CORREA, Amelia Siegel. Paranismo
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XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 26 A 29 DE JULHO DE 2011, CURITIBA PR GRUPO DE TRABALHO: SOCIOLOGIA DA ARTE
ALFREDO ANDERSEN E O PROJETO PARANISTA:
UMA SOCIOLOGIA DAS BIOGRAFIAS DO PINTOR AMLIA SIEGEL CORRA DOUTORANDA EM SOCIOLOGIA PELA USP BOLSISTA DA FAPESP
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Alfredo Andersen e o projeto paranista: uma sociologia das biografias do pintor
O Paran um Estado typico desses que no tem um trao que faa delles alguma coisa
notvel, nem geograficamente como a Amaznia, nem pitorescamente como a Bahia ou o
Rio Grande do Sul. Sem uma linha vigorosa de histria como So Paulo, Minas e
Pernambuco, sem uma natureza caracterstica como o Nordeste, sem lendas de
primitivismo como Matto Grosso e Goyaz. Dentro do Brasil j principado o Paran um
esboo a se iniciar. Falta-lhe o lastro dos sculos. Apezar de ser o estado de futuro mais
prximo, forma nessa retaguarda caracterstica da incaracterstica (...) eu poderia affirmar
sem errar por muito que o paranaense no existe. O paranaense no existe, dentro do
complexo brasileiro (...) O Paran um estado sem relevo humano. Em toda a histria do
Paran nada houve que realmente impressionasse a nacionalidade. Nenhum movimento
com sentido consciente mais ou menos profundo. Nenhum homem de Estado. Nenhum
sertanista. Nenhum intellectual, nem ao menos um homem de lettras, que saindo delle,
representasse o Brasil, como o Maranho teve Gonalves Dias, a Bahia Castro Alves, o
Cear Jos de Alencar e Minas Geraes Affonso Arinos, etc. A histria e a geografia no
tiveram foras bastantes para affirmarem o Estado do Paran. Ella se resumiu na conquista
anonyma da terra e na colonizao (iniciativa de fora) sobre a selvageria, a semi-
civilizao ou o deserto. E depois da poca dos bandeirantes ella dormiu at a immigrao
extrangeira. O aspecto geogrfico, de pleno acordo com a histria, formado de trechos de
toda a configurao do Sul do Brasil1
Esse diagnstico ilustra bem o desafio que teve a intelectualidade local de criar
uma identidade para o Paran no incio do sculo XX, enquanto colhia os frutos do
desenvolvimento econmico proporcionado pelo boom da erva-mate2. Diante desse
quadro desanimador, restavam poucas opes para a construo de um regionalismo
paranaense. O paranismo, como ficou conhecido, teve nas artes plsticas o seu principal
meio de expresso, especialmente no gnero da paisagem e na estilizao do pinheiro3.
Assim, a descoberta de Alfredo Andersen, um pintor com formao europia que
havia se instalado no estado no final do XIX, resultou numa progressiva apropriao da
sua trajetria como paranista. A inteno desse trabalho apreender como se deu a 1 MACHADO, Brasil Pinheiro. Instantneos Paranaenses. In: A Ordem. Rio de Janeiro, fev. 1930, p. 9. apud PEREIRA, Lus Fernando Lopes. O espetculo dos maquinismos modernos: Curitiba na virada do sculo XIX para o XX. Tese de doutorado Historia Social, USP, 2002. 2 Aps a Guerra do Paraguai, o Paran se transformou no maior produtor mundial do produto, principal responsvel pela modernizao de Curitiba no perodo. 3 Havia uma inteno paranista em criar uma identificao entre a populao local e os smbolos construdos por eles, como o pinheiro. A rvore exaltada, escolhida para representar o paranaense do futuro, assim como o prprio Estado do Paran. In: PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Paranismo: o Paran inventado. Cultura e Imaginrio no Paran da I Repblica. 2 Ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.
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produo desse significado no mundo social atravs de uma sociologia das biografias do
pintor.
Para entender o paranismo preciso levar em conta a grande massa de
imigrantes no estado, o que exigia que fossem inseridos nesse projeto identitrio, apesar
das disputas e conflitos entre a elite tradicional local e os estrangeiros. Por isso, a
definio do movimento no passa pela natividade, conforme explicou seu fundador,
Romrio Martins4:
Paranista todo aquele que tem pelo Paran uma afeio sincera, e que notavelmente a
demonstra em qualquer manifestao de atividade digna, til coletividade paranaense.
Esta a acepo em que o neologismo, si que neologismo, tido nesse nobre movimento
de idias e iniciativas contidas no Programa Geral do Centro Paranista (...) Paranista
aquele que em terras do Paran lavrou um campo, cadeou (sic) uma floresta, lanou uma
ponte, construiu uma maquina, dirigiu uma fbrica, compoz uma estrofe, pintou um quadro,
esculpiu uma esttua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um crebro,
evitou uma injustia, educou um sentimento, reformou um verso, escreveu um livro, planou
uma rvore5
Essas definies so importantes para se pensar a construo das duas principais
biografias do pintor6, e so fundamentais para refletir e debater condies de produo,
redes de interesses e de que forma serviam a esse projeto paranista. Ficar evidente que
o argumento central das duas obras similar, e em ambas observamos redundncias e
muitas repeties.
Com relao aos envolvidos nas produes desses textos, foi possvel perceber a
ilusio ou a relao de cumplicidade e de conivncia que liga esses escritores ao jogo
4 Nascido em 1874 em Curitiba, filho de militar, casou-se com Benedita Menezes Alves, de famlia tradicional curitibana. Foi jornalista, membro fundador do Instituto Histrico e Geogrfico Paranaense. Dirigiu o Museu Paranaense de 1902 1928, foi tambm deputado estadual em diversas legislaturas alm de famoso ecologista. Segundo Brasil Pinheiro Machado, Romrio Martins estabeleceu a temtica da histria do Paran como a histria de uma comunidade, ou seja, um grupo humano nas suas relaes com o meio geogrfico, lanando as bases de uma historia regional. DICIONRIO HISTRICO-BIOGRFICO DO ESTADO DO PARAN (DHBPR). Curitiba: Chain: Banco do Estado do Paran, 1991, p. 276. Mais importante para ns, Romrio teve papel central no paranismo e nas artes: obtinha financiamentos junto ao governo, patrocinava inaugurao de esculturas, era editor, redator, promovia exposies etc. 5 MARTINS, Romrio. Paranstica. In: A divulgao. Curitiba, fev-mar. 1946, p. 91. Apud PEREIRA, L. op. cit. 6 Alm das duas biografias, h perto de uma dzia de artigos em revistas e jornais, verbetes em dicionrios etc. que buscam reconstituir a trajetria de Andersen, mas como as informaes prestadas so similares e, principalmente, os personagens envolvidos nessas elaboraes pertencem aos mesmos grupos, considerei suficiente nesse momento trabalhar com as seguintes obras: Andersen, pai da pintura paranaense, de Carlos Rubens e O Acontecimento Andersen, de Valfrido Piloto.
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cultural do qual fazem parte. Assim, essa ilusio tambm faz parte do que se quer
compreender e explicar, importante para o processo de desvelamento e de apreenso dos
interesses envolvidos na construo desse pai da pintura paranaense, que oculta
constries, ambivalncias, e a compreenso do seu real encaixe na sociedade
paranaense, assim como dificulta uma busca menos romntica do sentido da sua
trajetria e da sua produo artstica. Isso para no mencionar o apagamento das suas
origens, e a falta de interesse de compreender o seu contexto e as reais motivaes que o
levaram a se estabelecer no Paran. , pois, com a condio de submeter a tal
objetivao sem complacncia o autor e a obra estudados, e de repudiar todos os
vestgios de narcisismo que ligam o analisador ao analisado, limitando o alcance da
anlise, que se poder fundar uma cincia das obras culturais e de seus atores 7.
1. Carlos Rubens, o bigrafo escolhido.
O crtico de arte carioca Carlos Rubens nascido em 1890 foi o escolhido pelas
elites paranistas para escrever a biografia de Alfredo Andersen, pouco depois do seu
falecimento8. J na dcada de 1920, referncias sua atuao na capital da Repblica
volte meia apareciam na imprensa local, e demonstram que fazia parte das redes de
relaes da intelectualidade paranaense interessada em fazer conhecer o Paran para
alm das suas fronteiras
Um breve mapeamento dos livros que escreveu fornecem pistas adicionais para
compreender sua linha de atuao como crtico de arte. Em 1921 publica Impresses
de arte, pela Tipografia do Jornal do Commrcio; Rosalvo Ribeiro: Mestre da Pintura
Brasileira, pela Editora Laemmert, sem data (primeira biografia sobre o pintor
alagoano); J. Baptista da Costa (notas sobre o Homem e a Obra)9, publicado em 1926
tambm pela Tipografia do Jornal do Commercio; As Artes Plsticas no Brasil, pela
Editora Melhoramentos em 1935. Na seqncia, em 1938 publica o livro sobre
Andersen; em 1939 Histria da Pintura no Brasil, pelo Ministrio das Relaes
Exteriores; Pequena Histria das Artes Plsticas no Brasil em 1941, pela Editora
Nacional, e por fim Vitor Meireles: sua vida e sua obra, Imprensa Nacional, 1945.
7 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gnese e estrutura do campo literrio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. 8 Andersen morreu em agosto de 1935 e Carlos Rubens termina o livro em dezembro de 1938. 9 Esse livro foi reeditado, com o nome de Vida e Glria de Baptista da Costa pela Sociedade Brasileira de Belas Artes em 1947.
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Escrevia nas revistas Vamos ler!, O Malho e Carioca; publicou tambm meia
dzia de livros de contos e crnicas.
Tratava-se, pois, de um escritor com uma publicao no desprezvel na rea das
artes plsticas, embora eu no tenha encontrado, em breve pesquisa, avaliaes ou
comentrios mais elaborados sobre os seus trabalhos. A lista mostra tambm que o autor
se especializou no gnero biogrfico, e que tinha predileo por artistas acadmicos,
sendo que Rosalvo Ribeiro, Batista da Costa e Vitor Meirelles foram alunos da Escola
Nacional de Belas Artes e Andersen, o nico que no foi, teve tambm uma formao
acadmica em Copenhagen. Essa questo voltar tona. Alm disso, no se tratam de
pintores consagrados no campo nacional, exceo de Vitor Meirelles10, e tampouco
oriundos do centro: Ribeiro alagoano, Costa do interior do Rio de Janeiro, Meirelles
catarinense e Andersen noruegus radicado no Paran. Possivelmente isso diga algo da
sua posio como crtico de arte: como se ele se valesse da sua posio na capital do
pas para receber encomendas de biografias de pintores de estados perifricos que
passaram por l, a maioria via Escola de Belas Artes.
A primeira edio de Andersen, Pai da Pintura Paranaense de 1939, publicada
por uma obscura editora chamada Genauro de Carvalho11, de So Paulo. O livro foi
reeditado em 1995 pela Fundao Cultural de Curitiba12. De qualquer forma, a escolha
de Carlos Rubens para a fatura da obra sugere a uma tentativa de promover e divulgar a
obra de Andersen para alm das fronteiras paranaenses, fazendo-a circular nos
principais centros do pas.
1.1 Andersen, Pai da Pintura Paranaense
A abertura do livro, que traa um breve panorama artstico do Brasil no final do
XIX, bastante elogiosa Misso Francesa e seus discpulos, aos incentivos de D.
10 Vtor Meirelles ganhou em 1853 como prmio da Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, uma viagem para a Europa. Tinha como mentor Arajo Porto-Alegre, diretor da Escola. Depois de um perodo em Roma, fixou-se em Paris onde pintou o quadro A primeira missa no Brasil, marco do romantismo brasilianista, inspirada em La premire messe em Kabylie, de Horace Vernet e na carta de Pero Vaz de Caminha. A obra foi a primeira de um artista brasileiro a ser exposta no Salo parisiense em 1861(ver: COLI, Jorge. A primeira missa no Brasil, de Vitor Meirelles. In: Nossa histria. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003. nmero 1, ano 1. pgina 18-22) 11 Coincidentemente, De Plcido e Silva, principal figura por trs da publicao do livro sobre Andersen, publica, em 1938 Histrias do Macambira, sob os auspcios da mesma editora. 12 A reedio se d em uma coleo chamada Farol do Saber, patrocinada pela Prefeitura Municipal de Curitiba em uma gesto marcadamente paranista, de Rafael Greca de Macedo, responsvel pelas comemoraes dos 300 anos da cidade. Da coleo constam outros heris regionalistas como Dario Velozo, Emiliano Perneta, Rocha Pombo, Nestor Vitor etc. Ainda nessa gesto ergueram-se monumentos de cunho regionalista em vrios locais do centro de Curitiba.
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Pedro II s artes plsticas e aos artistas estrangeiros que visitavam o pas. Marcando sua
predileo pela arte clssica e neoclssica do perodo monrquico, repudia a atuao dos
governos republicanos, aproveitando para criticar a indicao do diretor do recm-
criado Museu de Belas Artes, que no coube a nenhum dos grandes mestre nacionais.
Rubens enfatiza muito positivamente a formao clssica de Andersen, elogiando sua
virtude em resistir s turbulncias vanguardistas, que exigiam a proscrio da beleza na
arte.
Assim, dizia Rubens, se na capital federal a questo artstica j era complicada,
quem diria nos demais estados, como o Paran, que era um estado sem arte at a
chegada de Andersen13. A partir da comea o foi assim, numa tentativa insistente de
mostrar que desde criana possua inclinaes artsticas, que o menino tinha um dom
inato. A iluso retrospectiva do autor tambm localiza com preciso o momento da
trajetria de Andersen em que ele decidiu que seria pintor, durante uma viagem Itlia,
onde se encantou com as pinturas renascentistas. Segue com uma narrativa positivista e
apressada de fatos, datas e nomes dos principais eventos da sua vida, at o pintor
aportar no Paran.
A partir da o autor se dedica com mais calma, pois chega ao clmax do texto,
com a descrio romanceada da primeira viagem de Andersen Curitiba, como se
fossem dois amantes que, ao se conhecerem, sentem uma atrao fatal e imediata, que
unir para sempre o pintor e a terra das araucrias, que exerce sobre ele um domnio
que a poesia explica facilmente, e Andersen fica (...) Olhou as economias que eram
quase nada, refletiu e ficou (...) Ia encetar nova existncia, na nova ptria. como se
Andersen, um pouco como o argumento de Sartre, descrito por Bourdieu, tomasse tal
deciso como um ato livre e consciente de autodeterminao, uma escolha deliberada e
livremente pura14.
Assim, o pintor decide fixar residncia no estado pelo fascnio que sente pela
terra, pelas emoes despertadas por to bela natureza. A idia de predestinao, com
um forte apelo s emoes, funde-se com o paranismo atribudo ao pintor, que explica
sua permanncia e o desenvolvimento da sua obra na terra das araucrias: Andersen se
13 Como a arte paranaense no tinha um passado contra o qual se sublevar, era preciso criar uma origem para o estabelecimento de uma histria prpria. Apesar de reafirmar em Pequena Histria das Artes Plsticas no Brasil que Andersen seria o pai da pintura paranaense, o prprio Rubens diz que h quem cite Frederico Virmond, prussiano, miniaturista, chegado ao Paran em 1818; Jessie e Willi e James; Iria Corra, sua discpula e Irmina Guimares Mis. (RUBENS, Carlos. Pequena histria das artes plsticas no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. p. 388.) 14 BOURDIEU, op. cit., p. 215.
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faz brasileiro, se faz paranaense, e durante mais de trinta anos s o Paran irradia
diante dos seus olhos e pulsa no seu corao (...) seu pincel no saberia interpretar
outra natureza, reproduzir outra gente. O meio, muito sensvel s manifestaes
estticas, aguardava algum de vulto para aproveitar essa ddiva. Retomando a citao
que abre esse texto, diante de poucas atraes, restava aos paranistas esse
direcionamento do olhar para a natureza, como seu grande trunfo15.
Assim, Andersen configurado como um caso singular que, vencido pelo
meio, vincula-se de corpo e alma a terra e gente do Paran, e por isso tem
legitimidade para ser considerado o pai da pintura paranaense. Seu ecletismo
considerado outra singularidade, pois transitava bem entre vrios gneros; embora a
predileo pela paisagem seja enfatizada na interpretao de Rubens, fruto da linha
paranista da encomenda dessa obra.
Ao tratar das exposies de Andersen no Rio e em So Paulo, dos prmios que
recebeu, das reportagens elogiosas na imprensa, dos admiradores que cativou, Rubens
esfora-se para vincular o pintor a personalidades importantes, buscando informar sobre
o talento desse pintor na metrpole. Insere relatos de personagens que conheceram o
ateli de Andersen, e da magia que despertava, a fim de mostrar ao leitor que se trata de
um grande mestre, que merece o reconhecimento de todos. O fato de ter criado uma
escola e ensinado uma gerao de discpulos tambm entra na argumentao paranista,
visto como uma forma de retribuir os afetos da terra e da gente que o acolheu, uma
atitude desinteressada, jamais como um meio de sobrevivncia, atitude mundana
incompatvel com um missionrio das artes. O fato de ter vivido numa situao
financeira precria no entendido como uma falta de apoio e incentivo das elites
polticas locais, mas como mais uma prova do seu amor, afinal, sua fortuna sempre foi
o amor dos paranaenses.
1.2 Encomenda e fatura da obra
Dentre as principais figuras que contriburam para a fatura dessa biografia,
temos Valfrido Piloto, amigo desinteressado e dedicado do pintor, autor da segunda
obra aqui analisada, e quem forneceu a maioria das fontes utilizadas pelo crtico carioca.
15 Meio e raa eram elementos usados para a definio das identidades a partir do sculo XIX. Se por um lado leva o Brasil a se ver como invivel do ponto de vista civilizacional por ter um clima tropical e uma mistura de raas (que segundo os autores naturalistas era degenerativa), o Paran se vangloriava de ter um clima ameno e uma mistura de europeus.
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Mas somente no final que aparece a principal figura por trs da confeco do
livro: De Plcido e Silva16, figura importante na cena poltica e intelectual local,
advogado, jurista e jornalista, que poca redigia o principal jornal de Curitiba17. Ali
so fornecidas informaes sobre as relaes e alguns dos interesses em questo na
elaborao da biografia de Andersen. O prprio Carlos Rubens cita artigos da Gazeta do
Povo onde De Plcido e Silva comenta que o carioca um escritor e crtico de arte
muito bem visto nas rodas no Rio de Janeiro e que ele mesmo (Plcido) gostaria de
escrever sobre Andersen, mas que por no ter suficiente habilidade, buscou a ajuda de
Rubens, que diz: Seus recursos somente no seriam suficientes para realizar um
trabalho custoso e de certa influncia no meio da Ptria. Era preciso que houvesse
entre ns um trabalho de co-adjuvao solidarisante, afim de que o custeio de uma
obra notvel se fizesse.
Sabe-se que o jornalista advogado tinha uma grande estima por Alfredo
Andersen, e que possua um acervo considervel de quadros do pintor, que compunham
uma notvel pinacoteca, motivo que ele no evidencia nos artigos, mas que certamente
foi decisivo no seu empenho pela valorizao da sua obra, que no limite significaria o
aumento do valor da sua coleo18.
Num outro artigo de Plcido, intitulado Patrimnio inestimvel, o advogado
jornalista critica a falta de cuidado com o patrimnio intelectual e artstico,
especialmente no caso de Andersen. Que se fez at agora para perpetuar seu nome?
(...) H no Rio, um notvel critico de arte, conhecido por todos, o Sr. Carlos Rubens,
que possui em elaborao uma grandiosa produo sobre a vida, a arte e discpulos do
mestre. Era o caso do nosso Conselho Superior de Defesa Cultural relacionar-se como
ilustre escritor e auxiliar o aparecimento do trabalho, para que se realce, pelo Brasil
inteiro, a ao do professor Alfredo Andersen e a grandeza de sua arte. Pouco depois,
insiste A arte do mgico artista precisa ser divulgada. Sua ao, em proveito da nossa
cultura, no pode e nem deve ficar desconhecida, limitada que esta aos admiradores da
arte excelsa. H, na maravilhosa metrpole brasileira, dedicado admirador do
mestre. 16 Nasceu em Macei em 1892, e ainda jovem mudou-se para Curitiba. Foi aluno da primeira turma do curso de direito da UFPR, onde mais tarde foi professor. Alm de advogado e jornalista, fundou a Editora Guara em 1939. 17 A Gazeta do Povo foi fundada em janeiro de 1919. Plcido e Silva, que figura no primeiro nmero como secretrio, assumiu logo depois a direo do jornal, onde permaneceu at 1962. 18 Sua filha, a colunista social Juril De Plcido e Silva Carnasciali, detentora de uma coleo considervel de obras paranistas. Uma exposio no final de 2006 no Museu Alfredo Andersen reuniu parte do acervo da famlia Plcido e Silva, com 26 telas paranistas expostas .
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E o seu empenho toma propores ainda maiores. Plcido solicita, atravs de
seus contatos poltico, ao congresso paranaense que contribua com a publicao do
livro. No descobri se obteve sucesso, pois a publicao foi viabilizada pela Sociedade
Amigos do Livro e das Belas Artes, idealizada por Romrio Martins, que contou com o
apoio de De Plcido e Silva, Valfrido Piloto e Thorstein Andersen (filho do pintor).
Essas informaes evidenciam como as representaes dos artistas e dos escritores se
tornam mais claras quando relacionadas com o campo do poder. O livro sequer tenta
nublar as sujeies e solicitaes externas que atravessaram a sua fatura, assim como a
busca por interesses ideais, materiais e de prestgio desses grupos.
2. O Acontecimento Andersen, de Valfrido Piloto
Basta observar o ttulo dado ao livro, para se ter idia do tom de
excepcionalidade e singularidade atribudo ao pintor noruegus radicado no Paran. O
acontecimento Andersen, publicado em 1960, em meio s comemoraes do centenrio
do nascimento do pintor, foi escrito por Valfrido Piloto19, influente intelectual paranista,
com vasta produo sobre o meio cultural local. O titulo d a idia de uma apario, de
algo que cai do cu, quase que um milagre. A inteno aqui analisar sociologicamente
este construto, mostrando a importncia de se entender o contexto de produo dessa
obra, a posio do produtor naquele espao social e sua interpretao da trajetria de
Andersen como paranista, e como todas essas questes esto vinculadas aos interesses
ideais e materiais do seu grupo. Ao fazer isso, estou sugerindo que sua trajetria poder
ser inteligvel por outros vieses, e que a viso romantizada da sua vida prescinde de
elementos fundamentais para uma compreenso mais matizada da sua experincia e da
sua produo artstica.
O autor vale-se de uma linguagem muitas vezes rebuscada, quimrica, que
infunde de encantamento a trajetria do pintor noruegus. Embora seja verdadeiro que
Piloto mencione as dificuldades de Andersen frente ao poder pblico, o tom da
biografia romanesco e destitudo de constries sociais, presses, lutas e
ambivalncias. 19 Nascido em Dorizon- PR em 1903, bacharelou-se em Direito na UFPR em 1932. Foi delegado de policia, dentre outras funes dentro da Secretaria de Segurana. Teve vida intelectual intensa, atuando como jornalista, escritor, poeta, ensasta, historigrafo. Colaborou durante dcadas na Gazeta do Povo, jornal de grande circulao em Curitiba. Em 1953-54 foi secretrio da Comisso dos Festejos do Centenrio do Paran. Escreveu cerca de 50 obras, dentre elas, O Acontecimento Andersen (1960), A estirpe apostolar de Dario Vellozo (1990), Paranistas (1938), Construamos com verdade a historia do Paran(1951), Rocha Pombo (1953), Quando o Paran se levantou como uma nao etc. Morreu em Matinhos em 2006.
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Ao explicitar a inteno do livro, que tinha carter de consagrao definitiva,
face s novas geraes, do relevante papel do Pai da Pintura Paranaense, o autor d a
primeira pista para o desvelamento dos interesses contidos na sua empreitada. Puxando
os fios dessa inteno manifesta, fui chegando a outras que se vinculam a elas, e que
esto aparentemente ocultas, e percebendo como as obras fornecem dados sobre si
mesmas e sobre o universo no qual se situam. Os autores acabam descrevendo sua
prpria posio no universo, embora ignorem o principio geral da estrutura que
descrevem, como veremos a seguir.
2.1 Breve contexto da sua produo
da dcada de 1940 a criao das principais instituies artsticas paranaenses:
a Escola de Musica e Belas Artes (1948) e o Salo Paranaense de Belas Artes (1944),
controlados pela intelectualidade tradicional, ou paranista, que lutou por tais
institucionalizaes, e que eram avessos s formas modernas de arte. A obra de
Andersen e dos seus discpulos diretos e indiretos perdurava como a principal
referncia, mas se defrontava com algumas contestaes.
Nesse contexto, a revista O Joaquim20, comandada por Dalton Trevisan21, foi um
divisor de guas. A revista possua dois eixos de discusso sobre cultura. O primeiro,
local, visava combater o Paranismo e o outro, nacional, refletia os anseios de uma maior
participao de artistas e intelectuais nas questes sociais22. No seu segundo ano,
declara como inimigos e fatores de atraso para o estado as figuras de Emiliano Perneta e
Alfredo Andersen, principais representantes paranistas na rea artstica, contrapondo s
suas obras a idia de uma arte universal e moderna, encarnadas pelo escritor Dalton
Trevisan e pelo pintor Guido Viaro23. O paranismo era visto como culpado pela
20 O nome, segundo Dalton, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicao, que circulou entre 1946 e 1948, tornou-se porta-voz de uma gerao de escritores, crticos e poetas. Reuniu ensaios assinados por Antonio Cndido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas at ento inditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade. A revista tambm trazia tradues de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Guido Viaro, Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres. A linha era modernista e de crtica aos tradicionalismos. 21 Nascido em 1925, o contista Dalton Jrson Trevisan uma figura enigmtica da cena cultural paranaense. Formado em direito pela UFPR, estreou em 1945 com Sonata ao Luar. Em 1959, Dalton Trevisan lanou o livro "Novelas Nada Exemplares" e ganhou o Prmio Jabuti da Cmara Brasileira do Livro. Publicou tambm "Cemitrio de Elefantes" (1964), "Noites de Amor em Granada" , "Morte na Praa e Vampiro de Curitiba (1965), dentre vrios outros. 22 Sobre o assunto, ver: OLIVEIRA, Luis Claudio Soares. Joaquim contra o Paranismo. Dissertao de mestrado em Letras, UFPR, 2005. 23 Nascido em Vneto, na Itlia, em 1897, o desenhista, gravurista e escultor Guido Pellegrino Viaro estudou em Veneza e Bologna. Numa viagem ao Brasil, conhece sua futura esposa em Curitiba e decide ficar.
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mentalidade reacionria da cultura local24 tanto que, num artigo intitulado Viaro
Hlas... e abaixo Andersen, Trevisan declarava abertamente a importncia de se
exorcizar a sombra de Alfredo Andersen, colocando Viaro como contraponto: J se
disse que no se pode exorcizar Viaro sem desmerecer Andersen. Pois este o ponto
preciso: no se pode25
A partir da dcada de 1950, tentativas de superao do provincianismo local
comeam a se configurar, e discusses sobre cultura tradicional e moderna ganham
espao. Figuras de peso como a do artista Poty Lazzarotto26 tomam posies no sentido
de desbancar o conservantismo artstico paranaense; artistas modernistas se
organizavam em pequenos grupos, com algum apoio oficial, e idias artsticas menos
tradicionais foram lentamente ganhando fora27. Esses embates tomam vulto no final
dos anos 1950, nos Sales de Belas Artes, nas pginas dos jornais e revistas locais.
Essa era a atmosfera poca das comemoraes do centenrio de nascimento de
Alfredo Andersen, ocasio oportuna para as elites paranistas ratificarem a importncia
do pai da pintura paranaense28. O meio artstico e intelectual do Paran se encontrava
num debate arquetpico entre acadmicos versus modernos, e transformaes estticas e
ideolgicas no campo das artes plsticas estavam se delineando com cada vez mais
fora. Nesse momento, as ortodoxias se valem das comemoraes dos cem anos do
nascimento de Alfredo Andersen para tentar manter sua hegemonia local. o que a
biografia de Piloto tentar fazer.
24 O prprio Valfrido Piloto foi satirizado na coluna Oh!... as idias da provncia, rebatendo com criticas na imprensa a revista e seus mentores, por desrespeitar e diminuir as tradies paranaenses. OLIVEIRA, op. cit. 25 TREVISAN, Dalton. Viaro Hlas... e abaixo Andersen. In: Joaquim. Curitiba, n. 7, dez 1946, p. 10. 26 Curitibano, nascido em 1924, Napoleo Potyguara Lazzarotto formou-se na Escola Nacional de Belas Artes em 1945. Na seqncia, recebeu uma bolsa para estudar em Paris entre 1946 e 1947. Atuou como desenhista, gravurista, ceramista e muralista. 27 somente nas dcadas de 1950 e 1960 que certo iderio modernista, a princpio quase inexistente, implantar-se-ia definitivamente no cenrio artstico paranaense. Ver: FREITAS, Artur. A consolidao do moderno na histria da arte no Paran: anos 1950 e 1960. In: Revista de Historia Regional 8 (2): 87-124, Inverno 2003. 28 As comemoraes do centenrio do artista envolveram uma srie de atividades e homenagens: Missa na Catedral celebrada pelo arcebispo da cidade, romaria ao tmulo do artista e inaugurao de uma placa de bronze com discurso de Teodoro De Bona, inaugurao da Praa Alfredo Andersen e do monumento de Erbo Stenzel, conferncia na Biblioteca Pblica do crtico Andrade Muricy sobre o Pai da Pintura Paranaense, na mesma biblioteca inaugurao de uma exposio retrospectiva, doao Noruega de uma duplicata do monumento para ser colocada em Cristiansand, confeco do lbum Alfredo Andersen por Luis Piloto e Vasco Jos Taborda, confeco de uma medalha comemorativa gravada pelo artista Jos Pen; distribuio de folhetos sobre Andersen nas escolas, criao do premio Alfredo Andersen, divulgao na imprensa sobre a vida e obra do artista... Cf.: PILOTO, Valfrido. O acontecimento Andersen. Curitiba: Editora Mundial, 1960
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2.2 Andersen: karma e misso no Paran.
O autor abre o texto enunciando sua perspectiva de anlise da vida de Andersen:
a doutrina do karma. Desta, ele retira essencialmente a idia de predestinao, e de que
a chegada de Andersen ao Paran veio para anunciar a sua misso, que ele cumpriu de
forma desinteressada e altrusta. Mais que isso, Alfredo Andersen e o Paran fizeram
um pacto espiritual, de caminharem juntos, rumo ao desenvolvimento da civilizao
paranaense. A lei do karma serve para Piloto explicar a inevitabilidade da misso de
Andersen, que era de ordem espiritual, superior. Mas h tambm o outro lado do
contrato, que envolve o povo paranaense, que tambm visto como portador de um
karma coletivo, predestinado e merecedor dos beneficio trazidos pelo pintor noruegus.
Assim, Piloto cria um sentido para a vida de Andersen, que seria o amor ao
Paran, sua terra e sua gente, infundindo-lhe uma lgica (paranista) a partir da sua
perspectiva, e no da do pintor, deixando de lado questes mundanas relativas ao seu
enraizamento social, hesitaes e ambivalncias presentes na sua trajetria. O que no
quer dizer que esse sentido atribudo vida do pintor no possua uma lgica prpria e
no sirva aos interesses de classe e prestigio do seu grupo.
Na perspectiva de Piloto, Andersen era um missionrio que abriu mo da sua
ptria e da fama compensadora, seguindo fielmente sua predestinao. Como numa lei
de causa e efeito perfeita, Andersen cumpre a sua misso criando com maestria a
pintura paranaense, atividade pautada pelo mais profundo desinteresse, pois nunca
desejou mais do que a estima do povo.
2.3 A objetivao das posies e dos pontos de vista
Embora se trate de uma obra sobre Alfredo Andersen, possvel apreender em
diversos trechos do livro as posies e pontos de vista do autor e do seu grupo. Logo no
inicio, Piloto dialoga com o livro de Rubens, ora evidenciando a contribuio dos
paranistas para a sua feitura, ora sutilmente colocando o seu trabalho como mais
valioso, afinal, Carlos Rubens no apreciou, jamais, bem de perto, a vida de
Andersen. Outras evidncias importantes se encontram nos relatos pessoais, como
quando conta da sua relao com Andersen, de quem se aproximou pela amizade que
seu pai nutria com o pintor, que era um amigo compreensivo e desinteressado. Parte do
livro resulta das conversas que tinha com Andersen nos domingos pela manh, no seu
ateli. Comenta tambm que, aps a morte de seu pai, o pintor lhes surpreendeu com
uma belssima homenagem: pintou-lhe um retrato pstumo, com uma bela dedicatria, o
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que deixou os filhos muito emocionados. E por tais vnculos afetivos, diz ser o seu
trabalho uma oferenda, uma homenagem que executa com muita emoo. Dedica o livro
aos irmos, pois todos j escreveram exaltando Andersen.
Outra dimenso objetivada refere-se ao ponto de vista dos paranistas, ao qual o
texto se prende, e que fica mais evidente no item sobre a construo do noruegus
paranista. Em diversos momentos, o autor se coloca como participante, utilizando
freqentemente o pronome ns, deixando claro que se trata de um grupo de interessados
na consagrao de Alfredo Andersen: Esta pena e os que a amparam com as
cooperaes colhidas, chegam, assim, ao termo de um esboo do perfil de Alfredo
Andersen. Isso fica visvel tambm nos relatos de amigos e admiradores do pintor,
tratados com visvel familiaridade.
Por outro lado, o tom de crtica proveniente dos grupos de artistas e intelectuais
demandando maior apoio estatal, a criao e a ampliao de instituies que os
acolhessem manifesto29. E o caso Andersen um excelente pretexto: como, um
artista europeu supercivilizado, apenas alguns lhe deram guarida ? Fato que atesta a
falta de tino dos polticos que no fizeram nada por ele, afinal os homens pblicos se
amarram ao erro. Assim, a constante crtica aos polticos em geral parece ter muito
mais a ver com uma posio de demanda desses grupos que estavam perdendo a sua
posio hegemnica na cena local, e que almejavam serem financiados pelo aparato
estatal30, do que com uma compaixo pelo destino do artista.
Quando da exposio retrospectiva do centenrio de nascimento de Andersen,
Piloto censura o governo por ter comprado poucos quadros do pintor, e mostra-se
incomodado com o fato das obras estarem cada vez mais dispersas em acervos
particulares. O incmodo do autor pelo fato do governo no ser o detentor majoritrio
daquele acervo pode ser lido como um indcio da perda de prestgio que se configurava
para o seu grupo. Segundo Bourdieu, as revelaes da denuncia tm um ponto cego,
que no mais do que o ponto (de vista) a partir do qual so feitas (...)31, ou seja,
29 O prprio Piloto, que tinha produes intelectuais desde a juventude, foi scio fundador do Centro de Letras do Paran etc., foi funcionrio da Secretaria de Segurana do Estado at aposentar-se, aos 70 anos de idade, em 1973, o que indica a baixa institucionalizao do campo, e ajuda a entender as demandas e criticas ao poder poltico presentes em seu discurso. 30 Vale lembrar que no incio do sculo XX o estado empenhou-se em custear viagens de estudo para o exterior de diversos artistas paranistas, assim como financiou exposies etc., afinal, o projeto paranista necessitava de investimentos na rea cultural como forma de viabilizar a construo da identidade regional. 31 BOURDIEU, op. cit.; p. 219.
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falar da falta de financiamento para o projeto anderseniano contar das dificuldades
pelas quais o seu grupo passava frente falta de apoio poltico.
Ainda comentando as exposies efetuadas aps a morte de Andersen, o autor
explicita sua outra motivao, presente j em Carlos Rubens, que a da ampliao do
reconhecimento artstico de Andersen e do valor do povo do Paran, onde tambm esta
presente certo rancor, um pedido de aceitao, quando o organizador de uma das
exposies diz que o Brasil no apenas o Rio de Janeiro e So Paulo, e que o Paran
quer mostrar o valor dos seus artistas. Segundo Piloto, o governo financiou parte da
mostra dos artistas paranaenses na capital federal em 1944, esperando uma grande
repercusso do evento pelo pas.
2.4 Ausncias que falam
Uma vez que o silncio sobre certos eventos ou temticas tambm dizem dos
interesses envolvidos na produo simblica dos grupos, foi possvel observar alguns
exemplos expressivos. O primeiro que Piloto, quando menciona o famigerado curso
noturno que Andersen ministrou no inicio da sua trajetria em Curitiba, na Escola de
Artes e Ofcios, no menciona que se tratava de aulas para operrios, e de todo o
envolvimento que Andersen teve na difuso desse programa e com a causa operria.
Sabe-se que a idia era mal vista pelas elites do perodo, e que essa concepo de ensino
da arte para as classes populares no era exatamente o que os paranistas que construram
a idia de pai da pintura paranaense tinham em mente ao difundir as virtudes do seu
trabalho.
Uma carncia incrvel nos dois textos a da sua esposa Ana Andersen, com que
foi casado a vida toda e teve quatro filhos. Piloto, que se dizia to prximo de Andersen,
certamente a conhecia. Essa falta no poderia se vincular a uma inabilidade ou falta de
percepo de gnero, pois o autor faz um longo e elogioso comentrio sobre as alunas
de Andersen, essas, oriundas das elites locais. Fica evidenciada pouca ou nenhuma
importncia de Ana na viso de Piloto, quem sabe por ter sido uma mulher muito
simples, uma descendente indgena num contexto de glorificao do modo de vida
europeu e de consolidao das elites luso-brasileiras, alis, todas bastante sectrias em
questes raciais. Basta observar o catlogo de pinturas de Andersen para perceber a
centralidade que ela teve no desenvolvimento do seu trabalho, uma espcie de chave de
acesso a um Brasil mais popular e original. De forma geral, as biografias no trazem
tona conflitos e disputas nos quais o pintor esteve envolvido, as precrias condies
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financeiras da sua existncia e as dificuldades que tinham para manter sua famlia em
Curitiba.
2.5 A construo do noruegus paranista
Fruto dos debates do perodo, em que as identidades regionais estavam em jogo,
era preciso articular esse importante pintor estrangeiro com o projeto paranista, soluo
encontrada atravs de um apelo aos sentimentos, tornando-se constante a representao
de Andersen como pintor noruegus de nascimento, mas de corao e alma paranaenses,
por toda a sua vida dedicada a essa terra. O nrdico foi sendo um araucariano que, por
vezes, com a bagagem da saudades, ia visitar as suas origens- mas apenas visit-las.
E assim se inicia a paranizao de Andersen, que por ter sido um habilidoso intrprete
das belezas locais, criou a pintura paranaense. a paisagem, a natureza que o prende,
com nfase na rvore solene, o pinheiro, presena que lhe desperta sentimentos
intensos e irracionais, atingindo sua alma e levando-o ao cumprimento da sua misso32.
A pintura paranaense , segundo esse argumento, a pintura da natureza do
Paran (e no do seu povo). A idia de pai da pintura paranaense que, alis, aparece
com freqncia entre aspas, deve-se ao fato dele ter sido o primeiro a pintar os temas
regionais do estado33. Por isso, o argumento que explica esse pai noruegus da pintura
paranaense o seu amor pelo Paran, o que leva o grupo dos paranistas a defenderem
com tanta veemncia a sua obra34. A trajetria de Andersen , pois, um exemplo
perfeito desse paranismo, por ter desenvolvido uma vasta obra tematizando a natureza
local, no necessariamente por sentir todo esse amor, mas certamente porque era o que
sabia fazer.
Consideraes finais
No surpreendente que trabalhos como esses analisados, biografias quase que
ficcionadas, reproduzam a crena da arte pela arte, fruto do amor e desvinculada das
32 Se observarmos quantitativamente a produo paisagstica de Andersen, veremos que o pinheiro estava longe de ser seu tema predileto. Ele aparece sim em diversas telas, como elementos que compunham a paisagem local, bastante diferente do tratamento dado por Lange de Morretes, por exemplo. 33 O que no verdade, pois antes dele uma srie de pintores itinerantes registrou a cena local. Debret, por exemplo, pintou vrios quadros no Paran, a maioria em Paranagu e alguns no planalto, onde figuram pinheiros. 34 Em 1940, inaugurada um baixo relevo do rosto de Andersen, executado Joo Turim, para o qual o pintor posara em 1934, colocado o bronze sobre uma pea estilizada com pinhes. Joo Turin foi um dos principais artistas do movimento paranista, que estilizou a pinha e o pinheiro, e essa obra, que figura em frente Casa Alfredo Andersen, pode ser lido como um ato simblico de filiao, de reconhecimento de Andersen como pai.
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praticas sociais, desde que sejam entendidos dentro do contexto de suas produes e
captados os interesses em jogo na produo desses sentidos. O forte empenho na
manuteno de uma determinada memria e na busca por aumentar o prestgio de
Andersen estava vinculado disputas por posies no meio cultural local, e portanto no
campo do poder, assim como ao projeto paranista de engrandecimento e valorizao dos
seus produtos no campo nacional.
Em outras palavras, o que esta em jogo a produo de uma crena, de um valor
socialmente reconhecido: O produtor do valor da obra de arte no o artista, mas o campo de produo enquanto
universo de crena que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crena
no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte s existe enquanto objeto
simblico dotado de valor se conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituda
como obra de arte por espectadores dotados da disposio e da competncia estticas
necessrias para a conhecer e reconhecer como tal, a cincia das obras tem por objeto no
apenas a produo material da obra, mas tambm a produo do valor da obra ou, o que
d no mesmo, da crena no valor da obra35
Andersen foi socialmente institudo como um pai, e aqui busquei esboar a
produo do valor da sua obra pelas elites paranistas, afinal, as artes plsticas foram
fundamentais para o desenvolvimento do paranismo, e a figura de Andersen foi, sem
dvida, central para a experincia daquela gerao. O problema que, para produzir
esse noruegus paranista, foi preciso apagar suas origens norueguesas, suas escolhas
amorosas, sua frustraes, seus sonhos, sua viso do Brasil popular e o sentido que ele
encontrou na sua fixao no Paran. Logo, acredito que esse exerccio analtico abre
caminhos diferentes para outra compreenso da trajetria de Alfredo Andersen.
35 BOURDIEU, op. cit.; p. 259.