedão e muitas outras. As crianças organizavam-se, estabeleciam regras, criavam
brincadeiras, atribuíam novos significados a outras, aprendiam e ensinavam brincadeiras
tradicionais aos seus pares e representavam muitos papéis.
Diante de tantas possibilidades, seria essencial que as culturas infantis fossem
vistas e ouvidas pelas profissionais que atuavam com as crianças, servindo como um
referencial para que elas incentivassem e provocassem novas criações e invenções das
crianças, além de reconstruírem suas próprias dimensões brincalhonas:
Está subjacente ao papel do educador, e é condição fundamental
para o seu exercício, a observação da criança, seu conhecimento
e o contato com a sua cultura. Não uma criança abstrata, mas as
variadas crianças concretas que se apresentam no dia-a-dia
escolar. (MARCELLINO 2007, p.111).
Ao ser questionada na entrevista, sobre a importância de observar as
brincadeiras das crianças, a professora da CEI considerou essa atitude relevante, mas
destacou a intencionalidade dessa observação como uma forma de avaliar as crianças e
ajudá-las, não como uma referência norteadora de sua própria postura e prática
educativas junto delas:
“-É importante observar a todo o momento. Porque tem aquelas
crianças que desempenham melhor e tem aquelas tímidas, que
não participam. Que nem hoje, nós estávamos assistindo vídeo,
não sei se você observou, tem duas crianças que não estavam
interessadas, não estavam envolvidas. Aí você procura saber o
que chama mais atenção delas. (...) Observando a gente vai
tentando várias coisas, conversando com outros professores,
que nem, conversando com as minhas colegas da tarde, elas têm
a mesma opinião que a minha, de uma criança que não
participa. Aí, dependendo do caso a gente fala com a diretora,
conversa, pra estar encaminhando pra um psicólogo”
(Entrevista com a professora do CEI – 28.05.2013).
É importante observar para conhecer cada criança e para ajudá-la se preciso, mas
a função docente da professora da Educação Infantil vai muito além. É preciso
30
reconhecer as crianças como sujeitos que constroem culturas e buscar conhecer suas
preferências. A observação também deve ir além do olhar para controlar, vigiar, cuidar e
atender. Trata-se muito mais de observar para “vigiar a si mesmo como possível
inibidor da manifestação de um componente cultural” (MARCELLINO 2007, p. 113) e
para perceber como nós, adultas(os), temos favorecido a iniciação das crianças aos
valores do sistema dominante, no dia a dia das creches, cada vez mais precocemente
(GUATTARI, 1977). Quando e de que formas temos contribuído para marcar cada vez
mais cedo os corpos das crianças com mecanismos de controle social?
(...) simplesmente trocou-se a roupa da velha crueldade da
iniciação que consiste em extirpar da criança, o mais cedo
possível, sua capacidade específica de expressão e em adaptá-la,
o mais cedo possível, aos valores, significações e
comportamentos dominantes (...). (GUATTARI, 1977, p. 52)
Ainda segundo GUATTARI (1977), quanto mais precoce for essa iniciação,
como têm revelado as pesquisas recentes no campo da Educação Infantil, mais intenso e
duradouro será o imprinting do controle social nos seus corpos.
O envolvimento nas brincadeiras das crianças, aceitando seus convites para
participar do que propõem, compartilhando de suas criações e descobertas, também é
fundamental na formação e na função docente. Uma das professoras relatou na
entrevista que as crianças frequentemente tomavam a iniciativa de incluí-las nas
brincadeiras, ensinando-as e distribuindo papéis.
Presenciei um momento em que as crianças estavam envolvidas em diferentes
situações, sem intervenção das professoras, mas com uma música ao fundo, que dizia
“Tchibum, tchibum, da cabeça ao bumbum...”. A professora de outro grupo entrou na
sala para dar um recado, mas quando ouviu que a música tocava contagiou-se e
começou a fazer a coreografia, cantando e aumentando o volume. Aos poucos,
conforme foram vendo a professora dançar, várias crianças pararam o que estavam
fazendo e ficaram em volta da professora, dançando, pulando e inventando outras
formas de dançar. O momento durou até a música acabar, quando a professora deu o
recado que precisava e saiu da sala, mas foi suficiente para mostrar o quanto as crianças
valorizavam estar junto das professoras, vê-las se entregarem, estarem de corpo inteiro
ali, com elas. É importante, então, não só ver e escutar, mas sentir e ser, nas relações
com os nossos próprios corpos e com as crianças, alfabetizando-nos em suas múltiplas
formas de linguagem.
31
5. Considerações Finais
Os dados da pesquisa apontam para uma necessidade emergente de ampliação
das propostas formativas que tenham os corpos e movimentos das professoras e das
crianças como centro, discutindo questões sobre a formação inicial e continuada destas
profissionais e as reais necessidades dos pequenos nos ambientes educativos. Se a
dimensão brincalhona de ser está cada vez mais distante do mundo adulto, por ser
oposta aos ideias de seriedade e produtividade no capitalismo, faz-se necessário discutir
formas e possibilidades para que ela seja (re)construída pelas professoras, como
fundamental requisito para a profissão (também em construção) de professora e
professor da Educação Infantil.
Um importante passo para ampliar as reflexões acerca dos corpos e movimentos
das professoras nas instituições, bem como, da reconstrução de suas dimensões
brincalhonas, é reconhecer as crianças pequenas como sujeitos que produzem culturas e
que precisam urgentemente ser vistas e ouvidas, com suas capacidades de criar,
imaginar, inventar e representar papéis, brincar com os seus corpos e se relacionar com
outras crianças e com as professoras das mais diversas formas, comunicando-se através
de sua corporeidade e se expressando por meio de múltiplas linguagens (EDWARDS et
al 1999).
É essencial criar possibilidades para que estas manifestações aconteçam e estar
disponível corporalmente para senti-las e percebê-las, apropriando-se de todos esses
elementos para a construção de uma pedagogia da Educação Infantil que reconheça
efetivamente os direitos das crianças pequenas.
Além disso, as discussões iniciadas nesta pesquisa sugerem a necessidade de
futuras reflexões e aprofundamentos que busquem, para essa Pedagogia da Educação
Infantil, uma fundamentação nas experiências, no que efetivamente nos acontece e nos
toca, para além dos “pacotes” fragmentados que são empurrados para as crianças,
pensados pelos adultos e na lógica destes, e que as crianças (felizmente) insistem em se
desvencilhar (LARROSA, 2002). É essencial (re)aproximar corpos e mentes, pensar nas
pessoas como seres inteiros, em busca de elementos para que essa Pedagogia se
construa tendo como principal referência as próprias crianças.
32
Referências
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35
ANEXOS
36
Anexo 1 – Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Eu, _____________________________________________
RG____________________________
____________________________________________________________________________
(função – se profissional da unidade)
da _________________________________________________________________________,
na cidade de São Paulo/SP, autorizo a realização da pesquisa:
____________________________________________________________________________,
assim como, a coleta e a utilização dos dados coletados no ano de 2012 (observações,
entrevistas, depoimentos, materiais produzidos, etc.) pela aluna
_____________________________________________________________________________
_____da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, RG:
______________________________, e-mail:_______________________________________,
telefone: ____________________________, para âmbito restrito de sua pesquisa de Iniciação
Científica e seus desdobramentos de divulgação científica (publicações e apresentação em
congressos acadêmicos), comprometendo-se a disponibilizar todos os dados coletados, retornar
e discutir os resultados obtidos na presente pesquisa com esta unidade, assim como colocar-se a
disposição para quaisquer dúvidas e esclarecimentos.
Data ___/___/______.
Assinatura _______________________________________________________
37
Anexo 2 – Roteiro de observações de campo
1. Organização do espaço físico e o que ele sugere;
2. Como estão e o que propõem os corpos das professoras e das crianças nos
diversos momentos da jornada educativa: brincadeiras livres e dirigidas,
alimentação, higiene, chegada e saída, etc.;
3. Relações das professoras com as crianças e envolvimento dos corpos nestas
relações;
4. Situações em que o corpo se movimenta (exemplos de);
5. A dimensão brincalhona das professoras. Observar o envolvimento nas criações
das crianças, participação nas brincadeiras, etc.
38
Anexo 3 - Roteiro de Entrevista semi-estruturada com as professoras
1. Percurso formativo
a) Formação Acadêmica
b) Outros cursos (incluindo cursos relacionados às Artes: música, dança, etc.)
2. Percurso profissional
a) Há quanto tempo atua como professora?
b) E na Educação Infantil, há quanto tempo atua?
3. Curso “Brincando com Histórias” e relações com o trabalho educativo com
as crianças
a) Por que decidiu fazer o curso?
b) O curso atendeu às suas expectativas? Por quê?
c) O que você considerou mais importante/interessante nas propostas?
d) Considerando que a formação em Pedagogia não prioriza o corpo, como o
curso pode ter complementado (ou não) essa lacuna?
e) Foi possível articular ideias discutidas no curso para o trabalho com as
crianças? (Se sim, dê exemplos. Se não, por quê?)
4. Concepções de infância, Educação Infantil e brincadeira
a) Para você, qual a importância da brincadeira, do jogo e do movimento das
crianças pequenas na jornada educativa?
b) Você acredita ser importante observar as brincadeiras das crianças? Por quê?
Para quê? De que formas?
c) E participar delas? Por quê? Para quê? De que formas?
d) Em sua opinião, as instituições de Educação Infantil têm
oportunizado/priorizado tempos e espaços suficientes para que as crianças e
suas professoras brinquem, criem, se expressem? Explique.
e) Do ponto de vista da formação profissional da Educação Infantil, quais
sugestões de cursos (temáticas, conteúdos, formas, locais, etc) você teria,
pensando nas múltiplas linguagens das crianças e de vocês professoras?
39
Anexo 4 – Certificado do I Seminário Internacional Educação Infantil e
Diferença (UFSCAR)
40
Anexo 5 – Declaração de Atividades junto ao Grupo de Estudos: Pesquisa e
primeira infância: linguagens e culturas infantis (FEUSP) no I Seminário
Internacional sobre Infâncias e Pós-Colonialismo (UNICAMP)
41
Anexo 6 – Resumo apresentado ao 21º Simpósio Internacional de Iniciação
Científica da USP (SIICUSP)