CORTÁZAR, Julio. Obra Crítica Vol. I

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    Obra crtica/1

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    DO AUTORProsa do observatrio, So Paulo, Perspectiva, 1974.Valise de cronpio, So Paulo, Perspectiva, 1974.Algum que anda por ai, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.Orientao dos gatos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

    Um tal Lucas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.Os prmios, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1983.Fora de hora, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.O livro de Manuel, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.Bestirio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.Octaedro, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1986.Nicargua to violentamente doce, So Paulo, Brasiliense, 1987.As armas secretas: contos, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1994.Histrias de cronpios e de famas, Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 1994.

    O jogo da amarelinha, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,1994.Todos os fogos o fogo, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1994.Adeus, Robinson e outras peas curtas, Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 1997.O exame final, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, s.d.Dirio de Andres Fava, Rio de Janeiro, Jos Olympio, s.d.

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    Jlio Cortzar

    Obra crtica/1

    ORGANIZAO DESal Yurkievich

    TRADUO DE

    Paulina Wacht e Ari Roitman

    Rio de Janeiro

    1998

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    COPYRIGHT 1947, Jlio Cortzar e herdeiros de Jlio Cortzar

    TTULO ORIGINAL ESPANHOLObra critica/1

    CAPAEvelyn Grumach

    PROJETO GRFICOEvelyn Grumach e Joo de Souza Leite

    PREPARAO DE ORIGINAISNerval Mendes Gonalves

    EDITORAO ELETRNICAAna Sofia Mariz

    CIP - BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DE EDITORES DE LIVROS, RJ

    Cortzar, Jlio, 1914-1984C854o Obra crtica, volume 1 / Jlio Cortzar; edio de Sal Yurkievich;

    traduo Paulina Wacht e Ari Roitman. - Rio de Janeiro :Civilizao Brasileira, 1998112p.

    Traduo de: Obra crtica, 1

    ISBN 85-200-0471-7

    1. Crtica. I. Yurkievich, Sal. II. Ttulo.

    98-1272. CDD 801.95

    CDU 82.09

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso departes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.

    Direitos desta edio adquiridos pela BCD Unio de Editoras S.A.Av. Rio Branco 9 9/20 andar, 20040-004, Rio de Janeiro RJ, BrasilTelefone (021)263-2082, Fax / Vendas (021) 263-4606

    PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL:Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ 2022-970

    Impresso no Brasil1998

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    Esta coleo de textos crticos de Jlio Cortzar, organizada em trsvolumes, coordenada por um trio de reconhecidos especialistas,ligados pessoalmente a Cortzar por um vnculo de conhecimento eamizade. So eles, pela ordem de sucesso dos volumes: SalYurkievich, que foi encarregado da edio de Teoria do tnel(1947),Jaime Alazraki, que reuniu a obra crtica anterior a O jogo daamarelinha (1963), e Sal Sosnowski, que compilou a obra crtica

    posterior a O jogo da amarelinha. Os trs volumes so prologados porrespectivas introdues, a cargo do responsvel por sua edio.

    Jlio Cortzar, ao mesmo tempo em que escrevia sua obra literria,produziu um considervel conjunto de textos crticos de inegvel valortanto por sua acuidade interpretativa como pela agilidade de sua prosa.Tais escritos constituem um complemento imprescindvel daqueles

    propriamente literrios, porque explicitam as concepes e os valoresque regem a gnese da literatura cortazariana. Permitem completar afigura de Cortzar, recuperar outras facetas desse maravilhoso poliedroque sua obra ntegra, conhecer melhor o homem que estas pginascondensam inteiramente.

    Uns poucos textos crticos foram recolhidos por Cortzar emalguns de seus livros, comoA volta ao dia em oitenta mundos, ltimoround ou Territrios. A maior parte permaneceu, com sua morte,dispersa em publicaes jornalsticas. Por outro lado, entre osmanuscritos inditos encontrava-se Teoria do tnel, livro em queCortzar examina as orientaes do romance moderno, desde a novela

    burguesa, a do mundo privado e do foro ntimo, desde o romanceromntico at o existencialista. Essa reviso histrica lhe serve para

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    fundamentar suas prprias opes, situar-se em relao s tendnciasque considera mais avanadas e enunciar seu programa romanesco

    pessoal. Postula o amlgama do surrealismo com o existencialismo, a

    fuso do potico com o narrativo como confluncia que permita aexpresso de todas as possibilidades humanas, obter um romance emque o homem se reencontre com seu reino. dessa maneira que eleexplica o projeto que precede e preside a modelagem de todos os seusromances, e que ir realizar cabalmente em O jogo da amarelinha.Teoria do tnelconstitui, dentro do processo criativo de Cortzar, umlivro de grande importncia: porque explicita e justifica a potica queest implcita em sua fico e por seu carter preliminar, porque

    mostra que a prtica do gnero em Cortzar precedida por umaminuciosa formulao terica. Grande parte dessa bagagem reflexivaser depois incorporada a O jogo da amarelinha.

    O jogo da amarelinha a linha divisria entre os outros doisvolumes de obra crtica de Jlio Cortzar. Ambos se propem asuperar a dificuldade e a desordem ocasionadas pela disperso dostextos em publicaes muito diversas e distantes. A compilao inicial,a cargo de Jaime Alazraki, rene a produo anterior a O jogo daamarelinha, a partir da primeira resenha crtica publicada por Cortzarna inencontrvel revista Cabalgata. Com um conhecimento exaustivoda bibliografia cortazariana, Alazraki soube exumar uma grandequantidade de textos quase desconhecidos que prenunciam a

    personalidade literria de Cortzar e prefiguram sua trajetria. Oterceiro volume da trilogia crtica foi preparado e prologado por SalSosnowski, outro reconhecido especialista em Cortzar, e compreendeuma seleo de textos posteriores a O jogo da amarelinha. A maioriadeles no foi recolhida por Cortzar em seus livros. Esses textos nostransmitem vividamente as concepes e convices tanto estticasquanto polticas de um escritor preocupado, acima de tudo, pelodestino do homem.

    SAL YURKIEVICH

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    Obra crtica/1*

    * Nota do digitalizador: A numerao de pginas aqui se refere edio

    original, que se encontra inserida entre colchetes no texto.

    Entende-se que o texto que est antes da numerao entre colchetes o que pertencequela pgina e o texto que est aps a numerao pertence pgina seguinte.

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    Sumrio

    UM ENCONTRO DO HOMEM COM SEU REINO 11

    Teoria do tnel 25

    CAPTULO I

    A crise do culto do Livro 27

    1.O LIVRO, INSTRUMENTO ESPIRITUAL29

    2.O CONFORMISTA E O REBELDE 35

    3.VOCAO E RECURSO 38

    4.CAVALO DE TRIA 42

    5.TEORIA DO TNEL 46

    6.AS ETAPAS DO ROMANCE 51

    CAPTULO II 57

    1.QUATRO DCADAS DO SCULO 59

    2.UMA COBAIA: O ROMANCE 63

    3.ETOCLES E POLINICES 66

    4.FILIAO 70

    5.O CONDE E O VAGABUNDO 73

    6.SURREALISMO 76

    7.BIFURCAO DO COMPROMISSO 82

    8.EXISTENCIALISMO 87

    9.APS A AO DAS FORMAS, AS FORMAS DA AO 94

    10.WLADIMIR WEIDL, OU O RETORNO DO SILOGISMO 96

    11.HUMANISMO MGICO E HERICO 100

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    UM ENCONTRO DO HOMEM COM SEU REINO

    Jlio Cortzar redige seu Teoria do tnel entre o vero e a primaverabonaerense de 1947, enquanto trabalhava como secretrio da CmaraArgentina do Livro. Durante esse mesmo perodo compe a maior partedos relatos que iro integrarBestirio, sua segunda compilao de contos(a primeira, titulada La otra orilla, permanece indita). Pouco antes,Cortzar havia renunciado a seu cargo de professor na Universidade deCuyo, onde ocupou durante dois anos 1944 e 1945 a ctedra deliteratura francesa. Este ponto duplamente significativo. Por um lado,revela uma atitude de autonomia tica e de defesa da liberdade de

    pensamento diante de um poder governamental que a avassala,mostrando na prtica uma conscincia comunitria que a Teoria do tnelir realar no plano reflexivo; por outro lado, revela uma aplicao

    pedaggica cujo percurso se detecta neste extenso trabalho explicativo.Alm do que possui de autodefinio literria, de enunciao da potica

    prpria, Teoria do tnel em parte presumo um desprendimentodesse ensino que Cortzar ministrou em Mendoza. Pressuponho queuma boa dose do contedo provm das notas preparatrias de seuscursos. Essa teoria tem ainda algo de estudo monogrfico; por isso se

    subtitula "Notas para uma localizao do surrealismo e doexistencialismo". A palavra "localizao" no s indica o propsito

    principal situar as duas tendncias a que Cortzar se filia dentro docontexto da literatura moderna , mas tambm ganha o sentido de

    posicionamento pessoal. Alm de seu carter de pesquisa ou exame dasorientaes do romance, Teoria do tnel enuncia o prprio programaromanesco, postula a potica que [Pgina 11] desde o princpio

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    desde Divertimento (1949) ir reger a fico de Jlio Cortzar.Formula o projeto que, aplicado a trs tentativas prvias, culmina quinzeanos depois em O jogo da amarelinha, a quarta investida. Consiste

    simultaneamente na anlise gentica de um novo modelo de romance enuma argumentao a seu favor. Possui a dupla condio de crticaanaltica e de manifesto literrio. Tem aquele carter potencial, projetivoe programtico, de tomada de posio, o lado condenatrio,cominatrio, proselitista, prprio da enunciao de manifesto. Preconizauma transformao radical dos modos romanescos, recapitula a histriarecente do gnero e a desqualifica para exigir a instaurao de uma estticatransgressiva, reordena ou remodela o passado em funo de proposies

    inovadoras e adota uma enunciao s vezes veemente, compulsiva, comum qu de imperativo categrico. O locutor desse pronunciamento nohesita e quando se entusiasma contundente. Sem dvida, suaargumentao apresenta as caractersticas de um manifesto literrio.Desenha uma concepo literria que prope, em ultima instncia,liquidar a literatura.

    Cortzar subordina a esttica (ou melhor, a arte verbal) a umapretenso que a transcende, colocando-a a servio de uma busca integraldo homem. Proclama a rebelio da linguagem potica contra aenunciativa, que no entanto predomina em seu Teoria do tnel;considera o escritor como inimigo do gramtico; patrocina uma poticaantropolgica ou uma antropologia potica que faa da palavra a instnciamanifestadora da totalidade do homem. Aspira j quela mostrao queem O jogo da amarelinha vai chamar de "antropofania". Serve-se dosurrealismo e do existencialismo conjugados para fundar (como predicao prprio Jean-Paul Sartre) um novo humanismo que busque o plenoexerccio de todas as faculdades e possibilidades humanas.

    Tal interseo entre surrealismo e existencialismo , na Buenos Airesde 1947, um sintoma de ntida atualidade. Reflete bem o momentocultural em que Teoria do tnel concebido. Esse cruzamento detendncias remete a certa moldura esttica e gnosiolgica, indica ohorizonte de expectativas que promovem essa inquisio e vindicao doromance. O surrealismo tem seu auge em Buenos Aires no imediato ps-guerra, [Pgina 12] perodo em que surgem adeptos evidentes,

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    confessos dessa doutrina, em que se organizam grupos e se publicamrevistas de franca filiao surrealista. Cortzar coincide com eles masno se incorpora ao conclave; considera que o surrealismo reativo dos

    anos 30, j domesticado, havia se transformado em escola e seintroduzira no redil literrio. Tambm na mesma poca comea apropagar-se a filosofia existencialista, principalmente a de procednciafrancesa. Atenta a todas as novidades metropolitanas, a revista Sur, naqual Cortzar colabora, contribui para essa difuso. Publicam-se emBuenos Aires as primeiras tradues ao espanhol das obras de Sartre. Nonmero 16 da revista Cabalgata, de fevereiro de 1948, Cortzarcomenta A nusea, traduzido por Aurora Bernrdez, e publica uma

    resenha do livro de Len Chestov, Kierkegaard e a filosofia existencial.Tambm em 1948 aparece O tnel, de Ernesto Sbato, romance deinspirao existencialista e quase homnimo de Teoria do tnel. Essacoincidncia no ttulo no casual, muito embora difiram os sentidos queum e outro autor conferem ao smbolo do tnel. Sbato o conotanegativamente, como vida subsumida e confinada, ao passoque Cortzar o positiviza enquanto violncia que comprime os flancosda linguagem, que demole o bastio literrio para reconstru-loresumindo palavra os poderes subjugados.

    A epgrafe de Teoria do tnel prova o apego de Cortzar aoexistencialismo, principalmente o sartriano; antecipa seu desassossegoem relao condio humana, sujeita, num mundo desatinado, a umquestionamento radical. Cortzar se apropria dessa problemtica queconcerne situao do homem, sua atitude diante de si e dos outros.Essa passagem, extrada deAs moscas,preanuncia o propsito de fincar ese afincar no homem mesmo e, a partir de sua ipseidade desprovida desocorro divino e de finalismo extrnseco a ela, assumir nuamente,desesperada mas no desesperanosamente, a solido que lhe consubstanciai e a angstia que dela emana. A maneira sartriana,Cortzar exige como petio de princpio esse esclarecimento dohumano, essa despossesso fundamental a fim de procurar transcend-lona busca denodada de ser ainda mais em si e nos outros. Atranscendncia se situa no mesmo plano da existncia, opera como atodo existir. Existencialismo, aqui, [Pgina 13] implica um compromisso

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    liberador, remete ao homem privado das falsas investiduras e da ilusriapotestade que assume sua finitude, que afinca no constitutivo daexistncia, no contnuo constituir-se a si mesmo para

    legitimar sua humanidade, para encontrar a partir de si a livre participaonuma realidade que no cessa de se construir.Afirmando desde o incio sua filiao neo-romntica, Cortzar trava

    batalha contra a inviolabilidade da literatura, contra a auto-suficinciaesttica e contra o fetichismo do livro. Segundo ele, a literatura deve seruma expresso total do homem. preciso contravir a tendnciacentrpeta, solipsista e formalista do livro como objeto de arte. O livrovlido representa a personalidade integral do homem; acentua o

    primado do existente enquanto humano; o dirio de uma conscincia,manifestao consubstancial com o ser, veculo de valores queultrapassam o literrio. Desde seus comeos como escritor, Cortzar

    postula uma literatura rebelde que no se contente com singularizar-seestilisticamente, que no se deixe capturar pelas armadilhas do idioma,que no tolere ser circunscrita pelo concebvel e pelo representvelconvencionais. Desde o princpio, Cortzar preanuncia a postura anti-retrica prpria de O jogo da amarelinha, insiste na mxima implicao

    pessoal romance no de personagens mas de pessoas , persegueautenticidade e intensidade maiores. Quer assentar todo o seu ser naletra, anular toda mediao, abolir toda distncia. Despreza o gozoautotlico da forma perfeita, ao mesmo tempo que descarta qualquerdocncia ou messianismo. Exclui o sapiente, o cvico, o pedaggico.

    No pretende intervir a favor de qualquer ordem suprapessoal. Todamensagem literria deve ser transubstanciada pela subjetividade que amodela, embebendo-a de mesmidade pessoal "no h mensagem, hmensageiros e essa a mensagem, assim como o amor quem ama", irdizer no captulo 79 de O jogo da amarelinha , embora a escrita semostre afinal como um recurso para atingir o que est aqum ou alm dalngua, a realidade que as palavras mascaram.

    Ainda com escassa experincia de romancista, Cortzar comeaespeculando em torno de uma teoria romanesca simultaneamenterecapitulativa e operativa. Em seu Teoria do tnel aparece no s oiderio que [Pgina 14] depois ir expor em O jogo da amarelinha,

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    mas tambm um repertrio de expresses muito prprias que na pocaest embalando nos braos e uma bagagem pessoal de metforas comas quais ilustra suas concepes, como aquela farmacolgica do

    excipiente. O romance figura aqui como excipiente aucarado paraajudar a engolir o material extraliterrio, da mesma maneira que em Ojogo da amarelinha se converte em excipiente para fazer engolir umagnose. Tambm em Teoria do tnel surge o doppelgnger, quereaparece no captulo 56 de O jogo da amarelinha. Em ambos ostextos, esse germanismo alude noo de contrafigura, duplo ourplica e assinala um defeito. Em Teoria do tnel servepara condenaro romance egotista ou narcisista, essa limitao monolgica do autor

    que cria um personagem-espelho que o devolve a si mesmo sem poderchegar ao outro, sem atingir um estado compartilhado de conscincia.Desde o comeo, Cortzar se apresenta como "o inconformista",descontente com a literatura confinada s belas-artes que conforma ummbito prefigurado pelas estruturas da linguagem. A partir de ento,escrever ser para ele um instrumento de explorao global do vnculoentre pessoa e mundo. Uma apetncia, uma pujana extra ousupraliterria compele-o a uma busca que supera no s o literrio,mas tambm o lingstico. Escrever torna-se ento pr em jogorecursos de desvio, agresso, reverso e desbaratamento, para impedirque a linguagem imponha seu arbtrio, se interponha entre conscinciae mundo, entre apreenso e expresso. Diante da disjunoforma/fundo, opta por este ltimo procurando outorgar-lhe umaprofundidade abissal. Opta por uma literatura espeleolgica ousubmarina, por uma escrita sob o vulco, no recreativa e sim demonaca.Da seu apego a Lautramont e a Rimbaud, prosa incontinente,alucinada, limtrofe. Da que se proponha a captar, descentrada, exttica,agonicamente, o experiencial in extenso vivido como turbamulta, comodesajuste entre o subjetivo e o objetai, como descolocao do homem nomundo. E assim como um motor frentico move essa escrita de braada emergulho nticos, um motor utpico a impulsiona a superar a solidobuscando a ponte entre homem e homem, transmut-la em umasolidariedade que permita concitar a ordem do plenamente humano,aquela que concilia liberdade e comunidade. [Pgina 15]

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    O empreendimento romanesco de Cortzar comporta o desaforodo literrio, uma literatura fora de si. Para acometer essa tarefa dedescarrilhamento se baseia numa premissa a condio humana no se

    reduz ao esttico , numa convico a linguagem pode enunciarimediata e inteiramente o humano e num preceito a literatura temque se manifestar como o modo verbal de ser do homem. Para desaforarou desorbitar a escrita, Cortzar prope procederes diversos: descartar ainformao, desqualificada como saber conformado ou conformaoconvencional; despojar-se de todos os atavismos do homem de letras;tornar-se brbaro; empregar tticas de ataque contra o literrio parareconquistar destrutivamente a autonomia instrumental; exacerbar-se,

    excentrar-se, exorbitar-se; trocar o esttico pelo potico. Cortzarpropicia a contaminao potica que caracterizar sua prpria novelstica,a adoo pelo romance do temperamento e dos modos expressivos

    prprios da enunciao lrica. Da poesia adota no s o transido, oefusivo ou o visionrio, mas tambm a disposio versfera, a escanso, a

    prosdia e a rtmica, os efeitos aliterativos, as transferncias de sentido, asaturao metafrica. Esse cruzamento ou hibridao genrica produzum tipo especial de narrativa que Cortzar qualifica de poetista (Nerval,Henry James, Rilke, Kafka so para ele exemplos dessa tendncia).Marcado pela seduo verbal, pelas conexes inslitas, pelas apariessurpreendentes, o romance do poetista toma distncia do saber comum,abandona as situaes corriqueiras, se afasta do factvel, se rarefazsugestivamente, torna-se extraterritorial, se converte em catapulta para aalteridade.

    Com tais procedimentos pode-se acometer a operao do tnel,com ela se solapa (no sentido de infringir, desbaratar, menosprezar umanorma) ou se perfura a fortificao do literrio. Equiparado ao decertas filosofias as de sondagem ontolgica (Kierkegaard, Heidegger)

    , da mstica e da poesia, o efeito do tnel to radical que comprometeo modo verbal de ser do homem; "este avano em tnel", afirma Cortzar,"que se volta contra o verbal a partir do prprio verbo mas j num planoextraverbal (...) avana at a instaurao de uma atividade na qual oesttico se v substitudo pelo potico, a formulao mediatizadora pelaformulao aderente, a representao pela apresentao". [Pgina 16]

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    Cortzar busca instalar a novela em pleno plexo, na aorta do vivencial(metforas estas de penetrao apaixonada e mxima). Quer passar escrita com toda a carga existencial, sem prejuzo dessa totalidade queconsidera cmulo indivisvel, mas constata que suas urgncias vitais soincompatveis com o veculo verbal. No se resigna a ser retido ouparcelado pela formulao esttica do extra-esttico nem a traduzirdisquisitoriamente a imediatez que pulsa e pugna no vivenciado, quereivindica implantar-se com paixo equiparvel no romance. Comorecriar literariamente, ele se pergunta, personagens que no falam, e simvivem? Esta interrogao gera um programa: levar a linguagem ao seulimite, extrem-la, desafor-la, para que as possibilidades humanas maisprofundas possam se exercer. A fim de fundamentar este propsito,

    Cortzar empreende uma reviso histrica da literatura moderna na qualprivilegia o subversivo.

    Pelejando por essa linguagem de mxima implicao pessoal, quetranscende o verbal para virar totalidade humana, perfila a passagemdo romance burgus o romance individualista do mundo privado edo foro ntimo ao romntico o romance psicolgico que impe o

    predomnio do anmico sobre o ideolgico. Apesar da influnciasartriana, do agitado debate filosfico-poltico por volta de 1950, da

    prenhe conscincia daqueles anos de crise, da insistncia nocompromisso e na responsabilidade, Cortzar desqualifica o romancede idias que cometer mais tarde, nega que estas possam se constituirem motor narrativo; para ele, a impulso romanesca provm sempredos afetos. De Stendhal a Dostoievski, o romance acomete arepresentao do sentimento em situao (ou dos conflitossentimentais em ao). Esfora-se para adquirir mais sutileza eargcia, perspiccia e penetrao maiores na anlise da alma humana,

    mas padece a insuficincia dos meios verbais. Essa falha vai sercompensada por uma aliana entre duas tendncias, a poetista e aexistencialista, conjuno que capacita o romance para formular aovivo o mbito completo do homem.

    Cortzar historia com especial ateno o desenvolvimento da linhapoetista, do surgimento da prosa potica at a revoluo surrealista, deGaspard de la nuit, de Aloysius Bertrand, atNadja, de Andr Breton.[Pgina 17] Enfatiza sobretudo a capacidade reativa de duas obras: Os

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    cantos de Maldoror, do conde de Lautramont, e Uma temporada noinferno, de Arthur Rimbaud. Para Cortzar, ambas conseguem a fusocompleta entre romance e poema, convergncia que permite uma

    maneira absoluta de manifestao existencial. So ao mesmo tempomergulho na conscincia abissal e explorao da super-realidade,expandem portanto a capacidade apreensiva do homem, ao tempo quelhe permitem recuperar as dimenses perdidas. Lautramont "se deixafalar", exterioriza sem restringir uma fluncia ntima que d passagema todo o mbito vital do homem. O potico no nele um modo deexpresso existencial, mas o existencial em si, a prpria mesmidadehumana. Enquanto Lautramont, liberando o acesso ao surreal,

    desmantela a coeso da realidade racional (e do realismo racionalista),Rimbaud obtm uma participao existencial de tanta intensidade queliquida a linguagem enunciativa. Pratica uma transfuso potica que degolpe o situa no plano existencial absoluto, comunicvel apenas pormeio do mesmo cmulo de imagens que a existncia engendra emquem a vive.

    Para Cortzar, Os cantos de Maldoror e Uma temporada noinferno constituem auto-indagaes na realidade ltima do homem,so sua maneira modelos de romance autobiogrfico. Tm ao mesmotempo carter de memria ntima e de educao sentimental. notriaa sua influncia na novelstica do prprio Cortzar e principalmenteem O jogo da amarelinha. O jogo da amarelinha seu Saison enenfer, e o culto a Rimbaud condiciona por igual sua atitude de vida esua relao com a escrita, o afeto e o efeito que para Jlio so a mesmacoisa. Do ser ao verbo e no do verbo ao ser, eis o caminho que essasobras tutelares propem. Abolir os limites entre o narrativo e o potico

    provoca uma infuso lrica que gera um texto andrgino dotado dadupla propriedade ou potncia comunicativas: o romancepoema, chavede acesso ao humano global. Esse amlgama se vincula cosmovisosurrealista. O surrealismo para Cortzar tanto estro quanto janela(quer dizer, perspectiva) ou ato. Equiparado ao potico por excelncia,o surrealismo o modela e o apetrecha. No obstante, atribui-lhe um

    papel circunscrito na conformao romanesca porque sustenta que noh romance surrealista. A [Pgina 18] interveno do acaso, o

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    premonitrio, as coincidncias extraordinrias, o devaneio onrico, omgico, a aproximao ao fantstico componentes surrealistas infundem ao relato (que se constitui de acordo com seu regimeespecfico) as requeridas dimenses poticas. Elas dilatam o alcance doromance, ao mesmo tempo em que liberam outras chaves de acesso realidade.

    Mas Cortzar no se conforma com o poetismo, tambm aspiratransplantar para o romance a inquietao que o espicaa,

    principalmente a gnosiolgica e a tica. Teoria do tnel exerce umaprojeo filosfica baseada, como provam os filsofos invocados Plato, Kant, Kierkegaard, Sartre, Marcel etc. , numa verso

    preliminar. Cortzar concebe o romance como ato de conscincia,como auto-anlise, como explorao epistemolgica, quer torn-lo

    portador das interrogaes ltimas sobre o sentido e o destino, faz-loparticipar da dilucidao e da escolha de uma conduta. Quer dot-lo dacarga reflexiva, especulativa que voltaremos a encontrar em O jogo daamarelinha. Outorga-lhe tambm uma razo social; no a gregria oua viaria (duas palavras que reitera at transform-las em tiqueslxicos), no a individual nem a servil. Sabe que quando escreveacolhe, escolhe e projeta valores suprapessoais, sabe que com seustextos produz bens sociais. Eles lhe permitem superar sua solido,estabelecer com os outros o contato vlido que contribua para originaruma autntica comunidade.

    Escrever, para Cortzar, constitui uma tentativa de conquista (oucompreenso) do real. A boa literatura encarna para ele uma forma deao (no a ao das formas, e sim as formas da ao); da a escolha doexistencialismo como teortica de sua prxis romanesca. Oexistencialismo o incita a assumir sua precariedade, a se maravilhar de

    existir e a se assumir por inteiro, a encontrar por si mesmo a maneira departicipar de uma realidade que no cessa de se construir e de constitu-lo. O existencialismo o ajuda a no depender das essncias, a acentuar aprimazia da existncia e a no se deixar absorver pelas idias, a travar abatalha do homem na assuno crescente de ser. A existncia advmento antecipao de ser, futurao ou projeto nticos. A conscincia,fundida no real, torna-se intencionalidade que tem que se arranjar com[Pgina 19] o mundo e que busca eletivamente a inter-relao com os

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    outros. Esta posio existencial vai reger o comportamento de Cortzarfora e dentro da escrita. Esta concepo do existente, despojando-se defalsos fundamentos para privilegiar uma histria compartilhada que funda

    o comeo legtimo do homem, se aplica e se explica em O jogo daamarelinha. Horacio Oliveira seu atribulado porta-voz. Alter ego deCortzar, ele a diz porque a vivncia. Simultaneamente razo e desrazovital, essa problemtica que concerne mais a um inquirir do que a umsaber se imbrica na trama da subjetividade, se entrelaainextricavelmente com imagens, palpitaes, pulses, volies, se urdecom o querer e o afazer, se enreda mas no perde sua fora orientadora,aquela vetorialidade que d carter de destino s convices.

    O romance deve ser para Cortzar uma ao existencial que partedo homem para retornar ao homem tornando-o mais homem. Sua

    potica consiste antes numa maiutica que numa esttica; aspiraconjugar surrealismo (apreenso analgica, dimenso potica, "dirio deviagem ao paraso e notcia de extravio") com existencialismo (batalhaque o homem trava por si mesmo para se alcanar e estender uma pontesobre o hiato do eu ao tu ao ele) e culmina num humanismo que noreconhece limites possibilidade humana.

    Essa teoria de um dinamiteiro do literrio, que d preeminncia aoextra ou supra-esttico, preconiza uma ao subversiva prpria de uma

    postura vanguardista, partidria da antiarte, da antiforma, da culturaadversria ou contracultura revivificadora. Tal operao s pode se efetuardentro do propriamente literrio, concebido como uma pugna ou vaivmentre duas polaridades antagnicas, uma a da positividade convencional eoutra a da negatividade revolucionria. o que sucede com Cortzar,que durante uma dcada e meia, o perodo que separa Teoria do tnel deO jogo da amarelinha, se concentra exclusivamente nessa tarefa literria

    para consumar seu projeto antiliterrio.Teoria do tnelconstitui o pretexto da prtica romanesca de Cortzar,

    explicita o programa (ou a preceptiva) que precede e preside a realizaode seus romances. Fundamenta-os, d-lhes coeso, integra-os em umcorpus orgnico.Divertimento, O exame finale Os prmios adquirem, a[Pgina 20] partir de Teoria do tnel, carter de etapas de uma concertada

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    progresso romanesca que atinge seu pice com O jogo da amarelinha ese prolonga nesses dois dissmiles avatares que so 62. Modelo paraarmare O livro de Manuel. Teoria do tnelpermite afirmar que toda a

    obra romanesca de Cortzar procede de uma mesma matriz, e que essemdulo gerador judiciosa e minuciosamente concebido por um textopreliminar que o explica e justifica. [Pgina 21]

    SAL YURKIEVICH

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    [Pgina 22]

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    Teoria do tnel

    Notas para uma localizaodo surrealismo e do existencialismo

    [Pgina 23]

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    JPITER Pauvres gens! Tu vas leur faire cadeau de la solitude etde la honte, tu vas arracher les toffes dont je les avais couverts,et tu leur montreras soudain leur existence, leur obscne et fadeexistence, qui leur est donne pour rien.

    ORESTE Pourquoi leur refuserai-je le dsespoir qui est en moi,puisque cestleur lot?JPITER Quen feront-ils?

    ORESTE Ce quils voudront: ils sont libres, et la vie humainecommence de lautre ct du dsespoir.

    JEAN-PAUL SARTRE,LES MOUCHES

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    CAPTULOI A crise do culto do Livro

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    [Pgina 28]

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    1. O LIVRO, INSTRUMENTO ESPIRITUAL

    As pginas seguintes tentaro indicar como as implicaescontemporneas da ilustre citao diferem das que ela supunha em 1870,e qual parece ser a concepo atual do Livro, essa essncia ltima doesprito em que culminava o Universo para Stphane Mallarm.

    Desde logo: pretender explicar a fisionomia contempornea do fatoliterrio* dentro de uma linha tradicional em que o Livro, arca da Aliana,merece um respeito fetichista do qual a bibliofilia signo externo e aliteratura sustentculo essencial, leva ao desconhecimento e ao mauentendimento de todo o clima "literrio" de nossos dias, malogra oesforo inteligente mas no intuitivo de boa parte da crtica literria, quese conserva nas vias seculares pelas mesmas razes que a maioria dosautores de livros.

    Se analisarmos a atitude do literato maneira de Gustave Flaubert no qual chegam ao pice um itinerrio e uma filiao das letras ,veremos que ele encara sua obra como um objeto concebido e executadoesteticamente, que se resume enquanto objeto esttico nas dimensesverbais do Livro. As conseqncias extraliterrias da obra (influnciasocial e histrica, avano no conhecimento de qualquer ordem) emanama posteriori, enquanto o Livro como objeto esttico parece ficar s costas

    delas, sustentando-as, dotando-as de uma espcie de base de operaes[Pgina 29]

    __________________________(Nota de rodap) * Proponho, para melhor apreenso do que vem a seguir, entender porliteratura e obra literria a atitude e as conseqncias que resultam da utilizaoesttica intencionada da linguagem.

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    espiritual a partir da qual alam vo e qual at mesmo retornam parareabastecer-se desses valores que incidiro nos homens, na sociedade efinalmente na poca. A nfase mais intencionada do escritor repousa na

    estrutura esttica do livro, sua perfeio e adequao verbal, fundamentocelular da colmeia que perdura mesmo depois de esgotada a sua cargaviva, como perdura a construo de tantos livros aps cumprida a suaao sobre o meio. Dessa maneira, Flaubert j aludimos ao total deescritores que sua imagem resume est antes de mais nada preocupadocom a resoluo formal de sua obra literria. A forma, produto direto doemprego esttico da linguagem, achado casual da adequao entre asintenes expressivas e sua manifestao verbal, constitui em maior ou

    menor grau a preocupao do literato que chamaremos precariamentede tradicional. E isso ocorre em coincidncia com os impulsos radicaisde todo esforo artstico, o avano anlogo da plstica, da msica, da

    poesia e da prosa na fixao esttica de formas; no em vo um AndrGide vai afirmar, com certa petulncia, que s pela forma as obras dohomem duram. (O que no paradoxal, posto que a forma bela supe erevela esteticamente profundidade na idia que a habita e a motiva; daque o superado repertrio ideolgico do passado se sustente nas grandesobras por razes puramente estticas porque est belamenteexpressado.)

    O sculo XDC por excelncia o sculo do Livro, dentro de processosliterrios que merecem ser registrados. Importa destacar primeiramenteque o romanticismo alterou na prtica o princpio terico ao qual deviaem boa parte o seu prestgio inicial e a sua fora interior. Diante do tomalegorizante do classicismo, de sua preferncia pelos tipos de alcanceuniversal, o romntico da primeira hora havia-se proposto a literaturacomo empresa de indivduo, e por isso o Livro tornou-se para ele objetoimediato, pessoal: La nouvelle Hlose depois de um Tlmaque. Comfreqncia o livro clssico dos sculos XVII e XVIII produz a impressode um captulo determinado dentro do livro total constitudo com ascontribuies da gerao e do pas correspondentes, monografia queintegra a Enciclopdia global. Note-se que o escritor clssico, imbudode um alto esprito de universalidade, de arquetipificao, v no livro[Pgina 30] um meio para expressar e transmitir as modulaes

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    individuais que assumem sem fraturar-se as grandes linhas de foraespiritual do seu sculo. Mesmo seu estilo tende a se uniformizarretoricamente e ento a decadncia se precipita, irremissvel ,

    como se o escritor fosse menos indivduo que instrumento-agentedentro de uma ordem que o subordina e o supera.Contra tal atitude, o romanticismo reivindica os direitos individuais

    do escritor e, portanto, o livro como expresso de uma conscincia. Oculto do estilo individual engendrar a hipervalorizao da forma, doassunto (do assunto com certa forma) e, em ltima instncia, do Livroque acolhe e sustenta filialmente os elementos que lhe deram o ser.Mas esta concepo eminentemente esttica da literatura, que conduzia

    exaltao do formal como manifestao dos "estados de alma", viu-se logo desmentida na execuo por uma atitude de messianismo quemarca a obra das figuras maiores do romanticismo, de Rousseau,Madame de Stal e Chateaubriand at Victor Hugo, na Frana, deSchiller at Heine, na Alemanha, de Wordsworth at Dickens, naInglaterra. O romanticismo se apresenta como exerccio da tendnciahedonista que rompe com o classicismo e prope por sua vez aformulao esttica da realidade sensvel (Pushkin, Keats, Maurice deGurin), sempre indita e adequando-se equao individual do poetaou do artista. Mas no romanticismo aparece, coexistente, uma nomenos intensa motivao: a rebeldia, em grau tanto maior quanto maisrealada se manifesta a personalidade individual. Indico aqui apenasque a rebeldia romntica segue duas vias principais de expanso: a

    blasfmia desesperada, generosamente distribuda pelo romanticismoingls, e a luta em prol de uma reforma social e espiritual. Por estesegundo caminho, estreitamente condicionado por razesdeterministas, o romanticismo se lana de imediato a uma desenfreadaliteratura de tese que sufoca todo hedonismo gozoso, sacrifica todaforma ou a aceita apenas como excipiente aucarado para ajudar aengolir o material extraliterrio. o messianismo desenfreado deHugo, Lamartine ou Shelley em suas obras no-poticas, ousecundariamente poticas.

    Da que, por uma saturao contra a qual se reage esteticamente, a[Pgina 31] segunda metade do sculo indique um retorno pendular

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    hipervalorao do Livro, que ir ocorrer principalmente na Frana. Olivro como fim esttico, a crescente renncia a utiliz-lo em funo

    panfletria ou pedaggica, acentua-se em escritores como Balzac e as

    irms Bront diante da linha apostlica dos Dickens e dos Hugo, paraculminar com aquele que far do livro a razo de ser da literatura,Gustave Flaubert. No novidade afirmar que razes estticas

    presidem a obra flaubertiana, na qual os valores ticos emanamnaturalmente da personalidade do escritor e de sua temtica, masnunca aparecem intencionalmente inseridos numa trama.

    Esse retorno ao Livro mostra, porm, uma alterao interna queno permite confundi-lo com o do primeiro romanticismo. Neste se

    afirmava o Livro por razes principalmente existenciais, de afirmaoindividual; o caso de Chateaubriand, de Byron, de Leopardi, emesmo de William Blake. Ao passo que para o realismo que selevanta contra o romntico j desnaturalizado a afirmao do Livrose apia em bases estticas. Uma deliberada despersonalizao marcaa obra de Flaubert, tal como antes o Parnaso buscara na poesia. OLivro, objeto de arte, substitui o Livro, dirio de uma conscincia. Osculo XDC se encerra numa densa atmosfera de esteticismo

    bibliogrfico, do qual o simbolismo em poesia e a literatura de OscarWilde em prosa do a pauta. O sculo XX, em contrapartida, revelaem sua segunda dcada um retorno que apresenta marcadas analogiascom o clima do primeiro romanticismo; a literatura mostrar umatendncia expresso total do homem em vez de se reduzir a suasquintessncias estticas. Ainda no se vislumbra qualquer crise naconcepo mandarinesca do Livro; o esforo literrio o sustenta comoreceptculo das formas, informa nele seus elementos. Mas e esta sua analogia mais penetrante com o esprito do primeiro romanticismo

    o escritor se sente cada vez mais comprometido como pessoa naobra que realiza, comea a ver no livro uma manifestaoconsubstancial de seu ser, no um smbolo esttico mediatizado, eembora a corrente simbolista que entra no sculo sustente a legtimaraiz humana de sua obra, o escritor de 1910 fareja desconfiado o climasaturante dos dramas de Maeterlinck ou Le Martyre de SaintSbastien, e se afasta de [Pgina 32] uma literatura que talvez busque o

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    essencial mas que, com certeza, nada tem de existencial. Assim, movidopor um impulso que o distancia de qualquer esttica na medida emque a considera mediatizadora , o escritor se v ao mesmo tempo

    obrigado a afastar-se do livro como objeto e fim de sua tarefa, rejeitar ofetichismo do Livro, instrumento espiritual, e consider-lo por fim (e issona etapa que precede a nossa primeira guerra) como produto de umaatividade que escapa simultaneamente de todo luxo esttico e de toda

    pedagogia deliberada, instrumento de automanifestao integral dohomem, de autoconstruo, veculo e sede de valores que, em ltimainstncia, no so mais literrios.

    Em sua forma mais imediata e agressiva, tal concepo do livro

    como produto de uma experincia nunca dissociada do homem autore leitor se manifesta em forma de desprezo aberto pelo Livro, colunaimanente da literatura tradicional. O drama se delineia em termos deaparente contradio, posto que um exame superficial no descobre maiordiferena entre os livros literrios e esses outros livros no-literrios;tem-se at a suspeita de assistir a uma autodestruio em que o objetoamado ao mesmo tempo objeto a destruir, louva-a-deus que come omacho no ato da posse. A onda de raiva cega que sacudiu a Europacontra o movimento dadasta no tem outra explicao, e compreensvelque por falta de perspectiva no houvesse possibilidade de reagir deoutra maneira. A isto soma-se o importante fato de que as duas primeirasdcadas vem nascer obras admirveis dentro da linha tradicional, e orepentino desprezo pelas formas (contidas na Forma magistral, o Livro)antes parece exploso de barbrie que tentativa de renovao. Bastaanalisar hoje as obras admirveis a que aludimos para constatar quetambm nelas se insinuava a corroso de um critrio diferente sobre o"literrio". A esto para provar isso D'Annunzio, Valry, Joyce, Kafka,Katherine Mansfield, Arnold Bennett, Valle Incln, Gabriel Miro. Datentativa superestilstica de Ulysses conversa parnasiana deFiguras de lapasin del Seor, notamos que a lio de Flaubert continuava valendomagistralmente para os prosistas tanto quanto a lio de Mallarm pesava

    para os poetas. Mas com uma diferena e o salto angstia do homemcontemporneo sempre nasce das diferenas que descobre nas "certezas"[Pgina 33] de todo tipo que o sculo XK parecia ter-nos provido com

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    sua cincia e suas letras e seu estilo de cultura: a de que esses grandescontinuadores da literatura tradicional em todas as suas possveis gamasno cabem mais dentro dela, so acossados pela obscura intuio de que

    alguma coisa excede as suas obras, de que quando vo fechar a mala decada livro h mangas e fitas penduradas para fora e impossvelencerrar; sentem inexplicavelmente que toda a sua obra requerida,urgida por razes que anseiam manifestar-se e no conseguem faz-lo nolivro porque no so razes redutveis literariamente; medem com oalcance de seu talento e de sua sensibilidade a presena de elementos quetranscendem toda empresa estilstica, todo uso hednico e esttico doinstrumento literrio; e suspeitam angustiados que isso o que no fundo

    realmente importa.Porque o leitor j deve ter suspeitado que a raiz da agresso contrao Livro est na desconfiana e na rejeio de sua formulao "literria",apenas insinuada na obra dos estilistas cujo combate contra aslimitaes literrias se traduz em experimentos, sondagens, novosenfoques: aludimos por exemplo aos nomes acima citados, que toarbitrariamente reunidos parecero s mentes didticas , enquanto nagerao pertencente dcada de 1910 assume a forma agressiva dadestruio e reconstruo sobre novas bases. A forma exterior dessaincomodidade, dessa frico entre o escritor e seus instrumentosliterrios, se manifesta com fora crescente a partir do dadasmo e dosurrealismo. significativo que o dadasmo propusesse abertamente umaempresa de deslocamento, de liquidao de formas. Depois viria osurrealismo como etapa de liquidao e destruio s. Fundos comprometendo-se seus empresrios da rue de Grenelle a fornec-losnovos e melhores, assim como os recursos expressivos. Seria pueril

    persistir acreditando que esse "tempo do desprezo" literrio coisaepidrmica e que nada revela sobre um fundo espiritual. Nada menos

    pueril que o fato de que o dadasmo preferisse fazer poemas recortandoum dicionrio e misturando as palavras num chapu, e de que osurrealismo reivindicasse uma atividade extralivresca, romper a gaioladourada da literatura tradicional, substituir a poesia delbum pela vida potica. O desprezo pelo Livro marca um estado agudo[Pgina 34] da angstia contempornea, e sua vtima por excelncia, o

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    intelectual, se subleva contra o Livro quando este o denuncia comofazedor de mscaras, sucedneos de uma condio humana que ele intui,espera e procura diferente. O aparente paradoxo desse louva-a-deus

    devorando sua prpria fonte de prazer encobre a verdade de um divrcioentre dois homens s exteriormente semelhantes: o que existe paraescrever e o que escreve para existir. Diante do escritor "tradicional","vocacional", para quem o universo culmina no Livro, ergue-se agressivoo jovem escritor de 1915, para quem o livro deve culminar no universal,constituir sua ponte e sua revelao. Sem que para ele adiante sustentarque a primeira frmula eqivale a isso mesmo, pois v nela um roteirode saturada literatura esteticista que sua atitude vital pe em crise primeiro

    e termina rejeitando.

    2. O CONFORMISTA E O REBELDE

    Por mais iconoclasta que fosse o escritor que decidimos chamar de"tradicional", por mais que ele escrevesse literalmente para fins

    extraliterrios (considerados literrios por falta de preciso conotativa) eempregasse um estilo esttico como veculo receptor e expositor deelementos morais, filosficos, histricos ou cientficos, inquestionvelque valorizava o livro, a obra em seu estojo, muito mais que o escritorcontemporneo no-tradicional. Mesmo um exame de qualquer "histriada literatura" ir comprovar como o livro assimilado categoria deobjeto natural, chega a constituir um gnero que subsome as diferentesformas abarcadas pelo conceito "literatura". No h literatura sem livros.

    Mesmo o teatro acaba sendo uma sorte de livro oral, e o jornal, um livropor assinatura; os recursos menores da oratria em suas formassermonrias, didticas ou polticas tm uma colorao tomarcadamente literria que um volume no tarda a acolher sua versoescrita. O livro entendido e executado para perdurar, e antes doromanticismo se prefere sempre que contenha o universal no particular,que a razo corrija a intuio. Assim o Livro acabou se constituindo numsanturio de certas ordens de idias [Pgina 35] e sentimentos, que

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    cumpria um apostolado medida que o peregrinar dos leitores iaentregando conscincia coletiva suas relquias e seus orculos. Tal ,

    por exemplo, o conceito da Enciclopdia, altar laico, e o demile, numa

    atitude mais literria. fcil apreciar que o livro destinado a acolher ainstantaneidade de uma conscincia no tempo da criao, o livro-segundo, o livro-minuto, o livro do ms, o livro que tem valor apenasintermedirio entre uma inteno e seus efeitos naquele que a recebecomo leitor, o livro efmero com to forte presena na obra de nossosromancistas, maneira de Paul Morand ou Benjamin Jarns, esse livrono chegava a ser concebido por escritores submersos numa concepomais grave e retrica da realidade, apaixonadamente aderidos letra da

    obra que assegurava durao sua idia. Tomando como paradigma adureza da esttua ali onde a graa fica presa para sempre , o livroresponde por analogia concepo que to luxuosamente exps VictorHugo em Notre-Dame de Parir, sucessor da arquitetura; destruidor daarquitetura; colunas mentais, arquitraves do sentimento, fustes doesprito; livro para durar.

    Contra esse valor fetiche, contra o gnero Livro que contm atotalidade dos gneros literrios, a atitude do escritor do sculo XX seoferece com uma aparncia de levssima e irreverente despreocupaoem relao s formas exteriores da criao literria. Se tal atitude assumefreqentemente formas agressivas contra o livro, fcil perceber que,

    por baixo de seu smbolo exterior e material, se est combatendo a almado livro, o que o livro representou at hoje como produto literrio. Se olivro sempre smbolo, a irreverncia para com ele acaba sendoigualmente simblica. A verdadeira batalha travada no ponto em que duasatitudes diante da realidade e do homem se descobrem antagnicas. Equando um surrealista edita um livro amarrando pginas soltas numarbusto de arame, seu violento desafio cheio de troa, mau gosto, enfado,encobre uma denncia de outra ordem, o estdio intermedirio entre umaetapa de destruio j ultrapassada e o nascimento de uma etapa deconstruo sobre bases essencialmente diferentes.

    A dcada de 1910 o terreno da primeira etapa e o alvorecer dasegunda. Como sndrome geral, podemos notar o aparecimento de um[Pgina 36] tipo de escritor com tudo o que h de dramtico em que

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    se trate precisamente dele, um homem que escreve livros para oqual a noo de gneros, de toda a estrutura genrica, se impe com aestrutura visual de grades, crcere, sujeio. Esse escritor contempla

    com profunda desconfiana e admirativo ressentimento a profundapenetrao que continuam tendo no sculo os escritores de filiaotradicional, os escolares da literatura. Um destes, Paul Valry, irinsistir sagazmente em sua teoria das convenes, to valiosa naordem esttica porm nula assim que o empreendimento de criao

    busca cumprir-se fora da esttica e, portanto, da "literatura". Osdepositrios do archote do sculo XIX, os Proust, Gide, Shaw, Mann,Wells, Valle Incln, Claudel, D'Annunzio, continuam, dentro de um

    ordenamento esttico pessoal, as ordens literrias tradicionais, a filiaonovecentista. A problemtica deles posto que a literatura se colocacada vez mais em termos de problematicidade, como a filosofia concebida e encarada de maneira tal que admita a manifestao literria.(O jovem escritor se pergunta se chegam a manifest-la inteiramente, ouse sua concepo dos problemas no estar previamente condicionada

    pela viso verbal, literria, da realidade.) A noo tradicional de gnero, deconservao de valores retoricamente entendidos como literrios, no se

    quebra sequer com um Marcel Proust. Nenhum deles tenta romper asformas estilsticas, limita-se a submet-las s torses mais agudas, smais sutis insinuaes. Descobrimos logo que suas mais ousadasaventuras esto sempre simbolicamente contidas entre as capas doLivro. Ali se faz grande literatura, mas sempre a tradicional, a quedecorre do uso esttico da lngua e no consegue sair dele porque noconsidera que seja necessrio ou possvel. fcil ver e ningummelhor para isso do que nossojovem escritor rebelde como as

    dificuldades expressivas trazidas pelas limitaes idiomticas, e aindaestilsticas, se traduzem, maneira valriana, em exercitao fecunda;como um Proust, um Gide, se deleitam enfrentando as dificuldades

    pelo prazer esttico de resolv-las harmoniosamente. Mas nossoescritorse indaga neste ponto se aqueles que acreditam resolver as dificuldadesno estaro de certo modo limitando a esfera de sua experincia.Imagina-os distribuindo admiravelmente os mveis no aposento-livro,[Pgina 37] aproveitando todo o espao e a expanso disponveis e

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    possveis; avanando sobre as decoraes antigas para um melhorequilbrio entre o tamanho e a linha dos mveis em relao forma,dimenses e possibilidades do aposento. Chega um momento em que

    eles acabam vendo tudo, calculando tudo, resolvendo tudo; mas estocegos para o que se encontra alm das paredes. Usam-nas como rebote,como reao convencional que os dota de novas foras, como o sonetistaem sua casa de quatorze aposentos. Fazem o mesmo que o boxeador aoaproveitar a elasticidade das cordas para duplicar sua violncia de avano.Conformam-se. Mas todo conformar-se dir tristemente o jovemescritor j no ser uma deformao ?

    3. VOCAO E RECURSO

    Uma coisa a vocao e outra o recurso literrio. O primeiro supentima harmonia prvia entre um sistema de elementos enunciveis, umacarga afetivo-intelectual determinada e um instrumento expressivo: a

    linguagem literria, o estilo. Um escritor vocacional busca e estabeleceno curso de suas primeiras obras o equilbrio paulatino entre suanecessidade de enunciar e seu instrumento enunciador. A carreiraliterria de um Balzac mostra isso com evidncia escolar. Les Chouansdenuncia um Balzac que se debate entre uma potente vontade deconstruo romanesca com fins sociais (fisiolgicos,para diz-lo como seutempo) e um idioma contaminado de aderncias romnticas e submetidoa linhas estilsticas que no concordam com a carga romanesca a

    expressar; o resultado, principalmente no final da obra, malogrado poressa inadequao entre continente e contedo, e fato que o jovemescritor rebelde ir deplorarum no menor avano deste em direoquele. A necessidade de soltura formal leva Balzac de maneirainconsciente a um compromisso essencialmente literrio: tratar apenasdaquilo que redutvel literatura. O que poderamos chamar de o estilodo assunto vai se transformando conjuntamente com o estilo verbal, atcoincidirem como as duas imagens [Pgina 38] num telmetro. Com

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    Gobseck (1830), Balzac atinge a perfeita adequao entre os mveis e oaposento, o equilbrio dos valores a expressar com o instrumento verbalque os manifesta. Em momento algum se nota que o idioma literrio lhe

    oferea problemas de enunciao, e isto porque ele j sacrificou todoproblema que no saiba possvel de resoluo com os meios ao seualcance; com grande arejamento, os perodos balzaquianos abraam omundo escolhido por esse escritor to profundamente profissional, emesmo as alternncias de boa e m prosa, de maravilha esttica edesalinho escolar (como o comeo de Le pre Goriot) coincidemesteticamente com os descuidos psicolgicos de Balzac, seus esboosapressados ao lado de retratos plenamente concludos.

    A bela gaiola literria se constri ento com o duplo compromissodas intenes do escritor em face de seus recursos expressivos, tanto quetoda carreira literria plenamente concluda supe a sntese em que adicotomia inicial d lugar a uma bem-sucedida verbalizao de um valorna forma em que melhor consegue express-lo, e da a renncia verbalizao de todo valor que no parea redutvel a uma forma estticado verbo. Depender do grau de profissionalizao do escritor oresultado-Balzac, no qual os problemas expressivos esto abolidos por

    pr-seleo e renncia, ou o resultado-Flaubert, no qual a dvida sobreo sucesso da sntese incidir at o fim na conduta do escritor.

    Julgo necessrio acrescentar que esta concepo do literriotradicional no inclui de maneira alguma a Poesia. Excetuando esta, todaa histria da literatura ocidental, desde os primeiros preceitos clssicos,no tem sido outra coisa seno uma busca de adequao das ordens queengendram a obra literria: uma situao a exprimir e uma linguagemque a exprima. Nenhum dos escritores vocacionais parece conhecer advida que angustia o escritor contemporneo, reflexo localizado deuma angstia generalizada do homem de nossos dias: a dvida de quetalvez as possibilidades expressivas estejam impondo limites ao exprimvel;que o verbo condicione seu contedo, que a palavra esteja empobrecendo seuprprio sentido.

    Se insisto na "vocao" da linha tradicional de escritores, porqueme parece bvio que toda autntica predestinao literria comea com[Pgina 39] uma necessidade e uma facilidade de expresso formal;

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    principia com a aptido para dizer, o que supe sentimento estticodo verbo, adeso aos valores idiomticos. Todo escritor que tenhafeito uma carreira do tipo vocacional sabe que em suas primeiras obras

    os problemas expressivos eram superados com maior facilidade que osproblemas de formulao, de composio temtica. Da mesma maneiraque os negros possuem em grau elevado o sentido inato (vocacional,

    para acentuar a analogia) do ritmo, e o poeta ainda adolescenteescreve maus versos perfeitamente ritmados e rimados, tambm oliterato vocacional pensa verbalmente com mais intensidade queaquele para quem a lngua constitui obscura-mente uma resistncia daqual convm zombar e interessa transcender. Mas o fato de

    compartilhar por adeso inata, por vocao, as estruturas idiomticascomo elementos naturais da expresso induz o escritor vocacional aaceitar a lngua como veculo suficiente para a sua mensagem, sem

    perceber que essa mensagem est pr-deformada por ser, desde a suaorigem, formulada em estruturas verbais. O idioma funciona e ageento como elemento condicionante da obra literria; se trabalhado,se forado, se a angstia expressiva multiplica os trechos riscados,tudo isso repousa na conscincia quase orgnica de que existe um

    limite atrs do qual se abre um territrio-tabu; de que o idioma admiteos jogos, as travessuras, as carcias e at os golpes, mas diante daameaa de violao se encrespa e rejeita.

    Quanto de nominalismo no-sistemtico, no-formulado, habitaessa confiana orgnica de que a linguagem como a pele da literatura,seu limite atrs do qual, para diz-lo com uma imagem de Neruda, "oestrangeiro e o hostil comea". Quanto de magia atvica, tambm: orespeito ao verbo que seu objeto,precisamente porque todo objeto ,

    enquanto verbo, modo intemporal que lhe outorga eternidade.Opondo-se a toda imanncia verbal, a dcada de 1920 mostra em

    ao os primeiros grupos para os quais escrever no passa de um recurso. margem do itinerrio vocacional, ou furtando-se s suas facilidadescom uma rigorosa resistncia (como um Paul Valry, na ordem intelectual,um Andr Gide, na esttica, e um Franz Kafka, na tica), numerososescritores chegam "literatura" movidos por foras extraliterrias, extra-[Pgina 40] estticas, extraverbais e procuram, mediante a agresso e a

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    reconstruo, impedir a qualquer custo que as armadilhas sutis do verbomotivem e canalizem, conformando-as, suas razes de expresso. Aesto os dadastas, que se resignam a escrever porque, como antanho o

    pobre Ptrus Borel, no podem ser... carabas. Por trs deles viro ossurrealistas, para os quais a via ainda mais arriscada, porque significasimultaneamente a rejeio das formas e do fundo tradicionais.*

    Um escritor desta linha admite com franqueza sua filiao romntica, medida que o intuitivo guia sua conduta intelectual. Aceita dos avsuma tendncia a delinear a realidade em termos de inadequao dohomem no cosmos, assumi-la sem subterfgios e lutar para super-la

    pela via da rebelio contra toda regra urea, todo "classicismo", que a

    seus olhos a frmula esttica do conformismo. Dos avs advm a esseescritor a coragem e a fraqueza de prever, instalar, fecundar e tornaroperativa sua individualidade, seu estar s e dolorido, s e apaixonado,s e pantesta, s e o Universo. Herda-lhes tambm a esperana surda desuperar sua solido e com ordens humanas s vezes demasiadohumanas construir uma sociedade, uma "cidade do sol" que concilie aliberdade com a comunidade. Como poderia no encarar de mododesconfiado e agressivo a filiao literria para a qual sua prprianecessidade expressiva tende a arrast-lo? Sem nenhum paradoxo, vemosque escreve livros com a esperana de que contribuam na tarefa teleolgicade liquidar a literatura. Ele no pensa que o homem merea continuarencerrado no uso esttico da lngua, no pensa que deva prosseguir entreas grades da gaiola. Esse escritor parece ver no literato vocacional ohomem que, de etapa em etapa, de escola em escola, vem aperfeioandoum martelo desde o fundo dos sculos, polindo-o, melhorando sua forma,mudando detalhes, adorando-o como sua obra-prima e a culminao deseu esforo, mas sem o sentimento essencial de que todo esse trabalhodeve finalmente lev-lo a empunhar o martelo e comear a martelar. Esseescritor segura o martelo tal como lhe foi dado, sem olhar para ele ou nomximo estudando-o [Pgina 41]

    ___________________________(Nota de rodap)* Uso a frmula desgastada porque muito verdadeira, e porque "fundo",desde aLettre du voyant, ficou lavado de retricas e oferece seu pleno sentido abissal.

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    at aprender a manuse-lo direito; mas toda a sua ateno j estconcentrada em outra coisa, no prego, naquilo que motiva o martelo eo justifica. E, desde que o sculo comeou, muitas vezes esmagou os

    dedos por no olhar o martelo; mas no se importa com isso, porque fazparte do jogo, e depois ainda se bate melhor, com vontade e eficciamais acirradas.

    4. CAVALO DE TRIA

    Se perguntarmos a esse escritor por que incide e age numa ordem deatividade espiritual que o repele por sua filiao hedonista; se quisermossaber seu motivo para empunhar o mesmo martelo tradicional e se lanar construo da sua cidade do sol, ele nos responder descaradamente queem primeiro lugar prefervel lanar mo de uma ferramenta pronta antesque forjar um utenslio novo e, depois, que essa ferramenta continuasendo a mais eficiente para bater num prego,se realmente for usada paraisso; e que, de mais a mais, ela a mais cmoda.

    Basta uma reflexo superficial para perceber que esta ltima resposta adequao linha do menor esforo, sempre moduladora da tarefahumana explica a presena, nas letras contemporneas, de mltiplasfiguras que de modo algum pareciam destinadas a essa forma de auto-realizao. Logo se percebe que so pessoas muito parecidas em suaconduta com as que se entregam totalmente ao; e, em boa partedelas, expresso verbal e ao so duas alternncias de uma mesmaatividade, como o bom surrealismo propugna e executa to

    inequivocamente. Se se trata de uma evaso, de uma ruptura demodelos, de uma des-ordem a posseguir com um re-ordenamento, e oque importa atingi-los sem que os meios empregados tornem-se emltima instncia um elemento de frustrao, parece bvio que osrecursos verbais, entendidos a partir de uma atitude nova, excedem emeficcia e riqueza qualquer outra forma de manifestao e ao dohomem. O recurso , alm do mais, muito cmodo; aqui, a vocao e aaptido instrumental so requeridas em [Pgina 42] grau muito menor

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    do que em qualquer outra espcie de martelo. Tem-se mesmo a grandevantagem de poder empunh-lo sem qualquer vocao, o que salvaantecipadamente da suspeita e do handicap de idolatria. No se podechegar a pintar bem sem predestinao; pode-se escrever eficazmentesem ela. Posto que as ordens estticas foram jogadas ao mar, ou usadastambm como recursos (pois de nada se priva o escritor rebelde), eportanto a linguagem torna a ser linguagem pura, cada imagem ter quenascer de novo ali, cada forma prosdica responder a um contedo quecrie sua justa, necessria e nica formulao. Talvez isso possa algumdia ser feito nas artes plsticas; j se faz, porque mais fcil e se tendemais a isso, na atividade verbal contempornea.*

    Todos os elementos da educao obrigatria da criana e do

    adolescente, alm dos jornais, o romance, o teatro, o cinema e aacumulao do saber oral, treinam incessantemente o homem para lhedar soltura literria, domnio do verbo, recursos expressivos. H um diaem que todo garoto escreve seus versos e seu romance, mostrando bemcedo sua tendncia vocacional, que ir expandir numa carreira literriaou destruir, reconstruindo em novas bases, se tiver a atitudecontempornea que estudamos; se carecer de vocao literria, a ordemburocrtica, comercial e amorosa o exercitar em alguma forma de

    literatura epistolar ou oral. A facilidade intrnseca do literrio, osatavismos folclricos, a vida gregria e o desenvolvimento tcnico dapropaganda, do rdio, dos slogans, criaro nele um repertrio expressivo,um acmulo verbal que se revelar espontaneamente eficaz eaproveitvel assim que um despertar existencial o angustiar, assim quefor colocada a primeira instncia do problema de seu ser e de seu existir.Com alguma melancolia, cabe concluir que se fosse to fcil pintar,esculpir ou fazer msica como o encher uma pgina de formas verbais,se fosse to acessvel manifestar-se na ao como o manifestar-se naintuio e suas formulaes verbais, o sculo [Pgina 43]

    ____________________________(Nota de rodap)* bvio que ao indicar de que maneira uma razo de menor esforoinduz criao verbal no se deixa de lado a razo essencial: a de que o verbo aforma expressiva menos mediatizadora de um estado anmico que se queira comunicar.As artes plsticas, a dana e a musica so formas analgicas, simblicas; o verbo aforma mais imediata do Logos.

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    aspecto fomal e no intelectual pelo estrito cumprimento do acordo. Aresistncia antiromntica a que se digam certas coisas no esconde otemor de que a irrupo de uma gama mais desenvolvida de situaes

    temticas, de estados anmicos, significasse uma agresso contra oidioma ulico minuciosamente codificado? Basta pensar, margem dosexemplos franceses to desgastados, na reao da to acadmica crticaliterria russa quando, em 1820, Alexandre Pushkin comea a escrever

    poemas e contos em que intervm palavras como "lama" ou "charuto"...Sustento que a primeira reao contra o romantismo no decorre tanto doescndalo diante de suas idias, mas do fato de que essas idias e ossentimentos com elas confundidos so expressos pela primeira vez nua e

    cruamente, num idioma que os alude sem disfarce. Assistimos aoprimeiro embate contra as ordens estticas, e no desdenhvel o fatode que os romnticos se apressam por sua vez a construir uma estticaverbal ajustada sua particular necessidade expressiva. Mais tardeficaro aterrados diante do despojamento e da anatomizao verbal dorealismo e do naturalismo. Tudo isso superficial e no atinge as razes do

    problema, porque estamos na linha tradicional da literatura, na qual asexperincias estilsticas abarcam uma extraordinria variedade desuperfcie sem contudo aprofundar-se a ponto de pr em crise o prpriofato do idioma esttico e seu direito de ser o instrumento natural deexpresso direta.

    Portanto para terminar esta caracterizao da literatura tradicional, antanho as geraes iniciavam sua sondagem expressiva com a mesmaabundncia e ansiedade que em nosso tempo. Entre os quinze e os vinte ecinco anos, o jovem escrevia suas cartas, suas elegias, seus romances,seus epistolrios. Mas a seleo natural imposta pela diferena entrevocao e imitao reduzia rapidamente os ncleos. S os escritoresseguiam em frente, o resto compreendia e se calava, sua ansiedadeexpressiva desembocava em outras vias de manifestao. E isso, que demaneira geral um processo invarivel em toda gerao no qualvemos os amigos daquele que ser um grande poeta escreverem versos

    par a par com ele e depois irem se diluindo, silenciando, adquirindooutros interesses... , proposto em nosso sculo, e desde a segundadcada com [Pgina 45] uma alterao nem sempre muito notada; a de

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    liberdade,* e tambm aquele cuja liberdade s chega a plenitude dentrode formas que a contm adequadamente porque nascem dela mesma porum ato livre, compreende-se que a exacerbao contempornea do

    problema da liberdade (que no um dom gratuito, e sim conquistaexistencial) encontre a sua formulao literria na agresso contra asordens tradicionais. Surgem certas situaes (entendo por isto umaestrutura temtica a expressar, a se manifestar expressivamente) que noadmitem uma simples reduo verbal, ou que somente ao seremformuladas verbalmente iro mostrar-se como situaes o que ocorrenas formas automticas do surrealismo, em que o escritor fica sabendodepois que sua obra isto ou aquilo. Observando as coisas desse ponto de

    vista, constata-se a necessidade de dividir o escritor em grupos opostos: oque informa a situao no idioma (e esta seria a linha tradicional) e o queinforma o idioma na situao. Na etapa j superada da experimentaoautomtica da escrita, era freqente notar que o idioma desabava emtotal bancarrota como fato esttico quando submetido a situaesalheias sua latitude semntica, tanto que o retorno momentneo doescritor conscincia se traduzia em imagens fabricadas, recidivas dalngua literria, falsa apreenso de intuies que nasciam apenas deaderncias verbais e no de uma viso extraverbal. O idioma era aliinformado na situao, subsumido a esta: percebia-se, em toda aatividade "literria", o que antanho era privativo das mais altasinstncias da poesia lrica.

    No se pode dizer que a tentativa de escrita automtica haja tidomais valor que o de lustrao e alerta, porque em ltima instncia oescritor est disposto a sacrificar tudo, menos a conscincia do que faz,como tanto repetiu Paul Valry. Felizmente, nas formas conscientes dacriao chegou-se a uma concepo anloga das relaes necessrias entre aestrutura-situao e a estrutura-expresso; e constatou-se, luz de Rimbaude do surrealismo, que no h uma linguagem cientfica ou seja, coletiva,social capaz de ultrapassaros mbitos da conscincia coletiva e social,quer dizer, limitada e atvica; que precisofazer a[Pgina 48]

    _______________________(Nota de rodap) *Perdendo-a, por exemplo.

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    linguagem para cada situao e que, quando se recorre a seus elementosanalgicos, prosdicos e mesmo estilsticos, necessrios para se obter acompreenso alheia, preciso encar-los a partir da situao para a qual

    so empregados, e no da prpria linguagem.Nosso escritor d sinais de inquietao assim que percebe que umasituao qualquer encontra uma expresso verbal coerente e satisfatria.Em seu sentimento constante de cuidado (o Sorge existencialista), o fatode que a situao chegue a ser formulada o inunda de suspeitas sobresua legitimidade. Desconfia de uma espcie de nmeno da situaoescondido por trs do fenmeno expressado. V agindo na linguagemtodo um sistema de formas a priori, condicionando a situao original e

    desoriginalizando-a. O que o kantismo postula no entendimentohumano, nosso escritor transfere esperanosamente para a ordem verbal;esperanosamente, porque se libera em parte dessa carga, presumindo-secapaz de transcender as limitaes impostas apenas por um usoimperfeito, tradicional, deformante das faculdades intelectuais e sensveiscriadoras da linguagem. Ele suspeita que o homem levantou essa barreiraao no ir alm de um desenvolvimento de formas verbais limitadas, emvez de refaz-las, e que cabe nossa cultura derrubar, com a linguagem"literria", o cristal esmerilado que nos impede a contemplao darealidade. Por isso, para ele suficiente divisar um Q.E.D. para seconvencer de que a mais veemente suspeita de falsidade que algumacoisa pode inspirar-nos sua demonstrao, sua prova.

    Essa agresso contra a linguagem literria, essa destruio de formastradicionais tem a caracterstica prpria de um tnel; destri paraconstruir. bem sabido que basta deslocar alguma atividade de suaordem habitual para produzir alguma forma de escndalo e de surpresa.Uma mulher pode se cobrir de verde do pescoo at os sapatos semsurpreender ningum; mas se alm disso tingir o cabelo de verde, farmuita gente parar na rua. A operao do tnel foi uma tcnica comum dafilosofia, da mstica e da poesia trs nomes para uma no-dissmilansiedade ntica; mas o conformismo mdio da "literatura" em face dasordens estticas torna inslita uma rebelio contra os padres internos desua atividade. Puerilmente se quis ver no tnel verbal uma rebelioanloga [Pgina 49] do msico que se levantou contra os sons por

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    consider-los depositrios infiis do musical, sem perceber que na msicano existe o problema de informao nem portanto de conformao, queas situaes musicais j supem sua forma, so sua forma.*

    A ruptura da linguagem entendida desde 1910 como uma dasformas mais perversas da autodestruio da cultura ocidental; consulte-sea bibliografia adversa ao Ulysses e ao surrealismo. Levou muito tempo,leva muito tempo ver que o escritor no se suicida como tal, que quando

    perfura o flanco verbal cumpre rimbaudianamente umanecessria e lustrai tarefa de restituio. Diante de uma rebeldia dessaordem, que compromete o ser mesmo do homem, as querelas tradicionaisda literatura so meros e quase ridculos movimentos de superfcie. No

    existe semelhana alguma entre essas comoes modais, que no pemem crise a validade da literatura como modo verbal do serdohomem, eesse avano em tnel, que se volta contra o verbal a partir do prprioverbo mas j em plano extraverbal, denuncia a literatura comocondicionante da realidade e avana na instaurao de uma atividadeem que o esttico substitudo pelo potico, a formulaomediatizadora pela formulao aderente, a representao pelaapresentao.

    A permanncia e a continuao das linhas tradicionais da literatura,penetrando no sculo paralelamente ecloso da crise que estudamos,tornam mais difcil sua justa estimativa. As linhas prprias do escritorvocacional continuam se estendendo, imbricadas com as tentativas doescritor rebelde, e a atitude crtica se exercita geralmente com igual critriodiante de uma e outra atividade, pretendendo medir a "literatura" completado sculo com cnones estticos. Cai-se ento no ridculo de vilipendiaruma "liquidao do estilo" num Joyce ou num Aragon, quandoprecisamente o conceito escolar de estilo invalida de antemo qualquer

    apreenso da tentativa de Ulysses e Trait du Style. Os esforos do novoescritor so repelidos baseando-se em que uma linha tradicional consegue[Pgina 50]

    ___________________________(Nota de rodap) * Reitero aqui uma afirmao de Boris de Schloezer, que sempre mepareceu fundamental para avaliar o drama da atividade com formas verbais diante dasoutras maneiras expressivas do homem.

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    ou a Henry James seu bordado de sentimentos, no j uminstrumento ilimitado e talvez ilimitvel?

    Voltemos ao anterior; essa linguagem sempre expresso quer

    dizer, smbolo ou analogia verbal mediatizadora. formulaoesttica de ordens extra-estticas. Mesmo o irracional (em Proust, porexemplo) aparece racionalmente traduzido. E isto supe distncia,traspassamento (alterao), valncias anlogas. Tudo isso explica, criae exalta uma literatura, mas deixa desesperado o jovem escritor"brbaro" que quer estar em seu romance com a mesma imediatez comque esteve nas vivncias que geraram o romance. Porque para a etapaingnua bastava a linguagem enunciativa com adereos poticos; para

    a etapa gnosiolgica cabia a linguagem potica encaminhadaenunciativamente.* Mas como manifestar de maneira literriapersonagens que no falam mais e sim vivem (falam porque vivem, eno vivem porque falam, como na mdia do romance tradicional),homens de infinita riqueza intuitiva, que enfocam a realidade emtermos de ao, de resoluo de conduta, de vida-cosmos?O estudo dos usos estilsticos prova como os escritores impressionistas(os Goncourt, por exemplo) j buscam valendo-se em geral daimagem aludir, enviesar, dizer extra-etimologicamente. Emargcias como a aliterao, a imagem, o ritmo da frase (seguindo odesenho daquilo a que alude) e nos truques de efeito finais decaptulo, ruptura de tenses, to bem empregadas pelos romnticos

    j se anuncia a rebelio contra o verbo enunciativo em si.A histria daliteratura a lenta gestao e desenvolvimento dessa rebelio. Osescritores ampliam as possibilidades do idioma, levam-no ao limite,

    buscando sempre uma expresso mais imediata, mais prxima do fatoem si que sentem e querem manifestar, quer dizer, uma expresso no-esttica, no-literria, no-idiomtica. o ESCRITOROINIMIGOPOTENCIALEHOJEJATUAL DOIDIOMA. O gramtico sabe disso [Pgina 54]

    ______________________________________(Nota de rodap) * Esta oposio, que me vejo forado a propor desde agora, se esclarecesuficientemente no captulo II.

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    contribuies de John Galsworthy, O'Neill, Fedin, Virginia Woolf prolongar um itinerrio de inteno psicolgica em moldes estticos,dentro do invarivel compromisso literrio que examinamos no captulo

    anterior.Da dcada que antecede nossa, cabe registrar por um lado adeclinao perceptvel do esforo extra-esttico e a recada geral emmoldes literrios (at mesmo por parte dos rebeldes mais obstinados,como os franceses Breton, Soupault e Aragon na ordem surrealista).Mas se a torrente novelstica clara testemunha de uma necessidadegeral, certo auge da atitude realista, e mesmo naturalista, a moda dos"tough writers"que invade o mundo a partir dos Estados Unidos mostra

    que as linhas tradicionais se mantm alteradas mesmo nessa dcadaessencialmente conformista. Observando o panorama de 1930-40 semum critrio to rgido como o que aplicamos at agora, verificamos quea agresso ao Livro, ao literrio, se mantm subalternamente (mas comcorrosiva e, neste caso, lamentvel eficcia) por parte do romancistaque de certa maneira sempre aspira a ser um best-seller. Alguns nomesexplicitam isso: Louis Bromfield (malogrado depois A Modern Hero),Cronin, Pearl Buck, Rmulo Gallegos, Edna Ferber, Remarque,Priestley, Maurois, Evelyn Waugh, Romains, Duhamel, James Hilton.A lista muito incompleta, bastante ineficaz, provavelmente injusta;mas pretende distinguir um escritor que avana na arte de fabricarErsatz de vida, formas vicrias de vida, uma literatura que se apresentaao leitor como porta de escape em sua existncia pessoal e de acesso aoutra, prefervel ou no, que lhe mostrada durante algumas horas. Comisso chegamos qualificao mais exata dessa literatura escapista. Como sonfero do verbo, com os sucedneos e as formas vicrias de vida,essa literatura coincide exatamente com a "fbrica de sonhos" queEhremburg denunciava no cinema comercial, o ensino dirigido irresponsabilidade ministrado pela propaganda, a escola primria, atcnica do "tudo pronto, tudo servido, tudo com seu boto numerado".Realiza sua maneira subalterna uma insidiosa agresso contra aliteratura tradicional, que em suas formas mais altas nunca foi literaturaescapista e sim de compromisso. Esses romancistas aproveitamhabilmente os moldes estticos [Pgina 60] do idioma (e por isso so

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    2. UMA COBAIA: O ROMANCE

    A anlise de um romance o "literrio" por excelncia, a partir dosculo XIX mostra que, reduzindo o alcance do termo a instnciasverbais, de linguagem, o estilo romanesco consiste em um compromissodo romancista com dois usos idiomticos peculiares: o cientfico e o

    potico.*Rigorosamente ralando, no existe linguagem romanesca pura, posto

    que no existe romance puro. O romance um monstro, um dessesmonstros que o homem aceita, alenta, mantm ao seu lado; mistura deheterogeneidades, grifo convertido em animal domstico. Toda narraocomporta o uso de uma linguagem cientfica, nominativa, com a qual sealterna, imbricando-se inextricavelmente, uma linguagem potica,simblica, produto intuitivo em que a palavra, a frase, a pausa e osilncio transcendem a sua significao idiomtica direta. O estilo de umromancista (ainda considerando-o desse ponto de vista exclusivamenteverbal) resulta da dosagem que ele concede a ambos os usos dalinguagem, a alternncia entre sentido direto e indireto que d sestruturas verbais no curso de sua narrao.

    Creio melhor qualificar aqui de enunciativo o uso cientfico, lgico, sequiserem, do idioma. Um romance comportar ento uma associaosimbitica entre o verbo enunciativo e o verbo potico, ou, melhor, asimbiose entre os modos enunciativos e poticos do idioma.

    O que at agora temos denominado ordem esttica da literatura semanifesta no romance mediante a articulao que, visando adequar asituao romanesca sua formulao verbal, o romancista opera a partirdessa dupla possibilidade da linguagem. Gerada numa submissoconsciente ou inconsciente esttica clssica que aspira formulao

    racional da realidade, e a obtm assim que comea a racionalizar a realidade,[Pgina 63]

    _______________________________(Nota de rodap) * Tal compromisso que, a rigor, vale para toda forma elocutiva, mesmonas manifestaes primrias da fala, adquire aqui um valor de autoconhecimento(consciente ou no para o escritor) e se torna uma questo capital, porque a linguagemvale agora esteticamente, por si mesma.

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    um dos dois fatores expressivos, cabe por exemplo apontar emStendhal um estilo enunciativo, mostrar como a atmosfera potica deLe rouge et le noire deLa chartreuse de Parme emana das oposies,

    dos desenvolvimentos psicolgicos, da dialtica total do sentimento,dasituao, sem que Beyle precise de tropo nenhum (dos quais, alis,ele no se priva) para lograr um romance esteticamente bem-sucedido;

    pode-se desmontar flor por flor a trepadeira verbal de Don SegundoSombra at deixar despida a grade com suas linhas narrativas,esquema simples que se eleva at o romanesco pela veemncia lricada linguagem somada aura potica dos tipos e das situaes.* Boa

    parte da montanha crtica em torno do romance provm dessa

    desmontagem sempre prdiga em descobrimentos e variedades; o queat agora no havia sido denunciado a superestrutura esttica, quecodifica leve mas inflexivelmente a arquitetura romanesca.

    3. ETOCLES E POLINICES

    Posto que tal ordem deixou de merecer a confiana do escritor rebelde,

    convm mostrar como nos proposto na etapa moderna do romance omodus vivendi entre o enunciativo e o potico, para ver com maisclareza o brusco desacordo interno que explode no romance, a rupturada alternncia e da entente cordiale que o talento romanesco obtinha eempregava. A agresso no parte simultaneamente de Eteocls ePolinices. O uso enunciativo da linguagem em si demasiadamente

    passivo para se irritar com seu irmo potico. A submisso inata aoobjeto a que se refere (pelo menos sua vontade de submisso) o afasta

    mais e mais de toda autonomia, reduzindo-o crescentemente a umafuno instrumental. o elemento potico que de repente se agita emcertos romances contemporneos e mostra uma crescente vontadeimperialista, assume uma funo reitora contra o cnone tradicional noromance, procura [Pgina 66]

    _____________________________________(Nota de rodap) * Como, no princpio, a atitude de Sombra diante do tape bbado.

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    Baudelaire outro poeta obcecado pelo romanesco, como provamseus relatos, seus projetos, seu amor a Poe no podia deixar de recolhere prolongar a experincia de Bertrand. Sem mais xito que este, os poemasde Le Spleen de Paris se dividem em dois produtos: os que so apenaspoesia (L'tranger, Un Hmisphre dans une Chevelure) e os que enunciamum contedo alegrico, tico, satrico, basicamente prosaico (Le Jouetdu Pauvre, L'Horloge, Le Chien et le Flacon). Em nenhum deles se nota atranscendncia aplicada em seu caso a uma situao de ordem narrativa que os poemas de Les fleurs du mal quase sempre manifestam no

    mbito lrico.* E no entanto a dedicatria a Arsne Houssaye ambiciosae, em grande medida, proftica. "Quem de ns no sonhou, em seusdias de ambio, com o milagre de uma prosa potica, musical, sem

    ritmo nem rima, flexvel e aguda o bastante para se adaptar aosmovimentos lricos da alma, s ondulaes do devaneio e aos sobressaltosda conscincia?" [Pgina 72]

    _____________________________(continuao da nota de rodap **, da pgina anterior) prolixa, parecendo aceitar doromance apenas o que emanae habitualmente se mostra difuso e espaado dalinguagem potica a ele incorporada, e cuja condensao exige com tal violncia que,

    paradoxalmente, o reduz brevidade do poema em prosa.Le roman, ainsi conu, ainsicondense en unepage ou deux etc. (Cf. o pargrafo inteiro, Rebours, Charpentier,Fasquelle, 264-5.)(nota de rodap) * Tarefa fascinante mas aqui um tanto marginal, motivo pelo qual adeixo pata outra oportunidade , a de estudar como paralelamente no sculo XIXvai se acentuando dentro dos poemas essa superao do que est segmentado em"romanesco" e "potico". As mesmas Flores do malso exemplo freqente: FemmesDamnes (Pieces Condamnes); Confission; La Servante au grand coeur... Diante daobjeo de que em todos os tempos a poesia expressou situaes romanescas querdizer, redutveis ao relato enunciativo , cabe repetir que uma coisa poetizarverbalmente uma situao no-potica em si, e outra manifestar uma situao que una com a poesia que a revela verbalmente. Por trs disso persiste a razo invarivel deque se possa falar de "poesia lrica" e "poesia dramtica", sendo que a diferena apontasempre para a situao, no primeiro caso consubstanciai forma, no segundo submetida poesia por uma transubstanciao que s o poeta capaz de operar. Na composiodaIlada h dois tempos, h resoluo dialtica em obra; a Ode to the West Windseprope como uma intuio contnua que abarca o impulso criador e a forma que esseimpulso adquire verbalmente; todo poeta lrico sabe que nele nada pode separar seusentimento de sua palavra.

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    Mas, caramba! No estava ali, para isso, a rica prosa literria francesa?Com tais palavras no revelar Baudelaire sua suspeita de que, numsentido obscuro e que ele prprio no captava com preciso, essa rica

    prosa literria era inoperante, insuficiente, intil?

    5. O CONDE E O VAGABUNDO

    Em 1870 Ducasse vomita Maldoror, e por inteiro, com uma eficciaassombrosa, romance e poema mergulham um no outro sem titubear.

    Submetendo a linguagem enunciativa marcha de um aconteceralternadamente mgico, onrico, romanesco, abstrato, de pura criaoautomtica, Lautramont inventa uma realidade pueril a realidade deum deus de vinte anos como arete confesso contra a realidadecotidiana e exalta, candoroso, as foras negativas num prolongado

    pesadelo delirante, lcido, sem paralelo. Mas ao inventar essa realidade aprefere potica, regida pela analogia antes que pela identidade, e a extraide si mesmo numa indizvel operao noturna. Negando-se a submeter

    sua realidade potica s ordens estticas da linguagem, superada por umaavalanche de imagens fulgurantes e deslumbramentos atrozes, o Condesedeixa falar, derrama no amplssimo perodo retrico da prosa umarevelao em que o autntico e o puerilmente alinhado (aderncias deEugne Sue, truculncias, "manifestos", trivialidades) se entremesclam ese confundem. Estamos fartos das hipertrofias dos surrealistas a propsitodo Conde. Mas eis um produto livre de toda especificao, que se abrecomo poema e termina num romance, sem ser jamais uma coisa nem

    outra, e sim apresentao potica do mbito vital completo de umhomem; sem parcelamento esttico nem catarse lrica, sem romance puronem poema puro, os dois e nenhum. Os surrealistas gostam de aderir aoConde por razes de precurso metdica, instrumental, pelo vmitoonrico, sexual, visceral, a plasmao cenestsica do espr