CORREA, Amelia Siegel. Paranismo

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XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 26 A 29 DE JULHO DE 2011, CURITIBA – PR GRUPO DE TRABALHO: SOCIOLOGIA DA ARTE ALFREDO ANDERSEN E O PROJETO PARANISTA: UMA SOCIOLOGIA DAS BIOGRAFIAS DO PINTOR AMÉLIA SIEGEL CORRÊA DOUTORANDA EM SOCIOLOGIA PELA USP BOLSISTA DA FAPESP

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Artigo de Correa sobre o pintor A.A. e sua relação com o paranismo.

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  • XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 26 A 29 DE JULHO DE 2011, CURITIBA PR GRUPO DE TRABALHO: SOCIOLOGIA DA ARTE

    ALFREDO ANDERSEN E O PROJETO PARANISTA:

    UMA SOCIOLOGIA DAS BIOGRAFIAS DO PINTOR AMLIA SIEGEL CORRA DOUTORANDA EM SOCIOLOGIA PELA USP BOLSISTA DA FAPESP

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    Alfredo Andersen e o projeto paranista: uma sociologia das biografias do pintor

    O Paran um Estado typico desses que no tem um trao que faa delles alguma coisa

    notvel, nem geograficamente como a Amaznia, nem pitorescamente como a Bahia ou o

    Rio Grande do Sul. Sem uma linha vigorosa de histria como So Paulo, Minas e

    Pernambuco, sem uma natureza caracterstica como o Nordeste, sem lendas de

    primitivismo como Matto Grosso e Goyaz. Dentro do Brasil j principado o Paran um

    esboo a se iniciar. Falta-lhe o lastro dos sculos. Apezar de ser o estado de futuro mais

    prximo, forma nessa retaguarda caracterstica da incaracterstica (...) eu poderia affirmar

    sem errar por muito que o paranaense no existe. O paranaense no existe, dentro do

    complexo brasileiro (...) O Paran um estado sem relevo humano. Em toda a histria do

    Paran nada houve que realmente impressionasse a nacionalidade. Nenhum movimento

    com sentido consciente mais ou menos profundo. Nenhum homem de Estado. Nenhum

    sertanista. Nenhum intellectual, nem ao menos um homem de lettras, que saindo delle,

    representasse o Brasil, como o Maranho teve Gonalves Dias, a Bahia Castro Alves, o

    Cear Jos de Alencar e Minas Geraes Affonso Arinos, etc. A histria e a geografia no

    tiveram foras bastantes para affirmarem o Estado do Paran. Ella se resumiu na conquista

    anonyma da terra e na colonizao (iniciativa de fora) sobre a selvageria, a semi-

    civilizao ou o deserto. E depois da poca dos bandeirantes ella dormiu at a immigrao

    extrangeira. O aspecto geogrfico, de pleno acordo com a histria, formado de trechos de

    toda a configurao do Sul do Brasil1

    Esse diagnstico ilustra bem o desafio que teve a intelectualidade local de criar

    uma identidade para o Paran no incio do sculo XX, enquanto colhia os frutos do

    desenvolvimento econmico proporcionado pelo boom da erva-mate2. Diante desse

    quadro desanimador, restavam poucas opes para a construo de um regionalismo

    paranaense. O paranismo, como ficou conhecido, teve nas artes plsticas o seu principal

    meio de expresso, especialmente no gnero da paisagem e na estilizao do pinheiro3.

    Assim, a descoberta de Alfredo Andersen, um pintor com formao europia que

    havia se instalado no estado no final do XIX, resultou numa progressiva apropriao da

    sua trajetria como paranista. A inteno desse trabalho apreender como se deu a 1 MACHADO, Brasil Pinheiro. Instantneos Paranaenses. In: A Ordem. Rio de Janeiro, fev. 1930, p. 9. apud PEREIRA, Lus Fernando Lopes. O espetculo dos maquinismos modernos: Curitiba na virada do sculo XIX para o XX. Tese de doutorado Historia Social, USP, 2002. 2 Aps a Guerra do Paraguai, o Paran se transformou no maior produtor mundial do produto, principal responsvel pela modernizao de Curitiba no perodo. 3 Havia uma inteno paranista em criar uma identificao entre a populao local e os smbolos construdos por eles, como o pinheiro. A rvore exaltada, escolhida para representar o paranaense do futuro, assim como o prprio Estado do Paran. In: PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Paranismo: o Paran inventado. Cultura e Imaginrio no Paran da I Repblica. 2 Ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.

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    produo desse significado no mundo social atravs de uma sociologia das biografias do

    pintor.

    Para entender o paranismo preciso levar em conta a grande massa de

    imigrantes no estado, o que exigia que fossem inseridos nesse projeto identitrio, apesar

    das disputas e conflitos entre a elite tradicional local e os estrangeiros. Por isso, a

    definio do movimento no passa pela natividade, conforme explicou seu fundador,

    Romrio Martins4:

    Paranista todo aquele que tem pelo Paran uma afeio sincera, e que notavelmente a

    demonstra em qualquer manifestao de atividade digna, til coletividade paranaense.

    Esta a acepo em que o neologismo, si que neologismo, tido nesse nobre movimento

    de idias e iniciativas contidas no Programa Geral do Centro Paranista (...) Paranista

    aquele que em terras do Paran lavrou um campo, cadeou (sic) uma floresta, lanou uma

    ponte, construiu uma maquina, dirigiu uma fbrica, compoz uma estrofe, pintou um quadro,

    esculpiu uma esttua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um crebro,

    evitou uma injustia, educou um sentimento, reformou um verso, escreveu um livro, planou

    uma rvore5

    Essas definies so importantes para se pensar a construo das duas principais

    biografias do pintor6, e so fundamentais para refletir e debater condies de produo,

    redes de interesses e de que forma serviam a esse projeto paranista. Ficar evidente que

    o argumento central das duas obras similar, e em ambas observamos redundncias e

    muitas repeties.

    Com relao aos envolvidos nas produes desses textos, foi possvel perceber a

    ilusio ou a relao de cumplicidade e de conivncia que liga esses escritores ao jogo

    4 Nascido em 1874 em Curitiba, filho de militar, casou-se com Benedita Menezes Alves, de famlia tradicional curitibana. Foi jornalista, membro fundador do Instituto Histrico e Geogrfico Paranaense. Dirigiu o Museu Paranaense de 1902 1928, foi tambm deputado estadual em diversas legislaturas alm de famoso ecologista. Segundo Brasil Pinheiro Machado, Romrio Martins estabeleceu a temtica da histria do Paran como a histria de uma comunidade, ou seja, um grupo humano nas suas relaes com o meio geogrfico, lanando as bases de uma historia regional. DICIONRIO HISTRICO-BIOGRFICO DO ESTADO DO PARAN (DHBPR). Curitiba: Chain: Banco do Estado do Paran, 1991, p. 276. Mais importante para ns, Romrio teve papel central no paranismo e nas artes: obtinha financiamentos junto ao governo, patrocinava inaugurao de esculturas, era editor, redator, promovia exposies etc. 5 MARTINS, Romrio. Paranstica. In: A divulgao. Curitiba, fev-mar. 1946, p. 91. Apud PEREIRA, L. op. cit. 6 Alm das duas biografias, h perto de uma dzia de artigos em revistas e jornais, verbetes em dicionrios etc. que buscam reconstituir a trajetria de Andersen, mas como as informaes prestadas so similares e, principalmente, os personagens envolvidos nessas elaboraes pertencem aos mesmos grupos, considerei suficiente nesse momento trabalhar com as seguintes obras: Andersen, pai da pintura paranaense, de Carlos Rubens e O Acontecimento Andersen, de Valfrido Piloto.

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    cultural do qual fazem parte. Assim, essa ilusio tambm faz parte do que se quer

    compreender e explicar, importante para o processo de desvelamento e de apreenso dos

    interesses envolvidos na construo desse pai da pintura paranaense, que oculta

    constries, ambivalncias, e a compreenso do seu real encaixe na sociedade

    paranaense, assim como dificulta uma busca menos romntica do sentido da sua

    trajetria e da sua produo artstica. Isso para no mencionar o apagamento das suas

    origens, e a falta de interesse de compreender o seu contexto e as reais motivaes que o

    levaram a se estabelecer no Paran. , pois, com a condio de submeter a tal

    objetivao sem complacncia o autor e a obra estudados, e de repudiar todos os

    vestgios de narcisismo que ligam o analisador ao analisado, limitando o alcance da

    anlise, que se poder fundar uma cincia das obras culturais e de seus atores 7.

    1. Carlos Rubens, o bigrafo escolhido.

    O crtico de arte carioca Carlos Rubens nascido em 1890 foi o escolhido pelas

    elites paranistas para escrever a biografia de Alfredo Andersen, pouco depois do seu

    falecimento8. J na dcada de 1920, referncias sua atuao na capital da Repblica

    volte meia apareciam na imprensa local, e demonstram que fazia parte das redes de

    relaes da intelectualidade paranaense interessada em fazer conhecer o Paran para

    alm das suas fronteiras

    Um breve mapeamento dos livros que escreveu fornecem pistas adicionais para

    compreender sua linha de atuao como crtico de arte. Em 1921 publica Impresses

    de arte, pela Tipografia do Jornal do Commrcio; Rosalvo Ribeiro: Mestre da Pintura

    Brasileira, pela Editora Laemmert, sem data (primeira biografia sobre o pintor

    alagoano); J. Baptista da Costa (notas sobre o Homem e a Obra)9, publicado em 1926

    tambm pela Tipografia do Jornal do Commercio; As Artes Plsticas no Brasil, pela

    Editora Melhoramentos em 1935. Na seqncia, em 1938 publica o livro sobre

    Andersen; em 1939 Histria da Pintura no Brasil, pelo Ministrio das Relaes

    Exteriores; Pequena Histria das Artes Plsticas no Brasil em 1941, pela Editora

    Nacional, e por fim Vitor Meireles: sua vida e sua obra, Imprensa Nacional, 1945.

    7 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gnese e estrutura do campo literrio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. 8 Andersen morreu em agosto de 1935 e Carlos Rubens termina o livro em dezembro de 1938. 9 Esse livro foi reeditado, com o nome de Vida e Glria de Baptista da Costa pela Sociedade Brasileira de Belas Artes em 1947.

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    Escrevia nas revistas Vamos ler!, O Malho e Carioca; publicou tambm meia

    dzia de livros de contos e crnicas.

    Tratava-se, pois, de um escritor com uma publicao no desprezvel na rea das

    artes plsticas, embora eu no tenha encontrado, em breve pesquisa, avaliaes ou

    comentrios mais elaborados sobre os seus trabalhos. A lista mostra tambm que o autor

    se especializou no gnero biogrfico, e que tinha predileo por artistas acadmicos,

    sendo que Rosalvo Ribeiro, Batista da Costa e Vitor Meirelles foram alunos da Escola

    Nacional de Belas Artes e Andersen, o nico que no foi, teve tambm uma formao

    acadmica em Copenhagen. Essa questo voltar tona. Alm disso, no se tratam de

    pintores consagrados no campo nacional, exceo de Vitor Meirelles10, e tampouco

    oriundos do centro: Ribeiro alagoano, Costa do interior do Rio de Janeiro, Meirelles

    catarinense e Andersen noruegus radicado no Paran. Possivelmente isso diga algo da

    sua posio como crtico de arte: como se ele se valesse da sua posio na capital do

    pas para receber encomendas de biografias de pintores de estados perifricos que

    passaram por l, a maioria via Escola de Belas Artes.

    A primeira edio de Andersen, Pai da Pintura Paranaense de 1939, publicada

    por uma obscura editora chamada Genauro de Carvalho11, de So Paulo. O livro foi

    reeditado em 1995 pela Fundao Cultural de Curitiba12. De qualquer forma, a escolha

    de Carlos Rubens para a fatura da obra sugere a uma tentativa de promover e divulgar a

    obra de Andersen para alm das fronteiras paranaenses, fazendo-a circular nos

    principais centros do pas.

    1.1 Andersen, Pai da Pintura Paranaense

    A abertura do livro, que traa um breve panorama artstico do Brasil no final do

    XIX, bastante elogiosa Misso Francesa e seus discpulos, aos incentivos de D.

    10 Vtor Meirelles ganhou em 1853 como prmio da Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, uma viagem para a Europa. Tinha como mentor Arajo Porto-Alegre, diretor da Escola. Depois de um perodo em Roma, fixou-se em Paris onde pintou o quadro A primeira missa no Brasil, marco do romantismo brasilianista, inspirada em La premire messe em Kabylie, de Horace Vernet e na carta de Pero Vaz de Caminha. A obra foi a primeira de um artista brasileiro a ser exposta no Salo parisiense em 1861(ver: COLI, Jorge. A primeira missa no Brasil, de Vitor Meirelles. In: Nossa histria. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003. nmero 1, ano 1. pgina 18-22) 11 Coincidentemente, De Plcido e Silva, principal figura por trs da publicao do livro sobre Andersen, publica, em 1938 Histrias do Macambira, sob os auspcios da mesma editora. 12 A reedio se d em uma coleo chamada Farol do Saber, patrocinada pela Prefeitura Municipal de Curitiba em uma gesto marcadamente paranista, de Rafael Greca de Macedo, responsvel pelas comemoraes dos 300 anos da cidade. Da coleo constam outros heris regionalistas como Dario Velozo, Emiliano Perneta, Rocha Pombo, Nestor Vitor etc. Ainda nessa gesto ergueram-se monumentos de cunho regionalista em vrios locais do centro de Curitiba.

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    Pedro II s artes plsticas e aos artistas estrangeiros que visitavam o pas. Marcando sua

    predileo pela arte clssica e neoclssica do perodo monrquico, repudia a atuao dos

    governos republicanos, aproveitando para criticar a indicao do diretor do recm-

    criado Museu de Belas Artes, que no coube a nenhum dos grandes mestre nacionais.

    Rubens enfatiza muito positivamente a formao clssica de Andersen, elogiando sua

    virtude em resistir s turbulncias vanguardistas, que exigiam a proscrio da beleza na

    arte.

    Assim, dizia Rubens, se na capital federal a questo artstica j era complicada,

    quem diria nos demais estados, como o Paran, que era um estado sem arte at a

    chegada de Andersen13. A partir da comea o foi assim, numa tentativa insistente de

    mostrar que desde criana possua inclinaes artsticas, que o menino tinha um dom

    inato. A iluso retrospectiva do autor tambm localiza com preciso o momento da

    trajetria de Andersen em que ele decidiu que seria pintor, durante uma viagem Itlia,

    onde se encantou com as pinturas renascentistas. Segue com uma narrativa positivista e

    apressada de fatos, datas e nomes dos principais eventos da sua vida, at o pintor

    aportar no Paran.

    A partir da o autor se dedica com mais calma, pois chega ao clmax do texto,

    com a descrio romanceada da primeira viagem de Andersen Curitiba, como se

    fossem dois amantes que, ao se conhecerem, sentem uma atrao fatal e imediata, que

    unir para sempre o pintor e a terra das araucrias, que exerce sobre ele um domnio

    que a poesia explica facilmente, e Andersen fica (...) Olhou as economias que eram

    quase nada, refletiu e ficou (...) Ia encetar nova existncia, na nova ptria. como se

    Andersen, um pouco como o argumento de Sartre, descrito por Bourdieu, tomasse tal

    deciso como um ato livre e consciente de autodeterminao, uma escolha deliberada e

    livremente pura14.

    Assim, o pintor decide fixar residncia no estado pelo fascnio que sente pela

    terra, pelas emoes despertadas por to bela natureza. A idia de predestinao, com

    um forte apelo s emoes, funde-se com o paranismo atribudo ao pintor, que explica

    sua permanncia e o desenvolvimento da sua obra na terra das araucrias: Andersen se

    13 Como a arte paranaense no tinha um passado contra o qual se sublevar, era preciso criar uma origem para o estabelecimento de uma histria prpria. Apesar de reafirmar em Pequena Histria das Artes Plsticas no Brasil que Andersen seria o pai da pintura paranaense, o prprio Rubens diz que h quem cite Frederico Virmond, prussiano, miniaturista, chegado ao Paran em 1818; Jessie e Willi e James; Iria Corra, sua discpula e Irmina Guimares Mis. (RUBENS, Carlos. Pequena histria das artes plsticas no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. p. 388.) 14 BOURDIEU, op. cit., p. 215.

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    faz brasileiro, se faz paranaense, e durante mais de trinta anos s o Paran irradia

    diante dos seus olhos e pulsa no seu corao (...) seu pincel no saberia interpretar

    outra natureza, reproduzir outra gente. O meio, muito sensvel s manifestaes

    estticas, aguardava algum de vulto para aproveitar essa ddiva. Retomando a citao

    que abre esse texto, diante de poucas atraes, restava aos paranistas esse

    direcionamento do olhar para a natureza, como seu grande trunfo15.

    Assim, Andersen configurado como um caso singular que, vencido pelo

    meio, vincula-se de corpo e alma a terra e gente do Paran, e por isso tem

    legitimidade para ser considerado o pai da pintura paranaense. Seu ecletismo

    considerado outra singularidade, pois transitava bem entre vrios gneros; embora a

    predileo pela paisagem seja enfatizada na interpretao de Rubens, fruto da linha

    paranista da encomenda dessa obra.

    Ao tratar das exposies de Andersen no Rio e em So Paulo, dos prmios que

    recebeu, das reportagens elogiosas na imprensa, dos admiradores que cativou, Rubens

    esfora-se para vincular o pintor a personalidades importantes, buscando informar sobre

    o talento desse pintor na metrpole. Insere relatos de personagens que conheceram o

    ateli de Andersen, e da magia que despertava, a fim de mostrar ao leitor que se trata de

    um grande mestre, que merece o reconhecimento de todos. O fato de ter criado uma

    escola e ensinado uma gerao de discpulos tambm entra na argumentao paranista,

    visto como uma forma de retribuir os afetos da terra e da gente que o acolheu, uma

    atitude desinteressada, jamais como um meio de sobrevivncia, atitude mundana

    incompatvel com um missionrio das artes. O fato de ter vivido numa situao

    financeira precria no entendido como uma falta de apoio e incentivo das elites

    polticas locais, mas como mais uma prova do seu amor, afinal, sua fortuna sempre foi

    o amor dos paranaenses.

    1.2 Encomenda e fatura da obra

    Dentre as principais figuras que contriburam para a fatura dessa biografia,

    temos Valfrido Piloto, amigo desinteressado e dedicado do pintor, autor da segunda

    obra aqui analisada, e quem forneceu a maioria das fontes utilizadas pelo crtico carioca.

    15 Meio e raa eram elementos usados para a definio das identidades a partir do sculo XIX. Se por um lado leva o Brasil a se ver como invivel do ponto de vista civilizacional por ter um clima tropical e uma mistura de raas (que segundo os autores naturalistas era degenerativa), o Paran se vangloriava de ter um clima ameno e uma mistura de europeus.

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    Mas somente no final que aparece a principal figura por trs da confeco do

    livro: De Plcido e Silva16, figura importante na cena poltica e intelectual local,

    advogado, jurista e jornalista, que poca redigia o principal jornal de Curitiba17. Ali

    so fornecidas informaes sobre as relaes e alguns dos interesses em questo na

    elaborao da biografia de Andersen. O prprio Carlos Rubens cita artigos da Gazeta do

    Povo onde De Plcido e Silva comenta que o carioca um escritor e crtico de arte

    muito bem visto nas rodas no Rio de Janeiro e que ele mesmo (Plcido) gostaria de

    escrever sobre Andersen, mas que por no ter suficiente habilidade, buscou a ajuda de

    Rubens, que diz: Seus recursos somente no seriam suficientes para realizar um

    trabalho custoso e de certa influncia no meio da Ptria. Era preciso que houvesse

    entre ns um trabalho de co-adjuvao solidarisante, afim de que o custeio de uma

    obra notvel se fizesse.

    Sabe-se que o jornalista advogado tinha uma grande estima por Alfredo

    Andersen, e que possua um acervo considervel de quadros do pintor, que compunham

    uma notvel pinacoteca, motivo que ele no evidencia nos artigos, mas que certamente

    foi decisivo no seu empenho pela valorizao da sua obra, que no limite significaria o

    aumento do valor da sua coleo18.

    Num outro artigo de Plcido, intitulado Patrimnio inestimvel, o advogado

    jornalista critica a falta de cuidado com o patrimnio intelectual e artstico,

    especialmente no caso de Andersen. Que se fez at agora para perpetuar seu nome?

    (...) H no Rio, um notvel critico de arte, conhecido por todos, o Sr. Carlos Rubens,

    que possui em elaborao uma grandiosa produo sobre a vida, a arte e discpulos do

    mestre. Era o caso do nosso Conselho Superior de Defesa Cultural relacionar-se como

    ilustre escritor e auxiliar o aparecimento do trabalho, para que se realce, pelo Brasil

    inteiro, a ao do professor Alfredo Andersen e a grandeza de sua arte. Pouco depois,

    insiste A arte do mgico artista precisa ser divulgada. Sua ao, em proveito da nossa

    cultura, no pode e nem deve ficar desconhecida, limitada que esta aos admiradores da

    arte excelsa. H, na maravilhosa metrpole brasileira, dedicado admirador do

    mestre. 16 Nasceu em Macei em 1892, e ainda jovem mudou-se para Curitiba. Foi aluno da primeira turma do curso de direito da UFPR, onde mais tarde foi professor. Alm de advogado e jornalista, fundou a Editora Guara em 1939. 17 A Gazeta do Povo foi fundada em janeiro de 1919. Plcido e Silva, que figura no primeiro nmero como secretrio, assumiu logo depois a direo do jornal, onde permaneceu at 1962. 18 Sua filha, a colunista social Juril De Plcido e Silva Carnasciali, detentora de uma coleo considervel de obras paranistas. Uma exposio no final de 2006 no Museu Alfredo Andersen reuniu parte do acervo da famlia Plcido e Silva, com 26 telas paranistas expostas .

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    E o seu empenho toma propores ainda maiores. Plcido solicita, atravs de

    seus contatos poltico, ao congresso paranaense que contribua com a publicao do

    livro. No descobri se obteve sucesso, pois a publicao foi viabilizada pela Sociedade

    Amigos do Livro e das Belas Artes, idealizada por Romrio Martins, que contou com o

    apoio de De Plcido e Silva, Valfrido Piloto e Thorstein Andersen (filho do pintor).

    Essas informaes evidenciam como as representaes dos artistas e dos escritores se

    tornam mais claras quando relacionadas com o campo do poder. O livro sequer tenta

    nublar as sujeies e solicitaes externas que atravessaram a sua fatura, assim como a

    busca por interesses ideais, materiais e de prestgio desses grupos.

    2. O Acontecimento Andersen, de Valfrido Piloto

    Basta observar o ttulo dado ao livro, para se ter idia do tom de

    excepcionalidade e singularidade atribudo ao pintor noruegus radicado no Paran. O

    acontecimento Andersen, publicado em 1960, em meio s comemoraes do centenrio

    do nascimento do pintor, foi escrito por Valfrido Piloto19, influente intelectual paranista,

    com vasta produo sobre o meio cultural local. O titulo d a idia de uma apario, de

    algo que cai do cu, quase que um milagre. A inteno aqui analisar sociologicamente

    este construto, mostrando a importncia de se entender o contexto de produo dessa

    obra, a posio do produtor naquele espao social e sua interpretao da trajetria de

    Andersen como paranista, e como todas essas questes esto vinculadas aos interesses

    ideais e materiais do seu grupo. Ao fazer isso, estou sugerindo que sua trajetria poder

    ser inteligvel por outros vieses, e que a viso romantizada da sua vida prescinde de

    elementos fundamentais para uma compreenso mais matizada da sua experincia e da

    sua produo artstica.

    O autor vale-se de uma linguagem muitas vezes rebuscada, quimrica, que

    infunde de encantamento a trajetria do pintor noruegus. Embora seja verdadeiro que

    Piloto mencione as dificuldades de Andersen frente ao poder pblico, o tom da

    biografia romanesco e destitudo de constries sociais, presses, lutas e

    ambivalncias. 19 Nascido em Dorizon- PR em 1903, bacharelou-se em Direito na UFPR em 1932. Foi delegado de policia, dentre outras funes dentro da Secretaria de Segurana. Teve vida intelectual intensa, atuando como jornalista, escritor, poeta, ensasta, historigrafo. Colaborou durante dcadas na Gazeta do Povo, jornal de grande circulao em Curitiba. Em 1953-54 foi secretrio da Comisso dos Festejos do Centenrio do Paran. Escreveu cerca de 50 obras, dentre elas, O Acontecimento Andersen (1960), A estirpe apostolar de Dario Vellozo (1990), Paranistas (1938), Construamos com verdade a historia do Paran(1951), Rocha Pombo (1953), Quando o Paran se levantou como uma nao etc. Morreu em Matinhos em 2006.

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    Ao explicitar a inteno do livro, que tinha carter de consagrao definitiva,

    face s novas geraes, do relevante papel do Pai da Pintura Paranaense, o autor d a

    primeira pista para o desvelamento dos interesses contidos na sua empreitada. Puxando

    os fios dessa inteno manifesta, fui chegando a outras que se vinculam a elas, e que

    esto aparentemente ocultas, e percebendo como as obras fornecem dados sobre si

    mesmas e sobre o universo no qual se situam. Os autores acabam descrevendo sua

    prpria posio no universo, embora ignorem o principio geral da estrutura que

    descrevem, como veremos a seguir.

    2.1 Breve contexto da sua produo

    da dcada de 1940 a criao das principais instituies artsticas paranaenses:

    a Escola de Musica e Belas Artes (1948) e o Salo Paranaense de Belas Artes (1944),

    controlados pela intelectualidade tradicional, ou paranista, que lutou por tais

    institucionalizaes, e que eram avessos s formas modernas de arte. A obra de

    Andersen e dos seus discpulos diretos e indiretos perdurava como a principal

    referncia, mas se defrontava com algumas contestaes.

    Nesse contexto, a revista O Joaquim20, comandada por Dalton Trevisan21, foi um

    divisor de guas. A revista possua dois eixos de discusso sobre cultura. O primeiro,

    local, visava combater o Paranismo e o outro, nacional, refletia os anseios de uma maior

    participao de artistas e intelectuais nas questes sociais22. No seu segundo ano,

    declara como inimigos e fatores de atraso para o estado as figuras de Emiliano Perneta e

    Alfredo Andersen, principais representantes paranistas na rea artstica, contrapondo s

    suas obras a idia de uma arte universal e moderna, encarnadas pelo escritor Dalton

    Trevisan e pelo pintor Guido Viaro23. O paranismo era visto como culpado pela

    20 O nome, segundo Dalton, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicao, que circulou entre 1946 e 1948, tornou-se porta-voz de uma gerao de escritores, crticos e poetas. Reuniu ensaios assinados por Antonio Cndido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas at ento inditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade. A revista tambm trazia tradues de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Guido Viaro, Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres. A linha era modernista e de crtica aos tradicionalismos. 21 Nascido em 1925, o contista Dalton Jrson Trevisan uma figura enigmtica da cena cultural paranaense. Formado em direito pela UFPR, estreou em 1945 com Sonata ao Luar. Em 1959, Dalton Trevisan lanou o livro "Novelas Nada Exemplares" e ganhou o Prmio Jabuti da Cmara Brasileira do Livro. Publicou tambm "Cemitrio de Elefantes" (1964), "Noites de Amor em Granada" , "Morte na Praa e Vampiro de Curitiba (1965), dentre vrios outros. 22 Sobre o assunto, ver: OLIVEIRA, Luis Claudio Soares. Joaquim contra o Paranismo. Dissertao de mestrado em Letras, UFPR, 2005. 23 Nascido em Vneto, na Itlia, em 1897, o desenhista, gravurista e escultor Guido Pellegrino Viaro estudou em Veneza e Bologna. Numa viagem ao Brasil, conhece sua futura esposa em Curitiba e decide ficar.

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    mentalidade reacionria da cultura local24 tanto que, num artigo intitulado Viaro

    Hlas... e abaixo Andersen, Trevisan declarava abertamente a importncia de se

    exorcizar a sombra de Alfredo Andersen, colocando Viaro como contraponto: J se

    disse que no se pode exorcizar Viaro sem desmerecer Andersen. Pois este o ponto

    preciso: no se pode25

    A partir da dcada de 1950, tentativas de superao do provincianismo local

    comeam a se configurar, e discusses sobre cultura tradicional e moderna ganham

    espao. Figuras de peso como a do artista Poty Lazzarotto26 tomam posies no sentido

    de desbancar o conservantismo artstico paranaense; artistas modernistas se

    organizavam em pequenos grupos, com algum apoio oficial, e idias artsticas menos

    tradicionais foram lentamente ganhando fora27. Esses embates tomam vulto no final

    dos anos 1950, nos Sales de Belas Artes, nas pginas dos jornais e revistas locais.

    Essa era a atmosfera poca das comemoraes do centenrio de nascimento de

    Alfredo Andersen, ocasio oportuna para as elites paranistas ratificarem a importncia

    do pai da pintura paranaense28. O meio artstico e intelectual do Paran se encontrava

    num debate arquetpico entre acadmicos versus modernos, e transformaes estticas e

    ideolgicas no campo das artes plsticas estavam se delineando com cada vez mais

    fora. Nesse momento, as ortodoxias se valem das comemoraes dos cem anos do

    nascimento de Alfredo Andersen para tentar manter sua hegemonia local. o que a

    biografia de Piloto tentar fazer.

    24 O prprio Valfrido Piloto foi satirizado na coluna Oh!... as idias da provncia, rebatendo com criticas na imprensa a revista e seus mentores, por desrespeitar e diminuir as tradies paranaenses. OLIVEIRA, op. cit. 25 TREVISAN, Dalton. Viaro Hlas... e abaixo Andersen. In: Joaquim. Curitiba, n. 7, dez 1946, p. 10. 26 Curitibano, nascido em 1924, Napoleo Potyguara Lazzarotto formou-se na Escola Nacional de Belas Artes em 1945. Na seqncia, recebeu uma bolsa para estudar em Paris entre 1946 e 1947. Atuou como desenhista, gravurista, ceramista e muralista. 27 somente nas dcadas de 1950 e 1960 que certo iderio modernista, a princpio quase inexistente, implantar-se-ia definitivamente no cenrio artstico paranaense. Ver: FREITAS, Artur. A consolidao do moderno na histria da arte no Paran: anos 1950 e 1960. In: Revista de Historia Regional 8 (2): 87-124, Inverno 2003. 28 As comemoraes do centenrio do artista envolveram uma srie de atividades e homenagens: Missa na Catedral celebrada pelo arcebispo da cidade, romaria ao tmulo do artista e inaugurao de uma placa de bronze com discurso de Teodoro De Bona, inaugurao da Praa Alfredo Andersen e do monumento de Erbo Stenzel, conferncia na Biblioteca Pblica do crtico Andrade Muricy sobre o Pai da Pintura Paranaense, na mesma biblioteca inaugurao de uma exposio retrospectiva, doao Noruega de uma duplicata do monumento para ser colocada em Cristiansand, confeco do lbum Alfredo Andersen por Luis Piloto e Vasco Jos Taborda, confeco de uma medalha comemorativa gravada pelo artista Jos Pen; distribuio de folhetos sobre Andersen nas escolas, criao do premio Alfredo Andersen, divulgao na imprensa sobre a vida e obra do artista... Cf.: PILOTO, Valfrido. O acontecimento Andersen. Curitiba: Editora Mundial, 1960

  • 12

    2.2 Andersen: karma e misso no Paran.

    O autor abre o texto enunciando sua perspectiva de anlise da vida de Andersen:

    a doutrina do karma. Desta, ele retira essencialmente a idia de predestinao, e de que

    a chegada de Andersen ao Paran veio para anunciar a sua misso, que ele cumpriu de

    forma desinteressada e altrusta. Mais que isso, Alfredo Andersen e o Paran fizeram

    um pacto espiritual, de caminharem juntos, rumo ao desenvolvimento da civilizao

    paranaense. A lei do karma serve para Piloto explicar a inevitabilidade da misso de

    Andersen, que era de ordem espiritual, superior. Mas h tambm o outro lado do

    contrato, que envolve o povo paranaense, que tambm visto como portador de um

    karma coletivo, predestinado e merecedor dos beneficio trazidos pelo pintor noruegus.

    Assim, Piloto cria um sentido para a vida de Andersen, que seria o amor ao

    Paran, sua terra e sua gente, infundindo-lhe uma lgica (paranista) a partir da sua

    perspectiva, e no da do pintor, deixando de lado questes mundanas relativas ao seu

    enraizamento social, hesitaes e ambivalncias presentes na sua trajetria. O que no

    quer dizer que esse sentido atribudo vida do pintor no possua uma lgica prpria e

    no sirva aos interesses de classe e prestigio do seu grupo.

    Na perspectiva de Piloto, Andersen era um missionrio que abriu mo da sua

    ptria e da fama compensadora, seguindo fielmente sua predestinao. Como numa lei

    de causa e efeito perfeita, Andersen cumpre a sua misso criando com maestria a

    pintura paranaense, atividade pautada pelo mais profundo desinteresse, pois nunca

    desejou mais do que a estima do povo.

    2.3 A objetivao das posies e dos pontos de vista

    Embora se trate de uma obra sobre Alfredo Andersen, possvel apreender em

    diversos trechos do livro as posies e pontos de vista do autor e do seu grupo. Logo no

    inicio, Piloto dialoga com o livro de Rubens, ora evidenciando a contribuio dos

    paranistas para a sua feitura, ora sutilmente colocando o seu trabalho como mais

    valioso, afinal, Carlos Rubens no apreciou, jamais, bem de perto, a vida de

    Andersen. Outras evidncias importantes se encontram nos relatos pessoais, como

    quando conta da sua relao com Andersen, de quem se aproximou pela amizade que

    seu pai nutria com o pintor, que era um amigo compreensivo e desinteressado. Parte do

    livro resulta das conversas que tinha com Andersen nos domingos pela manh, no seu

    ateli. Comenta tambm que, aps a morte de seu pai, o pintor lhes surpreendeu com

    uma belssima homenagem: pintou-lhe um retrato pstumo, com uma bela dedicatria, o

  • 13

    que deixou os filhos muito emocionados. E por tais vnculos afetivos, diz ser o seu

    trabalho uma oferenda, uma homenagem que executa com muita emoo. Dedica o livro

    aos irmos, pois todos j escreveram exaltando Andersen.

    Outra dimenso objetivada refere-se ao ponto de vista dos paranistas, ao qual o

    texto se prende, e que fica mais evidente no item sobre a construo do noruegus

    paranista. Em diversos momentos, o autor se coloca como participante, utilizando

    freqentemente o pronome ns, deixando claro que se trata de um grupo de interessados

    na consagrao de Alfredo Andersen: Esta pena e os que a amparam com as

    cooperaes colhidas, chegam, assim, ao termo de um esboo do perfil de Alfredo

    Andersen. Isso fica visvel tambm nos relatos de amigos e admiradores do pintor,

    tratados com visvel familiaridade.

    Por outro lado, o tom de crtica proveniente dos grupos de artistas e intelectuais

    demandando maior apoio estatal, a criao e a ampliao de instituies que os

    acolhessem manifesto29. E o caso Andersen um excelente pretexto: como, um

    artista europeu supercivilizado, apenas alguns lhe deram guarida ? Fato que atesta a

    falta de tino dos polticos que no fizeram nada por ele, afinal os homens pblicos se

    amarram ao erro. Assim, a constante crtica aos polticos em geral parece ter muito

    mais a ver com uma posio de demanda desses grupos que estavam perdendo a sua

    posio hegemnica na cena local, e que almejavam serem financiados pelo aparato

    estatal30, do que com uma compaixo pelo destino do artista.

    Quando da exposio retrospectiva do centenrio de nascimento de Andersen,

    Piloto censura o governo por ter comprado poucos quadros do pintor, e mostra-se

    incomodado com o fato das obras estarem cada vez mais dispersas em acervos

    particulares. O incmodo do autor pelo fato do governo no ser o detentor majoritrio

    daquele acervo pode ser lido como um indcio da perda de prestgio que se configurava

    para o seu grupo. Segundo Bourdieu, as revelaes da denuncia tm um ponto cego,

    que no mais do que o ponto (de vista) a partir do qual so feitas (...)31, ou seja,

    29 O prprio Piloto, que tinha produes intelectuais desde a juventude, foi scio fundador do Centro de Letras do Paran etc., foi funcionrio da Secretaria de Segurana do Estado at aposentar-se, aos 70 anos de idade, em 1973, o que indica a baixa institucionalizao do campo, e ajuda a entender as demandas e criticas ao poder poltico presentes em seu discurso. 30 Vale lembrar que no incio do sculo XX o estado empenhou-se em custear viagens de estudo para o exterior de diversos artistas paranistas, assim como financiou exposies etc., afinal, o projeto paranista necessitava de investimentos na rea cultural como forma de viabilizar a construo da identidade regional. 31 BOURDIEU, op. cit.; p. 219.

  • 14

    falar da falta de financiamento para o projeto anderseniano contar das dificuldades

    pelas quais o seu grupo passava frente falta de apoio poltico.

    Ainda comentando as exposies efetuadas aps a morte de Andersen, o autor

    explicita sua outra motivao, presente j em Carlos Rubens, que a da ampliao do

    reconhecimento artstico de Andersen e do valor do povo do Paran, onde tambm esta

    presente certo rancor, um pedido de aceitao, quando o organizador de uma das

    exposies diz que o Brasil no apenas o Rio de Janeiro e So Paulo, e que o Paran

    quer mostrar o valor dos seus artistas. Segundo Piloto, o governo financiou parte da

    mostra dos artistas paranaenses na capital federal em 1944, esperando uma grande

    repercusso do evento pelo pas.

    2.4 Ausncias que falam

    Uma vez que o silncio sobre certos eventos ou temticas tambm dizem dos

    interesses envolvidos na produo simblica dos grupos, foi possvel observar alguns

    exemplos expressivos. O primeiro que Piloto, quando menciona o famigerado curso

    noturno que Andersen ministrou no inicio da sua trajetria em Curitiba, na Escola de

    Artes e Ofcios, no menciona que se tratava de aulas para operrios, e de todo o

    envolvimento que Andersen teve na difuso desse programa e com a causa operria.

    Sabe-se que a idia era mal vista pelas elites do perodo, e que essa concepo de ensino

    da arte para as classes populares no era exatamente o que os paranistas que construram

    a idia de pai da pintura paranaense tinham em mente ao difundir as virtudes do seu

    trabalho.

    Uma carncia incrvel nos dois textos a da sua esposa Ana Andersen, com que

    foi casado a vida toda e teve quatro filhos. Piloto, que se dizia to prximo de Andersen,

    certamente a conhecia. Essa falta no poderia se vincular a uma inabilidade ou falta de

    percepo de gnero, pois o autor faz um longo e elogioso comentrio sobre as alunas

    de Andersen, essas, oriundas das elites locais. Fica evidenciada pouca ou nenhuma

    importncia de Ana na viso de Piloto, quem sabe por ter sido uma mulher muito

    simples, uma descendente indgena num contexto de glorificao do modo de vida

    europeu e de consolidao das elites luso-brasileiras, alis, todas bastante sectrias em

    questes raciais. Basta observar o catlogo de pinturas de Andersen para perceber a

    centralidade que ela teve no desenvolvimento do seu trabalho, uma espcie de chave de

    acesso a um Brasil mais popular e original. De forma geral, as biografias no trazem

    tona conflitos e disputas nos quais o pintor esteve envolvido, as precrias condies

  • 15

    financeiras da sua existncia e as dificuldades que tinham para manter sua famlia em

    Curitiba.

    2.5 A construo do noruegus paranista

    Fruto dos debates do perodo, em que as identidades regionais estavam em jogo,

    era preciso articular esse importante pintor estrangeiro com o projeto paranista, soluo

    encontrada atravs de um apelo aos sentimentos, tornando-se constante a representao

    de Andersen como pintor noruegus de nascimento, mas de corao e alma paranaenses,

    por toda a sua vida dedicada a essa terra. O nrdico foi sendo um araucariano que, por

    vezes, com a bagagem da saudades, ia visitar as suas origens- mas apenas visit-las.

    E assim se inicia a paranizao de Andersen, que por ter sido um habilidoso intrprete

    das belezas locais, criou a pintura paranaense. a paisagem, a natureza que o prende,

    com nfase na rvore solene, o pinheiro, presena que lhe desperta sentimentos

    intensos e irracionais, atingindo sua alma e levando-o ao cumprimento da sua misso32.

    A pintura paranaense , segundo esse argumento, a pintura da natureza do

    Paran (e no do seu povo). A idia de pai da pintura paranaense que, alis, aparece

    com freqncia entre aspas, deve-se ao fato dele ter sido o primeiro a pintar os temas

    regionais do estado33. Por isso, o argumento que explica esse pai noruegus da pintura

    paranaense o seu amor pelo Paran, o que leva o grupo dos paranistas a defenderem

    com tanta veemncia a sua obra34. A trajetria de Andersen , pois, um exemplo

    perfeito desse paranismo, por ter desenvolvido uma vasta obra tematizando a natureza

    local, no necessariamente por sentir todo esse amor, mas certamente porque era o que

    sabia fazer.

    Consideraes finais

    No surpreendente que trabalhos como esses analisados, biografias quase que

    ficcionadas, reproduzam a crena da arte pela arte, fruto do amor e desvinculada das

    32 Se observarmos quantitativamente a produo paisagstica de Andersen, veremos que o pinheiro estava longe de ser seu tema predileto. Ele aparece sim em diversas telas, como elementos que compunham a paisagem local, bastante diferente do tratamento dado por Lange de Morretes, por exemplo. 33 O que no verdade, pois antes dele uma srie de pintores itinerantes registrou a cena local. Debret, por exemplo, pintou vrios quadros no Paran, a maioria em Paranagu e alguns no planalto, onde figuram pinheiros. 34 Em 1940, inaugurada um baixo relevo do rosto de Andersen, executado Joo Turim, para o qual o pintor posara em 1934, colocado o bronze sobre uma pea estilizada com pinhes. Joo Turin foi um dos principais artistas do movimento paranista, que estilizou a pinha e o pinheiro, e essa obra, que figura em frente Casa Alfredo Andersen, pode ser lido como um ato simblico de filiao, de reconhecimento de Andersen como pai.

  • 16

    praticas sociais, desde que sejam entendidos dentro do contexto de suas produes e

    captados os interesses em jogo na produo desses sentidos. O forte empenho na

    manuteno de uma determinada memria e na busca por aumentar o prestgio de

    Andersen estava vinculado disputas por posies no meio cultural local, e portanto no

    campo do poder, assim como ao projeto paranista de engrandecimento e valorizao dos

    seus produtos no campo nacional.

    Em outras palavras, o que esta em jogo a produo de uma crena, de um valor

    socialmente reconhecido: O produtor do valor da obra de arte no o artista, mas o campo de produo enquanto

    universo de crena que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crena

    no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte s existe enquanto objeto

    simblico dotado de valor se conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituda

    como obra de arte por espectadores dotados da disposio e da competncia estticas

    necessrias para a conhecer e reconhecer como tal, a cincia das obras tem por objeto no

    apenas a produo material da obra, mas tambm a produo do valor da obra ou, o que

    d no mesmo, da crena no valor da obra35

    Andersen foi socialmente institudo como um pai, e aqui busquei esboar a

    produo do valor da sua obra pelas elites paranistas, afinal, as artes plsticas foram

    fundamentais para o desenvolvimento do paranismo, e a figura de Andersen foi, sem

    dvida, central para a experincia daquela gerao. O problema que, para produzir

    esse noruegus paranista, foi preciso apagar suas origens norueguesas, suas escolhas

    amorosas, sua frustraes, seus sonhos, sua viso do Brasil popular e o sentido que ele

    encontrou na sua fixao no Paran. Logo, acredito que esse exerccio analtico abre

    caminhos diferentes para outra compreenso da trajetria de Alfredo Andersen.

    35 BOURDIEU, op. cit.; p. 259.