Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

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Corpos roubados Cenas de violência obstétrica retratam o desrespeito aos direitos reprodutivos no Brasil. Projetos e iniciativas buscam dar visibilidade à questão, lutando para que mulheres tenham partos dignos. Por Michelle Prazeres e Jamila Maia 1 "Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar o modo de nascer" Michel Odent Barriga que tem “cheiro de churrasco” durante o corte com bisturi a laser na cesariana. Ameaça de degolar um bebê ao fazer a cirurgia, caso a mãe não concordasse em ir para a sala de parto. Bebês retirados do útero e examinados violentamente antes de serem entregues às suas mães e pais para um dos mais sublimes encontros da vida. Estas são cenas protagonizadas por profissionais de saúde e caracterizam exemplos clássicos da violência obstétrica, que acomete uma em cada quatro mulheres brasileiras. Trata-se de um tipo específico de violência contra as mulheres (também contra os bebês e, por consequência, contra seus companheiros ou companheiras e sua família) que desfruta de uma desconfortável qualidade: é praticamente invisível. Seja pelo fato de acontecer, em geral, no momento do nascimento, que é tão esperado e pelo qual se nutrem expectativas de perfeição; seja por ser praticada por profissionais de saúde, que constituem uma categoria forte e “blindada” socialmente, posto que reconhecida como séria e detentora de legitimidade; seja “simplesmente” por se tratar de um tipo de violência contra as mulheres, em geral, colocadas em condição fragilizada e alienadas de seu próprio corpo. Se esse tipo de violência virou algo corriqueiro, o cenário parece começar a mudar em função, principalmente, de dois movimentos: o primeiro são as iniciativas que buscam denunciar essas atrocidades com mulheres e famílias no momento do parto e do nascimento e que estão ganhando cada vez mais notoriedade; o segundo são as ações, movimentos, coletivos e grupos de apoio dedicados à humanização do parto e do nascimento. As situações listadas no início do texto foram reveladas por uma ação de blogagem coletiva chamada “Teste da Violência Obstétrica” 2 . O teste contou com 1.966 1 Michelle Prazeres é jornalista e mãe do Miguel. Jamila Maia é tradutora e mãe do Gael. Amigas, ambas são ativistas pela humanização do parto e do nascimento.

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Artigo de Jamila Maia e Michelle Prazeres publicado no livro "A quem pertence o corpo da mulher", editado pela ONG Repórter Brasil, organizado por Leonardo Sakamoto e Maira Kubik Mano.

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Corpos roubados Cenas de violência obstétrica retratam o desrespeito aos direitos reprodutivos no

Brasil. Projetos e iniciativas buscam dar visibilidade à questão, lutando para que

mulheres tenham partos dignos.

Por Michelle Prazeres e Jamila Maia1

"Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar o modo de nascer"

Michel Odent

Barriga que tem “cheiro de churrasco” durante o corte com bisturi a laser na

cesariana. Ameaça de degolar um bebê ao fazer a cirurgia, caso a mãe não concordasse

em ir para a sala de parto. Bebês retirados do útero e examinados violentamente antes de

serem entregues às suas mães e pais para um dos mais sublimes encontros da vida. Estas

são cenas protagonizadas por profissionais de saúde e caracterizam exemplos clássicos

da violência obstétrica, que acomete uma em cada quatro mulheres brasileiras.

Trata-se de um tipo específico de violência contra as mulheres (também contra

os bebês e, por consequência, contra seus companheiros ou companheiras e sua família)

que desfruta de uma desconfortável qualidade: é praticamente invisível. Seja pelo fato

de acontecer, em geral, no momento do nascimento, que é tão esperado e pelo qual se

nutrem expectativas de perfeição; seja por ser praticada por profissionais de saúde, que

constituem uma categoria forte e “blindada” socialmente, posto que reconhecida como

séria e detentora de legitimidade; seja “simplesmente” por se tratar de um tipo de

violência contra as mulheres, em geral, colocadas em condição fragilizada e alienadas

de seu próprio corpo.

Se esse tipo de violência virou algo corriqueiro, o cenário parece começar a

mudar em função, principalmente, de dois movimentos: o primeiro são as iniciativas

que buscam denunciar essas atrocidades com mulheres e famílias no momento do parto

e do nascimento e que estão ganhando cada vez mais notoriedade; o segundo são as

ações, movimentos, coletivos e grupos de apoio dedicados à humanização do parto e do

nascimento.

As situações listadas no início do texto foram reveladas por uma ação de

blogagem coletiva chamada “Teste da Violência Obstétrica”2. O teste contou com 1.966

1 Michelle Prazeres é jornalista e mãe do Miguel. Jamila Maia é tradutora e mãe do Gael.

Amigas, ambas são ativistas pela humanização do parto e do nascimento.

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respostas de mulheres que em sua maioria (82%) estavam relatando episódios ocorridos

na gestação e parto do primeiro filho, que aconteceu majoritariamente em um hospital

privado, através de convênio (56%). A pesquisa revelou dados como:

12% das entrevistadas disseram que os profissionais de saúde fizeram piadas

sobre o comportamento delas;

9% disseram que os médicos e enfermeiros mandaram a parturiente parar de

gritar;

37% das gestantes sentiram medo pela sua própria saúde ou a do bebê;

24% disseram não terem sido informadas previamente ou consultadas sobre a

realização da episiotomia (corte na vagina no momento que o bebê está nascendo);

23% declararam não ter conhecimento prévio ou não ter consentido com a

administração de ocitocina (hormônio sintético usado para acelerar o trabalho de parto).

Os números mostram que é comum os profissionais de saúde conduzirem

intervenções ao longo do processo de trabalho de parto ou cirurgia sem consulta prévia

às pacientes, ou – mais grave ainda – conduzirem o próprio parto, sem deixar a mulher

protagonizar este momento. Esta talvez seja uma das mais severas formas de violentar,

como conta Anne Rammi, vítima de violência obstétrica na forma de uma cesárea

agendada por coação médica. “Sofri uma cesárea indesejada – agendada por coação

médica sem motivo real – às 38 semanas de gestação, mesmo tendo sempre conversado

com meu médico sobre meu desejo de parto normal. Descobri que fui vítima de uma

prática comum, que é a de usar um motivo técnico e ameaçar a vida do bebê para fazer

uma cirurgia por conforto médico. O motivo era “placenta madura”. Hoje, conhecendo a

medicina baseada em evidências e o modelo humanizado de atendimento ao parto, sei

que fui vítima de um modelo pautado nos interesses de médicos, convênios e hospitais.

Então vai além de eu me considerar vítima. Fomos vítimas, meu filho e eu”, afirma a

arquiteta que é blogueira, editora do Super Duper3 e uma das idealizadoras do site

Mamatraca4, que trata temas de maternidade e infância com vídeos.

Segundo dados do Ministério da Saúde - Sistema de Informações sobre Nascidos

Vivos (SINASC), de 2008 para 2009, a taxa de partos cesáreos ultrapassou a de partos

2 Para mais, veja: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012/05/teste-da-violencia-

obstetrica.html 3 http://www.superduper.com.br/

4 http://mamatraca.com.br/

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normais no Brasil. Em 2010, a taxa de cesáreas atingiu 52,3%. Na rede privada, o índice

de partos cesáreos chega a 82% e na rede pública, a 37%. (Blog da Saúde / Ministério

da Saúde, 2012).

O Brasil é o país com maior índice de partos cesáreos no mundo. A título de

comparação e para se chegar a um parâmetro, a taxa da Noruega é de 16,6%, da Suécia,

17,3%, do Japão, 17,4% e da França, 18,8%. Além disso, a Organização Mundial da

Saúde preconiza que não há justificativa para nenhuma região ter uma taxa de

incidência de cesáreas acima de 10-15%.

Violência invisível, mas institucionalizada

Para Ligia Moreiras Sena – que é bióloga, mestre em Farmacologia, doutoranda

em Saúde Coletiva e autora do blog Cientista que Virou Mãe, através do qual se tornou

um dos expoentes do movimento brasileiro pela denúncia e fim da violência obstétrica -

, a falta de informação é apenas um dos fatores que contribuem para a invisibilidade e o

desconhecimento da violência obstétrica. “Um agravante é o "produto final" do evento

de nascimento: a chegada de um filho. É um momento tão especial, marcado por tantas

emoções e surpresas que, muito embora as mulheres tenham sofrido agressões e

violências, acabam minimizando o que sofreram em função da alegria do momento. É

comum, inclusive, ouvir mulheres dizendo que “o profissional foi extremamente

grosseiro comigo, mas tudo bem, o que importa é que meu filho chegou e veio

saudável”, explica Ligia.

Para ela, a violência “sutil” se dá porque a maioria das mulheres a vê como parte

indissociável de um sistema. Apesar de ser invisível, é uma violência institucionalizada:

“as mulheres acham que são tratadas daquela maneira porque "é assim que acontece

mesmo", ou "faz parte". Isso faz com que grande parcela das gestantes atendidas não

problematize a violência que sofrem ou sofreram, por vê-la como integrante obrigatória

da situação. Isso mostra que o atendimento no Brasil é assim, seja qual for a instituição.

São resquícios de um modelo militar de organização, vindo do período da ditadura. Por

isso, também é uma forma de violência institucional”, explica. O trauma às vezes é tão

profundo, que a mulher desiste de ter mais filhos para não ter que vivenciar a

experiência novamente.

Para a fotógrafa Carla Raiter, idealizadora do projeto 1:4, que colhe e organiza

imagens de violência obstétrica como forma de denunciar a situação sofrida pelas

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mulheres, o maior problema não é a invisibilidade, mas sim a forma como a sociedade

vê esse tipo de violência – ou não quer ver. “A mulher que reclama do atendimento ao

parto é julgada, porque ousa duvidar dos profissionais, que estudaram anos para isso, é

julgada porque está reclamando do processo que trouxe o filho dela ao mundo, é julgada

por não estar feliz com o fato de o filho dela ter nascido com saúde. Ela é levada a

acreditar que as coisas são assim mesmo, inclusive pelas referências que ela teve a vida

inteira sobre o assunto: o parto é algo institucionalizado, cheio de protocolos

obrigatórios, sem humanização no atendimento, com privação de água e comida, sem

liberdade de movimentação e sem permissão para ter um acompanhante. Tudo isso é tão

comum nas histórias que herdamos de nossas famílias que, no final das contas, não gera

o espanto que seria necessário para motivar a denúncia. Com exceção de casos extremos

de erros médicos com prejuízo para mãe ou bebê, a mulher que passa pelo processo

acha que foi tudo dentro do normal, ou ainda que ninguém vai levá-la a sério”, explica

Carla.

Anne afirma que a violência obstétrica é invisível até o momento em que se

conhecem outras possibilidades. “Quer dizer que eu podia parir? Que eu não precisava

amargar esse corte na barriga? Que dava para ter esperado o tempo do meu filho?

Pronto... aquela cesárea "amada" virou violência. É uma prática do patriarcado para

imprimir força contra nossos corpos. Simbolicamente, onde somos diferentes e por onde

também nos mostramos poderosas”. Para ela, a invisibilidade do tema se dá porque ele

circula em um ambiente de “cortina de fumaça” criada pela ideia de que as escolhas da

mulher durante o parto são individuais. “Sabemos que nesse modelo em que vivemos,

não há escolhas”, afirma.

Heranças do patriarcado

Em seus depoimentos, Ligia, Anne e Carla colocam no centro da questão a

herança de séculos de patriarcado, que tem como consequência a alienação das

mulheres do próprio corpo e a aceitação de uma situação de violência e brutalidade

como algo “normal”. O fato de ser uma violência institucionalizada e não reconhecida

social e politicamente também contribui para que as mulheres aceitem e não denunciem

as situações. Para Ligia, a dificuldade para denunciar é outro fator que favorece a

invisibilidade e, portanto, a perpetuação das práticas violentas institucionais. A cientista

ressalta a urgência da criação de um canal direto de denúncia, um disque-violência

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obstétrica, que ouça a mulher, colha a queixa e dê andamento a um processo.

Atualmente, o caminho de denúncia é tão incerto que muitas mulheres acabam

desistindo antes mesmo de começar.

Hoje em dia, se uma brasileira quiser denunciar uma situação de violência

obstétrica, pode recorrer a canais informais, como os blogs, redes sociais e projetos

especiais, como o Mapa da Violência Obstétrica no Brasil, além de alguns canais

institucionais.5.

A parteira Ana Cristina Duarte6, que está à frente do Grupo de Apoio à

Maternidade Ativa (GAMA), um dos grupos de apoio ao parto humanizado do Brasil,

indica outros caminhos para denunciar: exigir o prontuário no hospital e escrever uma

carta contando em detalhes que tipo de violência sofreu e como se sentiu. Se o parto foi

no SUS, enviar uma carta para a Ouvidoria do Hospital com cópia para a Diretoria

Clínica, para a Secretaria Municipal de Saúde e para a Secretaria Estadual de Saúde. Se

foi em hospital da rede privada, enviar a carta para a Diretoria Clínica do Hospital, com

cópia para a Diretoria do seu Plano de Saúde, para a ANS (Agência Nacional de Saúde

Suplementar) e para as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde.

O blog Minha Mãe Que Disse7, outra iniciativa engajada na denúncia da

violência obstétrica, fez uma compilação de dicas e informa que “desde 2011 o SUS faz

uma pesquisa de qualidade relativa às internações na rede – atendimento ao parto

incluído” e que “todo paciente recebe em casa uma CARTA SUS8, com o valor dos

procedimentos que realizou e um campo para avaliar o atendimento que recebeu”. A

pesquisa é um canal que pode ser utilizado para informar sobre a violência sofrida.

Outra iniciativa, também informada pelo blog, é a Ouvidoria Ativa da Rede

Cegonha (estratégia do Ministério da Saúde para melhorar a assistência ao parto,

também vinculada ao SUS). Pelo sistema da ouvidoria, mulheres que tiveram seus

partos dentro da Rede Cegonha recebem uma ligação e respondem a perguntas pessoais

e sobre atenção à saúde no pré-natal, parto, pós-parto e saúde da criança, informa o

blog, acrescentando que as usuárias são escolhidas por amostragem.

5 Website: https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/

6 Para mais, veja: http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-

obstetrica-by-ana.html 7 Fonte: http://minhamaequedisse.com/2013/04/os-ventos-estarao-mudando-no-cenario-

obstetrico-brasileiro/ 8 Fonte:

http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/index.cfm?portal=pagina.visualizarTexto&codConteudo=6942&codModuloArea=168&chamada=carta-sus

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Existem, portanto, alguns meios para se comunicar a violência sofrida pela

mulher, mas se ela tiver interesse em levar o caso à justiça, o ideal é consultar um

advogado. A advogada Gabriella Sallit já entrou com uma ação por violência obstétrica

em nome de uma cliente em uma ação pioneira no Brasil. Em post no blog Dadada9 ela

afirma que a “decisão de denunciar a violência obstétrica deve ser tomada com cuidado,

depois de muita reflexão. Acusar alguém é mais difícil do que se imagina. Os processos,

sejam administrativos ou judiciais, reviram a vida da gente, remoem coisas que são

dolorosas, envolvem terceiros que nem sempre concordam com a nossa postura

(marido, filhos etc.). Nem sempre o jogo é limpo. Na verdade, poucas vezes é”. No

texto, ela deixa algumas dicas para quem resolver denunciar uma ação de violência

obstétrica.

Formas de violência obstétrica

Como citou Ligia, uma das dificuldades de organizar informações e denunciar se

deve ao fato de no Brasil, a violência obstétrica não estar tipificada em lei e não ser

reconhecida como tal. A Venezuela é o único país onde este tipo de violência está

discriminado. A Lei Orgânica pelos Direitos das Mulheres qualifica a violência

obstétrica como “a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por

profissional de saúde que se expressa em um tratamento desumanizador e um abuso de

medicalização e patologização dos processos naturais, trazendo consigo a perda da

autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade,

impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres”10

.

São considerados atos de violência obstétrica na Venezuela: não atender

oportuna e eficazmente as emergências obstétricas; obrigar a mulher a parir em posição

supina e com as pernas levantadas, existindo os meios necessários para a realização do

parto vertical; obstaculizar o apego imediato do bebê com a mãe sem causa médica

justificada, negando-lhe a possibilidade de carregar o bebê e amamentá-lo

imediatamente após nascer; alterar o processo natural do parto de baixo risco, mediante

o uso de técnicas de aceleração, sem consentimento voluntário, expresso e informado da

9 http://www.dadada.com.br/2013/04/01/como-denunciar-a-violencia-obstetrica/

10 Tradução livre da lei venezuelana, que pode ser consultada aqui:

http://venezuela.unfpa.org/doumentos/Ley_mujer.pdf

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mulher; praticar o parto por via de cesárea, existindo condições para o parto natural,

sem obter consentimento voluntário, expresso e informado da mulher.

Outros atos que podem ser considerados violência obstétrica, segundo Ana

Cristina Duarte11

são:

impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, familiar

ou de seu círculo social;

tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, zombeteira ou de

qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, incluindo tratá-la de

forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos;

submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes,

como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas

abertas;

impedir a mulher de se comunicar com o "mundo exterior", tirando-lhe a

liberdade de usar o celular, caminhar até a sala de espera, etc.;

fazer graça ou recriminar por qualquer característica ou ato físico como

obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros, assim como por comportamentos como

gritar, chorar, ter medo, vergonha, etc.;

fazer qualquer procedimento sem explicar antes o que é, por que está sendo

oferecido e acima de tudo, sem pedir permissão;

submeter a mulher a mais de um exame de toque (ainda assim quando

estritamente necessário), especialmente por mais de um profissional, e sem o seu

consentimento, mesmo que para ensino e treinamento de alunos;

cortar a vagina (episiotomia) da mulher quando não há necessidade (discute-se a

real necessidade em não mais que 5 a 10% dos partos); dar um ponto na sutura final da

vagina de forma a deixá-la menor e mais apertada, supostamente para aumentar o prazer

do cônjuge;

subir na barriga da mulher para expulsar o feto (manobra de Kristeller);

submeter a mulher e/ou o bebê a procedimentos exclusivamente para treinar

estudantes e residentes, ou permitir a entrada de pessoas estranhas ao atendimento para

"ver o parto", quer sejam estudantes, residentes ou profissionais de saúde,

principalmente sem o consentimento prévio da mulher e de seu acompanhante com a

chance clara e justa de dizer não;

11

http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-obstetrica-by-ana.html

Page 8: Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

fazer uma mulher acreditar que precisa de uma cesariana quando ela não precisa,

utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados (o bebê é grande, a

bacia é pequena, o cordão está enrolado) e submetê-la a essa cirurgia

desnecessariamente, sem a devida explicação dos riscos que ela e seu bebê estão

correndo (complicações da cesárea, da gravidez subsequente, risco de prematuridade do

bebê, complicações a médio e longo prazo para mãe e bebê);

dar bronca, ameaçar, chantagear ou cometer assédio moral contra qualquer

mulher/casal por qualquer decisão que tenha(m) tomado, quando essa decisão for contra

as crenças, a fé ou os valores morais de qualquer pessoa da equipe;

submeter bebês saudáveis a aspiração de rotina, injeções e procedimentos na

primeira hora de vida, antes que tenham sido colocados em contato pele a pele e de

terem tido a chance de mamar.

A violência obstétrica é portanto física, emocional e também simbólica, pois a

informação que chega às parturientes é carregada de simbolismos e valores que as

conduzem a uma condição de medo e desempoderamento. O parto pode ser

compreendido como um importante rito de passagem para a mulher, uma experiência

grandiosa na medida em que a mulher se sente vitoriosa e capaz quando ele termina,

munida de força psíquica inclusive para encarar a próxima grande transformação: a

amamentação e os cuidados com o bebê. Se submetida a um processo repleto de

agressões e intervenções, ao seu término a mulher – colocada neste lugar pelo agressor -

pode de fato se sentir "defeituosa", incapaz e fraca, à mercê do auxílio constituído na

figura dos profissionais de saúde, sem os quais supostamente o nascimento não teria

sido possível.

Assim, quando há violência obstétrica, a agressão ocorre em vários níveis: há a

violação física, como nos exames de toque feitos sem explicação, consentimento ou

necessidade, nos casos de episiotomia e também de falta de liberdade de movimentação

e de escolha de posição para parir (que chega ao absurdo quando a mulher é amarrada

na cama), mas também há toda a violência verbal que remete ao sexo e às escolhas que

ela fez sobre sua vida reprodutiva. Frases como "na hora de fazer não gritou" traduzem

bem o pensamento de uma sociedade ainda bastante machista e patriarcal, que julga e

"castiga" a mulher que usa sua sexualidade, como explica Ligia. É um ato de negação

da autonomia da mulher, do seu direito de escolha, de sua dignidade e de sua

integridade corporal e emocional.

Page 9: Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

Questões econômicas e sociais envolvidas

Por trás desse cenário de terror silencioso, soma-se ao patriarcado a

mercantilização do parto, no qual o nascimento da criança é pensado apenas como

procedimento médico e avaliado através de critérios como produtividade e

remuneração. Nos planos de saúde, o valor pago por um parto normal é baixo se

comparado ao da cesariana e esse é um fator reconhecido e até mesmo admitido pela

classe médica quando esta é questionada sobre o alarmante número de nascimentos por

via cirúrgica nos hospitais privados. Mesmo quando o valor é semelhante, não “vale a

pena” fazer partos normais (trabalhosos e demorados) em lugar de cesarianas agendadas

e ágeis, que “rendem mais”. Jornais já denunciaram inclusive que alguns planos de

saúde cobrem apenas cesáreas eletivas em certos hospitais12

. O SUS, por sua vez, sofre

com a falta de infraestrutura e de capacidade, frequentemente submetendo as mulheres

ao aceleramento artificial e violento do parto como uma forma de atender mais

parturientes num período menor de tempo. As cesarianas também se multiplicam graças

ao medo por parte dos médicos, que temem ser processados no eventual desfecho

negativo de um parto normal.

Outra grave consequência dessas más práticas é a perpetuação de um sentimento

de fobia do parto normal entre as mulheres brasileiras. A medicina ocidental ainda

pensa no parto como um processo “fisiologicamente patogênico” e se ocupa de poupar

as mulheres de um suposto sofrimento que muitas vezes é iatrogênico, fruto de

inúmeras intervenções adotadas na obstetrícia moderna. O senso comum relacionado ao

sofrimento é reforçado na cena pública pelos meios de comunicação e programas como

as novelas13

. Negativamente impressionadas por relatos aterrorizantes, trágicos e

dolorosamente reais, caracterizados prioritariamente pelo mau atendimento à parturiente

e pela violência, até mesmo mulheres de renda mais baixa buscam meios para se

submeter a uma cesariana eletiva como uma alternativa para escapar dos maus-tratos.

Mudanças no cenário

12

Planos cobrem só cesárea em parte dos hospitais. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,planos-cobrem-so-cesarea-em-parte-dos-hospitais-,1015814,0.htm 13

Recentemente, no primeiro capítulo de uma novela em horário nobre, a rede de televisão com maior audiência no país mostrou uma cena de morte materna em um parto normal. A representação dos partos nas novelas brasileiras é digna de um estudo mais aprofundado. Compartilhamos aqui apenas uma impressão, de que o assunto parece ser sempre cercado de lendas, mitos e de uma aura aterrorizante, que confirma e reforça o senso comum.

Page 10: Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

Felizmente, este cenário está começando a mudar no Brasil. Uma série de

inciativas começam a surgir para informar a mulheres, denunciar situações violentas e

alertar órgãos responsáveis. Nos últimos anos, o movimento pela humanização do parto

ganhou ainda mais visibilidade a partir de marchas, movimentos e mobilizações

nacionais, como as em favor da presença das doulas no parto e pelos partos

domiciliares. Ligia Moreiras Sena está por trás de algumas das iniciativas nesse sentido,

como o Teste da Violência Obstétrica e a produção do vídeo-documentário popular

"Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras"14

que atingiu um grande alcance e hoje

possui cerca de 70 mil visualizações no Youtube, além de ter sido apresentado a

profissionais de saúde em diferentes eventos. Por meio desse documentário, formado

por depoimentos de mulheres sobre a violência que sofreram no nascimento dos filhos,

muitas outras mulheres passaram a problematizar as circunstâncias de nascimento dos

próprios filhos e estão se envolvendo na causa.

Por sua vez, o projeto "1:4 - retratos da violência obstétrica", da fotógrafa Carla

Raiter, retrata mulheres que foram vítimas dessa violência com trechos de relatos

estampados em seus corpos. “Ele tem como objetivo chamar atenção para o

tema, disseminar informação, curar feridas, fortalecer redes de apoio, tirar o assunto do

escuro, incentivar a discussão e a denúncia”, explica a idealizadora.

Por fim, cabe destacar o filme "O Renascimento do Parto"15

, produzido por um

casal de ativistas, cuja distribuição está sendo viabilizada por uma ação de

crowdfunding (financiamento coletivo). O filme mostra a violência obstétrica sofrida

diariamente pelas mulheres nas maternidades e consultórios brasileiros. O filme traz

depoimentos de profissionais renomados na área do atendimento humanizado ao parto,

como o obstetra francês Michel Odent e a parteira mexicana Naoli Vinaver, além de

histórias de mães e pais, e entrevistas com obstetras, parteiras, doulas e pediatras.

“Felizmente, os últimos dois anos foram marcados por ações e projetos com o

objetivo de tirar a violência obstétrica da invisibilidade, discuti-la, evidenciá-la e

problematizá-la”, conta Ligia. Contudo, ainda há um longo caminho a ser percorrido

para que as mulheres possam ter partos livres e dignos no Brasil.

A humanização do atendimento ao parto é um dos principais caminhos para a

transformação desse cenário, na medida em que se propõe a devolver o protagonismo do

14

Disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eg0uvonF25M 15

http://benfeitoria.com/o-renascimento-do-parto

Page 11: Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

momento do parto à mulher, com redução nas intervenções tanto no aspecto clínico

quanto na condução do parto, que é encarado como evento fisiológico.

A preparação dos profissionais de saúde para esse modelo pode ajudar a sanar

não apenas a violência obstétrica, mas também os outros males embutidos nesse

processo, como a medicalização excessiva, a mercantilização do processo de

nascimento (que se traduz na aceleração desnecessária dos partos com fins de

produtividade em detrimento da observação das evidências científicas) e a dominação

sociocultural da mulher.

Assim, o nascimento de uma criança poderá ocupar a posição que lhe cabe na

vida de seus pais, da família e da sociedade como um todo: um evento natural e feliz no

qual um novo ser humano é recebido no mundo com dignidade e respeito, inclusive – e

principalmente – por parte dos profissionais de saúde eventualmente envolvidos no

processo.

Nota final: Agradecemos a oportunidade de participar deste projeto, pois esta obra,

certamente, caminha junto com outras iniciativas no sentido de dar visibilidade a esta

e a tantas outras violências que são cometidas diuturnamente contra nós, mulheres,

no Brasil.

Referências

(1) Contatos dos projetos e iniciativas citados

Carla Raiter / Projeto 1:4

http://carlaraiter.com/1em4/

[email protected]

Ligia Moreira Sena / Cientista que virou Mãe

www.cientistaqueviroumae.com.br

www.facebook.com/cientistaqueviroumae

Gama – Grupo de Apoio à Maternidade Ativa

http://www.maternidadeativa.com.br/

Page 12: Corpos roubados: panorama da violência obstétrica no Brasil

[email protected]

Filme "O Renascimento do Parto

http://benfeitoria.com/o-renascimento-do-parto

Vídeo-documentário popular "Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras"

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eg0uvonF25M

Mapa da Violência Obstétrica no Brasil

https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/

(2) Blogs e sites

Estuda, Melania, Estuda: http://estudamelania.blogspot.com.br/

Dadada: http://www.dadada.com.br/

Minha Mãe Que Disse: http://minhamaequedisse.com/

Super Duper: http://www.superduper.com.br/

Mamatraca: http://mamatraca.com.br/

(3) Pesquisas e artigos acadêmicos

Janaína Marques Aguiar. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade

ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. http://www.apublica.org/wp-

content/uploads/2013/03/JanainaMAguiar.pdf

Janaína Marques Aguiar. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica

das usuárias. http://www.scielo.br/pdf/icse/v15n36/aop4010.pdf

Gustavo Venturini. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado.

http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf

Carmen Simone Grilo Diniz. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos

sentidos de um movimento. http://www.scielosp.org/pdf/csc/v10n3/a19v10n3.pdf