COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os...

112
1 COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- GOVERNAMENTAIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO: PROTAGONISTAS CONSTITUTIVAS DE NOVOS MODELOS PRISIONAIS OU REPRODUTORAS DOS MODELOS TRADICIONAIS? São Paulo, 2006. {Dissertação de Mestrado em Serviço Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo} INTRODUÇÃO A violência dentro das prisões do Estado de São Paulo, por volta de 1990 se acentuava cada vez mais, em face da deterioração de vários determinantes: a falta de higiene, a precariedade dos serviços de saúde e jurídico, a corrupção entre presos e funcionários, a incompetência administrativa, a prática de torturas psicológica e física aliados à superlotação eram alguns dos indicadores da “questão social” em suas particularidades no cotidiano prisional do Estado de São Paulo. O descaso governamental era tanto, com relação à situação dos encarcerados que isso contribuiu para que eles se fortalecessem em sua dor, em seu ódio, em sua ira e, pouco a pouco, foram se agrupando e se organizando para exigirem do Estado melhores condições de vida prisional. Esse agrupamento social também mostrou ao Estado que seus custodiados estavam mais equipados e organizados, estrategicamente, que o próprio Estado. Essa afirmativa foi claramente demonstrada não só ao Estado, mas à sociedade brasileira no dia 18 de fevereiro do ano de 2001, quando deu início a maior rebelião já registrada historicamente no país. Era final de semana, domingo de manhã até à tarde, a maior organização criminosa do país – Primeiro Comando da Capital – PCC conseguiu mobilizar presos de várias instituições prisionais, da capital ao interior do Estado, os quais se rebelaram, fazendo seus reféns funcionários e os próprios familiares.

Transcript of COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os...

Page 1: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

1

COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO: PROTAGONISTAS CONSTITUTIVAS DE NOVOS MODELOS PRISIONAIS OU REPRODUTORAS DOS MODELOS TRADICIONAIS? São Paulo, 2006. {Dissertação de Mestrado em Serviço Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo}

INTRODUÇÃO

A violência dentro das prisões do Estado de São Paulo, por volta

de 1990 se acentuava cada vez mais, em face da deterioração de vários

determinantes: a falta de higiene, a precariedade dos serviços de saúde e

jurídico, a corrupção entre presos e funcionários, a incompetência

administrativa, a prática de torturas psicológica e física aliados à

superlotação eram alguns dos indicadores da “questão social” em suas

particularidades no cotidiano prisional do Estado de São Paulo.

O descaso governamental era tanto, com relação à situação dos

encarcerados que isso contribuiu para que eles se fortalecessem em sua

dor, em seu ódio, em sua ira e, pouco a pouco, foram se agrupando e se

organizando para exigirem do Estado melhores condições de vida prisional.

Esse agrupamento social também mostrou ao Estado que seus custodiados

estavam mais equipados e organizados, estrategicamente, que o próprio

Estado.

Essa afirmativa foi claramente demonstrada não só ao Estado,

mas à sociedade brasileira no dia 18 de fevereiro do ano de 2001, quando

deu início a maior rebelião já registrada historicamente no país.

Era final de semana, domingo de manhã até à tarde, a maior

organização criminosa do país – Primeiro Comando da Capital – PCC

conseguiu mobilizar presos de várias instituições prisionais, da capital ao

interior do Estado, os quais se rebelaram, fazendo seus reféns funcionários

e os próprios familiares.

Page 2: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

2

A população brasileira acompanhava as imagens pela televisão do

movimento de rebeldia que se espalhava pelas prisões, sendo a maior parte

delas subordinadas à Secretaria de Administração Penitenciária.

O principal centro de comando da capital, denominado PCC

estava na Casa de Detenção de São Paulo, que na época abrigava 7 mil

homens.No chão do pátio da Casa de Detenção, as mensagens que o grupo

escrevia eram transmitidas ao mundo pelas redes de TV. O espetáculo era

horrível e de total descontrole do Estado em relação aos presos que

mantinha sob sua custódia.

Os presos rebelados não apresentavam, naquele momento,

denúncias de maus-tratos físicos e psicológicos. As exigências eram de

desativação do anexo da Casa de Custódia da cidade de Taubaté, onde as

regras disciplinadoras eram extremamente severas, permanecendo os

presos, 23 horas por dia isolados em celas, e o retorno dos líderes do PCC à

Casa de Detenção de São Paulo, os quais haviam sido removidos dias antes

para o anexo de Taubaté. A prioridade para os rebelados era o retorno de

suas lideranças.

Os articuladores do movimento, denominado pela imprensa de

“megarebelião”, escolheram estrategicamente a data. Era dia de visitas de

familiares e de amigos. O fato de terem como reféns inúmeras pessoas

inocentes: adultos, idosos e crianças evitariam a ação violenta das

autoridades, o que representou um desafio ao Estado para que os

problemas decorrentes das rebeliões fossem resolvidos sem mais violência.

Em algumas prisões, as rebeliões foram controladas no mesmo

dia e, em outras, a situação se arrastou até o dia seguinte, deixando no final,

um saldo de 19 presos mortos em razão de brigas entre eles.

O movimento abrangeu a adesão de 29 unidades prisionais,

envolvendo 28 mil presos, fazendo com que os representantes legais do

Estado percebessem a real capacidade organizativa das “facções

criminosas” criadas e alimentadas dentro do próprio sistema penitenciário.

Este e outros fatos, que já vinham sendo registrados na história das prisões

do Estado de São Paulo, obrigaram seus representantes legais (Governo,

Secretário de Administração Penitenciária e gestores prisionais) a melhor

observarem os indicadores sociais constitutivos para eventos de tal

Page 3: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

3

natureza, sugerindo a adoção de novos métodos de trabalho e estratégias

inovadoras a fim de amenizar a corrupção, até então reinante, entre presos e

funcionários de várias prisões e o não-cumprimento legal das normas

reguladoras dos direitos e deveres das pessoas presas.

Diante da problemática exposta das prisões, a Secretaria da

Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, pioneira no Brasil a

tratar com exclusividade do sistema prisional, tendo à frente para comandá-

la o Secretário de Estado Nagashi Furukawa, percebeu que o sistema

penitenciário apresentava inúmeros problemas, dos quais os principais eram

os “maus-tratos físicos e psicológicos” sofridos pelos indivíduos presos.

Esse secretário havia atuado, anteriormente, como juiz de

execuções criminais, e apresentava uma postura profissional voltada à

humanização das prisões, por meio de métodos mais eficientes para o

atendimento das necessidades sociais postas pelos indivíduos presos.

O secretário reconhecia, publicamente, que muito existia a ser

feito e que métodos inovadores deveriam ser testados a fim de “humanizar

as prisões”. No entanto, contraditoriamente ao seu discurso, determinou aos

diretores prisionais que identificassem os líderes das organizações

criminosas existentes nas prisões, a fim de puni-los com rigor “dentro da lei”.

Identificados os líderes, estes foram confinados em penitenciárias

de máxima segurança.

A Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São

Paulo mantém atualmente três penitenciárias desse tipo, gerando um total

de 820 vagas1.

As penitenciárias onde os indivíduos foram confinados, ao

contrário das demais, os presos permanecem 23 horas recolhidos em celas,

sem direito a ouvir rádio ou ver TV. Somente têm acesso a leituras, essas,

triadas pela administração da penitenciária. Também não têm direito à visita

conjugal, conhecida como visita íntima, tampouco contato físico com os

familiares. Entre os presos e as famílias há uma separação de vidro e uma

tela.

1 Nas cidades de Taubaté, Presidente Bernardes e Avaré.

Page 4: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

4

Esses métodos estão sendo utilizados como um castigo severo

àqueles que têm afrontado o Estado dentro das prisões.

Segundo o secretário, o castigo é severo, mas está dentro do que

a Constituição Federal de 1988 permite e também tem prazo estipulado.

Essa condição não pode exceder a seis meses, na primeira entrada do

preso, mas se ocorrer reincidência, esse prazo passa a ser de doze meses.

De acordo com ele, esse método tem desestimulado a atividade dos líderes

de facções criminosas.

Entretanto, ao contrário do pensamento do secretário, o

confinamento dos “líderes de facções” não tem se mostrado eficaz. A

realidade prisional vem mostrando que as facções criminosas se mantêm

vivas e articuladas em atividades ilícitas dentro das prisões, nas suas

inúmeras ramificações.

A atuação e a postura do secretário em relação à criação desse

tipo de prisão, na época da “megarebelião”, foi no mínimo paradoxal, haja

vista que ao mesmo tempo em que apresentava discurso “humanizador" da

pena, determinou aos diretores dessas prisões que endurecessem dentro da

lei o sistema punitivo aos líderes das facções, com a ilusão de que prisões

mais rígidas e severas seriam a “panacéia” para combater as lideranças

negativas e os ilícitos penais promovidos por elas.

O que tem ficado patente é que o severo confinamento dos líderes

de “facções” não consegue aplacar o crescimento de suas ramificações,

tampouco com relação aos crimes praticados por várias facções dentro das

prisões. Somente no ano de 2005 ocorreram 13 rebeliões, com 28 mortes e

inúmeros funcionários reféns. As mortes foram provocadas por desavenças

entre as diversas facções criminosas existentes dentro das prisões.

Criadas as prisões com a autorização do secretário, para melhor

conter os indivíduos que apresentavam lideranças “negativas”, ele, ao

mesmo tempo, perseguia seu ideal de instituir prisões com menos vagas, em

torno de 210, onde se pudessem implantar métodos inovadores, voltados à

promoção humana e social dos indivíduos que iriam cumprir pena. Nessas

prisões, em razão do número menor de presos, os indivíduos seriam

conhecidos pelo nome e respeitados em seus direitos sociais, pois, além dos

funcionários públicos designados para trabalhar nessas prisões,

Page 5: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

5

denominadas Centros de Ressocialização - CR, contar-se-ia também com a

participação da comunidade organizada em organizações sociais, sem fins

lucrativos, para prestarem serviços aos custodiados. O Estado repassaria às

Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários

à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

Nesta perspectiva foi com o empenho do secretário Nagashi

Furukawa que o governador à época, Mário Covas, instituiu o Decreto nº

45.403/2000, que propiciou a utilização de termos de convênio de parcerias

com entidades privadas, que primassem em sua finalidade a “reintegração

social do preso”.

A maior vantagem desse convênio, segundo o secretário, é que as

ONGs devem trazer como finalidade a melhoria das condições de vida do

homem preso e não o lucro.

Atualmente, essa proposta de gestão administrativa prisional

compartilhada, entre o Estado e a comunidade, atinge 22 Unidades

Prisionais, com projeção de expansão de propostas para outras prisões de

grande e médio porte em curto espaço de tempo.

A evolução das parcerias com as ONGs está embasada de acordo

com a Secretaria de Administração Penitenciária nos resultados atingidos

pela administração mista, entre representantes do governo e da sociedade

civil, que vêm minimizando a margem de gastos imediatos com a

manutenção de toda a estrutura carcerária e ainda propiciando ações de

caráter social, que além do intuito humanístico, traz consigo a redução de

gastos mediatos, já que todas as ações das Organizações Não-

Governamentais devem convergir para a não “reincidência” do indivíduo que

cumpre pena nos Centros de Ressocialização.

Mas, se na prática este modelo de gestão tem apresentado aos

olhos da Secretaria alguns avanços na prestação de serviços aos indivíduos

presos, tem apresentado contradições que necessitam ser investigadas, por

isso nosso interesse em estudar o tema.

Nossa intenção ao longo deste estudo é o de investigar elementos

que permitam compreender e desvelar a dinâmica dos Centros de

Ressocialização e sua parceria com o Terceiro Setor.

Page 6: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

6

Importante esclarecer que a escolha em realizar o presente

estudo provém da vivência e dos conhecimentos acumulados durante nossa

trajetória profissional no Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo

desde 1986, primeiramente na qualidade de assistente social, período de

1986 a 1989. De 1990 a 2000, como diretora de equipes interprofissionais,

estas responsáveis por elaborar e executar a política de assistência social

aos indivíduos presos. No período de novembro de 2000 a 2002, fomos

designadas pelo atual Secretário de Administração Penitenciária, Nagashi

Furukawa, para dirigir mediante metodologias específicas, o primeiro Centro

de Ressocialização, instalado na cidade de Bragança Paulista – São Paulo.

Este até hoje tem sido referência para os demais centros implantados no

Estado de São Paulo.

No período de 2002 a 2004, atuamos à frente da Direção do

Centro de Ressocialização da Cidade de Presidente Prudente – São Paulo

e, atualmente somos gestora geral da Penitenciária Feminina do Butantã,

esta localizada na cidade de São Paulo.

O desejo em realizar este estudo é um desafio, que acreditamos

poder contribuir para uma leitura crítica das discussões que se tem travado

acerca da inserção de Organizações Não-Governamentais no sistema

penitenciário do Estado de São Paulo, seus limites e possibilidades de

prestação de serviços de assistência aos indivíduos presos.

A investigação busca analisar se as ONGs inseridas nos CRs

vêm prestando serviços que elevem as condições de vida e de compreensão

dos indivíduos presos no sentido de sua humanidade e cidadania, para que

possam retornar à sociedade como sujeitos sociais detentores de direitos e

deveres.

Consideramos que a ideologia e metodologias traçadas pelo

Estado, no sentido de derrubar as grades e muros prisionais, chamando a

sociedade civil a participar da gestão do processo de trabalho prisional,

devam ser vistas com seriedade, uma vez que até então, um dos principais

fatores negativos da prisão era o isolamento do microcosmo prisional do

macrocosmo social, delimitados pelas grades e enormes muros de cor

cinzenta ladeados pela polícia armada.

Page 7: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

7

O Estado, ao simbolicamente derrubar os muros prisionais para a

sociedade transitar, conclama-a a assumir parte de sua responsabilidade

nos problemas e conflitos sociais que se encontram segregados na prisão.

Contudo, é fato comprovado que a maioria dos indivíduos presos, em

nossas prisões, são oriundos de grupos sociais excluídos e marginalizados,

por uma sociedade capitalista predatória e reprodutora de uma massa de

excluídos e desesperançados, abandonados à própria sorte, por um Estado,

deficitário e enfraquecido, que passa a existir precisamente para pagar juros

a credores externos e manter uma iníqua ordem social.

Os filhos desta sociedade passam a viver numa sociedade injusta,

onde parafraseando Eduardo Galeano, pouquíssimos vivem com sobras e

muitos vivem apenas de sobras, empurrando para a marginalidade um

número de cidadãos expressivos, principalmente os mais jovens 2.

Dados do Ministério da Justiça Federal indicam que mais de 50%

das pessoas presas apresentam faixa etária em torno de 20 a 30 anos, são

desqualificados profissionalmente e nem chegaram a concluir o ensino

fundamental.

Esse é o perfil dos presos nas prisões estatais e,

conseqüentemente, nos Centros de Ressocialização. Isto coloca em questão

a prática do Estado com sua política pública, enquanto sistema prisional e

prática tradicional, que poderá ou não estar contraposta à iniciativa da

parceria Estado/ONGs.

Nesse sentido, nossa investigação levou a privilegiar questões que

levassem em conta a responsabilidade das ONGs, frente às atribuições que

lhe foram delegadas pelo Estado por meio do convênio de parceria realizado

e, ao mesmo tempo, precisávamos saber se o Estado está preocupado em

investigar se está havendo eficiência e eficácia na prestação dos serviços

disponibilizados pelas ONGs, diante das demandas apresentadas pelos

indivíduos presos nos CRs.

Nossa hipótese era de que os serviços que vêm sendo

disponibilizados pelas ONGs não têm alcançado os objetivos propostos, no

2 Galeano, E. E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L &PM, 1999, p.33.

Page 8: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

8

sentido de garantir o atendimento com eficiência e eficácia às

necessidades e aos direitos dos indivíduos presos

Perguntamos, quando começamos a refletir sobre este trabalho se

o Estado estaria se omitindo em suas obrigações como Estado de direito e

responsável pela garantia dos direitos de todos os presos, por igual. Isto

porque, como assistente social, defendemos as políticas públicas e a

responsabilidade do Estado, com relação às necessidades humanas e

sociais dos indivíduos presos. Entretanto, o que se vê é a descentralização

administrativa estatal e a transferência ao chamado Terceiro Setor dos

serviços de assistência essenciais à promoção humana e social do indivíduo

preso, e a precarização, ainda mais, dos serviços que deveriam elevar a

condição humana de todos aqueles que cumprem pena nas prisões

denominadas Centros de Ressocialização.

Baseadas nas considerações iniciais, e como profissional do

Serviço Social em defesa de um trabalho ético, político e social sério que

venha ao encontro das reais demandas dos usuários presos, não queremos

nos contentar com aparências e com discursos propagados pela Secretaria

de Administração Penitenciária quanto aos resultados “positivos” dos

trabalhos prestados pelas ONGs nos CRs.

Como profissional pioneira na ação prática deste modelo de

gestão prisional, temos clareza de que esse modelo é permeado de

contradições que têm dificultado a eficiência e eficácia dos serviços

prestados, contudo cremos que existem condições objetivas para superá-las,

por isso o interesse em investigá-las.

Realizamos a investigação num universo constituído de três

Centros de Ressocialização, dentro da totalidade de 22 CRs: um deles está

situado na região oeste do Estado de São Paulo e dois estão situados na

região central do Estado.

Os sujeitos investigados foram:

O Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São

Paulo, por ser o idealizador do modelo arquitetônico CR e principal

incentivador da inserção de ONGs nas prisões;

Page 9: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

9

Três diretores gerais, por serem funcionários públicos de carreira e

representantes do Estado, no modelo de gestão CR. Todos eles já

vivenciaram profissionalmente prisões administradas somente pelo Estado.

Três agentes de segurança penitenciária, por serem funcionários

públicos e atuarem na área de segurança e disciplina dentro dos CRs.

Utilizamos também o método de escolha de agentes que já haviam atuado

em prisões administradas somente pelo Estado para que eles pudessem

mencionar com clareza as diferenças de método de trabalho em prisões

tradicionais e as administradas em parcerias com as ONGs.

Três gerentes de execução dos serviços, estes contratados em

regime de CLT pelas ONGs.

Três profissionais da área de Serviço Social, que são contratados

pelas ONGs para compor a equipe que deve elaborar e executar os serviços

de assistência aos presos. Estes assim como os gerentes não tinham

qualquer experiência de atuação em prisões administradas pelo Estado.

Três indivíduos que cumprem pena no CR, todos em regime

prisional fechado e que já vivenciaram cumprimento de pena em prisões

administradas somente pelo Estado.

Para a investigação sobre a eficiência e eficácia dos CRs foi

separado o grupo de sujeitos de cada categoria mencionada, em cada CR,

totalizando 15 sujeitos entrevistados, mais o Secretário de Administração

Penitenciária do Estado de São Paulo.

Não encontramos resistências por parte dos investigados, pois o

fato de já ter atuado nos CRs e ter sido pioneira na gestão do primeiro CR,

somos conhecida e respeitada profissionalmente, por isso a recepção foi

acolhedora por todos.

Para realizar a pesquisa, primeiramente solicitamos autorização

do Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, e

mantivemos contatos por e-mails com os presidentes das ONGs e diretores

dos CRs, e, após o agendamento das entrevistas, dirigimos-nos às três

cidades onde estão instalados os Centros de Ressocialização.

Os investigados foram de fundamental importância para o

resultado desta pesquisa, uma vez que eles retrataram suas percepções

quanto ao processo de parceria entre Estado e sociedade civil e as

Page 10: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

10

dificuldades que enfrentam no cotidiano para a prestação dos serviços aos

indivíduos presos.

No tocante às técnicas utilizadas, optamos por realizar entrevistas

abertas semi-estruturadas, seguindo apenas um roteiro de questões para

nortear as entrevistas que foram individuais. As questões que nortearam as

entrevistas permitiram o levantamento de um conjunto de informações que

possibilitaram o desenvolvimento deste trabalho.

O processo de organização e de leitura dos dados objetivando a

análise foi um momento vivido com intensidade e dificuldades. Na realidade,

tinhamos clareza quanto ao risco do viés de nosso olhar viciado pela prática

profissional no sistema prisional e isso com certeza influenciou algumas

análises desenvolvidas ao longo deste estudo, No entanto, partimos da

premissa de que todo pesquisador e todo profissional impregnam suas

ações por sua visão de mundo e postura profissional sóciopolítica e

histórica.

Nessa perspectiva, o que se buscou foi garantir o debate e os

questionamentos acerca das questões formuladas e coletadas, mantendo

sempre o relato mais fiel possível, evitando-se assim uma análise

interpretativa permeada de preconceitos e julgamentos, na medida em que

conhecemos a realidade e a dinâmica concreta do sistema de gestão

prisional CRs.

Baseadas nessas considerações iniciais apresentamos as partes

que integram este estudo. O primeiro capítulo compõe-se de um estudo

acerca da história constitutiva da pena privativa de liberdade, dos

mecanismos contensores utilizados, desde o período da vingança privada

aos dias atuais considerado o período humanitário da pena.

O estudo elaborado neste capítulo possibilita encontrar subsídios

para compreender os pressupostos evolutivos dos mecanismos utilizados

pela justiça penal e a luta dos chamados precursores dos sistemas

penitenciários, que preocupados com a situação das prisões, obrigaram o

Estado regulador a criar uma política criminal mais justa e preocupada em

atender aos anseios humanitários, no que concerne à preservação dos

direitos humanos e sociais dos indivíduos presos.

Page 11: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

11

O segundo capítulo enfoca a constituição do sistema penitenciário

do Estado de São Paulo, a diversidade dos modelos institucionais

arquitetados para o atendimento das diferentes demandas apresentadas

pelos indivíduos custodiados pelo Estado e a relação de parceria que o

Estado vem mantendo com o chamado Terceiro Setor, na busca de

estratégias que garantam a eficiência e eficácia dos serviços de assistência,

estes postulados na Lei de Execução Penal – LEP, nº7.210/84.

Nesse capítulo analisamos a desresponsabilização do Estado para

com os serviços de assistência aos indivíduos presos, delegando às

Organizações Não-Governamentais-ONGs a prestação dos serviços

previstos no art. 11 da LEP.

O eixo condutor da análise passa pela crítica no que diz respeito

às atribuições delegadas pelo Estado as ONGs, pelo processo de

transferência de obrigações originárias do Estado

O terceiro capítulo é dedicado à análise da visão dos sujeitos

sociais pesquisados, quanto ao modelo de prisão administrado por essa

parceria entre Estado e as Organizações Não-Governamentais, investigando

até que ponto as ONGs conseguem dar conta da construção de “novo

modelo de gestão prisional”, no que se refere ao processo de "reintegração

social” do indivíduo que cumpre pena.

Por último, apresentamos as considerações finais, apontando

algumas sugestões, no sentido de oferecer subsídios para que Estado e

ONGs possam mediante parceria, desenvolverem programas, projetos e

serviços que venham a contribuir com a emancipação dos sujeitos presos,

objetivando o efetivo exercício de sua cidadania, pós-cumprimento de

pena.

Page 12: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

12

CAPÍTULO I

HISTÓRIA CONSTITUTIVA DA PENA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, OS MECANISMOS CONTENSORES E SUA

EVOLUÇÃO

A pena, em seu contexto mais amplo, tem sua origem em tempos

remotos, sendo tão antiga quanto o surgimento do próprio homem. Surgiu

inicialmente como manifestação de simples reação natural do homem

primitivo para conservação de sua espécie, sua moral, sua integridade;

depois, como forma de retribuição e de intimidação, através dos meios mais

cruéis e sofisticados de punição, até a atualidade, quando pretende se afirmar

com uma função terapêutica e recuperadora.

Etimologicamente, a palavra pena provém do latim poena, porém,

com derivação do grego poine que significa dor, castigo, punição, expiação,

penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança e recompensa.

No que concerne à evolução histórica da pena, destacam-se no

direito penal algumas fases, como: a) período da vingança privada, b) período

da vingança divina, c) período da vingança pública, d) período humanitário da

pena. Períodos estes que não se sucederam sistematicamente, com épocas

de transição certa de um para outro. Não possuem, assim, exatas

delimitações de início e fim. Em certos tempos, as fases se mesclam pelas

Page 13: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

13

definições conceituais que confundem o direito com a moral, o crime com o

pecado, a religião com o Estado, a justiça divina com a justiça dos homens.

1.1 Período da Vingança Privada

A vingança individual é apontada por muitos autores como a forma

mais remota da manifestação da pena. Caracterizava-se como uma reação

puramente instintiva do ofendido. A satisfação do lesado contra aquele que

lhe causara um mal. Tal satisfação acabava por constituir nova ofensa que

deixava de ser punida pela inexistência de uma autoridade competente.

Mais tarde, com a organização dos grupos sociais, imbuídos de um

espírito de solidariedade e interesse comum na proteção da coletividade, esse

tipo de pena se colocou ao lado do vingador, praticando uma vingança

coletiva e singular manifestada de forma limitada, excessiva, sem nenhuma

lógica.

Com o surgimento da sociedade de estrutura familiar, a pena

passou a se expressar sob a forma de privação da paz social. O membro do

mesmo grupo que cometia o delito era expulso da tribo, ou da comunidade da

paz, sem armas nem alimentos e ninguém podia auxiliá-lo, mas persegui-lo.

Seu patrimônio também era atingido. Persistia uma reação desproporcionada,

sem correspondência com a ofensa, o que culminava em lutas acirradas entre

grupos e tribos que aos poucos iam se debilitando, enfraquecendo,

extinguindo-se.

Surge, então o período neolítico, mais exatamente na segunda

idade da pedra, o talião. Este tipo de punição representou uma grande

conquista no campo repressivo, pois a reação era proporcional à ação, ou

seja, a pena imposta era estabelecida conforme o crime cometido. Da

vingança, até então limitada, passou-se para a vingança limitada e a pena

punia o mal com o mal, a retribuição era de igual para igual, impondo ao

delinqüente o mesmo dano ou mal por ele causado, segundo a imposição do

famoso primeiro talião:

“Oculum pro oculo – detem pro dente. Olho por olho”, o

resultado era a cegueira parcial de duas pessoas; braço por

Page 14: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

14

braço, a conseqüência era a invalidez de dois homens,

enfraquecendo-se o grupo frente aos inimigos externos.

A lei de talião era bem mais racional do que as outras formas de

vingança punitiva, mas ainda não era reconhecida propriamente como um

gênero da pena, porém sua importância lhe é devida por ser a primeira

fórmula de justiça penal.

Com o decorrer dos tempos e a evolução dos povos surgiu uma

forma moderada de penas, a composição.3 Este era o preço pelo qual o

ofensor comprava a impunidade do ofendido, ou de seus parentes, com

dinheiro, armas, ou utensílios e gado, não havendo, portanto, sofrimento físico

e pessoal, mas uma reparação proporcionalmente correspondente. O

sentimento e a vingança impulsionavam a justiça e determinavam que esta

fosse realizada. Assim como o talião, o sistema de composição não é

considerado, ainda, um verdadeiro gênero da pena.

A composição, que foi largamente aceita na sua época, constituem

um dos antecedentes da moderna reparação do direito civil e das penas

pecuniárias do direito penal.

O período da vingança privada era chamado de sentimental, porque

era o sentimento que provocava e demandava a justiça. Assim, imbuídas

sempre de um espírito de vingança, suas diversas maneiras de punir

representavam uma retribuição à reparação da ordem e da paz coletiva. Estes

diferentes tipos de punição foram praticados pelos povos antigos, alcançando

até o direito romano.

1.2 Período da Vingança Divina

Esse período pelo qual passou a pena era comandado pela

religião. As normas de condutas impostas aos indivíduos, quase sempre,

eram inspiradas em preceitos oriundos, supostamente dos deuses. A reação

passa a ter caráter religioso, em conexão com o sistema do talião e o da

composição. O direito aparece envolvido por princípios religiosos: a religião

3 CUELLO,Calon. Derecho penal. Barcelona: Editora Bosch, v. 1, 1975, p.59.

Page 15: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

15

era o próprio direito, imbuído de espíritos místicos. O delito era uma ofensa à

divindade que, uma vez ofendida, atingia a sociedade inteira. Para se aplicar

pena, levava-se em conta o status social do delinqüente. Cominavam-se

penas mais leves, principalmente pecuniárias, aos nobres, enquanto aqueles

que pertenciam às classes mais baixas da sociedade eram submetidos a

penas corporais por não possuírem condições econômicas para arcar com

as multas aplicadas.

Ainda, o poder dos reis e imperadores tinha caráter divino e as leis

penais encontravam-se introduzidas e misturadas nos livros sagrados. As

sanções se justificavam pela necessidade de obediência absoluta ao poder

constituído vindo de Deus. Os sacerdotes, por delegação divina, é que deviam

aplicar o castigo e prestar contas com o Senhor, no dia do Juízo Final.

O poder da Igreja era absoluto. Sua doutrina, dogmas e hierarquia

deviam ser respeitados pelos próprios imperadores, que estavam submetidos

ao rationes peccati, sujeitos à excomunhão; os condes, os barões e demais

senhores deviam jurar respeito às autoridades eclesiásticas e ajudar à Igreja

para poder comungar.

As autoridades políticas governavam no plano temporal com a ajuda

da Igreja. Os bispos, ao lado dos reis, faziam com que o povo seguisse os

seus passos em defesa dos inimigos do império. O poder real era constituído

pelo sacerdócio. O papa era quase a divindade e exercia seu poder, tanto

temporal como espiritual. O Estado era a Igreja.3

O delito era considerado ofensa aos deuses, confundindo-se com o

pecado. O castigo era temporal e espiritual. Aplicava-se para que o ofensor

alcançasse a bem-aventurança. Através do castigo, a alma do delinqüente

tornava-se pura. A quitação do dízimo era uma espécie de perdão judicial,

absolvia o acusado em nome de Deus e do Estado. A aplicação dos castigos

e o sistema punitivo da Igreja eram cruéis e infamantes, predominando entre

as sanções: a pena de morte, as penas corporais com mutilações de partes

do corpo, marcando e ferindo os ex-condenados de maneira a marginalizar e

estigmatizar eternamente.

3 TOUCHAND, Jean. História de lãs Ideas Políticas; Madri: Editora Tecnos, 1987, p. 106-125.

Page 16: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

16

A aplicação das penas era manipulada pelo direito canônico. A

classe alta tinha suas penas corporais substituídas por pecuniárias,

conseguindo clemências por suas faltas mediante pagamento em dinheiro.

Prevalecia uma desigualdade na aplicação da pena.

Para melhor entender o direito penal oriental e seu caráter religioso,

torna-se importante o estudo dos Códigos de Hamurábi e de Mani, bem como

as Leis Mosaicas, explícitas a seguir.4

Nesse período a pena era ainda dominada por total sentimento de

vingança, mas agora se tratava de uma vingança divina. Por exemplo, no

direito era tido como uma revelação dos deuses. Matar animais sagrados

constituía crime dos mais graves e os atentados contra os faraós eram delitos

de lesa-divindade, aos quais se aplicavam terríveis penas.

Os Cinco Livros, chamados Livros Sagrados, continham as leis

penais, vigorando também o talião: à espiã, cortava-se a língua; à adultera, o

nariz; ao estuprador, os órgãos genitais; os falsos escribas tinham as mãos

cortadas. Além do enforcamento e da decapitação, adotavam a fogueira, o

suplício das cinzas e a colocação na cruz, aos tidos como bruxos. A todos

esses sofrimentos alguns acessórios extras eram exigidos ou pela natureza

do crime ou pela opinião pública.5

Na Assíria, os apenados eram jogados aos animais ferozes ou em

fornalhas ardentes, eram queimados a fogo lento num tacho de bronze ou lhe

arrancavam os olhos. Os criminosos eram lapidados, crucificados, tinham as

costas queimadas, eram amassados sob os pés de animais, jogados aos

rochedos, fechados, pendurados, mutilados e deportados.6

Na Babilônia, por volta do ano 2250 a.C. surge o Código de

Hamurabi, atribuídos, ao Deus Sol. Possuía poucas normas de caráter

religioso, a vingança era praticamente desconhecida, acolhia o instituto do

talião e da composição impondo penas extremamente cruéis e tiranas. 7

4 DONNICI, Virgílio Luiz. A Criminologia na Administração da justiça Criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.p.9. 5 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um Paradoxo Social. Florianópolis: Editora da UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 7 - 8. 6 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianoplois: Editora da UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 9 –10. 7 6 OLIVEIRA, op. Cit. , p. 8.

Page 17: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

17

As punições na Pérsia eram tidas como as mais cruéis da época.

Inicialmente, baseavam-se na vingança e eram reguladas pelo talião. Depois,

em uma segunda fase, acreditava-se serem inspiradas pelo Deus Ahura-

Nazda; os reis passaram a representar a vontade divina e os delitos eram

considerados ofensas contra a deidade. Os soberanos impunham penas

crudelíssimas aos crimes: lapidação, esquartejamento, decapitação, cegueira,

aleijamento, crucificação, marca a fogo, empalação, veneno, apedrejamento,

enterro do corpo até o pescoço, esmagamento da cabeça entre duas pedras,

assamento em brasa, enforcamento de cabeça para baixo - escafismo - era

uma pena típica dos persas, ou seja, suplício dos botes, criada por Mitríades,

que segundo a História teria sido vítima da pena que ele próprio inventou.8

Em Israel a pena possuía em caráter religioso mais acentuado. As normas

penais incorporavam-se na legislação de Moisés, séc. XVI a.C, principalmente

nos primeiros livros da Bíblia; Êxodo, Levítico e Deuteronômio.

A pena tinha como objetivo combater a ira da divindade, a expiação

e a exemplaridade. Na lei mosaica imperava o talião, a composição só era

proibida para os casos de morte, as flagelações eram aplicadas a um grande

número de delitos, fixadas no máximo em 40 golpes. A pena capital não

estava isenta de crueldade. Praticava-se a lapidação, o fogo, a decapitação e

o estrangulamento. A mutilação só figura uma vez no Pentateuco.9

Na Índia, era o Código de Manu, que regulava o direito punitivo.

Este código, de caráter religioso, desconhecia o talião e a composição,

pretendia a purificação do criminoso mediante penas cruéis e exemplares:

cortavam o dedo de ladrão, o pé e a mão ao reincidente, a língua a quem

insultasse um regenerador, queimavam o adúltero em cama ardente,

entregavam a adúltera aos cachorros. 10

Na Grécia inicialmente vigorou a vingança privada, alcançando não

só o culpado, mas também a sua família. Com o surgimento do Estado, as

penas eram executadas em nome das divindades, cujas leis eram

sancionadas pelos deuses e encontravam-se misturadas nos códigos dos

templos. Do séc. VIII a primeira metade do séc. IX a.C., em Esparta, aplicava- 8 7 OLIVEIRA, op. cit. p. 9 – 10. 9 8 OLIVEIRA, op. cit, p. 10. 10 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984. p. 10.

Page 18: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

18

se a legislação de LICURGO. Em Atenas, no séc. VII a.C., através da

legislação de Dracon, constituiu-se uma pena única, a pena de morte para

todos os delitos, não interessando a gravidade. No séc. VI a.C., com SOLON,

a legislação tornou-se mais humana. Com freqüência, usavam a chibata,

multa, anulação dos direitos de cidadania, confisco, ferro em brasa e exílio. A

traição e o sacrifício eram punidos com a pena de morte, podendo ser evitada

por um exílio voluntário. Ainda na Grécia manifestavam-se os filósofos Platão

e Aristóteles. Platão não era a favor da pena-vingança, a pena deveria ser

imbuída de um propósito utilitário, de reforma ou de cura, semelhante aos

medicamentos. A pena tinha o sentido corretivo, pois o vício e o crime eram

considerados como enfermidade da alma. Aristóteles entendia que o mal e o

crime eram produtos do querer livre e racional do homem; e a pena deveria

surgir como retribuição do mal pelo mal. 11

O direito romano também foi influenciado pela vingança privada e

divina. Os crimes capitais eram numerosos, normalmente a morte era

envolvida por agravante ou tortura acessória. Entretanto, com o Império, o

poder governamental tendeu a tornar-se absoluto e, conseqüentemente a lei

penal se agravou, foram instituídas penas mais severas. Aos patrícios era

dada a morte por decapitação simples, aos plebeus aplicavam-se meios

degradantes e cruéis e aos escravos a crucificação. Crudelíssima era a

punição dada à infanticida: era atirada na água, costurada dentro de um

saco de couro onde eram previamente colocados um macaco, um galo, um

cachorro e uma serpente.

Em síntese, esse é o panorama da pena durante o período em que

predominava a modalidade de vingança divina, quase sempre auxiliada pelo

talião e a composição. Entretanto, à medida que evoluímos na civilização, os

crimes contra a pessoa e seu patrimônio superam as formas religiosas de

criminalidade e sua penalidade vai enfraquecendo. A criminalidade religiosa

vai perdendo cada vez mais sua misticidade, mesmo que supostamente

emanada de um poder supremo, e vai sendo aos poucos assimilada para

tornar-se uma simples realidade.

11 DONNICI, Virgílio Luiz. A criminologia na administração da justiça criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976. p. 11.

Page 19: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

19

1.3 Período da Vingança Pública

Novos conceitos de valores com relação à penalidade foram

surgindo com a evolução das civilizações, possibilitando a delimitação

definitiva dos campos do direito e da religião. Não era mais possível aceitar as

leis como simples costumes sagrados, reveladas e sancionadas pelos deuses,

misturadas com os regulamentos litúrgicos, nos antigos códigos dos templos.

O Estado assume a parte principal da execução da sanção penal e,

em defesa do soberano, passa a aplicar as penas para cuidar da segurança

dos governantes. O Estado assume o poder-dever de manter a ordem e a

segurança social, chamando para si o exercício da pena, tirando essa

titularidade da mão do ofendido e da vítima ou de sua família. Para a garantia

da paz social, qualquer conduta suspeita era arbitrariamente considerada

delituosa. Castigos desumanos caracterizavam o absolutismo monárquico, e

ainda confundiam-se crime com pecado e direito com religião.

Ideologicamente a Igreja ainda continuava presente como instrumento de

direção governamental.

A composição, modalidade de pena que no período da vingança

privada era uma faculdade para compensar ou reparar o delito, passa a ser

obrigatória, ou seja, torna-se um dever jurídico, e a pena, nesse período,

perde seu fundamento religioso para assumir uma função eminentemente

política. Tanto as autoridades julgadoras como as que legislavam eram

subordinadas ao titular maior da administração do governo. Os príncipes,

monarcas ou também denominados soberanos dirigiam os assuntos criminais

de acordo com seus próprios interesses.

Não é possível precisar a época em que ocorreu a transição do

privado ao público. Em Roma, no fim da monarquia, nas leis compiladas por

Papirio, sob o título de Jus Civilis Papirianum, os delitos de morte eram

considerados infrações de caráter público e seus autores punidos pelo

Estado. Após a queda da monarquia, aproximadamente 500 anos a.C., com a

Lex Valeria, encerra-se o poder discricionário penal exercido pelos monarcas,

senadores, magistrados e pater-famílias. Com o advento da República, surge

Page 20: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

20

em Roma a primeira e grande expressão do direito penal romano, a Lei das

XII Tábuas, possuindo 32 preceitos penais. 12

No ano 200 a.C inicia-se um período em que as punições são mais

brandas, os delitos privados são punidos com penas pecuniárias, e a pena de

morte deixa de ser a dominante. A pena torna-se definitivamente pública, com

o advento da Leges Juliae de César e de Augusto, que criou o Ordo

Judicorum Publicorum, segundo os quais para cada delito era cominada uma

pena fixada em lei poena legitima. Os romanos passaram também a fazer

uma distinção sistemática entre crime publico e privado. A partir do séc. II, os

tribunais especiais conduziram e julgaram os processos com inteira liberdade

e o mais desumano rigor. 13

Na Idade Média, os crimes religiosos ocorriam com freqüência e os

capitais não eram tão numerosos. Na tentativa de evitar a pena de morte a

Igreja punia o clero através da segregação, que possibilitava o

arrependimento. Os monges rebeldes ou infratores eram recolhidos em

penitenciários, ou seja, em celas numa ala dos mosteiros onde, mediante o

recolhimento e a oração pretendia-se que se reconciliassem com Deus.14 A

internação em mosteiros e reclusão em celas deu origem à pena privativa da

liberdade e ao uso da expressão celular.

A Idade Moderna foi caracterizada pelo apogeu da repressão.

Segundo Jesuan de Paula Xavier foram acolhidos pela Europa, do século XIII

ao século XVIII, os seguintes tipos de penas: morte pelo azeite fervendo,

forca, espada, execução em efígie, cegamento, marca com ferro em brasa,

dilacerações dos membros até a morte, mutilações, açoites, ferretes,

trabalhos forçados em minas, pedreiras ou outros serviços públicos, censura,

multa, confisco, retratação publica, peregrinação e banimento.15

A execução da pena era acompanhada por cerimônia destinada a

impressionar o povo. O condenado era submetido a um prolongado ritual de

terror. O público assistia ao espetáculo em que predominava o requinte e a

sofisticação dos suplícios. Por isto é que os suplícios se prolongam ainda 12 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianoplois: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 16. 13 OLIVEIRA, op. cit. P. 16. 14 LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. 15 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984. p. 19.

Page 21: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

21

depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos

arrastados na grade, expostos à beira das estradas. 16 O dia do supliciamento

transcorria em clima de festa. O povo aplaudia e aclamava. Não só participava

ativamente da execução, como libertava o condenado e, às vezes, o

perseguia até a morte.

Com o passar do tempo autoridades perceberam que esses

espetáculos eram inúteis, não mais serviram à função exemplar de castigar, a

pena não podia mais objetivar uma vingança pública. Percebeu-se a

necessidade de adotar uma outra forma de punir. Foi quando teve início um

novo período na história da pena, o período humanitário.

1.4 Surgimento das Prisões Como Mecanismos Contensores

Os povos primitivos desconheceram totalmente a privação de

liberdade estritamente considerada como sanção penal. A finalidade da prisão

era ser tanto um lugar de custódia para impedir que o culpado pudesse furtar-

se ao castigo, ou o devedor ao pagamento de suas dividas, como um lugar de

tortura. Recorriam, durante esse longo período histórico, à pena de morte

como medida suprema, pura e simples, e para os crimes reputados graves e

atrozes apenavam-se os culpados com suplícios adicionais, de efeitos

amedrontadores. “A prisão foi sempre uma situação de grande perigo, um

incremento ao desamparo e, na verdade, uma antecipação da extinção

física”.17

Eram utilizados nessa época como prisões, por não haver uma

estrutura arquitetônica penitenciária definida, calabouços, construções em

ruínas, como castelos, torres, conventos abandonados e até poço d’água.18

Estas formas de prisão não constituíam penas propriamente ditas,

nem eram ligadas a crimes definidos.

16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M.P. Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977, p.35. 17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas alternativas. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.5. 18 BITENCOURT, op. cit. p.7.

Page 22: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

22

Na Grécia e em Roma existia a prisão por dívidas, da qual o

devedor só se livrava quando, por si ou por outro, saldasse a dívida. Existia,

também, a prisão dos escravos na casa de seu dono, em lugar determinado

para isso. A tarefa de castigar os escravos, quando necessário, era delegada

pelos juizes ao pater famílias, que podia determinar sua reclusão temporária

ou perpétua.

Durante muitos séculos, a prisão serviu de depósito do réu que

esperava a sua execução. Assim a pena de prisão, como sanção autônima e

principal forma de punição, percorreu ainda um longo caminho antes de se

fixar definitivamente.

Durante a Idade Média a pena privativa de liberdade se restringe

também ao caráter custodial, aplicável àqueles que seriam “submetidos aos

mais terríveis tormentos exigidos por um povo ávido de distrações bárbaras e

sangrentas. A amputação de braços, pernas, olhos, língua, mutilações

diversas, queima de carne e fogo, e a morte, em suas mais variadas formas,

constituem o espetáculo favorito das multidões desse período histórico”.19

Também nesse período as medidas repressivas estavam a cargo e arbítrio

dos governantes, impostas em função do status social do réu. 20

Surgem, ainda, na Idade Média, a prisão de Estado e a prisão

eclesiástica. A primeira apresenta duas modalidades: prisão-custódia, onde o

réu esperava a verdadeira pena aplicada, ou detenção onde ficava detido por

um determinado tempo ou perpetuamente, ou ainda até receber o perdão. A

prisão eclesiástica por sua vez era destinada a sacerdotes e religiosos

infratores das normas eclesiásticas, o interno era submetido à penitência e a

meditação em uma ala dos mosteiros, para que se arrependesse do mal

causado e obtivesse a sua própria emenda.21

A igreja instaura com a prisão canônica o sistema da solidão

e do silencio. A sua reforma tem profunda raízes espirituais.

A prisão eclesiástica é para os clérigos e se inspira nos

princípios da moral católica: o resgate do pecado pela dor, o 19 GUZMAN, Luis Garido. Manual de ciencia penitenciária. Valência: Universidad de Valência, 1976, p.77. 20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falencia da pena: causas e alternativas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p .9. 21 BITENCOURT, op. cit. p. 10.

Page 23: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

23

remorso pela má ação, o arrependimento da alma manchado

pela culpa. Todos esses fins de reintegração moral se

alcançam com a solidão, a meditação e a prece. 22

Para se adequar à política do uso da fogueira, a Igreja constituiu os

chamados Penitenciários: “que eram, em geral, subterrâneos com celas

individuais, escuras, imundas e metafísicas, porque, segundo os inquisidores,

só assim elas seriam propícias à ascese, à penitência, à expiação, à

purgação. Havia uma dependência para os suplícios que eram progressivos,

desde os mais brandos até os mais violentos e, desde que o suplicado não se

arrependesse e não se convertesse, seria lançado na fogueira”. 23

Os pecadores lá aguardavam até virem a ser queimados. O direito

canônico contribuiu sobremaneira com o surgimento do isolamento celular, o

arrependimento e a correção de delinqüente, bem como com outras idéias

voltadas à procura da reabilitação do recluso.24

Nos séculos XVI e XVII, com a crescente pobreza na Europa, que

acarretou um grande aumento na delinqüência, onde pessoas subsistiam de

esmolas, roubos e de assassinatos, torna-se impossível a aplicação da pena

capital a tanta gente:

Os distúrbios religiosos, as longas guerras, as destruidoras

expedições militares do séc. XVII, a devastação do país, a

extensão dos núcleos urbanos e a crise das formas feudais

de vida e da economia agrícola haviam ocasionado um

enorme aumento da criminalidade em fins do século XVII e

início do século XVIII. Acrescente-se a isso a supressão dos

conventos, o aniquilamento dos grêmios e o endividamento

do Estado. Tinha se perdido a segurança, o mundo

espiritualmente fechado aos incrédulos, hereges e rebeldes

tinha ficado para trás. Tinha que se enfrentarem verdadeiros

exércitos de vagabundos e mendigos. Pode-se estabelecer a

sua procedência: nasciam nas aldeias incendiadas e nas

cidades saqueadas, outros eram vitimas de suas crenças, 22 FUNES, Mariano Ruiz. A Crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953, p.153. 23 FARIA JUNIOR, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Juruá, 1993, p.288. 24 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 12.

Page 24: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

24

vítimas atiradas nos caminhos da Europa. Era preciso

defender-se desse perigo social, mas não era possível negar-

lhe simpatia por razões sociais e religiosas, diante dos danos

que os exércitos estrangeiros tinham feitos. 25

Surgiu na segunda metade do século XVI um movimento de

grandes transformações das penas privativas de liberdade, de criação e

construção de prisões organizadas. Em Londres surgem as casas de

correção, que eram destinadas a internar vagabundos, mendigos, prostitutas e

jovens entregues a uma vida desonesta, os quais estavam sujeitos a um

regime de trabalho obrigatório. Essas casas se espalham por toda a Inglaterra

a partir do século XVII, quando atingiram o seu apogeu. Assinala Prins, “que

as primeiras casas desta classe se estabeleceram em Londres (1550),

Nuremberg (1558), Amsterdam (1595), para homens, (1597) para mulheres”.26

Mas uma das mais duras e cruéis modalidades de pena de prisão, surgida no

séc. XVI foi a pena de galés, uma espécie de prisão flutuante, onde os

condenados a penas graves e prisioneiros de guerras eram acorrentados a

um barco e ficavam, sob ameaça de um chicote, obrigados a remar. Em 1697,

surge em Bristol, Inglaterra, a primeira workhouse (casa de trabalho) que tinha

como finalidade a reforma dos delinqüentes por meio do trabalho e da rígida

disciplina. Em 1667, é fundada em Florença, pelo sacerdote Filippo Franci, o

famoso Hospício der San Felipo Néri, destinado à reforma de criança errantes

e jovens rebeldes e descaminhados. Nessa instituição, o interno era

desconhecido para seus companheiros de reclusão, por causa de um capuz

que cobria a cabeça nos atos coletivos. Esse tipo de regime celular seria

posteriormente incorporado pelo regime celular do século XIX.27

Em 1656, foi construída na França a primeira instituição para

vagabundos e mendigos, influenciada pela obra intitulada Reflexiones sur lês

prisons dês ordres religieux, do monge francês Jean Mobillon.27 A obra era um

relatório que criticava a falta de higiene, o tratamento desrespeitoso aos

25 HANS, Von Hentig. apud BITENCOURT, Cezar Roberto. 2000, p.15. 26 FUNES, Mariano Ruiz. A crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953. p. 155. 27 BITENCOURT, Cezar Roberto. A falência da pena de prisão: causas alternativas. 2. ed. Saõ Paulo: Saraiva, 2001, p.19. 27 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas Penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.26.

Page 25: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

25

acusados, a não manutenção do sigilo da confissão, a ociosidade absoluta,

além de oferecer orientações para o desenvolvimento de políticas

penitenciárias.

Em 1703, em Roma, o papa Clemente XI fundou a Casa de

Correção de São Miguel. Além de jovens delinqüentes, tal instituição abrigava

menores de vinte e um anos que se mostravam teimosos e discordavam da

disciplina paterna. O ensino religioso era a base de afirmação dessa

instituição, os presos trabalhavam juntos em silêncio e, à noite, isolavam-se

em suas celas. Essa instituição serviu de modelo para um grande número de

prisões criadas, principalmente na Itália, e influenciou o que atualmente se

qualifica de tratamento institucional do delinqüente. 28

A prisão, em sua origem, não foi criada somente com o propósito de

encarcerar criminosos. A privação da liberdade, como espécie de pena

institucionalizada pelo direito penal, apareceu somente há duzentos e poucos

anos no século XVII (no apogeu da Revolução Industrial), para garantir a

segurança do funcionamento do mercado de trabalho, da produção, do

consumo de bens e proteger a propriedade das classes poderosas.

Como pena privativa de liberdade propriamente, a prisão tem suas

origens relacionadas à época em que se necessitou de mão de obra para

realizar os trabalhos de produção e manufatura (mercantilismo, séc XVI-XVII),

e para as expedições de galeras em viagens de exploração e colonizações de

terras novas descobertas. Tudo isso associado ao fato de que a pena de

morte não tinha contido o aumento da delinqüência nem havia garantido a

segurança da classe dominante.

As prisões eram geralmente subterrâneas, insalubres, infectas e

repelentes. Não obedeciam a nenhum princípio de política penal humanitária.

Tais estabelecimentos eram verdadeiras masmorras do desespero e da fome,

onde condenados eram jogados e abandonados, sofrendo cruéis torturas. Os detidos são amontoados confusamente numa

promiscuidade intolerável, achando-se submetidos ao regime

mais duro, sofrem penas disciplinares corporais e são

obrigados a trabalhos penosos. Só recebem alimentação

mínima (pão e água)... A falta de ar, alimentos e de cuidados

28 LUZ, Orlandy Teixeira. Aplicação das penas alternativas. Goiânia: AB, 2000, p.7.

Page 26: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

26

higiênicos mais elementares é tal que as febres infecciosas

se propagam no interior das prisões, dizimam os reclusos e

se transmitem para fora, produzindo verdadeiros danos à

população livre. 29

1.5 Período Humanitário da Pena

Em meados do século XVIII, as leis em vigor inspiravam-se em idéias e procedimentos de excessiva crueldade, predominando os castigos corporais e a pena capital. Reinava o arbítrio judiciário impregnado de sensíveis nuanças políticas dirigidas à proteção de classes privilegiadas, em detrimento das demais que sofriam toda sorte de perseguição. É diante deste cenário que surge, então, em toda a parte, uns movimentos de filósofos, juristas, magistrados, legisladores, parlamentares e técnicos do direito, propondo a reforma do sistema punitivo, com a moderação das punições, sua proporcionalidade com o crime.

Esse movimento iluminista e humanitário, representado, entre

outros, por Voltaire, Montesquieu e Rousseau, atingiu seu apogeu com a

Revolução Francesa, influenciando uma série de pessoas com o mesmo

sentimento, entre elas, o grande expoente, Cesare Bonesana, Marques di

Beccaria, autor da obra Dei Delitti e Delle Pen, cujos princípios renovaram e

abrandaram o sistema penal, despertando a consciência pública contra as

vergonhosas atrocidades do suplício. Essa obra converteu-se na síntese da

reação liberal e humanitária ao desumano panorama penal então vigente.

A obra de Beccaria, que retratava a terrível situação da

administração da justiça criminal, em que reinava um direito penal arbitrário,

cruel e desumano, causou uma reação contra a obscuridade das leis, contra o

arbítrio judicial, contra a tortura nos interrogatórios e julgamentos. Segundo

ele, as penas não poderiam passar dos imperativos da salvação pública. Dizia

que “o critério para medir a responsabilidade penal do agente não é a sua

intenção, nem a gravidade de sua falta, mas sim o dano que resultar para a

sociedade de seu crime”. Preconizava uma curta duração dos processos, a

certeza da pena e sua mitigação. A abolição de suplícios, torturas, atrocidades

e também a abolição da pena de morte. Suas idéias eram contratuais e

29 PRINS, 1984, apud FUNES, 2000, p. 155.

Page 27: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

27

utilitárias. A pena deveria afastar os indivíduos do propósito de cometer

delitos.

Um dos maiores freios não é a crueldade das penas, mas

sua infalibilidade e, como conseqüência, a vigilância dos

magistrados e a severidade de um juiz inexorável que, para

ser uma virtude útil deve ser acompanhada de uma

legislação branda. A certeza de um castigo moderado

sempre causará mais intensa impressão do que o temor de

outro mais severo, unido à esperança da impunidade, pois,

os males, mesmo os menores quando certos, sempre

surpreendem os espíritos humanos, enquanto a esperança,

dom celestial que freqüentemente tudo supre entre nós,

afasta a idéia de males piores, principalmente quando a

impunidade, outorgada muitas vezes pela avareza e pela

fraqueza, fortalece-lhe a força 30.

Charles de Secondat, o Barão de Montesquieu (1755), lutava por

uma reforma do direito penal vigente e pela independência do Poder

Judiciário, através da separação dos poderes do Estado. Voltaires (1768),

pregava a renovação dos costumes judiciais por uma nova prática nos

tribunais. Rousseau (1778) clamava pelos fundamentos da liberdade política e

da igualdade entre os cidadãos, conforme sua teoria contratualista; a pena

serve para vingar o dano causado à coletividade.

Os reformadores não pretendiam apenas minimizar as penas com o

desaparecimento dos castigos aflitivos e infamantes, mas atacavam a

corrupção que dominava a Justiça, que se apresentava lacunosa, irregular e

contraditória, com superabundância de instâncias que a denegriam e a

centralizavam ao superpoder monárquico. A reforma intentava pleitear não só

nova teoria à justiça da pena, mas também que a mesma fosse melhor

distribuídas, que não ficasse à mercê do soberano ou que favorecesse aos

privilegiados e que fosse exercida de forma justa e universal.

30 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 2. ed. Revista dos Tribunais, 1999. p. 87.

Page 28: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

28

“Um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício

imediato da soberania do príncipe; que fosse diferente da

pretensão de legislar; que não tivesse ligação com relações

de propriedade; e que tendo apenas as funções de julgar,

exerceria plenamente este poder... que o poder de julgar não

dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos,

contraditórios da soberania...” 31

Foi com o inglês Jonh Howard (1726-1790), pensador do século da

razão e considerado o pai da Ciência Penitenciária, com seu livro The State of

Prisionis in England and Wales, publicado em 1777, que se registrou, em seu

país, um movimento revolucionário a favor da “humanização” das regras

disciplinares de detenção penal e o regime prisional da época. Nasceu em

Hackney (Inglaterra), onde foi o principal representante de um movimento de

reforma nas prisões, entre os anos 70 e 80, quando foi nomeado para o cargo

de alcaide do condado de Bedford. Visitou grande número de prisões

européias, vendo de perto a difícil vida dos encarcerados, com quem teve

estreitos contatos, arriscando sua saúde, expondo-se ao contágio das

enfermidades carcerárias, que, finalmente causaram sua morte. Em relatos

escritos em seu livro, compara as condições carcerárias da Inglaterra e da

França e elabora algumas regras básicas para um sistema celular mais justo e

humano. Para ele a eficácia da pena, que devia ser emendativa, dependia de

fatores, tais como: higiene – ventilação, limpeza do edifício, higiene corporal e

sanitária, boa alimentação; disciplina – funcionários bem recrutados e

controlados por magistrados, separações dos presos por tipo de delitos,

uniformes para facilitar o asseio e dificultar a fuga; economia – manutenção da

prisão pelo Estado, trabalho para os presos, devendo ser por eles executados

os serviços internos, gerais, da prisão; assistência religiosa – importância do

capelão, leituras morais e exortações religiosas dotadas de sanções

(penalidades e recompensas).32 Em suma, propõe idéias penais que

fundamentam um movimento chamado Penitenciarismo.

31 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia. M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p.75. 32 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 29.

Page 29: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

29

Ele idealizava a “humanização” das prisões, não admitindo que o

sofrimento desumano fosse conseqüência implícita e inexorável da pena

privativa de liberdade. Propugnava um sistema penitenciário baseado no

recolhimento celular, visando à reflexão e ao arrependimento; a religião como

meio mais adequado para instruir e moralizar; trabalho diário como meio

reabilitador; com as necessárias condições de alimentação e higiene.

Impressionado pelo estado em que se encontravam as prisões que visitou no

seu país, tanto no que se refere às condições de salubridade e moralidade

como no que respeita ao tratamento dispensado aos presos, decidiu

empreender viagens com o propósito de conhecer a situação dos cárceres em

outros países. De volta à sua pátria reeditou sua obra, influenciado por tudo

que tinha visto e com o acréscimo dos novos dados recolhidos.

Em 1779, Howard conseguiu que fosse aprovada pelo parlamento

Inglês uma lei que estabelecia e ordenava a imediata construção de casas

penitenciárias, lei que impunha o sistema celular individual e o aproveitamento

de mão-de-obra de todos os internados.33

O esforço de Howard não foi inútil. Depois de sua morte, suas idéias

lograram continuidade por intermédio do criminalista e filosofo, seu

conterrâneo, Jeremias Bentham (1748-1832), que apresentou um modelo de

estabelecimento prisional de forma diferente, conhecido como panótico.

O panótico era um tipo de prisão celular, caracterizada pela forma

radial, em que uma só pessoa podia exercer em qualquer momento, de um

posto de observação, a vigilância dos interiores das celas. O projeto de

Bentham baseava-se no principio da segregação absoluta (individual) e da

inspeção, pela qual poucos homens faziam a vigilância de todos os reclusos.

Ao descrever o panótico, Bentham diz que é:

uma casa de Penitência. Segundo o plano que lhes

proponho, deveria ser um edifício circular, ou melhor,

dizendo, dois edifícios encaixados um no outro. Os quartos

dos presos formariam o edifício da circunferência com seis

andares, e podemos imaginar esses quartos com umas 33 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 31

Page 30: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

30

pequenas celas abertas pela parte interna, porque uma grade

de ferro bastante larga os deixa inteiramente à vista. Uma

galeria em cada andar serve para a comunicação e cada

pequena cela tem uma porta que se abre para a galeria. Uma

torre ocupa o centro, que é o lugar dos inspetores: mas a

torre não esta dividida em mais do que três andares, porque

está disposta de forma que cada um domine plenamente dois

andares de celas. A torre de inspeção está também rodeada

de uma galeria coberta com uma gelosia transparente que

permite ao inspetor registrar todas as celas sem ser visto.

Com uma simples olhada vê um terço dos presos e

movimentando-se em pequeno espaço pode ver a todos em

um minuto. Embora ausente a sensação de sua presença é

tão eficaz como se estivesse presente. ...Todo o edifício é

como uma colméia, cujas pequenas cavidades podem ser

vistas todas de um ponto central. O inspetor invisível reina

como um espírito.34

Segundo a descrição de Foucault: O panótico de Bentham é a figura arquitetural dessa

composição. O princípio é conhecido: na periferia uma

construção em anel: no centro uma torre; esta é vazada de

largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a

construção periférica é dividida em celas, cada uma

atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas

janelas, uma para o interior correspondente às janelas da

torre, outra que dá para o exterior, permite que a luz

atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia

na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,

um condenado, um operário, um escolar. Pelo efeito da

contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se

exatamente pela claridade, as pequenas silhuetas cativas

nas celas da periferia. Tantas janelas, tantos pequenos

teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente

individualizado e constantemente visível. O dispositivo

34 BENTHAM apud BITENCOURT, 2000, p. 51.

Page 31: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

31

panótico organiza unidades espaciais que permitem ver

reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da

masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções: -

trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira

e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um

vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia.

A visibilidade é uma armadilha. 35

Os progressos práticos dos movimentos desses grandes

reformadores começaram somente a surtir efeito com o Código Penal francês,

de 1810, que suprimiu todas as formas de mutilações, diminuindo o número

de crimes capitais, sendo propiciados aos juizes os meios de atenuarem as

penas. 36

Segundo Foucault, a transformação da pena foi gradativa:

“Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da

punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a

encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos

considerar o desaparecimento dos suplícios, como um objetivo mais ou

menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848. Claro, tal

afirmação em termos globais deve ser bem entendida. Primeiro, as

transformações não se fazem em conjunto e nem de acordo com um único

processo. Houve atrasos. Paradoxalmente, a Inglaterra foi um dos paises

mais reacionários ao cancelamento dos suplícios: talvez por causa da função

do modelo que a instituição do júri, o processo publico e o respeito ao habeas

corpus haviam dado à sua justiça criminal”. 37

1.6 Teoria da Pena

a. Teoria Absoluta ou Retributiva

35 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 18 - 19. 36 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. .27. 37 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 18 - 19.

Page 32: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

32

A primeira teoria da pena de prisão é definida como absoluta e

tem por finalidade a retribuição do crime, sem nenhum caráter de

recuperação ou de tratamento do apenado. Mesmo que a pena alcance

outro objetivo – como o de punir com justiça o infrator, de afastar outros

membros da sociedade da idéia de delinqüir e de servir também para a

emenda do infrator – isso não é importante. O importante é pagar o mal com

outro mal.

A pena tem uma finalidade absoluta de realização da justiça. É a

concepção da Escola Clássica do direito. Delito como violação da ordem legal

e sanção para estabelecer e impor a paz social violada.

Segundo Cuello Calon, “a pena é sempre retribuição. Não importa

que, ainda sem pretender consegui-lo, produza efeitos que afastem do delito

os membros da coletividade, pelo medo ao mal que contém”.37

Essa teoria contra o fundamento da pena e sua justificativa

exclusivamente na própria natureza da sanção, não lhe buscando outro

sentido, pois ela considerada é justa em si mesma. O castigo decorre do

delito. A sanção penal é unicamente a conseqüência jurídica do delito e,

também, seu fim é a expiação do crime cometido.

Entre os defensores das teses absolutistas ou retribucionistas da

pena, destacaram-se os dois mais expressivos pensadores do idealismo

alemão: Kant, cujas idéias partem de uma fundamentação de ordem ética (a

pena existe para restabelecer ou realizar a justiça), e Hegel, que formula suas

idéias com um fundamento de ordem jurídica (a pena existe como afirmação

do direito).

b. Teorias Relativas ou Utilitárias

Segundo essas teorias, a pena possui um fim útil, que é a

prevenção do delito. A pena deve ser aplicada por ser útil e necessária à

segurança da sociedade e à defesa social. Sanção como utilidade social. O

delito deixa de ser fundamento da pena e passa a ser seu pressuposto. Não

se castiga porque delinqüiu, mas para que não volte a delinqüir.

37 CALON, E.ugênio Cuello. La Moderna Penalogia, Barcelona: Editora Bosch; 1958, p.17-19.

Page 33: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

33

Diferente das teorias absolutas, essas teorias buscam na pena um

fim socialmente útil. A pena se justifica por sua eficácia, levando-se em

consideração seus resultados prováveis e seus efeitos político-sociais e

utilitários.

As teorias da prevenção geral, cujos destinatários são a comunidade em geral e o infrator em potencial, têm como finalidade evitar delitos futuros. As teorias da prevenção especial, orientada ao infrator determinado, têm como finalidade corrigir conseqüências danosas do ato perpetrado.

Ainda as teorias da prevenção geral podem ser divididas em negativas e positivas. A primeira baseia-se na clássica teoria da coação psicológica formulada por Feuerbach, que prega o efeito dissuasório ou intimidativo do castigo penal em relação ao infrator em potencial. A da prevenção geral positiva vê na pena a atualização da vigência e a confirmação das normas e dos valores do ordenamento jurídico; acredita que a norma penal pode motivar as pessoas a agirem conforme o direito, na medida em que depositam confiança no funcionamento do sistema penal.

A prevenção especial, derivada de Von Liszt, atua sobre o criminoso pela intimidação de sua personalidade evitando que ele cometa novos delitos. Há, ainda, as teorias da prevenção especial positiva – que confia que a pena pode servir de instrumento útil para evitar que o infrator volte a delinqüir – e também da prevenção especial negativa – que preconiza que esta finalidade se obtenha com a neutralização e intimidação do infrator.

c. Teoria mista

Essas teorias funcionam como meio termo entra as teorias da retribuição e da prevenção, conciliando de um lado o caráter retributivo da pena, acrescentando-lhe de outro, um fim político e útil e a necessidade de garantir o bem e os interesses da sociedade. Para elas, a pena tem duas razões: a retribuição manifestada através do castigo; e a prevenção, como instrumento de defesa da sociedade. Pune-se porque delinqüiu e para que não volte a delinqüir.

Para Fausto Costa, citado por Gilberto Ferreira a pena pode ser:

sucessivamente vingança, retribuição, expiação, intimidação, mas sempre com a finalidade de prevenção, ou

Page 34: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

34

seja, repressão quanto à sua natureza objetiva, sofrimento quanto á sua natureza subjetiva, prevenção quanto ao seu fim principal. Em realidade, a pena hoje só se justifica, se tiver por objetivo evitar o cometimento de novos crimes, ressocializando o criminoso. O punir por punir em obediência cega a um dogmatismo ético não tem mais sentido O castigar porque errou, o retribuir o mal pelo mal, num disfarçado talião moderno, não passa de sentimento inato de vingança que ainda se esconde na parte mais recôndita da entranha dos homens.38

2 - A Evolução das Penas

A história do direito penal brasileiro surge no período colonial, com

as Ordenações do Reino. A partir do descobrimento do Brasil, em 1500, o

direito penal nacional passou a reger-se pela legislação lusitana, quando

vigoravam em Portugal as ordenações Afonsinas publicadas em 1446, sob o

reinado de D. Afonso V, que aparecem divididas em cinco livros. O legislador

não teve em vista tanto os fins da pena, e a sua proporção com o delito, como

conter os homens por meio do terror e do sangue. Continua a desigualdade

entre nobres e plebeus e a pena de morte é amplamente aplicada. Não

obstante, o quê representou em relação ao seu tempo notável progresso, pois

constituiu o primeiro código completo a surgir na Europa. Em 1505, D, Manoel

I mandou rever tal legislação, promulgando definitivamente em 1521 o

conjunto de leis que ficou conhecido como Ordenações Manoelinas. Continua

o sistema das Ordenações anteriores, com o acréscimo de novos provimentos

surgidos desde então, determinados, sobretudo pelo grande desenvolvimento

comercial. Este acabou provocando o aparecimento de numerosas leis,

reunidas numa Compilação, em 1569, feita por Duarte Nunes de Leão por

determinação do rei D. Sebastião, também conhecida como Código de D.

Sebastião. Passando Portugal ao domínio da Espanha, em 1580, determinou

D. Felipe I a reforma da legislação vigente, afinal promulgada por Felipe II, em

1603. São as Ordenações Filipinas que se baseiam nas anteriores. Essa

legislação vigorou quando Portugal readquiriu a independência em 1640,

38 FERREIRA, Gilberto. Prisões, presos e agentes de segurança penitenciária. São Paulo: Editora Loyola, 2002, p.29.

Page 35: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

35

foram revalidadas por lei de D. João IV, em 1643, e vigeram por dois séculos.

A essência das Ordenações era a de infundir o temor pelo castigo

(característica própria do direito penal repressivo da idade Média). Por

exemplo: a aplicação da pena de morte em suas mais variadas espécies;

morte cruel (morte lenta por suplício); morte atroz (esquartejamento e queima

de cadáver até convertê-lo em cinzas) e morte simples (por enforcamento ou

degolamento, sem ritual). O crime era confundido com o pecado, sendo os

hereges, os feiticeiros e benzedores apenados severamente. A legislação real

brasileira só veio a lume com o Código Criminal de 1830.

2.1 Legislação Brasileira

a. Código Criminal do Império

Com a Independência e, sobretudo, com a Constituição Imperial

outorgada em 25 de março de 1824, acolhendo princípios sobre direitos e

liberdades individuais, impunha-se a substituição da arcaica legislação do

Reino. A Constituição determinava a imperiosa necessidade de elaboração de

um Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade.

Portanto, não haveria em caso de alguma confiscação de bens, nem a infâmia

do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja, além de

determinar que “desde já ficam abolidos os acoites, a tortura, a marca de ferro

quente, e todo e qualquer tipo de penas cruéis”. 39

O imperador D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830, sancionou o

Código Criminal do Império, o primeiro Código Autônomo Latino-americano,

de índole liberal, com influências do Código penal francês de 1810 e do

Napolitano de 1819. Este ordenamento contava com um esboço de

individualização da pena e com a previsão de circunstâncias atenuantes e

agravantes. Fundou-se o novo texto nas idéias de Bentham, Beccaria e Mello

Freire.

39 Constituição Imperial de 1824, art. 179, n 18, 19, 20. in: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 58-59.

Page 36: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

36

A pena de morte continuava existindo como sanção penal. Não

havia diferenciação entre os presos processados e definitivos. O Código de

1830 não estabelecia nenhum regime diferenciado de tratamento em relação

à pena privativa de liberdade, ou seja, quanto ao princípio da periculosidade e

da individualização da pena. O Código Criminal do Império estabelecia entre

as suas sanções: as de exílio, desterro e degredo.

O Código criminal do Império, por sua clareza, precisão e apuro

técnico exerceu particular influência na legislação espanhola.

2.2 Período republicano

a. Código Penal da República

Com o advento da república e a instalação de novo sistema político

no Brasil surgiram novas tendências no campo do Direito penal. Vários

movimentos sociais estabeleceram a necessidade de alteração da legislação

vigente.

Por decreto de 11 de outubro de 1890, foi aprovado o Código penal

da República, que recebeu duras críticas devido a rapidez com que foi

elaborado. Apresentava muitas falhas e lacunas, sendo considerado o pior

Código Penal da história do Brasil. Contudo, deu-se um grande avanço de

caráter humanitário, sendo abolida a pena de morte e criou-se o regime

penitenciário de caráter correcional. Foram construídas inúmeras prisões nas

grandes cidades do país.

O Código Penal da república foi elaborado antes do advento da

primeira Constituição Federal republicana (1891), sem considerar os notáveis

avanços doutrinários que então já se faziam sentir, em conseqüência do

movimento positivista, foi objeto daquelas severas críticas que muito

contribuíram para abalar o seu prestígio e dificultar sua aplicação. Inúmeros

foram os estudos objetivando sua substituição.

O Código Penal Republicano foi modificado por várias leis. Suas

imperfeições legislativas dificultaram sua aplicação, diziam os juristas daquela

época, surgindo a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe, Decreto

nº 22.213 de 14 de novembro de 1932.

Page 37: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

37

b. Código Penal de 1940

As lacunas e imperfeições do Código de 1890 tornavam

embaraçosas as consultas e exigiam árduas pesquisas dos operadores do

direito, por isso ocorreu um forte movimento para a sua reforma, conforme

expresso na própria exposição de motivos do Código Penal de 1940.

Finalmente, com o golpe militar de 1937 e com os novos rumos

políticos, o então Ministro da Justiça Francisco Campos encarregou o

Professor Alcântara Machado de estudar uma nova reforma na legislação

penal brasileira. Depois de um ano, o jurista apresentou o anteprojeto do

código criminal brasileiro que, apreciado por uma comissão revisora, foi

sancionado.

A nova legislação foi colocada em prática em 1940, através do

Decreto-lei nº 2848, de caráter eclético por superar diferentes teorias entre as

escolas penais daquela época, baseada, principalmente, nos códigos suíço e

italiano (Código Rocco – 19305).

O Código Penal de 1940 incorporou o princípio da reserva legal

(inaplicável às medidas de segurança); o sistema duplo binário (penas e

medidas de segurança); a pluralidade das penas privativas de liberdade

(reclusão e detenção); a exigência do início da execução para a configuração

da tentativa (art.12); o sistema progressivo para o cumprimento das penas

privativas de liberdade; a suspensão condicional da pena e o livramento

condicional. Na parte especial, dividida em onze títulos, a matéria se inicia

pelos crimes contra a administração pública. Não há, no Código Penal

comum, pena de morte nem prisão perpétua. O máximo de cumprimento de

pena privativa de liberdade é de 30 anos. 40

A respeito do Código Penal de 1940, Mukad disse:

“ainda estabelecendo um regime semelhante ao progressivo,

faz referência à colônia penal ou estabelecimento similar para

cumprimento do terceiro grau da pena. Apesar disso, ainda

sem negar o que foi realizado, pouca coisa se modificou

40 FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1993.p.64.

Page 38: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

38

quanto ao tratamento dos condenados, que na maioria das

vezes continuam vivendo misturados, em verdadeiros

montões humanos, o que demonstra quanto deveria ainda

ser mudado” 41

Em 31 de dezembro de 1940, foi publicado o Código Penal que

entrou em vigor em 01 de janeiro de 1942, depois de dois anos de vacacio

legis, junto com o Código de Processo Penal, que teve sua publicação em 13

de outubro de 1941, com dois meses de vacacio legis.

O Código Penal de 1940, apesar de elaborado durante um regime

ditatorial e influenciado pela orientação autoritária daquele momento político

mundial, apresentou um seu texto institutos próprios de um direito punitivo

democrático e liberal.

c. Lei nº 7.209, de 11 de Julho de 1984

O Código Penal brasileiro de 1940 vigora de 1942 até os dias

atuais, embora modificado parcialmente. Das leis que modificaram esse

código, duas merecem destaque:

- a Lei nº6.416/77, que introduziu disposições sobre a pena e sua

execução: suas inovações tinham como objetivos práticos a diminuição da

população prisional, ou seja, as tradicionais condenações à pena de prisão

poderiam ser cumpridas sob certos requisitos e controle judicial conforme o

juízo do comportamento pessoal-social do réu. Introduziu profundas reformas

na legislação penal brasileira, entre elas, o sistema progressivo de execução

da pena privativa de liberdade, implementando os regimes de cumprimento

fechado, semi-aberto e aberto, este último através da conceituada prisão-

albergue. A lei adotou modernos princípios relativos aos direitos do preso,

respeitando as regras Mínimas das Nações Unidas (ONU) para tratamento

dos presos;

41 MUAKAD, Irene Batista: Prisão Albergue. São Paulo: Cortez Editora. 1990, p.103.

Page 39: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

39

- a Lei nº 7.209/84, que modificou toda a parte geral, humanizou as

sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir o

sistema de dias-multa, que tinha sido abandonado pelo CP de 1940. 42

A reforma de 1984 rechaçou o sistema do duplo binário, deixando

de aplicar aos inimputáveis pena privativa de liberdade e medida de

segurança, limitando-se a interná-lo em hospital de custódia e tratamento

psiquiátrico, ou apenas submetendo-os a tratamento ambulatorial. Adotou o

sistema vicariante ou unitário: aos imputáveis, a pena; aos inimputáveis,

somente medida de segurança.43

O principal mérito da reforma penal foi o reconhecimento, de forma

definitiva, da necessidade de estabelecer estreita ligação entre a teoria do

crime e a tarefa individualizadora da pena.

A lei das contravenções penais (1941) e algumas outras leis penais

extravagantes completam a legislação penal brasileira. Porém, a Constituição

da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe grandes avanços em

matéria penal. Expressa o respeito à dignidade da pessoa humana, pela

prevalência dos direitos humanos, proibindo qualquer submissão à tortura ou

tratamento desumano e degradante. Consigna os princípios fundamentais,

entre eles: legalidade reserva legal, individualização da pena e sua execução,

respeito ao princípio a inocência e não culpabilidade.

c. Lei nº 7.210/84 – Lei de Execução Penal

Uma comissão instituída pelo Ministro da Justiça Ibrain Abi-Akel apresentou o Anteprojeto da Lei de Execução Penal, publicado no DOU de 22 de julho de 1981, pelo Decreto nº 429, o qual foi entregue a uma nova comissão para revisão. Em 29 de junho de 1983 foi encaminhada ao Congresso Nacional. A lei foi promulgada em julho de 1984 com o nº 7210/84, entrando em vigor na mesma data do Código Penal (Parte Geral), janeiro de 1985 depois de seis meses de vacacio legis. Esta é a primeira norma específica que contempla por inteiro a matéria de execução penal no País, introduzindo importantes referências sobre direitos do preso, adotadas 42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.275 -276. 43 COSTA JR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v. 1. 1991, p. 216.

Page 40: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

40

nos tratados, convenções e códigos internacionais que consagram os direitos humanos de reconhecimento universal.

A Lei nº 7.210/84, segundo estudiosos do direito penal, se devidamente executada e implementada, seria o instrumento mais eficaz no efetivo cumprimento da pena, objetivando a reabilitação do indivíduo que cumpre pena nas prisões brasileiras

3. As Prisões Constituindo o Sistema Penitenciário: Avanços Nos Mecanismos Repressores

Foi nos Estados Unidos da América que surgiram os primeiros

sistemas penais. Esses sistemas tiveram antecedentes importantíssimos na

Europa, como os Bridwells ingleses, as casas de correção – masculinas e

femininas – de Amsterdã, e outras experiências similares na Alemanha e na

Suíça. 44

Os diferentes sistemas penais que surgiram com o propósito de

assegurar aos presos tratamento mais “humano” serão examinados a seguir:

os sistemas pensilvânico, auburniano e progressivo.

a. O sistema pensilvânico (celular ou da Filadélfia)

A primeira prisão norte-americana foi constituída por volta de 1776,

pelos quaqueiros, a Walneet Street Jail, na Filadélfia, Estado da Pensilvânia,

Estados Unidos, sendo adotada posteriormente na Bélgica. O sistema tinha

características de ordem ética religiosa, “haciendoles a los delincuentes leer o

explicar la Sagrada Escritura u otras obras religiosas y Morales: los culpables

debían reconciliar-se con Dios, con la Sociedad y consigo mismo, regresando

así al buen camino”. 45

Esse sistema caracterizava-se pelo completo isolamento do mundo

exterior. Os sentenciados viviam isolados em suas celas individuais, em

silencio absoluto durante todo o tempo (dia e noite). Não era permitida visita

44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p.91. 45 THOT, Ladislao. Ciência penitenciária. La Plata: Taller de Impresiones Oficiales, 1937, p. 33 - 34.

Page 41: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

41

ou qualquer contato do preso com seus familiares. Apenas o sacerdote era

autorizado para transmitir educação religiosa, e funcionários do presídio para

levar comida à cela uma vez por dia. A única leitura permitida era a Bíblia,

pois acreditavam que a combinação, solidão e leitura da Bíblia estimularia o

arrependimento.

Como ressalta Foucault, “sozinho em sua cela o detento está

entregue a si mesmo; no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca,

ele desce à sua consciência, interroga-a e sente despertar em si o sentimento

moral que nunca perece inteiramente no coração do homem”.46

Segundo João Farias Júnior, o sistema pensilvânico obedecia aos

seguintes princípios: O condenado chegava na prisão, tomava banho, era

examinado pelo médico, após vendados os seus olhos,

vestiam-lhe uniforme; b) encaminhado à presença do Diretor

onde recebia as instruções sobre a disciplina da prisão; c) em

seguida era levado à cela, desvendados os olhos,

permanecendo na mais absoluta solidão, dia e noite, sem

cama, banco ou assento, com direito ao estritamente

necessário para suportar a vida. Muitos se suicidavam.

Outros ficavam loucos ou adoeciam; d) o nome era

substituído por número, aposto no alto da porta e no

uniforme; e) a comida era fornecida uma vez por dia, só pela

manhã; f) era proibido ver, ouvir ou falar com alguém; g) a

ociosidade era completa; h) o estabelecimento penitenciário

de forma radial, com muros altos e torres distribuídas em seu

contorno, tinha regime celular. 47

O sistema filadélfico foi influenciado também pelas idéias de Beccaria, Howard, Betham e pelos conceitos religiosos aplicados pelo direito canônico.

Essas experiências, nas quais já começaram a surgir características

do regime celular, sofreram em alguns anos graves estragos e tornou-se um

46 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Tradução Lígia Ponde. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983. 47 FARIA JÚNIOR, João. A Ineficácia da pena de prisão e o sistema ideal de recuperação do delinqüente. Curitiba: Editora Juruá, 1997. p. 35 - 36.

Page 42: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

42

grande fracasso. A principal critica feita a esse regime foi a de que isolamento

total significava uma tortura refinada.

Esses tipos de isolamento levavam presos à loucura, causavam

grandes alterações mentais e produziam o aumento real da taxa de suicídio.

Na solidão de sua cela individual, sem nenhuma ajuda material ou psicológica,

vivendo nas mais indignas condições, os detentos vinham a ter despertado o

desejo de vingança e até mesmo a aspiração à própria morte.

Para Enrico Ferri, o sistema celular é desumano, estúpido e

inutilmente dispendioso, tendo afirmado em sua obra sociologia criminal que:

A prisão celular é desumana porque elimina ou atrofia o

instinto social, já fortemente atrofiado nos criminosos, e

porque torna inevitável entre os presos a loucura ou a

extenuação por onanismo, por insuficiência de movimento, de

ar, etc. A psiquiatria tem notado igualmente, uma forma

especial de alienação chamada de loucura penitenciária,

assim como a clínica médica conhece a tuberculose das

prisões. O sistema celular não pode servir à reparação dos

condenados corrigíveis (nos casos de prisões temporárias),

precisamente porque debilita em vez de fortalecer o sentido

moral e social do condenado e, também, porque se não se

corrige o meio social é inútil prodigalizar cuidados aos presos

que, assim que saem da prisão, devem encontrar novamente

as mesmas condições que determinaram seu delito e que

uma previsão social eficaz não eliminou. O sistema celular é,

além disso, ineficaz porque aquele isolamento moral,

propriamente, que é um dos seus fins principais, não pode

ser alcançado. Os reclusos encontram mil formas de

comunicar-se entre si, seja nas horas de passeio, seja

escrevendo sobre os livros que lhe são dados para ler, seja

escrevendo sobre a areia dos pátios que atravessam,

fazendo sons nos muros das celas, golpes que

correspondem a um alfabeto convencional (...). Por último, o

sistema celular é muito caro para ser mantido. 48

48 FERRI, 1908, p. 312 – 318 apud BITENCOURT, 2001, p. 65

Page 43: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

43

As críticas a esse sistema fizeram com que o isolamento total fosse

suavizado, sendo permitido o trabalho dos presos, inicialmente nas próprias

celas e, depois, em grupos, dando nascimento ao sistema de Auburn

conhecido como silent system.49

b. O Sistema Auburniano

Em oposição ao sistema anterior, e com a necessidade e o desejo

de superar suas limitações e os seus grandes defeitos, surge o sistema

auburniano, que foi considerado como sinônimo da administração

penitenciária norte-americana. Criado inicialmente em Nova Iorque em 1816,

na cidade de Auburn, caracterizava-se também pelo silêncio absoluto, mas

em regime de comunidade durante o dia e isolamento noturno. Havia uma

divisão de internos, de acordo com a idade e o estado de periculosidade.

Segundo Foucault, tal regime: prescreve a cela individual durante a noite, o trabalho e as

refeições em comum, mas sob a regra do silêncio absoluto,

os detentos só podem falar com os guardas, com a

permissão destes e em voz baixa... mais que manter os

condenados a sete chaves como fera em sua jaula, deve-se

associá-los aos outros, fazê-los participar em comum de

exercícios úteis, obrigá-los em comum a bons hábitos,

prevenindo o contagio moral por uma vigilância ativa e

mantendo o recolhimento pela regra do silencio. Esta regra

habitua o detento a considerar a lei como um preceito

sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legitimo.

Assim, esse jogo de isolamento, de reunião sem

comunicação e da lei garantida por um controle ininterrupto,

deve requalificar o criminosos como individuo social: ele o

49 PIMENTEL, Manoel Pedro. Sistemas penitenciários, jan/89. Revista dos Tribunais 639:3266.

Page 44: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

44

treina para uma atividade útil e resignada, devolvendo-lhe

hábitos de sociabilidade. 50

Conforme evidencia João Farias Júnior o sistema Auburniano

obedecia aos seguintes procedimentos fundamentais:

o condenado ingressava no estabelecimento, tomava banho,

recebia uniforme, e após o corte da barba e do cabelo era

conduzido à cela, com isolamento durante a noite; b)

acordava às 5h 30 min, ao som da alvorada; c) o condenado

limpava a cela e fazia sua higiene; alimentava-se e ia para as

oficinas, onde trabalhava até tarde, podendo permanecer até

às 20 horas, no mais absoluto silêncio, só se ouvia o barulho

das ferramentas e dos movimentos dos condenados; e)

regime de total silêncio de dia e de noite; f) após o jantar o

condenado era recolhido; g) as refeições eram feitas no mais

completo mutismo, em salões comuns; h) a quebra do

silêncio era motivo de castigo corporal. O chicote era o

instrumento usado para quem rompia com o mesmo; i) aos

domingos e feriados o condenado podia passear em lugar

apropriado, com obrigações de se conservar incomunicável

“51

O sistema auburniano, inspirado em motivações econômicas tinha

como objetivo a “ressocialização” do condenado por meio do trabalho,

disciplina e mutismo. Entretanto, o trabalho, no projeto auburniano, fugia de

certa forma tanto de sua original dimensão ideológica (atividade capaz de

satisfazer a necessidade do “não proprietário”) como pedagógica (modelo

educativo). Sua regra desumana do silêncio desenvolveu o costume nos

presos de se comunicarem através de sinais, formando um alfabeto prático,

que existe até os dias atuais, nas prisões onde a disciplina é mais rígida.

Esse sistema foi largamente criticado. Os críticos argumentavam

que o silencio absoluto é contrário à natureza humana, a qual se expressa na

50 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão . Tradução de Lígia M. P. Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 212 - 213. 51 FARIAS Júnior, João. Manual de criminologia. Curitiba: Editora Juruá, 1993, p. 38 - 39.

Page 45: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

45

comunhão entre os seus semelhantes na sociedade; conseqüentemente, o

silêncio absoluto não contribui para a recuperação dos presos. Criticavam

também a disciplina extremamente rígida e a aplicação de castigos cruéis e

excessivos.

O sistema auburniano predomina nos Estados Unidos e, afastada

sua rigorosa disciplina e a regra do silêncio absoluto, é aplicado em muitos

países, como no Brasil.

c. Os Sistemas Penais Progressivos

O progressivo abandono da pena de morte impõe definitivamente o

predomínio da pena privativa de liberdade, no decurso do século XIX. O

apogeu dessa pena de privação de liberdade coincide com o abandono dos

regimes celulares e auburniano e a adoção do modelo progressivo. Este

sistema toma por base o princípio da vontade sincera do sujeito no desejo de

reintegração social, sendo mais humano e racional. A essência desse regime

consiste na distribuição do tempo da condenação em períodos, aumentando

em cada período os privilégios de que o recluso pode desfrutar com base na

sua boa conduta e no aproveitamento demonstrado no tratamento reformador.

Fundamental é o fato de possibilitar a reincorporarão do recluso à sociedade

antes do término da condenação. Esse regime, ao tempo em que deu

importância à própria vontade do recluso e diminuiu significativamente o

rigorismo na aplicação da pena de prisão, significa, inegavelmente, expressivo

avanço penitenciário. 52

Inicialmente foi adotado na Inglaterra os sistemas de John Howard,

que priorizava melhores condições de tratamento para os presos e de

Jeremias Bentham, com o sistema panótico.

d. Sistema progressivo inglês mark system

52 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 98.

Page 46: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

46

Surge na Inglaterra, no séc. XIX, mais precisamente em 1846, o

sistema progressivo, atribuído a um Capitão da Marinha Real Inglesa,

Alexander Maconochie. O capitão impressionou-se com as péssimas

condições em que viviam os presos degredados para Austrália e se dispôs a

mudar o tratamento penal que lhe era ministrado.

Assim foram definidos os princípios desse sistema: “Apaguemos a

escravidão de entre os nossos castigos; apoiemo-nos mais na influência e

menos na força; erijamos mais estímulos e menos muralhas e poderemos

curar, como hoje sabemos piorar, o tratamento deve ser preventivo, mais que

curativo, olhar para o futuro, não para o passado”. 53

A grande inovação introduzida neste sistema progressivo inglês foi

o mark system, (sistema de vales). De acordo com esse sistema, a duração

da pena não era determinada apenas pela sentença condenatória, mas

dependia da boa conduta dos presos, do aproveitamento do trabalho

cumprido e da gravidade do delito. O condenado recebia marcas ou vales se

seu comportamento fosse “positivo” e os perdia quando seu comportamento

fosse negativo.

Esse sistema foi aceito e aplicado em muitas prisões da Inglaterra,

razão pela qual ficou conhecido como sistema progressivo Inglês. O tempo de

cumprimento da pena era dividido em três períodos: a) período da prova, com

isolamento celular diurno e noturno do tipo pensilvânico; b) período com

isolamento celular noturno e trabalho comum durante o dia com a regra do

silêncio absoluto do tipo auburniano; c) período, no qual, pela correção

demonstrada, o prisioneiro obtinha o ticket of leave, ou seja, o benefício da

liberdade condicional.54

e. Sistema Progressivo Irlandês

Criado por Walter Crozton, em 1853, o sistema progressivo

irlandês, aperfeiçoa o sistema de vales, inserindo um estágio intermediário

que consistia em transferir o recluso para prisões especiais com disciplina

mais suave, sem uniforme, com permissão para conversar, trabalhar ao ar

53 FUNES, Mariano Ruiz. A Crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953, p.159. 54 PIMENTEL, Manoel Pedro. Op. Cit; RT 639:267-268.

Page 47: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

47

livre no exterior do estabelecimento, preferencialmente no campo, tendo por

finalidade o preparo do condenado para o retorno à vida livre em sociedade.

O regime irlandês ficou dividido em quatro períodos: a) período da

prova, com isolamento celular diurno e noturno, como sistema inglês; b)

período com isolamento celular noturno e trabalho comum durante o dia com

a obrigação de manter silencio absoluto; c) período intermediário ocorrido

entre a prisão comum em local fechado e a liberdade condicional

caracterizada pelo fato de presos vestirem roupas civis e exercerem trabalho

externo, igual aos trabalhadores comuns; d) o período da liberdade

condicional.

f. O Sistema de Montesino

O sistema de Montesinos foi criado pelo Coronel Manuel

Montesinos y Molina. Com um espírito humanitário e capacidade de liderança

para corrigir os condenados, imprimiu eficaz autoridade moral e sentimentos

de autoconfiança entre eles. Concretizou suas idéias a partir de 1834, quando

foi nomeado diretor do Presídio de San Agustín, em Valencia, onde ordenou

que fosse escrito no frontispício daquela prisão: “Aqui penetra e hombre, el

delito queda a la puerta’. Esta frase significa que a vingança pública se exerce

mediante a sentença condenatória, mas que desde esta começa a executar-

se, o delito e se reveste no passado.55

O sistema espanhol de montesianos estabelecia o respeito e a

dignidade do preso. Enfatizava o sentido regenerador da pena, acreditava que

a função do presídio era devolver à sociedade homens honrados e cidadãos

trabalhadores.56 Sustentava que o trabalho penitenciário era o melhor meio

era conseguir o propósito reabilitador da pena e que deveria ser remunerado.

Na Espanha, num dos presídios de Valência, onde tinha sido

aplicado, o sistema apresentava-se dividido em três períodos: a) os presos

grilhados a correntes faziam serviços gerais no interior do estabelecimento; b)

55 PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo: Revista dos tribunais, 1983, p. 138 - 139. 56 Mensagem de Montesinos Sr. Diego de La Rosa, da Direção Geral dos Presídios, publicado na Revista especial penitenciária, 1962, p. 284, apud. Cezar Roberto BITENCOURT. Falência da pena de Prisão: causas e alternativas, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 91.

Page 48: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

48

podiam manifestar as suas preferências nas oficinas de trabalho, de acordo

com a sua capacitação profissionais; c) tinham o direito de visitar os seus

familiares e executar trabalhos externos.

g. Sistema Progressivo no Brasil

O sistema progressivo foi adotado na legislação penal brasileira

contemporânea, na qual se pretende que a pena privativa de liberdade seja

executada de forma progressiva, do regime mais rigoroso para o menos,

levando em consideração o comportamento do apenado e sua personalidade

postdelictum.Assim, estão obrigatoriamente sujeitos ao regime fechado, no

início do cumprimento da pena, os reincidentes ou aqueles cuja pena seja

superior a oito anos (CP, art.33, 2. º, a), e, por expressa disposição legal, a

pena será integralmente cumprida em regime fechado quando se tratar da

prática de quaisquer dos crimes definidos como hediondos (Lei n.º 8.072/90);

podem iniciar o cumprimento em regime semi-aberto os não reincidentes com

pena de reclusão superior a quatro anos, não excedentes a oito (CP, art.33, 2.

º, b); devem iniciar o cumprimento em regime semi-aberto os condenados à

pena de detenção, qualquer que seja a quantidade (CP, art. 33, caput,

segunda parte); só podem iniciar o cumprimento da pena em regime aberto os

não reincidentes com pena igual ou inferior a quatro anos (CP, art. 33, 2. º, c),

observados os requisitos da LEP, art. 114.

No regime fechado, a pena é cumprida em penitenciária (LEP, art.

87), o condenado será submetido a exame de classificação para

individualização da execução, no início do cumprimento da pena, ficando

sujeito ao trabalho no período diurno dentro do estabelecimento, observadas

as suas aptidões, desde que compatíveis com a execução da pena, e a

isolamento durante o repouso noturno (CP, art. 34). Contudo, em face da

superlotação nas prisões, onde celas que deveriam ser ocupadas por no

máximo 05 presos ocupam até 10 ou mais presos.

No regime semi-aberto, a pena deve ser cumprida em colônia

agrícola, industrial ou similar (LEP, art. 90), e o condenado será submetido à

avaliação inicial para sua classificação, com vistas a propor a

individualização da execução da pena. A avaliação deve ser realizada no

Page 49: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

49

início do cumprimento da pena. Admite-se o trabalho externo, bem como a

sua freqüência a cursos profissionalizantes, de instrução de segundo grau

ou superior (CP, art. 35). A superlotação também vem ocorrendo nesse tipo

de prisão. O regime aberto é fundado na autodisciplina e no senso de

responsabilidade. O condenado deverá, fora do

estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar

cursos profissionalizantes e formais ou exercer outra

atividade autorizada, permanecendo recolhido na casa do

albergado durante o repouso noturno e nos dias de folga

(CP, art. 36 e LEP art. 93).

O regime aberto, nos últimos anos, não tem se efetivado no Brasil,

em razão da ausência de casas do albergado, adotando alguns juízes a

postura de transformar o regime aberto em benefício de livramento

condicional, desta forma o indivíduo cumprirá as obrigações impostas pela

justiça em sua residência.

Page 50: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

50

CAPÍTULO II A INSERÇÃO DO TERCEIRO SETOR NAS PRISÕES DENOMINADAS CENTROS DE RESSOCIALIZAÇÃO

As instituições prisionais no Estado de São Paulo sempre se

mantiveram em crise, uma vez que, por mais que as autoridades

constituídas se esforcem para administrarem as prisões tornando-as mais

humanizadas, enfrentam contradições, tendo em vista que a questão

prisional não se resolve nela mesma, isto é, suas determinações são mais

amplas e se inserem na questão social e nas contradições do sistema

capitalista.

Analisando historicamente o desenvolvimento dos sistemas

punitivos no mundo e no Brasil, fica evidenciado que somente a partir de

1988 é que os governos de cada Estado passaram a implementar, através

de leis complementares, decretos e resoluções, melhores condições de

cumprimento de pena aos indivíduos condenados.

O Estado de São Paulo, através de sua Constituição estatal,

ampliou os direitos dos presos, instituindo na legislação o respeito às Regras

Mínimas da Organização das Nações Unidas – ONU para o tratamento dos

indivíduos presos.57

57 As regras mínimas da ONU estabelecem um conjunto de princípios que objetivam a proteção à dignidade física e moral do indivíduo preso.

Page 51: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

51

Instituíram-se, também, às mulheres presas condições para

amamentar seus filhos durante o período de 04 meses em prisão dotada de

capacidade de oferecer atendimento de suas necessidades e de seus filhos.

Mas, embora no Brasil a cobrança dos legisladores penais e dos

organismos de luta e combate às práticas prisionais desumanas começasse

a operar com maior rigor a partir de 1988, por conta da reformulação da

Constituição Federal de 1988, que só foi remodelada, em face do atual

momento político, que vinha buscando a construção de um país mais “justo

e democrático” socialmente, após anos de ditadura militar. Portanto, já em

1984, foi reformulada a Lei de Execução Penal -LEP nº 7.210/84, tendo sido

regulamentado juridicamente o sistema penitenciário brasileiro apresentando

em seu art. 1º o objetivo de “efetivar as disposições da sentença ou decisão

criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do

condenado”.

No art. 10 é determinado que “a assistência social ao preso e ao

internado é dever do Estado com vistas a prevenir o crime, orientando-o

para harmônica convivência em sociedade após liberdade”.

A assistência social deve compor-se de: material, à saúde,

jurídica, educacional, psicológica, social e religiosa. (Art.11 da LEP).

A LEP, ao determinar o elenco de medidas relativas à assistência

social ao preso, contempla o caráter social e humano da pena e espera que

o Estado através de seus funcionários gestores e executores efetivem nas

prisões metodologias que materializem o processo de “reintegração social” 58, o qual leve os indivíduos presos a elaborar novos projetos de vida, fora

58 Utilizamos o termo “reintegração social” em substituição ao termo “ressocialização”. O conceito reintegração social é utilizado por Alessandro Baratta, criminólogo e penalista italiano, que defende o direito penal mínimo. Baratta, sustenta a necessidade do estabelecimento de uma legislação penal de conteúdo mínimo destinada à preservação dos direitos humanos e liberdade individuais para garantir a defesa dos mais fracos e evitar reações injustas e indesejáveis, não só por parte do Estado, mas também de qualquer órgão de natureza pública ou privada até mesmo da vítima. O conceito “reintegração social” é utilizado por Baratta, em oposição à:“readaptação”, “reeducação”, “reabilitação” e “ressocialização”. Baratta defende que os profissionais das áreas técnicas que atuam nas prisões devem desenvolver estratégias para a “reintegração social” dos indivíduos presos. Essa estratégias não devem ter a intenção de internalizar no indivíduo normas de readaptação de sua conduta no social. Não deve tentar conscientizar no indivíduo de que ele errou e, portanto, deve adequar-se às normas institucionais para cumprir sua pena. Baratta adverte que os profissionais devem promover programas dentro das prisões que conscientizem o indivíduo daquilo que ele pode vir a realizar, daquilo que ele pode vir a ser. Conscientiza-lo de suas

Page 52: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

52

da criminalidade. Mas, a realidade que se apresenta é que desde a invenção

da pena privativa de liberdade, esta vem sendo questionada em razão dos

inúmeros problemas de caráter violento que afloram dentro das prisões.

É comum no Brasil, as prisões ganharem espaços na mídia escrita

e falada, somente em situações onde ocorrem motins, fugas, rebeliões e

corrupção de funcionários. À luta de organizações sociais, inclusive de

autoridades e funcionários estatais para a constituição de prisões mais

humanizadas e democratizadas no sentido de garantir os direitos humanos e

sociais dos presos, não se têm prestado a atenção e dado a ela o enfoque

necessário pela mídia e os ditos estudiosos das comunidades encarceradas.

No entanto, o Estado de São Paulo tem demonstrado estar à

frente de outros estados no que concerne à preocupação com a

humanização de suas prisões, fato é que, já em 1993, criou a primeira

Secretaria de Administração Penitenciária para tratar exclusivamente da

questão penitenciária.

Historicamente, a criação da Secretaria remonta a 01/03/1982,

quando o governo, através do decreto estatal de nº 28/92, instituiu a

Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo.

Até 1979, as instituições destinadas ao cumprimento de penas

privativas de liberdade, no Estado de São Paulo, estavam subordinadas ao

DIPE (Departamento dos Institutos Penais do Estado), órgão pertencente à

Secretaria de Justiça. Entretanto, em 13 de março de 1979, foi editado o

Decreto nº 13.412, transformando o DIPE em Coordenadoria dos

Estabelecimentos Penitenciários do Estado – COESPE, compondo-se à

época de 15 unidades prisionais.59

A partir de março de 1991, a COESPE ficou subordinada à

Secretaria da Justiça, em seguida, passou para a Secretaria de Segurança

Pública, tendo permanecido até dezembro de 1992. De 1990 até 1998, a

COESPE, de um universo de 15 unidades prisionais, passou a administrar

63 unidades, e várias, já em sua gênese, foram construídas com modelos

qualidades e de seus deveres para consigo e para com a sociedade, enquanto cidadão de direito. 59 Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária – Cadernos anais I- p.07 – 1985.

Page 53: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

53

arquitetônicos diferenciados, implicando a necessidade de ações e

metodologias diferenciadas.

Em razão da preocupação governamental em instituir políticas

voltadas ao atendimento das necessidades sociais do indivíduo preso, é que

o governador, à época Mário Covas, criou a Lei nº 8.209 (04/01/1993) e, em

seguida, o Decreto nº 36.463 (26/01/1993), ambos instituindo e

normatizando a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São

Paulo, como já mencionado, a primeira no Brasil a tratar com exclusividade

da questão penitenciária.

Para se ter noção do avanço das instituições prisionais,

atualmente coordenadas por essa Secretaria, até o dia 24 de fevereiro de

2006, contava com 143 unidades prisionais, de variados modelos

arquitetônicos e características diferenciadas para custódia dos condenados.

As 143 unidades mantinham sob sua custódia, 117.846 indivíduos

homens e 4.323 mulheres, totalizando uma população carcerária de

122.169.60

2.1. Missão e Atribuições da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo – SAP

“A SAP é um órgão que tem como missão a aplicação da Lei de

Execução Penal, de acordo com a sentença judicial, visando à

ressocialização dos sentenciados”

2.2. Atribuições

- “Execução da política estadual de assuntos penitenciários”,

- Organização, administração, coordenação, inspeção e

fiscalização dos estabelecimentos que a integram;

- Classificação dos condenados,

- Acompanhamento e fiscalização do cumprimento de penas

privativas de liberdade em regime de prisão albergue,

60 Dados colhidos no site da Secretaria de Administração Penitenciária. Disponível em: www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 24 de fevereiro de 2006.

Page 54: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

54

- Formação profissional dos sentenciados e o oferecimento de

trabalho remunerado;

- Supervisão dos patronatos e a assistência aos egressos;

- Emissão de pareceres sobre livramento condicional, indulto e

comutação de penas.61 - Realização de pesquisas criminológicas;

-Assistência às famílias dos sentenciado

2.3. As Unidades Prisionais do Estado de São Paulo: Capacidade Populacional e Características de Funcionamento

O sistema penitenciário, conforme mencionado é composto

atualmente de 143 unidades prisionais, sendo: Quadro 1: Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo. Extraído do site da SAP.

Disponível: www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 06/03/2006

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

Oferece segurança para a população e

dignidade para o preso;

Atendimento médico / odontológico;

Parlatório e sala de audiência;

Celas reforçadas com chapas de aço;

Detector de metais e sistema de alarme e

TV;

Geração de empregos diretos: 293;

Construído para abrigar a população dos

DPs e cadeias;

Presos provisórios (regime fechado);

32 +

01 anexo

CDP – Centro de Detenção Provisória

Capacidade 768 presos

Estabelecimentos para presos que

aguardam julgamento.

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

61 No dia 01/12/003 foi publicada no DOE a Lei n 10.792, alterando a Lei de Execução Penal e o Código de Processo Penal, ocorrendo um grande retrocesso na prática dos profissionais das áreas de Serviço Social e Psicologia penitenciários, em razão de ter sido eliminado o exame criminológico, que era elaborado por esses profissionais, cujos pareceres auxiliavam os juízes e promotores públicos a se manifestarem sobre a progressão de pena dos indivíduos presos ou o julgamento dos benefícios de livramento condicional e, outros.

Page 55: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

55

Regime semi-aberto;

Mais facilidade de ressocialização;

Oficinas de trabalho;

Salas de aula;

O preso trabalha dentro e fora do CPP;

07

CPP – Centro de Progressão

Penitenciária 672 presos

Geração de empregos diretos: 233

Nº de Unidades Modelos CapacidadeDescrição

do funcionamento

Celas individuais (segurança máxima);

Segurança: sistema interno de TV,

detectores de metais, equipamento de

alarme e bloqueador de celular;

RDD - Regime Disciplinar Diferenciado;

Número de tentativas/fugas: ZERO;

03

CRP – Centro de Readaptação Penitenciária

160 presos

Geração de empregos diretos: 207.

Nº de Unidades

Modelos

Capacidade

Descrição do funcionamento

Page 56: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

56

Unidade mista (regimes fechado, semi-

aberto e provisório);

Administrado em parceria com ONG;

Participação efetiva da comunidade;

Serviços assistenciais, saúde,

odontológico, psicológico, jurídico,

social, educativo, religioso, laborterápico

etc. ;

Manutenção do reeducando: custo

reduzido;

Baixo índice de reincidência;

22

Centro de Ressocialização

CR

210 presos

Geração de empregos diretos: 61

cargos.

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

Regime semi-aberto;

19

APP – Ala de Progressão Penitenciária (anexos de Penitenciarias)

108 presos

Unidades construídas junto a

estabelecimento de regime fechado.

Destina-se à população presa em

regime semi-aberto

Nº de Unidades

Modelos

Capacidade

Descrição do funcionamento

Regime fechado;

Oferece mais condições de recuperação;

Possui oficinas, salas de aula;

Parlatório;

Cozinha, ambulatório médico;

Local adequado para banho de sol;

16

PC – Penitenciária

Compacta 768 presos

Geração de empregos diretos: 367.

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

Page 57: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

57

Regime Fechado;

Possui oficinas de trabalho, salas de

aulas;

Atendimentos médico, psicológico,

social, religioso e pedagógico;

Locais adequadas para visitas familiares;

Locais adequados para visitas conjugais;

Geração de empregos diretos: 450.

56 Penitenciária 350 a 1500

presos

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

02 IPA – Instítuto Penal Agrícola

500 a 1200 presos

Atendimento à população presa em

regime semi-aberto, sendo os trabalhos

em sua maioria oferecidos em empresas

externas.

Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento

05 Hospitais

Penitenciários variável

Atende população presa com problemas

psíquicos e doenças infecto-contagiosas

e demais moléstias.

2.4 Distribuição de Unidades Prisionais por Coordenadorias Regionais

Para coordenar as unidades prisionais a Secretaria instituiu 06

coordenadorias regionais, a fim de melhorar a gestão, quanto às unidades

que ficam sob a responsabilidade de cada Coordenadoria, são elas:

Coordenadoria da Capital e Grande São Paulo; Coordenadoria da Região

Central do Estado; Coordenadoria do Vale do Paraíba e Litoral do Estado;

Coordenadoria da Região Noroeste do Estado; Coordenadoria de Região

Oeste do Estado e Coordenadoria de Saúde.

Page 58: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

58

Os diversos modelos prisionais instituídos no Estado vão ao

encontro da necessidade imposta pela reformulação da Lei de Execução

Penal (1984). O governo federal e governos estaduais referem que o Brasil é

signatário de uma das melhores políticas criminais de tratamento dos

indivíduos presos, portanto necessita de prisões que atendam os estatutos

impostos em lei. Mas, segundo o pensamento dominante de estudiosos das

prisões, tais estatutos não têm passado de "letras mortas", visto que política

pública prisional, para governos e para muitos gestores de prisões, só é

eficiente quando consegue baixar os índices de fugas, motins e rebeliões e

isto o Estado de São Paulo conseguiu demonstrar com eficiência durante o

período de 2002 a 2004, feito que não ocorreu no ano de 2005, como pode

observar no gráfico nº1.

Page 59: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

59

Gráfico nº1: Rebeliões 62.

A autonomia e independência com que gozam os Estados

brasileiros ao estabelecer a política de prestação de serviços sociais aos

presos refletem a variedade de modelos prisionais, que variam em

capacidade de acolhimento e custos mensais.

O sistema penitenciário do Estado de São Paulo nos últimos

cinco anos, segundo o Secretário de Administração Penitenciária, 63 passou

de um sistema penitenciário falido e arcaico como prática para um sistema

penitenciário inovador e dinâmico. Os dados quantitativos quanto a

rebeliões, fugas, motins e causas de mortes de presos, são mostrados de

forma transparente nas páginas do site 64 da Secretaria. São mostrados

ainda os “avanços“ em termos de ações sociais voltadas aos presos, as

dificuldades que ainda persistem e as propostas para superação e

humanização do sistema penitenciário.

62 Fonte: Dados extraídos do site da Secretaria de Administração Penitenciaria. Disponível:

www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 31/12/2005. Total da população carcerária em 31/12/2005 – 121.076 indivíduos presos.

63 Discurso proferido durante reunião com diretores gerais de unidades prisionais 64 www.admpenitenciaria.sp.gov.br

Page 60: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

60

E é na busca de caminhos alternativos que o governo do Estado

permitiu que fosse inserido um novo protagonista social nas prisões, este

denominado Terceiro Setor.

O Terceiro Setor desde o ano 2000, segundo ainda o Secretário,

passou a ter fundamental importância na prestação de serviços de

assistência à população prisional.

O Estado, mediante parcerias com organizações não

governamentais, legitimou ao Terceiro Setor o repasse de

responsabilidades, até então essencialmente estatais, dentro das prisões, na

tentativa de redesenhar novas formas de gestão e viabilização de serviços

que venham a atender com qualidade, eficiência e eficácia as necessidades

dos indivíduos que mantém sob sua custódia.

2.5- O Terceiro Setor e sua Relação com o Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo

Antes de prosseguirmos a discussão da inserção do chamado

Terceiro Setor nas prisões do Estado de São Paulo, faz-se necessário

esclarecer o entendimento que se vem tendo quanto ao termo Terceiro

Setor, muito embora a definição para o ramo de atividades usualmente

chamado de Terceiro Setor ainda é confuso e impreciso e não há consenso

entre os intelectuais, estudiosos e agentes sociais sobre ele

Observa Montaño que o termo Terceiro Setor foi cunhado por

intelectuais orgânicos do capital, e isso assinala claramente ligação com

interesses de classe, nas transformações necessárias à alta burguesia e que

o termo é construído a partir de um recorte do social em esferas: O Estado

(Primeiro Setor), o mercado (Segundo Setor) e a sociedade civil (Terceiro

Setor). Ainda, em Montanõ, assinala Landim que o “Terceiro Setor não é um

termo neutro”, sua nacionalidade é clara. É de procedência norte-americana,

contexto onde associativismo e voluntariado fazem parte de uma cultura

política e cívica baseada no individualismo liberal (MONTAÑO, 2004, p.53).

Page 61: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

61

Os teóricos têm classificado as três esferas mencionadas por

Montaño, como: PRIMEIRO SETOR - o Estado entendendo este como o ente com

personalidade jurídica de direito público, encarregado de funções públicas

essenciais e indelegáveis ao particular (justiça, segurança, fiscalização,

políticas públicas, etc.).

O SEGUNDO SETOR é compreendido como as organizações do

mercado: pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, encarregadas da

produção e comercialização de bens e serviços, tendo como escopo o lucro

e o enriquecimento do empreendedor.

E o TERCEIRO SETOR é aquele que congrega as organizações

que, embora prestem serviços públicos, produzam e comercializem bens e

serviços, não são estatais, nem visam ao lucro financeiro com os

empreendimentos efetivados, estando incluídas aqui, portanto, as

associações, sociedades sem fins lucrativos e fundações.

Apesar de o sentido ser o mesmo para os termos Terceiro Setor

ou ONGs, a última denominação tem sido mais vinculada às organizações

que tenham suas finalidades direcionadas a questões que atingem mais

genericamente à coletividade (meio ambiente, doenças infecto-contagiosas,

etc.).

Investigando mais amiúde alguns estudos sobre o Terceiro Setor,

fica claro que não há até o momento consenso quanto a sua

conceitualização, entretanto uma das definições mais freqüentes diz que o

Terceiro Setor: Constitui o conjunto de atividades das organizações da

Sociedade Civil, portanto são organizações criadas por

iniciativas de cidadãos, que tem como objetivo a prestação

de serviços ao público em áreas como saúde, educação,

cultura, direitos civis, moradia, proteção ao meio ambiente e

desenvolvimento do ser humano 65.

65 SALOMON, APUD Fernandes, 1994, P.19.

Page 62: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

62

Nesse sentido, ao nos referirmos ao termo Terceiro Setor ao

longo deste estudo, estaremos trabalhando com esta perspectiva conceitual,

ou seja, Terceiro Setor são as ONGs.

Segundo pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística) e pelo IPEA (Instituto de pesquisa Econômica

Aplicada), publicada em 2004, com dados de 2002, sobre as fundações e

associações sem fins lucrativos, constatou-se que existem no Brasil pelo

menos 275 mil organizações, mais da metade criada nos últimos 13 anos, e

o Terceiro Setor emprega 1,5 milhão de pessoas.

“A imensa maioria (212 mil) é tocada por trabalho voluntário, mas

o resto, que é um número expressivo, é trabalho assalariado”, afirma um

professor da Fundação Getúlio Vargas, que também atua no Centro de

Estudos do Terceiro Setor da Fundação, Mário Aquino Alves.

Segundo esse professor, o Terceiro Setor ganhou nos últimos

anos visibilidade nacional e internacional como campo profissional e sua

tendência é a profissionalização.

No âmbito internacional, contam-se atualmente mais de 32 mil

ONGs, segundo informação da Union For International Organization –

estando espalhadas por todo o mundo, grandes e pequenas, prosperando

particularmente nos países ricos.

As propostas das grandes ONGs transnacionais, nos países

desenvolvidos do mundo democrático, muitas vezes têm conseguido o apoio

dos governantes, que precisam de seus votos para se reeleger ou para

elegerem seus candidatos partidários.

O articulista Guy Sormam, do jornal francês Le Monde,

preocupado com os desvios das ONGs, comentou:

atrás das siglas ( humanitárias), prosperam pequenas e

grandes associações ricas e pobres, generosas e cínicas.

Ninguém fiscaliza suas fontes de recursos de financiamento,

ninguém verifica a autenticidade da boa causa a que se

propõem e ninguém controla as suas despesas. Na sua

quase totalidade, elas não estão subordinadas senão as

assembléias fantasmas (de personalidades honradas), mas

Page 63: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

63

são administradas efetivamente por minorias vinculadas a

outros interesses.

Ainda, segundo esse articulista “as ONGs mais poderosas são

transnacionais e projetam a imagem de empresas transnacionais que as

financiam, tornando utópica a idéia de que são organizações

autogerenciadas, sujeitas que estão a uma irresponsabilidade ilimitada

ligada a causas boas ou más” 66.

No Brasil, analisando o processo histórico de inserção das ONGs,

denota-se que elas surgiram no país durante os anos de 1970 a 1980 como

estratégias de apoio aos movimentos sociais e populares, fruto de um

processo marcado por um longo período de ditadura militar e de um recente

período de abertura democrática, o qual impulsionou uma nova consciência

cidadã e conseqüentemente uma nova sociedade civil que se organizou e

conduziu lutas de classes, determinadas por interesses entre o capital e o

trabalho, multiplicando princípios, tais como participação, descentralização e

universalização de direitos.

As ONGs permaneciam por detrás dos movimentos populares na

luta contra o regime militar e pela democratização do país. As ONGs, sem

dúvida, ajudaram a construir um campo democrático, haja vista que no Brasil

durante os anos 70, em face da ditadura militar, os cidadãos eram proibidos

de se expressarem publicamente sobre assuntos de interesse público. A

imprensa era censurada, os sindicatos eram amordaçados, manifestações

públicas eram proibidas, os partidos políticos de esquerda foram postos na

clandestinidade, havia perseguição, prisão, tortura e morte de opositores do

regime. A resistência à ditadura se fazia organizando movimentos sociais,

manifestações de massa, passeatas, greves, etc. Houve até organizações

políticas que, na clandestinidade, optaram pela via da luta armada para

enfrentar a ditadura.

Nessa época foram criadas inúmeras entidades para defesa dos

direitos humanos, civis e políticos. As ONGs se preocupavam em fortalecer

66 O Perigo da proliferação indiscriminada. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 de julho de

2001.

Page 64: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

64

a representatividade dos movimentos populares e a maioria atuava numa

linha de conscientização dos grupos organizados. Não se tratava de um tipo

qualquer de ONG, mas das ONGs cidadãs, movimentalistas e militantes.

Por meio de suas práticas, as ONGs eram identificadas pela

opinião pública como entidades engajadas em projetos de transformação

social, para democratizar nossa sociedade, combater a desigualdade e a

justiça social.

Em quase todos os países da América latina ocorreu o mesmo processo.

Quase todos viviam sob ditaduras e aí também a resistência democrática

associou-se à perspectiva socialista e deu origem a um grande movimento

de entidades civis, que constituíram a base organizativa dos movimentos

sociais.

As ditaduras foram sendo, pouco a pouco, substituídas por

democracias conservadoras que, combatendo os movimentos, aceitaram a

imposição das políticas neoliberais, reduziram substancialmente a cobertura

e a qualidade das políticas sociais e as responsabilidades do Estado para

com o bem-estar dos cidadãos.

Nos anos 1980, a imposição desse modelo do Estado Mínimo teve

como complemento a política de terceirização na execução de serviços

públicos, estimulando o surgimento de uma grande quantidade de

organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, criadas para

estabelecerem contratos com o poder público e prestarem serviços nas

áreas sociais. Entretanto, para combater essa ameaça de cunho socialista,

descaracterizar o sentido político das entidades que se criaram nesse

período anterior, confundir as identidades: o Banco Mundial, em meados dos

anos 80, criou o termo Organização Não-Governamental-ONG. As Ongs se

definiram pelo que não são, não pelo que faziam. Desta forma debaixo

desse novo véu além dos grupos de cidadãos que se organizaram para a

defesa de direitos, vieram muitas outras entidades, por exemplo, aquelas

que tradicionalmente fazem assistencialismo, ou novas entidades

prestadoras de serviços, orientadas por interesses de mercado, sem

qualquer preocupação maior com a questão social.

Outros fatores explicam, ainda, o rápido crescimento desse setor,

como as crises percebidas no contexto internacional, que influenciaram na

Page 65: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

65

redução do campo de atuação do Estado, ao mesmo tempo em que abriram

caminho para a proliferação de Organizações Não-Governamentais. São

estes os fatores:

a- Crise do Welfare-State Estado de bem-estar-social, a partir dos

anos 70, quando o Estado passou a diminuir e até mesmo abandonar

serviços essenciais ( saúde, educação, saneamento, etc.), conforme teoria

dos que defendem o Estado Mínimo.

b- Crise do desenvolvimento, que supõe, equivocadamente, que o

Estado é incapaz de promover atividades de desenvolvimento de base.

c- Crise do socialismo, a partir dos anos 90, que favoreceu uma

visão de descrédito para com o Estado, provocando a proliferação de

serviços sociais fora da esfera ou até do alcance deste.

d- Crise do meio ambiente, que, na ausência de ação dos

governos para controlar a degradação ambiental, provoca iniciativas sociais

que atuam no sentido de “correr atrás do que já foi perdido”.

e- Em paralelo a essas crises, a revolução tecnológica e das

comunicações, bem como crescimento e difusão dos trabalhos em rede e de

eventos como o Fórum Social Mundial inserem o Terceiro Setor na atual

agenda política de todos os países.

Em meio a tantas discussões quanto ao melhor conceito para

definir o Terceiro Setor, bem como os diversos fatores contributivos para a

proliferação das entidades que o compõem, o fato é que desde os anos 80

vem se discutindo e estudando o que vem a ser o Terceiro Setor, o seu real

significado e qual deve ser o seu efetivo papel diante do Estado e da

sociedade. Dessa forma, passam a existir ONGs e ONGs, assim como

existem sindicatos e sindicatos, partidos e partidos. A forma de organização

não garante os compromissos da entidade. Para que possamos reconhecer

o que de fato são, é preciso analisar suas práticas, sua missão, seus

objetivos, para separar o joio do trigo.

Contudo, para os atuais governos, as ONGs têm sido vistas como

uma forte aliada no combate às mazelas sociais que assolam o país e aos

olhos da sociedade em geral passaram a ter fundamental importância no

cenário brasileiro.

Page 66: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

66

O chamado Terceiro Setor vem evoluindo, principalmente no

aspecto legitimação, pois o governo brasileiro encarregou-se de criar um

marco legal, a chamada Lei das Oscips 67 – o que culminou num aumento do

interesse das pessoas pela atividade social e maior reconhecimento público

das ações desenvolvidas pelas Organizações Não-Governamentais, e, com

isso, criou-se uma extensa rede desse tipo de organizações, mas a grande

questão que os críticos em relação à atuação das ONGs, em razão da

omissão do Estado apontam é se deve esse Terceiro Setor agir substituindo

o papel do Estado ou pressioná-lo a assumir suas responsabilidades, com

relação às desigualdades sociais, econômicas e culturais que assolam o

país. Haja vista que vários estudos já realizados acerca da atuação das

ONGs, as quais sobrevivem exclusivamente com recursos públicos, dão conta de que a maior parte das ONGs existentes no país se prende ao

atendimento meramente assistencial e paternalista, que não promove a

ascensão social do indivíduo desfavorecido.

A maioria das ONGs atuantes no país não tem consciência de

sua força política e tampouco do poder de persuasão e pressão que o

Terceiro Setor pode ter na formulação de políticas públicas. Muitas ONGs

se transformaram em empresas baratas, de execução assistencialista de

obras dos governos, e atuam como simples agentes que reproduzem as

mesmas ações estatais deficientes e não buscam a perspectiva e a

dimensão de transformação ou mudança do modo e forma com que até

então o Estado vem agindo. Forma esta em que a política social estatal para

os pobres e municípios tem sido focalizadas e precarizadas, operando-se

perdas ao direito do cidadão no acesso às respostas para suas

necessidades básicas.

O Estado, cada vez mais sob o pretexto de chamar a sociedade

civil a colaborar com ele na solução ou amenização da questão social que

assola o país, vem efetivando parcerias e repassando recursos públicos a

67 São entendidas como OSCIPS as entidades que, em atendendo diretamente ao público, possuam uma ou mais das seguintes finalidades: promoção da assistente social, promoção da cultura, promoção da educação, promoção da saúde, segurança alimentar e nutricional, promoção do voluntário, promoção do desenvolvimento, promoção do econômico e social e combate a pobreza, apoio à geração de emprego e renda, promoção da ética, promoção da paz, promoção da cidadania, promoção dos direitos humanos, promoção da democracia e de outros direitos universais. – Lei 9.790/99.

Page 67: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

67

organizações sociais no intuito de que estas desenvolvam programas,

projetos e serviços aos homens, mulheres, velhos e crianças, os quais

enfrentam as mazelas do capitalismo neoliberal dos últimos anos.

No entanto, muitas dessas organizações passam à população um

rótulo de bem intencionadas e de objetivos humanitários e sociais, quando

por detrás dos véus que as encobrem, as boas intenções não são tão boas

assim. Seus objetivos não são tão idealistas e suas ações não têm

conseguido atuar para procurar organizar meios de resolver o problema da

miséria em todas as mais nefastas formas de exclusão social vivida pelo ser

humano nos dias atuais. Suas ações, conforme assinala Montaño, se dá

justamente ao contrário, o que as organizações do chamado Terceiro Setor

vem fazendo é agudizar e reforçar a indigência da população a que dizem

assistir socialmente.

Segundo Montaño, as Organizações Não-Governamentais, vêm

contribuindo para solapar direitos sociais, provocando prejuízos econômicos

a enormes parcelas da população até recentemente reconhecidas pelo

Estado como portadoras de direitos à informação, educação, saúde,

previdência social, trabalho, etc.

Diante do exposto e como já dito, o Estado de São Paulo, sob o

pretexto de chamar a sociedade civil a “cooperar” na solução dos problemas

sociais que afetam a comunidade prisional, vem repassando recursos

públicos a essas ONGs para que elas se responsabilizem pela elaboração e

gestão de políticas sociais que dêem respostas às necessidades e

demandas postas pelos indivíduos encarcerados.

No entanto, o Estado, ao se desresponsabilizar de funções

pertinentes a si, tem delegado a essas organizações uma espécie de

assistencialismo messiânico, os quais não têm contribuído no avanço de

políticas sociais que realmente auxiliem os indivíduos presos a darem um

salto compreensivo na questão de que são sujeitos sociais e como sujeitos

são detentores de direitos e deveres com vistas ao exercício de sua

cidadania.

Essa afirmativa será melhor fundamentada no terceiro capítulo

deste estudo, onde faremos a análise da pesquisa realizada junto aos

Page 68: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

68

sujeitos que gestam, executam e vivenciam o processo de gestão instituído

nas prisões CRs pelo Estado e ONGs.

2.6. A Gênese das Ongs Nas Prisões Do Estado De São Paulo

A origem da parceria entre Estado e ONGs evidencia elementos

que revelam uma iniciativa assistencialista por parte do Estado e ONGs na

busca de alternativas voltadas à humanização da pena. Ao mesmo tempo a

proposta do secretário se insere na política pública criminal68 do Estado de

São Paulo.

Era o ano de 1993, a cadeia pública da cidade de Bragança

Paulista do Estado de São Paulo encontrava-se em situação precária: eram

07 celas para 120 presos, entre os quais 20 eram mulheres. Mortes, motins,

rebeliões faziam parte do cotidiano daquele lugar, assustando a população

da pacata cidade interiorana.

Em 27 de abril daquele ano, a convite da vereadora Juliana

Sociloto (PTB), Moisés Cavalcante, preso na cadeia, participou da Tribuna

Livre da Câmara Municipal, tendo declarado: “uma rebelião poderá ocorrer

na cadeia de Bragança Paulista com conseqüências graves”. E continuou:

“os presidiários estão sobrevivendo em condições

subumanas. A cadeia, além de não ter camas, colchões e

lâmpadas, existem problemas com goteiras e limpeza e os

presos com AIDS não recebem atendimento médico,

convivendo com os demais presidiários”.

E concluiu: “se existe a intenção de reabilitação dos presos, é

necessário atenção especial das autoridades”.69

68 Política pública criminal é “o conjunto de procedimentos repressivos por meio dos quais o Estado reage contra o crime” . As diretrizes de uma política criminal e penitenciária enunciam uma série de princípios básicos e propósitos a serem perseguidos, objetivando o aprimoramento da reação ao fenômeno crime, bem como da execução penal no país em consonância com a Constituição Federal, a legislação pertinente e o programa nacional de direitos humanos, tudo isto em harmônia com as regras mínimas estabelecidas pela ONU, para o tratamento do preso, além das regras de Tóquio e as do Conselho Nacional de Política Criminal Penitenciária. – Ministério da Justiça – CNPCP. 69 Jornal Diário, Bragança Paulista, 29 de abril de 1993

Page 69: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

69

Também participou da Tribuna Livre, entre outras autoridades, o

delegado Marcos Vinícius Camilo Linhares, na época diretor da cadeia e

titular do 3º Distrito Bragantino, que endossou a manifestação de Moisés

Cavalcante, alertou a população dos problemas enfrentados pela Cadeia e

solicitou ajuda de todos.

Nossa preocupação é reeducá-los, prepará-los para a

ressocialização ao saírem do presídio, se tivermos condições

de dar-lhes dignidade humana, isso vai ser um passo

importante, a partir do qual poderemos, com certeza, trazer

cada preso para a sociedade e agregá-lo à sociedade

novamente, sem delinqüir. O trabalho é longo, mas frutífero e

poderemos, se não erradicar, pelo menos minimizar,

sensivelmente, a criminalidade local 70.

Em 16 de junho de 1993 o esperado ocorreu. Os presos da cadeia

pública de Bragança Paulista se amotinaram, sendo necessário o emprego

de força da polícia militar para controlar a situação. Entretanto, após o

motim, o Conselho Comunitário, órgão de execução penal previsto no art.

61, inciso VIII, da LEP - criado em 1991 com a finalidade de visitar

periodicamente a cadeia pública de Bragança Paulista e promover

entrevistas com os presos, anotando suas reivindicações e apresentando

relatórios, em debate promovido na Câmara Municipal local, em 05 de

agosto de 1993, observou que o trabalho de assistência que vinha sendo

desenvolvido para os presos não estava apresentando os resultados

esperados em virtude das péssimas condições da estrutura física da cadeia

e, principalmente, pela completa ociosidade em que os presos permaneciam

encarcerados.

Cansados de esperar as providências oficiais para diminuir o

sofrimento dos presos reformando a cadeia e dotando-a de condições

adequadas, a sociedade bragantina decidiu assumir esse encargo sem

onerar os cofres públicos. Por iniciativa do Poder Legislativo e com a

participação do Poder Judiciário e do Poder Executivo, contando com o

70 68 Jornal Diário, Bragança Paulista, 29 de abril de 1993

Page 70: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

70

apoio do Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, inicia-

se uma campanha para arrecadação de recursos para a reforma e

construção de outro prédio que seria anexo à cadeia, para possibilitar aos

detentos trabalho remunerado, assistência médica, odontológica e jurídica.

Paralelo à movimentação para a reforma da cadeia, cidadãos

bragantinos de ideais humanitários, objetivando a melhoria das condições de

vida dos presos reativaram a ONG - APAC (Associação de Proteção e

Assistência Carcerária) que já havia sido criada em 15 de maio de 1978,

tendo atuado somente por três anos na assistência aos presos.

No dia 16 de maio de 1994, no edifício do Fórum de Bragança

Paulista, no Salão do Júri, foi realizada a primeira reunião para reativação da

APAC, contando com a presença de 27 pessoas lideradas pelo então juiz

das execuções penais, Nagashi Furukawa, que reforçou a idéia de que o

problema carcerário de Bragança deveria ser assumido pela comunidade,

conseguindo que a maioria dos presentes manifestasse favoravelmente às

propostas de melhorias físicas e sociais dos presos que se encontravam na

cadeia pública. Ao mesmo tempo, conseguiu que o padre da cidade

agendasse a celebração de uma missa no pátio da cadeia, lugar onde há

muitos anos, salvo os presos, ninguém entrava.

No dia 27 de maio de 1994, iniciam-se as obras da construção do

prédio que seria anexo à cadeia, vindo a ser inaugurado em 04 de março de

1995. No dia 28 de maio foi celebrada a missa no pátio da cadeia com a

presença do juiz Nagashi Furukawa, autoridades, membros de vários

segmentos da comunidade e todos os presos. O ato foi considerado o marco

inicial para ocorrência das mudanças na cadeia pública de Bragança

Paulista.

Por ocasião da inauguração, em que se fizeram presentes

autoridades e membros colaboradores da comunidade bragantina, o juiz

Nagashi Furukawa proferiu o seguinte discurso:

Não se trata da inauguração de uma obra pública como

tantas outras. É o resultado do esforço conjunto de nossa

comunidade que sentiu a eminente necessidade de fazer algo

em prol dos nossos presos, cujas condições de vida fariam

Page 71: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

71

arrepiar a consciência do mais insensível dos homens. A obra

que hoje se inaugura, modesta no tamanho, é grande em seu

significado social. Não custou um centavo sequer para os

cofres do Governo Estadual. Do Governo de São Paulo que

saiu, deixando melancólico, saldo de dívidas e

irresponsabilidades, só recebemos a indiferença.

Não obstante este descaso, e a falta de respeito, a sociedade

bragantina não esmoreceu. Terminamos a construção do

anexo e com o trabalho dos próprios presos reformamos

totalmente o prédio da cadeia que não apresentava as

mínimas condições de higiene e hospitalidade. 71

E, assim, iniciaram-se os trabalhos na cadeia pública, coordenado

pela APAC, delegado, carcereiros e o juiz de execuções penais. Segundo

membros da APAC, aos poucos os trabalhos foram se consolidando e

diminuindo o tráfico de drogas, brigas e desavenças entre os presos. Os

membros da APAC foram conquistando a confiança dos líderes presos, que

antes tinham influência negativa sobre os outros, passaram a trabalhar de

modo positivo, contribuindo para a solidificação das ações sociais.

De 1994 a 1996, a APAC sobreviveu de doações e da contribuição

dos seus associados. Contudo, ainda em 1996, celebrou convênio com o

Governo do Estado após participar de uma licitação para o fornecimento de

alimentação para os presos da cadeia. A APAC saiu vitoriosa e o convênio

foi firmado, tendo como objetivo a prestação de assistência material,

assistência à saúde, jurídica, educacional, social, religiosa, psicológica e ao

trabalho para os presos da cadeia.

O convênio foi considerado inédito no Estado de São Paulo e criou

muitas expectativas para humanizar o cumprimento de pena dos presos que

se encontravam na cadeia.

71 Jornal Diário, Bragança Paulista, 23 de janeiro de 1996.

Page 72: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

72

2.6.1 A Parceria do Estado com Organizações Não-Governamentais, sob o Ponto de Vista da Mídia da Cidade de Bragança Paulista.

Retratamos algumas notas de jornais da cidade e região de

Bragança Paulista, que deram destaque à importância do convênio.

Convênio com a Secretaria de Segurança Pública, uma

associação de moradores de Bragança Paulista propõe-se

a gerir durante um ano a cadeia do município, recebendo

do Governo do Estado a quantia que seria paga à empresa

privada que fornece apenas refeições aos presos. Segundo

os munícipes, a alimentação absorveria somente a metade

da verba, e o restante seria aplicado a programas de

recuperação de detentos e ampliação das instalações do

presídio.

Este convênio é inédito em todo o país, transformando

Bragança em modelo a ser seguido por outros municípios.

Com a nova medida já foi possível diminuir os gastos com

alimentação, passando dos R$ 10,00 iniciais tido como

base pelo Governo Estadual para R$ 5,20 por preso. Com

este saldo positivo de R$ 4,80 por detento por dia, a APAC

terá superávit de cerca de R$ 22.000,00, que serão

revertidos para a própria cadeia, nas diversas formas de

assistência prestadas e numa eventual reforma das

instalações dos carcereiros, por exemplo. Com a

construção de uma cozinha própria, os custos cairão mais

ainda, aumentando o superávit da APAC 72.

Desde 1996, o convênio com a APAC vem sendo renovado a cada

ano, e, em dezembro de 2000, foi renovado novamente, mas não mais por

intermédio da Secretaria de Segurança Pública, e sim da Secretaria de

Administração Penitenciária, órgão que se tornou responsável pelo 1º Centro

72 Jornal Diário, Bragança Paulista, 24 de fevereiro de 1996.

Page 73: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

73

de Ressocialização de Bragança Paulista tendo sido transformada a antiga

cadeia pública, através do Decreto nº 45.403, de 16 de novembro de 2000.

Segundo a Secretaria, a APAC vem demonstrando resultados

eficientes na gestão dos serviços de assistência direcionados aos presos do

CR de Bragança. Essa parceria como estratégia tem sido considerada

vantajosa para a comunidade, que já não convive mais com os motins,

rebeliões e fugas e para o Estado que se desresponsabilizou dos serviços

de assistência, transferindo-os para as ONGs.

A partir da experiência de Bragança Paulista, o sistema

penitenciário conta atualmente com 22 Centros de Ressocialiação,

funcionando em parceria com ONGs, com a perspectiva de expandir essa

forma de gestão para penitenciárias de médio e grande porte em curto

espaço de tempo.

No quadro nº3 abaixo são apresentadas as cidades onde já se

encontram instalados os Centros de Ressocialização

2.7 Centros de Ressocialização em funcionamento no Estado de São

Paulo Quadro nº3: Unidades , cidades e data da inauguração

Unidades - Cidades Data da Inauguração

Bragança Paulista 73* 3 de novembro de 2000.

Araçatuba 4 de setembro de 2001

Lins 4 de setembro de 2001

Avaré 11 de setembro de 2001

Marília 11 de setembro de 2001

Sumaré 14 de setembro de 2001

Limeira 16 de outubro de 2001

Itapetininga 5 de novembro 2001

Araraquara 18 de dezembro de 2001

Mococa 21 de dezembro de 2001

Presidente Prudente 22 de fevereiro de 2002

São José dos Campos (feminino)* 23 de julho de 2002

Rio Claro (feminino)* 26 de julho de 2002

73 * Unidades Adaptadas: eram cadeias públicas e foram transformadas em Centros de Ressocialização. Fonte: Disponível em: www.admpenitenciaria.gov.br. Acesso em 06 de março de 2005.

Page 74: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

74

Piracicaba* 26 de julho de 2002

Birigui 26 de abril de 2003

Jaú 15 de novembro de 2003

Araraquara (feminino)* 15 de março de 2004

São José do Rio Preto (feminino) 6 de agosto de 2004

Mogi Mirim 21 de agosto de 2004

Rio Claro 24 de setembro de 2004

Atibaia* 1 de fevereiro de 2005

Ourinhos 21 de novembro de 2005

Segundo o secretário Nagashi Furukawa, tal iniciativa tem sido

inédita na administração pública e os resultados do modelo de administração

compartilhada são imediatos: “custos de manutenção da estrutura física,

inclusive do preso, é menor do que nas unidades tradicionais”.

Numa unidade tradicional, o custo médio mensal do preso é de

R$ 671,00. Nos CRs cai para cerca de dois terços desse valor, ou seja, R$

447,00. Multiplicando essa economia pelo número de 210 vagas nos CRs, o

Estado deixa de gastar cerca de R$ 560.000,00 (quinhentos e sessenta mil

reais) por unidade conveniada a cada ano. Observe o quadro, abaixo:

Quadro nº4: Comparativo orçamentário entre Unidade Tradicional e Centro de Ressocialização.

Unidades Custo médio

Preso / mês x 210 vagas

Custo médio preso / Ano x 210

vagas

Unidade Tradicional R$ 140.910,00 R$ 1.1690.920,00

Centro de Ressocialização R$ 93.870 R$ 1.126.440,00

Economia R$ 47.040,00 R$ 564.480,00

Afirma o secretário que a parceria alterou de forma positiva os

dados do sistema prisional do Estado: “nos CRs o índice de reincidência é

baixíssimo e são mínimas as ocorrências de fugas, sem contar a economia

Feminino

Masculino

Page 75: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

75

aos cofres públicos na manutenção do reeducando se comparada ao custo

de um preso que habita uma unidade comum ” 74.

O modelo de administração nos CRs é diferenciado: a

comunidade participa das questões prisionais, pois contam as ONGs com

membros do Ministério Público, Poder Judiciário, Ordem dos Advogados e

outros. Na administração compartilhada cabe às ONGs proporcionar aos

reeducandos todas as formas de assistência social, cabendo ao Estado a

administração da segurança e disciplina da unidade prisional.

O secretário Nagashi Furukawa, além de idealizador da proposta

de gestão compartilhada nos Centros de Ressocialização, é entusiasta da

idéia, por isso cada vez mais vem conclamando segmentos da comunidade,

onde se pretende instalar CRs para organizarem-se e constituírem ONGs,

com a promessa de repassar recursos públicos mensais, a fim destas

proverem serviços de assistência aos indivíduos presos.

2.8 Estrutura Organizacional Do Centro De Ressocialização

O Centro de Ressocialização é uma Unidade Prisional com

capacidade máxima ao atendimento de 210 presos. Face à população

prisional de 210 presos, a Secretaria entende que a gestão administrativa se

torna mais eficaz e eficiente, melhorando a qualidade de todo o processo de

trabalho.

O regime prisional é voltado ao atendimento de presos provisórios,

regime fechado e regime semi-aberto. A proposta da Secretaria em atender

aos três regimes fundamenta-se na possibilidade de individualizar e elaborar

programas sócio-educativos aos homens presos durante todo o período de

cumprimento de pena.

A inclusão de homens e ou mulheres nos CRs só poderá ocorrer

se provenientes da Comarca Jurisdicional, ou seja, se os delitos forem

cometidos na Comarca, portanto a execução se formará na Vara de

Execução Criminal Regional.

74 Considera-se unidade tradicional, as que são administradas totalmente pelos funcionários públicos, cujos diretores gerais são nomeados pelo Secretário de Administração Penitenciária.

Page 76: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

76

A administração do CR deverá ser compartilhada com

Organizações Não-Governamentais. A Secretaria entende que a

participação ativa da comunidade local contribuirá para a humanização da

prisão, efetivando ações sócio-educativas que atendam às reais

necessidades e demandas dos indivíduos presos.

A estrutura organizacional estatal foi enxugada, reduzindo cerca

de 40% dos funcionários, em comparação com as unidades tradicionais.

Foram reduzidos diversos departamentos e cargos administrativos.

Com a redução da mão-de-obra de funcionários públicos e

principalmente do agente de segurança penitenciária, a população presa é

chamada a participar do processo de trabalho intraprisional, passando

também a auxiliar nos serviços voltados para a segurança e disciplina, com

a finalidade de manter a ordem e a estabilidade prisional.

Foto do Centro de Ressocialização

2.9. Características 75 arquitetônicas do Centro de Ressocialização

- Área construída de 3.200 metros quadrados;

- Custo da obra: 3 milhões de reais;

75 Descrição na planta arquitetônica original do projeto CR

Page 77: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

77

- As paredes são construídas de forma circular, sem canto, o que

“além de manter a noção de horizonte e de infinito, provoca sensação de

continuidade no caminhar. As cores usadas nas paredes são o branco e o

azul, objetivando o bem-estar visual, além do efeito tranqüilizador

provocando pelas cores” (Mário Espelta - arquiteto que elaborou o projeto e

supervisionou as primeiras obras);

- As muralhas foram abolidas e substituídas por muros de

apenas 3 metros de altura;

- Ausência de vigilância externa da Polícia Militar;

- As celas foram substituídas por alojamentos, onde residem

apenas 12 reeducandos, cada qual possuindo seus armários e camas,

preservando seus objetos pessoais;

- Os banheiros são coletivos e externos aos alojamentos,

possuindo chuveiros com água quente e vasos sanitários;

- Salas para atendimentos: social, psicológico, pedagógico,

reuniões e palestras;

- Salões para oficinas de trabalho;

- Salas para visitas familiares, áreas para o lazer, barbearia,

salão para cultos religiosos, cozinha industrial, lavanderia;

- Armazéns para o atendimento de necessidades de higiene

pessoal e alimentação, estes devendo ser administrados pelas

Organizações Não-Governamentais.76

76 A concepção arquitetônica do CR foi desenvolvida pelo arquiteto Umberto Spelta e a concepção ideológica pelo atual Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Nagashi Furukawa

Page 78: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

78

2.9.1. Quadro nº 5: Objetivos, metas e responsabilidades das ONGs

Convênio de Parceria

Objetivos Metas Responsabilidades Proporcionar, por meio das

assistências sociais pleno

cumprimento das exigências da lei

de Execução Penal, criando

condições para a harmônica

integração social do condenado ou

preso provisório, nos termos do

artigo 1º da Lei de Execuções

Penais – nº7.210/84.

As ONGs são as únicas

responsáveis pela execução

ntegral dos fins colimados dos

convênios, ficando, portanto,

responsáveis pelo

ornecimento ou contratação

de todo o serviço e materiais

necessários ao cumprimento,

visando garantir a execução da

Lei de Execução Penal, bem

como da manutenção da

unidade prisional.

Proporcionar a participação da

comunidade nas atividades de

execução penal devendo priorizar

parcerias que envolvam a

coletividade e que resultem com isso

no trabalho voluntário, na doação,

em dinheiro ou bens, expressando

assim, a consonância com o objeto

do convênio de parceria.

Diminuir o nível de

analfabetismo e aumentar a

formação de presos no nível

fundamental e médio; diminuir

o número de presos infectados

com doenças infecto-

contagiosas; aumentar os

postos de trabalho seja através

de terceiros ou laborterapia

interna e reduzir a reincidência

criminal do homem

encarcerado.

.

Os representantes legais das

ONGs não receberam

qualquer remuneração pela

gestão administrativa,

somente os funcionários

contratados para a execução

dos serviços. São eles:

cozinheiros, médicos,

psicólogos, advogados,

assistentes sociais,

nutricionista, enfermeiro e

técnicos em enfermagem,

gerente administrativo e

auxiliar de gerência. As

ONGs são responsáveis

pelos encargos trabalhistas e

previdenciários relativos aos

recursos humanos

contratados.

Page 79: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

79

2.10. O convênio de parceria da Secretaria de Administração Penitenciara e as responsabilidades delegadas às ONGs

Em razão das responsabilidades que o Estado vem repassando

às ONGs, fazem-se necessárias reflexões quanto à constituição e a

capacidade operativa de organizações compostas por membros da

comunidade prestarem serviços de assistência aos indivíduos presos, haja

vista que a Constituição Federal de 1988, ao arrolar os direitos e garantias

fundamentais do Estado para com o cidadão, alude expressamente que “é

assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, no Art. 5º,

inciso XLIX.

Sem discrepar, a Constituição do Estado de São Paulo cuida

do tema em momentos específicos. Primeiro, ao dispor sobre a política

penitenciária, em clara analogia às diretrizes da ONU no que se refere à

“dignidade” da pessoa humana, incluindo a garantia de defesa técnica.

Vejamos:

Art. 143 - A legislação penitenciária estadual assegurará o

respeito às regras mínimas da Organização das Nações

Unidas para o tratamento de reclusos, a defesa técnica nas

infrações disciplinares e definirá a composição e competência

do Conselho Estadual de Política Penitenciária.

E, ainda, na esteira da garantia de defesa aos indivíduos presos,

prossegue a Constituição Estadual, prevendo textualmente que: “O Poder

Executivo manterá, no sistema prisional e nos distritos policiais, instalações

destinadas ao contato privado do advogado com o cliente preso”, nos termos

do art. 105.

Observando a legislação federal, temos que a Lei nº 7.210, de 11

de setembro de 1984, conhecida como “Lei de Execução Penal”, estatui de

forma categórica em seu art. 10, que “a assistência ao preso e ao internado

é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à

convivência em sociedade” e o art. 11 da mesma lei dispõe que a

Page 80: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

80

assistência referida no artigo anterior desdobra-se em assistência material, à

saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.

Por sua vez, o Poder Executivo do Estado de São Paulo editou o

Decreto nº 47.849, de 29.05.2003, que autoriza a Secretaria de

Administração Penitenciária representando o Estado, celebrar convênios

com entidades privadas, sem fins econômicos, mediante transferência de

recursos financeiros, para cooperar na prestação de serviços inerentes à

proteção e assistência dos condenados, internados e egressos, em especial

os previstos no art. 11 da Lei de Execução Penal e por da Resolução SAP

59, de 13 de junho de 2003, onde foi definido o Plano de Trabalho para

viabilização do objeto dos convênios autorizados pelo Decreto nº

47.849/2003.

O panorama legal traçado nos dá a devida dimensão de que o

objeto do convênio em apreço é uma obrigação originária do Estado,

devendo, por tal razão, ser por ele cumprida naturalmente.

Assim, muito embora exista autorização legislativa para a

celebração dos aludidos convênios, não podemos perder de vista que se

trata de transferência artificial de um encargo próprio do Estado, o que pode

trazer como conseqüência para o particular diversas responsabilidades que

naturalmente não lhe pesavam.

E, considerando que o objeto do Convênio em questão se

desenvolve em ambiente carcerário, entendemos que os problemas

inerentes às relações mantidas com o Estado poderão ser potencializados.

No propósito da transferência de encargo, observamos que tanto o

decreto quanto a resolução referidos estabelecem uma cadeia de obrigações

às Organizações Não-Governamentais, em patente extrapolação à mera

“cooperação” referida na Cláusula Primeira do Termo de Convênio 77, que

assim define seu objeto:

CLÁUSULA PRIMEIRA: Do objeto: Constitui objeto do

presente Convênio a cooperação da ENTIDADE na prestação

de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social,

religiosa, psicológica e ao trabalho aos presos do

77 Resolução SAP nº 59 de 13 de junho/2003 –Decreto n 47.849/2003

Page 81: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

81

estabelecimento prisional, na forma prevista no artigo 11 da

Lei de Execução Penal, e especificada no Plano de Trabalho

Anual de e integrante deste Convênio.

Ocorre que, muito além da singela “cooperação”, o Plano de

Trabalho fixado para operacionalizar o Convênio desce a detalhes a respeito

da forma como as diversas modalidades de assistência deverão ser

prestadas, sempre de acordo com regras preestabelecidas pela Secretaria

de Administração Penitenciária.

Ou seja, a pretexto de apenas cooperar com o

desenvolvimento de encargo natural do Estado, a realidade é que as ONGs

estão assumindo obrigações complexas, as quais são apresentadas em

formato fechado, cuja alteração somente é possível mediante a aceitação da

Secretaria, consoante disposto na Cláusula Segunda, inciso II, do Termo de

Convênio. Além disso, as ONGs não têm autonomia para gerir seus

serviços, ficando totalmente comprometidas com o Estado, mesmo porque

só conseguirão sobreviver com o patrocínio cem por cento do Estado,

havendo de se questionar, inclusive a sua denominação: Organização Não-

Governamental.

E, muito embora a segurança das unidades prisionais não integre

o objeto do convênio, permanecendo, portanto, sob monopólio do Estado,

não podemos nos esquecer de que intercorrências relacionadas à

assistência a ser prestada pelas ONGs (material, à saúde, educacional,

jurídica, etc.) tem aptidão de produzir problemas de várias naturezas, com

reflexo principalmente na segurança e disciplina, o que nos leva a estudar

este modelo de gestão prisional com maior acuidade, no terceiro capítulo

deste estudo, uma vez que a análise terá como ponto de partida a fala do

idealizador, de gestores, executores e indivíduos que vivenciam a dinâmica

da administração compartilhada: Estado/ONGs, dentro dos Centros de

Ressocialização

Page 82: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

82

CAPÍTULO III CENTROS DE RESSOCIALIZAÇÃO: UM NOVO MODELO DE GESTÃO PRISIONAL OU A REPRODUÇÃO DOS MODELOS

TRADICIONAIS? 3.1. A visão do Idealizador, dos Gestores, Executores e Reeducandos quanto ao Modelo Prisional Instituído.

Neste capítulo apresentaremos a visão dos sujeitos sociais

pesquisados quanto ao modelo de prisão administrado em parceira Estado e

Organização Não-Governamental-ONG

A leitura cuidadosa do material coletado nos possibilitou perceber

com melhor clareza a visão do secretário de Administração Penitenciária do

Estado de São Paulo, idealizador do modelo CR, gestores (mais conhecidos

como diretores gerais), executores e indivíduos presos quanto à gestão dos

serviços executados pelas ONGs e as diferenças das ações em relação às

prisões estatais. Foi possível perceber, ainda, a maneira como os indivíduos

presos estabelecem a partir de suas percepções os nexos entre os serviços

prestados pelas ONGs e a importância que eles vêm atribuindo a esse

modelo prisional, vista por seu idealizador, gestores e custodiados como

“novo modelo de gestão prisional”.

Inicialmente faremos algumas considerações para a construção de

um sistema penitenciário eficaz, segundo a visão de Alvino Augusto de Sá 78 De acordo com Sá, um sistema penitenciário para ter eficácia deve

preencher alguns requisitos: constituir-se numa rede de instituições que

tenha comandos e ações coerentemente, articulados em sua estrutura e

dinâmica vertical, num recorte de tempo horizontal ao longo do tempo.

Para Sá, essa rede deve ter diretrizes fundamentais, previamente

definidas, dentro de uma estrita coerência teórica e metodológica, que

perpasse todas as ações e seus respectivos protagonistas, assinalando,

78Alvino Augusto de Sá, doutor em psicologia clínica, autor de diversos artigos sobre o sistema penitenciário brasileiro. É professor de criminologia crítica na Escola de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.

Page 83: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

83

ainda, que toda base conceitual de um sistema, especialmente o

penitenciário, terá que ter um viés ideológico, mas ele mesmo já conclui que

todo viés ideológico é discutível e polêmico, haja vista que toda ideologia

parte da visão de mundo e da postura que cada sujeito social assume

perante este mundo, mundo este permeado por vivências pessoais e

profissionais.

No que tange ao viés ideológico, toda nova ideologia trazida para

o universo do mundo do trabalho e no específico universo prisional será

recebida com desconfiança e até com certo descrédito por parte dos

funcionários e reeducandos79 principalmente por aquele grupo que se

encontra há muito tempo no exercício profissional ou cumprindo pena, uma

vez que as instituições prisionais, sejam estatais ou administradas em

parceria com a sociedade civil, são sempre prisões e, por sua vez, sujeitas

a eventos que no cotidiano demandam ações que sistematicamente fogem à

rotina.

Essas decisões são sempre tomadas em nome da preservação da

ordem e disciplina: primeiro, a ordem e disciplina; depois, se forem viáveis

as ações que poderão promover o sujeito enquanto ser social em seus

aspectos: morais, políticos, intelectuais e culturais.

As instituições prisionais, para a ideologia social dominante, são

construídas e moldadas com o objetivo primeiro de ser um local privilegiado

de aplicação da pena. É um espaço circundado por grades e muros, para a

privação de liberdade do individuo, constituindo-se com finalidade de

castigo.

A prisão é vista pela sociedade como espaço que “prende”, que

tira a liberdade, como forma de castigo pelo ato cometido à sociedade. Esta

é a lógica que perpassa pelo imaginário social dentro e fora da prisão.

Por sua vez, os gestores e executores dos serviços prisionais ao

custodiá-los, ideologicamente, definem que a meta primeira da prisão deve

ser a ordem e a disciplina, a fim de serem evitados fugas, motins e

desavenças entre os indivíduos presos. Quanto aos serviços sócio-

79 Termo utilizado para chamar o indivíduo preso dentro do sistema penitenciário, principalmente se estiver cumprindo pena nos CRs.

Page 84: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

84

educativo-culturais80 estes deverão seguir a esteira da disciplina. Ou seja, se

houver ordem e disciplina, poderão ser executados os programas sociais.

Essa é a realidade dada e constatada em toda e qualquer prisão.

A supervalorização da segurança e disciplina não deixa de se

fazer presente também nos Centros de Ressocialização, pois os CRs

também são prisões, onde se exige a disciplina, esta permeada por rotinas

previamente planejadas, sob o estrito controle do Estado, o qual tem a

atribuição de garantir a disciplina e impedir a instabilidade e a

movimentação dos indivíduos aleatoriamente.

Busca-se nos CRs aplicar a disciplina com maior rigidez, pois é

mínimo o corpo funcional de agentes de segurança penitenciária e os muros,

além de serem baixos, não são ladeados por vigilância externa. O controle é

quase total das atividades, dos indivíduos e das situações cotidianas, por

causa do baixo número de presos, normalmente até 210, reproduzindo,

assim, as mesmas rotinas das prisões tradicionais.

Entretanto, nos CRs estão inculcadas diferentes ideologias por

parte do Estado para explicar aos funcionários contratados pelas ONGs,

porque as regras impostas em regimentos internos devem prevalecer,

alienando assim muitos profissionais do real processo intraprisional. Nesse

sentido observamos que, após mais de 05 anos de funcionamento de alguns

CRs, até o momento não foi criado regimento interno específico para os

Centros de Ressocialização, sendo utilizado o regimento interno padrão do

sistema penitenciário do Estado de São Paulo.

Apresenta-se com isso, uma contradição crucial: busca-se

ideologicamente mediante processos técnicos operativos construir um “novo

modelo de gestão prisional”, contudo, usam-se os mesmos métodos de

regras disciplinadoras das prisões tradicionais, haja vista que no momento

de punir o indivíduo por qualquer ato infracional dentro do CR, utiliza-se o

80 Entende-se por programas sócio-educativo-culturais, as atividades realizadas dentro das prisões, que tenham base teórica pedagógica sujeitas a constantes avaliações. A pedagogia aplicada deve buscar o desenvolvimento de investimentos que possibilitem a construção, orientação e encaminhamento de alternativas que alterem positivamente as condições de vida do indivíduo preso.

Page 85: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

85

instrumento disciplinador do regimento interno padrão dos estabelecimentos

prisionais do Estado de São Paulo.

Salientamos, ainda, que no CR, assim como nas demais prisões,

tem-se constituído um tipo de direito penal em que as sentenças

condenatórias são convertidas num cotidiano de normas explícitas e

construídas na correlação de forças entre gestores, executores e presos.

Os que detêm o poder administrativo dentro das prisões possuem

certa autonomia para constituir novos poderes. No entanto, os próprios

profissionais da área de Serviço Social que atuam nos CRs ou demais

prisões, no geral, não percebem essa arquitetura de poder.

Senão vejamos este exemplo:

Conforme já descrito, no CR a imposição a ordem e disciplina são

mais rígidas, em face dos elementos já citados, por isso caso o indivíduo

venha a cometer infração, considerada falta disciplinar de natureza grave (

tentativa de fuga, tráfico e uso de substâncias entorpecentes, agressão física

a outro preso ou desrespeito a funcionários), normalmente o indivíduo é

transferido para prisões tradicionais durante o procedimento investigativo, ou

antes mesmo de iniciá-lo. Com isso inicialmente o indivíduo não terá direito a

qualquer defesa. Primeiro o preso é transferido, e depois o caso é analisado.

Entretanto, se, após a investigação e análise final, o sujeito for considerado

inocente, este já foi transferido para outra prisão, tornando-se inviável seu

retorno ao CR.

Analisando todo o procedimento, entende-se que está ocorrendo

total desrespeito ao direito de defesa do indivíduo. O sujeito é excluído do

CR, sem ao menos ter tido tempo hábil para se defender. Tal ocorrência é

rotina nos CRs, uma vez que não se previu na estrutura física celas

adequadas ao cumprimento de sanções disciplinares, ao contrário das

prisões comuns, onde há pavilhão específico para o cumprimento de

sanções disciplinares.

Nas demais prisões as celas para as sanções disciplinares são

individuais a fim de permitir que a solidão do indivíduo possibilite o encontro

consigo mesmo e a revisão de suas atitudes, segundo executores prisionais.

Espera-se que o indivíduo ao se ver duplamente encarcerado e sozinho vá

refletir e o “remorso” virá como forma de autopunição. O isolamento e o

Page 86: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

86

remorso contribuirão para a “mudança de atitudes e posturas” durante o seu

tempo de encarceramento.

Este é o pensamento dominante entre gestores prisionais,

inclusive entre alguns gestores de CRs, lembrando que eles são

funcionários públicos.

O pensamento existente é contraditório ao discurso dos próprios

gestores e executores dos CRs, no que se refere ao conceito de

“ressocialização", haja vista que o discurso é por uma metodologia

pedagógica que eleve a capacidade dos indivíduos presos em rever suas

atitudes com relação ao mundo em que vivem, entretanto, caso o indivíduo

cometa algum ato que desabone sua conduta, os profissionais da área de

Serviço Social ficam impossibilitados de executarem quaisquer ações junto

ao indivíduo, pois este é transferido sumariamente para outra prisão, esta,

por sua vez sob o domínio puramente estatal.

As necessidades mais subjetivas do indivíduo nesse momento são

ignoradas; durante esse processo só interessa ao Estado ter o total controle

sobre o indivíduo.

Diante desse processo de transferência para outra prisão, qual o

significado e o sentimento do indivíduo que até então cumpria pena no CR,

sendo submetido a uma terapêutica-penal diferenciada, e de repente em

razão do descontrole emocional ou uma ação individual que foge às regras

disciplinares impostas, é transferido sem o direito de defesa, onde por conta

do excessivo número de presos, os indivíduos não são conhecidos pelo

nome, tornando-se apenas mais um número dentro do imenso sistema

penitenciário?

Esse problema de transferência de indivíduos dos CRs para outras

prisões, poderá ser tema de estudo para os profissionais de Serviço Social

que desempenham atividades nos CRs, com vistas a provocarem

mudanças para a garantia do direito do indivíduo, ao invés de serem

submetidos às imposições postas pelo Estado, que mantém o monopólio de

controlar, mediante procedimentos e normas, a disciplina interna e o efeito

da medida disciplinadora.

Em razão da complexidade do sistema prisional, no qual estão

inseridas as prisões denominadas CRs, para os estudiosos das prisões e

Page 87: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

87

para aqueles operadores do sistema prisional tradicional, o CR ainda é visto

somente como mais um lugar de confinamento, reclusão, privação de

liberdade e só se sustentará enquanto a disciplina estiver acima das

propostas “ressocializadoras”.

A “ressocialização” , como perceptiva de “reintegração social”,

constitui-se em uma contradição a todo e qualquer desejo sócio-pedagógico.

No entanto, a visão explicitada pelos sujeitos sociais entrevistados

permitirá uma compreensão mais detalhada do sistema CR que escapam à

análise superficial dos que vêem o modelo CR com desconfiança, sejam

estes operadores do próprio modelo, sejam operadores dos modelos

tradicionais ou operadores do sistema judiciário e outros.

Iniciaremos a análise das falas de alguns sujeitos investigados

(secretário, assistentes sociais e indivíduos presos), focando a visão deles

quanto ao termo “ressocialização”, muito utilizado no sistema penitenciário e

que também foi utilizado para denominar as prisões no formato

administração compartilhada Estado/ONG.

Elaboramos a seguinte pergunta aos sujeitos mencionados

anteriormente: - Para o pensamento dominante no meio jurídico, as prisões

não só têm por finalidade privar o indivíduo de sua liberdade,

mas também devem proporcionar meios para a sua

ressocialização. Eu gostaria de saber o que o senhor entende

por ressocialização. E quando podemos dizer que um preso

está ressocializado? O que ele precisa alcançar para estar

ressocializado e qual é o papel do Estado nesse sentido?

A fala do Secretário de Administração Penitenciaria do Estado de São Paulo.

“A expressão ressocialização tem sofrido muitas críticas,

porque alguns a entendem preconceituosa, pois parte do

princípio de que os presos não foram socializados e precisam

de ressocialização, quando sabemos que nem sempre isso é

verdade. Pessoas totalmente socializadas também cometem

crimes. Porém, independentemente da correção da

Page 88: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

88

expressão, o que se pretende com a ressocialização é criar

condições favoráveis para que o criminoso mude seus

valores e passe a acreditar que a obediência a regras sociais

é o único caminho para se viver em paz e em harmonia com

outras pessoas que compõem essa sociedade. Obtido esse

resultado de mudança de valores, o segundo passo será

apontar caminhos para que a pessoa possa sobreviver

dignamente em obediência a essas regras sociais.

Penso que o papel do Estado se esgota nesses pontos. Tudo

o mais deve ser tarefa da sociedade”.

Analisando a resposta do secretário, interessante destacar o seu

conceito de “ressocialização” que é: “criar condições favoráveis para que o

criminoso mude seus valores e passe a acreditar que a obediência às

regras sociais é o único caminho para se viver em paz e em harmonia com

outras pessoas que compõem essa sociedade”. O “apontar caminhos”,

segundo o secretário será necessário para que o preso venha a ter

obediência às regras sociais”.

O entrevistado concebe a sociedade como célula harmônica, cujo

equilíbrio é mantido pelos indivíduos que cumprem seus papéis e normas

sociais. Com isso transfere a responsabilidade de enfrentamento da questão

do preso para o indivíduo e para a sua mudança de “valores morais”. Assim,

entende que o sujeito preso por si só pode alterar a visão de mundo e a sua

postura neste mundo e que o Estado teria a função educativa durante o

cumprimento de pena do condenado.

Nesse sentido, há diversos estudos publicados, nos quais se

reconhece que a prisão é ineficaz no quesito “ressocialização”. Entende-se

que, quando o sujeito é inserido na prisão, este não a vê como uma

oportunidade de “rever seus valores” morais ou sociais. O indivíduo a vê

como um sofrimento que lhe é imposto, um castigo, um lugar onde sentirá

dores morais e angustias espirituais.

Tais estudos são elaborados por intelectuais que absolutizam a

realidade, acreditando que na prisão é impossível criarem-se condições para

o indivíduo alterar positivamente seus valores morais ou sociais, pois partem

Page 89: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

89

da premissa de que a instituição prisão sempre imporá regras rígidas,

condicionamento por meios dessas regras, e isso propiciará condições

negativas ao objetivo ressocializador da pena.

Eis porque, segundo o secretário, a expressão “ressocialização” é

entendida por muitos de forma preconceituosa e tem sofrido críticas ao longo

de sua trajetória dentro das prisões.

No entanto, para outros estudiosos e profissionais que atuam no

sistema prisional, entende-se que o indivíduo, mesmo submetido a normas e

regulamentos prisionais continua senhor de suas vontades e de seus atos e

que por meio de programas, projetos e ações socio-educativo-culturais é

possível o indivíduo alterar sua trajetória de vida no mundo. Uma vez que a

questão central a ser refletida e discutida não é “moral”, é mais ampla, é

uma questão de direitos e desenvolvimento de ações que propiciem ao

indivíduo o exercício de sua cidadania, durante o encarceramento e pós-

liberdade.

No que tange ao conceito de ressocialização do indivíduo preso,

diferentemente da visão do Secretário as assistentes sociais que atuam nos

CRs já apresentam uma visão emancipatória quanto à ressocialização do

indivíduo preso:

As falas das assistentes sociais

“Não se pode afirmar, penso que para se alcançar a

“ressocialização” o preso precisaria ser capacitado para

enfrentar o mercado de trabalho, ainda durante o seu

cumprimento de pena, em minha visão, se o indivíduo tivesse

condições de desenvolver-se profissionalmente dentro do

CR, e se ao sair em liberdade conseguisse inserir-se no

mercado produtivo, a chance de não retornar à prisão seria

maior e, dessa forma o processo ressocializador poderá se

efetivar”.

“A ressocialização estará em processo quando o indivíduo

for capaz de refletir sobre suas escolhas e opções e para

tanto, se faz necessário a viabilização de acesso aos

Page 90: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

90

recursos comunitários e institucionais, garantindo-se a efetiva

participação do indivíduo e da sociedade nos serviços e

programas sociais dentro da prisão”.

As profissionais partem da premissa de que os indivíduos devem

ter oportunidades de fazer escolhas. Escolhas, inclusive dentro do próprio

cárcere, e que a prisão deve buscar oportunizar essas escolhas, viabilizando

durante seu processo de encarceramento mediações entre a prisão e a

comunidade, no que se refere a ações que os profissionalizem e os

valorizem e que lhe dêem condições de inseri-lo no mundo do trabalho, pós-

liberdade.

Em outras palavras, entendem que, por meio da profissionalização

e do envolvimento da sociedade em programas sócio-educativo-culturais o

indivíduo poderá dar um salto qualitativo e se transformar em um novo ser

social.

No entanto, os indivíduos que vivenciam através do

encarceramento a prisão CR, traz internalizado em seu discurso a mesma

visão do secretário em relação ao processo de ressocialização, como

podemos constatar nas respostas dos reeducandos:

As falas dos reeducandos

“O preso está ressocializado quando houver de fato uma

mudança na sua atitude mental. Para que haja essa

mudança, o preso precisa recuperar sua auto-estima, precisa

acreditar que é um cidadão capaz de, pelos seus valores, dar

sua contribuição para que haja uma sociedade melhor,

precisa sentir-se responsável por si e por aqueles que

dependem dele, por acreditar que, apesar das inúmeras

dificuldades, será capaz de atingir de forma justa, os seus

objetivos através do seu próprio esforço”.

“Só sei que privar uma pessoa de sua liberdade jamais irá

ressocializá-lo como a sociedade deseja. A gente é preso,

cumpre a pena imposta, mas o Judiciário é lento e deixa a

Page 91: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

91

gente revoltado, pois passamos do direito de receber

benefícios, e muitas vezes cumprimos a pena integralmente.

Mas, se o preso recebe durante o cumprimento dessa pena

total apoio da família, não só durante a prisão, mas também

quando em liberdade, isto dará ao preso vontade de lutar e

mudar de atitude. A família e os verdadeiros amigos são

fundamentais para ajudar a gente a se modificar”

“Difícil dizer quando um preso estará ressocializado, mas se

quando o preso chegasse na prisão a instituição investisse

em cursos profissionalizantes, para que, quando em

liberdade, tivéssemos uma oportunidade de trabalho, isto

ajudaria muito. Vejo a família também como um fator

importante para alcançar a reabilitação social do preso. Se a

família se faz presente, a ressocialização poderá ocorrer”.

Uma leitura atenta das respostas dos indivíduos presos mostra

que está internalizado no discurso do indivíduo o que sempre foi passado a

ele dentro da prisão. Ou seja, o erro foi ele quem cometeu, portanto deve

pagá-lo à Justiça. O errado é o indivíduo, “a sociedade é harmônica”, por

isso, o sujeito deve rever seus “valores morais e sociais” e assumir outra atitude mental, para que assim possa adequar-se às regras do

cárcere e, conseqüentemente, às regras e normas da sociedade. No

entanto, sabemos que a sociedade capitalista é desigual e que,

principalmente no Brasil, o Estado de Bem-Estar Social, praticamente

inexiste, e que o desmonte das poucas políticas sociais que tínhamos foi

devastador nos últimos anos. As reformas de cunho neoliberal operadas no

país nos últimos anos terminaram por eliminar direitos sociais duramente

conquistados no passado. E já são raras as possibilidades, atualmente, para

o jovem adentrar ao mercado de trabalho que dirá ao ex-condenado que

cumpriu pena nas prisões brasileiras.

O discurso do indivíduo é que depende de seu esforço conseguir o

exercício de sua cidadania, e entendemos que realmente muito depende

dele, no entanto, com o desemprego e a precarização do trabalho, a massa

de “excluídos” socialmente está aumentando dia a dia, e que não dependerá

Page 92: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

92

apenas de uma simples profissionalização e seu esforço pessoal, a sua

“reintegração social”, e sim do cumprimento do Estado na garantia de

direitos sociais e da geração de oportunidades para todos. Dependerá

também em a sociedade estar revendo sua postura, sua cultura e valores

em relação aos ex-sentenciados para que se possam gerar oportunidades

de trabalho, de estudo, cultura, militância política, etc.

As falas dos indivíduos não deixam dúvidas de que também nos

CRs o modelo tradicional de prisão se perpetua, embora nos CRs os

indivíduos tenham um pouco mais de possibilidade de expressão e

consigam chegar mais facilmente aos gestores estatais, a fim de dialogar e

negociar melhores condições para o cumprimento da pena, conforme poderá

ser observado nas falas dos próprios indivíduos, mais adiante.

Isto posto, muito embora as assistentes sociais tenham

disposição e olhar voltados à emancipação dos indivíduos presos, não

conseguem colocar em prática suas ideologias, em decorrência das

dificuldades que enfrentam para o desenvolvimento do projeto ético-político

e social que comungam.

Indagamos aos profissionais de Serviço Social quais as

dificuldades que encontram dentro dos CRs para desenvolverem suas

atribuições:

As falas dos assistentes sociais

“Espaço físico limitado;

-Priorização da força produtiva frente aos serviços sócio-

educativos-culturais oferecidos, ou seja, se priorizam-se as

atividades laborterápicas ou produtivas aqui dentro, e se for

possível o reeducando virá ao atendimento do Serviço Social;

-Desconhecimento por parte dos gestores estatais e ONGs

das atribuições específicas do Serviço Social;

-Imposição de regras administrativas estatais limitando os

serviços técnicos;

-Excesso de atendimentos priorizando quantidade em

detrimento à qualidade dos serviços;

Page 93: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

93

-Dificuldades em desenvolver ações junto aos familiares do

indivíduo preso, face ao pouco tempo que os mesmos já

disponibilizam para visitá-los aos finais de semana;

-Dificuldade em desenvolver serviços de acompanhamento

ao egresso, pois, embora a maioria dos indivíduos que são

excluídos do CR possuam domicílio na cidade ou região, não

costumam buscam os serviços oferecidos aos egressos, e o

serviço social tampouco dispõe de veículo para realizar

visitas domiciliares e, conseqüentemente, não dispõe de

tempo para realizá-las, em razão da demanda de serviços

internos”.

Observamos nas respostas das entrevistadas que o cotidiano

prisional instituído nos CRs reproduz exatamente o cotidiano instituído nas

prisões estatais.

Os profissionais de Serviço Social pontuam com clareza as

dificuldades de realizar um trabalho comprometido com o projeto ético-

político e social da categoria. Tudo conspira contra os assistentes sociais: o

ordenamento arquitetônico; a disposição organizada dos indivíduos dentro

dos alojamentos; a distribuição do tempo em horários determinados e

rigorosos; a distribuição de tarefas e de todo o conjunto de regulamentos e

normas preestabelecidas determina a ordem hierárquica a ser seguida. O

império da ordem e disciplina, e cumprimento dos horários estabelecidos

pelo Estado prevalecem em detrimento dos programas sociais. Estes, se

efetivados, poderiam elevar a capacidade de os indivíduos compreenderem

que são cidadãos de direitos e, portanto, podem buscar seu próprio

desenvolvimento, mesmo presos, para que possam retornar à sociedade

como sujeitos sociais detentores de direitos e deveres, podendo então fazer

suas “opções e escolhas”.

No entanto, o que se entende é que os métodos de opressão

contraditoriamente não contribuirão para a libertação dos valores morais ou

sociais negativos já socializados pelos indivíduos ao longo de sua existência.

Fato que, aplicado a construção de novos modelos prisionais, significa que

todos os funcionários operadores no CR deverão ter clareza quanto à

realidade concreta e construir metodologias e estratégias que venham a

Page 94: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

94

questionar o pensamento dominante e demonstre ao longo do tempo de

existência dos CRs que há caminhos alternativos para se desenvolverem

serviços que elevem a capacidade cognitiva dos sujeitos presos, serviços

que desenvolvam nos indivíduos o exercício de cidadania, mesmo que

estejam submetidos às normas institucionais. Acreditamos que o maior

desafio dos gestores e executores de serviços nos CRs é enxergar as

contradições da realidade ali postas e que trazem traços das contradições

da realidade social mais ampla.

Importante, ainda, observar a queixa dos profissionais quanto à

limitação dos espaços reservados para a execução dos serviços da equipe

técnica. Embora o CR seja diferenciado em sua arquitetura, não previu

espaços para o atendimento individualizado por parte dos profissionais, haja

vista que um dos objetivos da construção dos Crs é também a diminuição de

custos, daí o enxugamento não só dos funcionários públicos, mas também

dos espaços funcionais.

Pontuadas as dificuldades para a efetivação e eficácia das ações

desenvolvidas pelos profissionais de Serviço Social, ilustramos as

dificuldades enfrentadas pelos gestores, ou mais conhecidos como diretores

gerais e também trazemos à luz para discussão as falas dos gerentes das

ONGs e dos agentes de segurança penitenciária.

As falas dos diretores gerais, quanto às dificuldades enfrentadas.

“Dificuldades em definir os trabalhos a serem

executados pelos funcionários do Estado e ONG. Muitos

funcionários vêem a divisão dos serviços como disputa

de poderes, principalmente os mais antigos dentro do

sistema penitenciário”

“Intromissão dos funcionários da ONG em questões

administrativas delegáveis ao Estado, exemplo:

transferência de presos para outras prisões, sanções

impostas disciplinarmente ao preso, designações de

Page 95: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

95

presos para o trabalho externo e até na transferência de

funcionários estatais para outras prisões”.

“Os funcionários do Estado sabem quais são suas funções, mas

os funcionários da ONG, freqüentemente invadem o espaço do estado,

principalmente da área de segurança e disciplina”.

“Quadro de funcionários públicos muito reduzido, dificultando

a vigilância e disciplina, em face da imensidão de afazeres,

tais como: apresentação de presos ao Judiciário, inclusive de

outras comarcas, internações de presos em hospitais onde se

faz necessário a vigilância, e movimentos de presos dentro

da unidade para diversos tipos de atendimentos”.

As falas dos diretores gerais nos remetem a uma análise de que

as atribuições tanto do Estado quanto das ONGs, mal definidas, contribuem

para a “disputa de poderes” e conseqüentemente para a fragmentação dos

serviços a serem prestados aos indivíduos presos. No entanto, a proposta

do Secretário de Administração Penitenciária, idealizada e matizada em

decreto governamental é de parceria entre os dois protagonistas e não de

“disputas de poderes”.

A fala de que, freqüentemente, os funcionários da ONG invadem o

espaço de atuação do Estado, principalmente, da área de segurança e

disciplina, deixa claro a não disposição dos funcionários estatais, em permitir

que os funcionários da ONG façam mediações ou interlocuções para a boa

parceria. A postura dos profissionais do Estado perante os da ONG, implica,

certamente, a não eficiência e eficácia dos serviços de assistência a serem

prestados pelas ONGs.

As falas dos gerentes das ONGs

“Enfrentamos dificuldades em fazermos uma seleção por perfil

social e criminoso e após designá-los em alas adequadas a seu perfil, face

ao excesso de presos inclusos no CR”.

Page 96: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

96

“As contradições do sistema prisional em geral também se

faz presente no CR: punir em detrimento da conscientização,

massificação X cooperação, autocracia x iniciativa; rigor x

disciplina; submissão x consciência; ociosidade x trabalho”.

“Considerando que o objetivo maior do CR é o melhor

desempenho das ações de assistência ao indivíduo preso, e

humanização da pena, a maioria dos procedimentos

estabelecidos pela equipe técnica, como um cronograma que

consiste em etapas de trabalho, muitas vezes este trabalho é

interrompido face a brusca transferência do preso para outra

prisão, ficando o trabalho iniciado inacabado, prejudicando

dessa forma a efetivação do objetivo maior”.

“Outra questão relevante é o fato de tratar-se de uma

proposta nova de trabalho, não existindo números científicos

e estudos acadêmicos que proporcionem uma diretriz sólida

para a execução dos trabalhos nos CRs”.

As afirmações dos gerentes das ONGs retratam o dilema

enfrentado quanto à estrutura de “poder” montada pelo Estado no âmbito

dos CRs.

O rigor disciplinar, a transferência brusca de presos para outras

prisões, inviabilizando o término dos trabalhos iniciados pelos profissionais

contratados pelas ONGs, tolhem as possibilidades de que possam atuar com

eficiência com relação às necessidades apresentadas pelos presos.

A lógica de dominação estatal durante as rotinas estabelecidas,

com vistas à preservação da “ordem e disciplina”, demonstra o desgaste das

relações de possíveis parcerias positivas, entre o Estado e a sociedade civil.

As ambigüidades e contradições geradas entre a proposta

idealizada e a prática que vem sendo instituída pelos gestores e executores

dentro dos CRs, certamente têm gerado incertezas por parte de gerentes e

diretores gerais quanto aos resultados positivos a serem alcançados junto

aos sujeitos demandatários dos serviços.

Page 97: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

97

As falas dos agentes de segurança penitenciária

“É necessário que haja interação de todo o potencial

funcional. Estado/ONG, para que os objetivos de melhorar a

condição do trabalho prisional sejam efetivados. Agentes e técnicos deveriam trabalhar em conjunto e não separados, pois isso dificulta nossos serviços.”

“Penso que o próprio governo discrimina os egressos81 não

dando a eles condições favoráveis pós-liberdade. Eles já

cumprem a pena sem esperança, por isso têm muita

dificuldade para assimilar os serviços de assistência

oferecidos, ficando apenas condicionados às normas e regras

institucionais. Sabemos que nosso esforço quanto ao

sucesso de sua reabilitação é em vão, o mesmo é condicionado e não conscientizado.”

As falas dos agentes entrevistados reforçam a observação,

anteriormente colocada sobre as ações desenvolvidas de modo fragmentado

pelos profissionais.

Quando o agente de segurança penitenciária afirma que “os

técnicos deveriam trabalhar em conjunto e não separados”, ele está se

referindo aos assistentes sociais e psicólogos. Evidencia-se na fala desse

agente que, embora o discurso ideológico quanto ao modelo CR seja pela

construção de prisão humanizada e que com a participação ativa da

comunidade os direitos do sujeito preso será preservado, permanece nesse

universo uma questão crucial: “disputa de poderes” e onde há disputa de

poderes, não há justaposição de ações, e toda e qualquer tentativa em se

construir uma política social que promova o desenvolvimento social e

humano do sujeito preso será infrutífera.

81 Considera-se egresso o indivíduo que cumpriu pena em prisões e foi colocado em liberdade por meio de benefícios processuais, tais como livramento condicional e regime aberto.

Page 98: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

98

As considerações do agente denotam a fragmentação dos

serviços prestados, seja pelo Estado, seja pela ONG, fazendo com que os

profissionais em geral mantenham uma atitude pragmática, ou seja, uma

atitude voltada somente para o atendimento das demandas imediatas, sem

provocar reflexões e discussões quanto às conseqüências históricas das

ações imediatas.

Pontuamos, ainda, a opinião interessante de um dos agentes de

segurança penitenciária, quando diz que no CR o preso não é

“conscientizado e sim condicionado”, isto também nos chama a atenção

para com os resultados dos serviços de assistência desenvolvidos.

A fala do agente nesse caso nos traz a certeza da inexistência

dentro dos CRs de um projeto unificador de objetivos, métodos e

procedimentos, para a efetivação de uma política social que objetive a

emancipação dos sujeitos encarcerados, com vistas ao exercício de sua

cidadania.

É notório que após 05 anos de efetivo trabalho dentro dos CRs,

Estado e ONGs ainda não conseguiram formar uma composição de equipe,

a qual venha a ter posturas e atitudes interdisciplinares frente aos serviços

que devem ser executados. É possível observar que os profissionais vêm se

esforçando para o cumprimento de suas atribuições, contudo a atuação é de

apenas um grupo de trabalho: compartilham informações e definem

propostas e metas a serem atingidas, entretanto não conseguem operar

coletivamente as propostas, em face da demasiada preocupação em se

preservar o poder do Estado, e as atribuições delegadas a ele.

Mediante o explicitado até aqui, é necessário se fazer registrar a

visão dos indivíduos presos no CR em relação ao modelo de gestão prisional

que vem sendo instituído e os serviços de assistência a eles

disponibilizados.

As falas dos indivíduos presos sobre o modelo prisional CR são

fundamentais como elementos de análise. No entanto, nosso interesse ao

analisar as suas falas, não tem como foco enquadrá-las como crítica,

ingênua, alienada ou consciente, em relação ao processo de gestão prisional

instituído no CR, tampouco temos a pretensão de absolutizar suas falas,

Page 99: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

99

mas sim apresentá-las sem o discurso “tecnicista” dos gestores e

executores desse sistema prisional.

Nosso interesse, ainda, é dar voz aos indivíduos presos e

sistematizá-las a partir do conjunto de questões indagadas aos

entrevistados.

Tendo como referência a visão dos entrevistados,

desenvolveremos a análise identificando as contribuições que o modelo CR

vem operando na vida dos entrevistados.

É importante retomar o esclarecimento de que entrevistamos

apenas um sujeito de cada CR visitado, totalizando três, os quais

apresentavam o seguinte perfil:

- Idades entre 28 a 35 anos,

- Escolaridade em nível de segundo grau incompleto, tendo um

deles cursado até o segundo ano de administração de empresas,

- Estado civil: amasiados

- Reincidentes em prisões

Todos já haviam cumprido penas em outras prisões, consideradas,

essencialmente estatais. Os sujeitos entrevistados gozavam de amplo acesso à

administração dos CRs por desenvolverem atividades laborterápicas em

setores administrativos ou serviços de manutenção e limpeza. Este fator é

significativo na medida em que, por circularem em todo o espaço

institucional apresentavam uma percepção mais ampliada do espaço

prisional e da dinâmica intraprisional.

Selecionamos algumas respostas do conjunto de questões

elaboradas aos entrevistados, para retratarmos a sua fala, pois entendemos

que essas falas reproduzem as suas visões quanto ao processo prisional

que vivenciam e os serviços de assistência que lhes são oferecidos.

Primeiramente, indagamos aos entrevistados: Como o senhor vê o

trabalho que o Serviço Social vem desenvolvendo junto aos indivíduos

presos?

Page 100: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

100

As falas dos reeducandos:

“Não acho bom, vejo pouco esforço dos assistentes sociais,

no sentido de atender e resolver os casos que a elas são

encaminhados. Não é feito trabalho em grupo e também as

famílias não são atendidas, ficando fora do nosso contexto.

Acho impossível falar em Serviço Social junto ao encarcerado

sem fazer visitas às famílias daqueles que mais necessitam

de serviços”.

“Aqui o Serviço Social dá uma atenção especial ao preso e a

nossa família. Os assistentes sociais estão sempre

perguntando a nos se estamos bem, e, quando temos

problemas estes tentam nos apoiar para que possamos

solucioná-los, mostram a nós que temos sempre

possibilidades. Este apoio nos deixa tranqüilo e com

esperanças para cumprir nossa pena”.

“Tenho acompanhado de perto o trabalho realizado pelo

Serviço Social, junto aos presos e nossos familiares. É

admirável o empenho dos assistentes sociais em procurar

tornar mais humana a pena do reeducando e fazer com que

este tenha um projeto de vida, visando à liberdade futura.

Promovem palestras, trazem cultos religiosos, promovem

eventos sociais em ocasiões especiais”.

As expressões trazidas deixam claro a necessidade de os

profissionais de Serviço Social desenvolverem ações voltadas às famílias,

à comunidade e aos próprios indivíduos. A crítica e os elogios em relação

aos serviços não deixam dúvidas quanto à demanda viva a ser trabalhada

no universo prisional dos CRs.

Note-se que o efetivo trabalho social a ser desenvolvido pelos

assistentes sociais é visto como de fundamental importância, haja vista que

tais profissionais têm a competência técnica para desenvolver serviços

Page 101: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

101

propiciadores de reflexão, discussão e elevação da capacidade crítica dos

sujeitos demandatários dos serviços.

Promover junto aos sujeitos presos ações que elevem sua

capacidade de compreender sobre seus direitos, abrir espaços dentro da

instituição para que os sujeitos possam manifestar sua opinião deve ser o

ponto de partida para o Serviço Social prisional.

Os programas desenvolvidos dentro dos CRs devem focar o

indivíduo e suas relações sociais, político e culturais, objetivando não sua “ressocialização”, mas sim o desenvolvimento de sua capacidade em se autopromover como sujeito detentor de direitos e deveres. Conforme já mencionado, vários estudos apontam que todos os

programas que adotem como meta a "ressocialização" do indivíduo já “nasce

morto”, ou seja, sem possibilidade de germinar as sementes lançadas.

Toda expressão criada dentro do sistema prisional com o prefixo

“re” gera a idéia de retorno a uma situação anterior de normalidade:

recolocação social, recolocação familiar, reeducação, readaptação, reajuste de conduta, e outros tipos de expressões que passam a idéia de voltar a ser.

Conforme referimos anteriormente, Alessandro Baratta propõe a

substituição do termo "ressocialização" por "reintegração social", objetivando

perseguir o efetivo trabalho de assistência aos presos. Este trabalho deve

promover seu reingresso na sociedade.

Assinala Baratta que o termo “reintegração social” pressupõe o

processo de abertura do cárcere para a sociedade e de abertura da

sociedade para o cárcere. Por meio desse processo, o cárcere será cada

vez menos cárcere, haja vista que com a derrubada dos muros prisionais

entre a sociedade e os presos, a inter-relação ocorrerá e isso fará com se

altere a visão da sociedade sobre o indivíduo chamado por essa mesma

sociedade de criminoso.

Nesse sentido, entendemos que nas considerações de Baratta

está a chave para a eficiência e eficácia dos serviços de assistência aos

indivíduos que cumprem pena nos CRs. É possível buscar alcançar o real

processo de promoção humana e social dos indivíduos, contudo todos os

membros envolvidos: Estado/sociedade e usuários carecem de novas

Page 102: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

102

posturas e atitudes para a construção de pedagogia sócio-educativo-político-

cultural a ser desenvolvida, na qual sem dúvida alguma a família do sujeito

preso deve ser pilar fundamental para o sucesso da reintegração social dos

indivíduos.

Note-se que em todas as expressões trazidas pelos indivíduos

presos entrevistados, a família aparece como o apoio fundamental durante o

encarceramento. A família aparece como esperança de vida. É através da

família que os indivíduos encarcerados encontram forças para sobreviver na

prisão.

Os entrevistados apontam a necessidade de se manterem e se

sentirem fazendo parte de suas famílias. Não querem simplesmente as

visitas de seus familiares aos finais de semana, querem também o apoio, o

amor, o sentimento vivo de que continuam membros efetivos dessa família.

Sentir o amor da família é essencial para a “reintegração social”

do indivíduo que cumpriu pena. A família representa para ele fonte de afeto

e apoio. É através da presença da família durante o encarceramento que o

indivíduo mantém a segurança emocional e procura preservar seus

sentimentos e valores positivos, além de elaborar projetos de vida positivos

para pós-liberdade.

Nesse sentido, é de suma importância que os profissionais da

área de Serviço Social foquem o olhar para a família do preso, propondo

ações que estimulem a participação da família durante o processo de

encarceramento. A família é para o preso o elo mais concreto entre o mundo

prisional e o mundo social.

No entanto, infelizmente, podemos garantir em razão dos 20 anos

de experiência profissional dentro do sistema prisional que os profissionais

que atuam nas áreas de Serviço Social dão pouca ênfase a participação da

família no processo de “reintegração social” do indivíduo, uma vez que para

desenvolver ações junto à família é necessário que se instituam plantões

sociais aos finais de semana, único momento em que teremos condições de

abordar a família: conhecer suas necessidades, suas histórias e envolvê-las

nas ações que têm como objetivo a “reintegração social” do indivíduo.

Entretanto, se formos fazer uma pesquisa nas unidades prisionais

entre os profissionais de Serviço Social para saber se estão dispostos a

Page 103: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

103

realizar plantões sociais aos finais de semana, dificilmente encontraremos

quem se disponha ou possa trabalhar aos sábados e domingos

Outra preocupação nossa durante a pesquisa foi indagar os

entrevistados se o CRs, em razão da parceria Estado e ONGs, poderiam

ser pensados como “novos modelos de gestão prisional” e em quais

aspectos este modelo poderia estar superando as prisões, essencialmente

estatais.

Mediante as expressões trazidas pelos sujeitos entrevistados,

não será necessário desconstruir o discurso deles para entender os seus

sentimentos quanto ao modelo de prisão CR.

As expressões dos sujeitos da pesquisa revelam seus sentimentos

sobre a instituição prisão essencialmente estatal e a prisão CR de forma que

nenhum outro entrevistado consegue expressar. Nesse sentido, os

entrevistados valorizam o “estar cumprindo pena no CR” e a importância em

lá permanecerem durante todo o cumprimento de pena, afirmando que esta

prisão é para eles “um oásis no caótico sistema prisional” e que os serviços

oferecidos pelas ONGs lhes proporcionam oportunidades de cumprirem

suas penas, próximos à família e com dignidade.

É interessante a relação que um dos entrevistados faz entre o

sistema CR e o sistema tradicional, quando diz que:

“O sistema penitenciário tradicional é falido, antigo. As

penitenciarias tradicionais nada mais são que fábricas e ou

faculdades de criminosos. Bandidos perigosos ficam

misturados com presos que cometeram delitos leves. O preso

que só sabia furtar residências, sai da prisão conhecendo

todas as formas de assaltar bancos, seqüestrar pessoas.

Vejo, no CR que tem recursos financeiros e profissionais

qualificados para o nosso atendimento, está superando os

modelos tradicionais, nas áreas de trabalho, alimentação,

atendimento jurídico e social.”

Esse mesmo entrevistado afirma “com toda a certeza, os Centros

de Ressocialização devem ser os novos modelos para o sistema

penitenciário.”

Page 104: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

104

O entrevistado faz esta afirmativa com ênfase, isto porque até

pouco tempo dentro do sistema prisional era inconcebível a idéia de que o

sujeito preso pudesse colaborar nos serviços de segurança e disciplina, sob

a supervisão dos poucos agentes de segurança e disciplina que atuam nos

CRs.

Nos CRs os reeducandos colaboram em todas as atividades,

desde a área de vigilância, ao plantio de hortaliças, preparo das refeições,

limpeza e conservação das instalações e inclusive em serviços burocráticos

que envolvem cálculos de penas para elaboração de benefícios processuais,

informática, etc.

É natural nos CRs quase todos os reeducandos, assim chamados,

entre si, desenvolverem serviços considerados “importantes”, o que contribui

para a elevação e fortalecimento da sua auto-estima, principalmente perante

seus familiares.

O fato de os reeducandos contribuírem de boa vontade em todas

as atividades dentro dos CRs demonstra tanto ao Estado quanto as ONGs

que o indivíduo preso está disposto a ser também protagonista na gestão da execução de sua pena e não um simples espectador.

Segundo os reeducandos entrevistados, a possibilidade oferecida

pelos CRs de serem protagonistas do seu processo de cumprimento de

pena desenvolve neles o senso de responsabilidade e autodisciplina,

gerando o respeito pela "família prisional e a família de origem”.

O tratamento que eles vêm recebendo nos CRs, no que diz

respeito à dignidade e preservação dos seus direitos humanos, faz brotar no

preso a sua capacidade de respeitar as leis e normas sociais, viabilizando,

assim, a assimilação dos valores morais e sociais positivos.

E, por último, perguntamos aos entrevistados qual era o seu sonho

idealizado para o pós-cumprimento de pena e novamente a figura da família

aparece como o pilar principal e necessário ao seu retorno à comunidade.

“Meu sonho é poder ver novamente a minha família unida e ter a

oportunidade de recomeçar minha vida junto a eles, sem cometer os

mesmos erros que cometi no passado”

“Meu sonho é conseguir ir embora logo, coisa que não acredito.

Ter de volta aquilo que tive no passado: dignidade, vontade de trabalhar e

Page 105: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

105

ter oportunidade profissional e ter de volta minha família, a qual tem me

dado muita força aqui dentro”

“Meu sonho é poder voltar ao seio de minha família e retomar a

criação e educação de meus filhos. Voltar a trabalhar na minha profissão,

coisa que fiz a vida inteira”.

Todos enfatizaram novamente a importância da família como

esteio imprescindível ao seu recomeço em liberdade. Depositam na família a

esperança de viver um amanhã melhor, fazem projetos positivos e contam

com o apoio dos filhos e da esposa para a concretização do seu sonho.

Por outro lado, um dos entrevistados parece esmorecer na

esperança de sair logo da prisão, pois, como já discutido anteriormente, a

prisão por mais humanizada que seja é prisão, sempre irá tolher o direito de

ir e vir dos indivíduos, privando-os de sua liberdade.

Refere o entrevistado que seu sonho é “conseguir ir embora logo,

mas não acredita que isso ocorrerá”, ao mesmo tempo quer conseguir ter de

volta o que tinha no passado “dignidade, vontade de trabalhar, a família”

A fala do reeducando reflete o desejo em retomar o que não foi

permitido adentrar a prisão. Sua fala é extremamente significativa,

reforçando a necessidade de os profissionais que atuam nas ONGs,

juntamente com o Estado desenvolverem ações que envolvam a família,

principalmente ações que estimulem no sujeito o desejo de continuar lutando

e acreditando que, apesar das dificuldades que enfrenta na prisão e que

deverá enfrentar quando em liberdade, pode, com sua autodeterminação,

vencer as barreiras muitas vezes interpostas pela própria família e

sociedade. Nesse sentido, o Serviço Social, tem papel importantíssimo a ser

desenvolvido junto aos indivíduos que cumprem pena nos Centros de

Ressocialização.

Page 106: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

106

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto não se deve depreender que o modelo prisional CR,

dado a sua natureza de parceria entre Estado e sociedade civil, vem sendo

dentro do sistema penitenciário do Estado de São Paulo uma instituição que

tem garantido os direitos humanos e sociais do homem preso, uma vez que

por este estudo elaborado, foi possível perceber relações ambíguas e

contraditórias que envolvem essa parceria, denotando a necessidade de os

executores desse sistema, repensarem os mecanismos operacionais que

vêm sendo utilizados na gestão da dinâmica intraprisional. Esses

mecanismos precisam ser repensados, à luz de uma clara concepção dos

objetivos que se esperam alcançar, quanto ao atendimento das demandas

apresentadas pelos sujeitos que cumprem pena nos Centros de

Ressocialização.

Contudo, denota-se que os protagonistas sociais que atuam e

vivenciam o modelo CR estão construindo uma política de humanização da

pena própria e muito peculiar a esse sistema, tendo em vista o baixo número

de presos que são custodiados. No entanto, a reflexão sobre a gestão dessa

política, nesse nosso estudo revelou uma dinâmica complexa e contraditória

aos discursos idealizados, haja vista a permissibilidade quanto à reprodução

dos mesmos mecanismos repressores e alienantes desenvolvidos nas

prisões puramente estatais.

A reprodução nos CRs dos mecanismos utilizados nas prisões

estatais implica, como resultado, concepções fatalistas e predeterministas

de que ordem e disciplina e ações sócio-educativo-culturais não podem

caminhar juntas, legitimando o poder repressor em detrimento das ações

emancipadoras.

É preciso que os protagonistas desse sistema CR que, como

vimos, é bem diferenciado do sistema prisional tradicional, percebam o jogo

heterogêneo e complexo dessa parceria e juntos encontrem caminhos

alternativos para a superação de concepções conservadoras e

disciplinadoras que vêm se sobrepondo às concepções humanistas desde a

gênese dos institutos prisionais.

Page 107: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

107

É necessário, ainda, que os gestores e executores do sistema CR

construam e reconstruam estratégias mediadoras que permitam ao sujeito

preso se autodesenvolver em busca do exercício de sua cidadania. Nessa

mesma perspectiva, entendemos que deve ser este o projeto ético-político e

social a ser perseguido pelos profissionais da área de Serviço Social que

atuam nos CRs. No entanto, suas falas durante a investigação

demonstraram que a dinâmica intraprisional dos CRs é permeada pela

ordem e disciplina e certamente o indivíduo preso não está tendo o direito de

“fazer opções e escolhas”, no sentido de se reconstruir e construir novos

projetos de vida, objetivando o exercício de sua cidadania.

Com esse novo propósito ético-político e social, entendemos ser

fundamental que os funcionários do Estado e os das ONGs se

compreendam e se reconheçam como protagonistas de um “novo modelo

prisional”, e não como reprodutores dos modelos prisionais estatais. O

modelo CR a ser construído tem que ser melhor que as prisões que temos.

De fato, sabemos que as prisões estatais estão falidas pela sua ineficácia

quanto à humanização da pena e ações que promovam socialmente os

indivíduos custodiados.

É essencial que todos os profissionais envolvidos se reconheçam

como sujeitos capazes de provocar mudanças significativas no malfadado

sistema penitenciário brasileiro. Mas para que isso ocorra é preciso a

alteração de posturas profissionais. É necessário que todos os envolvidos se

comprometam um como o outro, no que diz respeito à missão, aos objetivos

e às metas. É importante que a abordagem de trabalho de cada um seja

clara a todos e bem definida metodologicamente. Para que isso ocorra, cada

membro deve adotar atitudes de confiabilidade ético-profissional e todos

devem assumir plena responsabilidade pelas propostas que tenham como

meta atingir as atribuições postas no Decreto nº47.849/2003, atribuições

estas que definem claramente a política social a ser adotada dentro das

unidades CRs.

Page 108: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

108

No tocante aos profissionais de Serviço Social, entendemos que

as ações que vêm sendo desenvolvidas pelos assistentes sociais devem ser

repensadas, e adotadas algumas ações que abordem as famílias, uma vez

que a família, em vários momentos das falas dos entrevistados presos, se

fez presente, denotando a necessidade de o Serviço Social mediar as

relações: família/preso, objetivando o sucesso de sua “reintegração social”.

Registro aqui algumas indagações aos profissionais de Serviço

social: Como desenvolver programas sociais dentro das prisões CRs, sem

abordagem familiar? Como conhecer os indivíduos presos nos CRs, sem

conhecer suas histórias familiares?

Entendemos que os plantões sociais aos finais de semana devem

fazer parte das propostas de trabalho. Aos finais de semana é que as

famílias visitam as prisões, por isso, para os assistentes sociais, o sábado

ou o domingo é o melhor dia para conhecer a realidade da família e

perceber a relação que esta mantém com o indivíduo durante seu

aprisionamento daí a importância de envolvê-la nas propostas que visem à

reinserção do indivíduo na comunidade.

Finalizando, pontuamos que, muito embora as expressões trazidas

pelos sujeitos que cumprem pena nos CRs sejam de que estes estão sendo

para eles um oásis no imenso sistema penitenciário brasileiro, sistema

este falido e permeado por mecanismos legitimados pela lógica repressora e

não conscientizadora, é factível a ineficiência e ineficácia dos serviços

oferecidos pelas ONGs dentro dos CRs, no quesito: promover para o

exercício da cidadania,.

Compreendemos que a falta de conhecimentos técnicos e muitas

vezes teóricos dos membros que compõem a cúpula das ONGs, e dos

próprios funcionários gestores, impedem o avanço de propostas

emancipadoras, visto que se permitem vivenciar uma relação de parceria

contraditória entre o discurso ideológico dos gestores, executores, da

Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e o poder

dominante estatal .

Page 109: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

109

No entanto, conforme discutido ao longo deste estudo, gestores e

executores desse modelo prisional, embora, ainda, não tenham conseguido

encontrar os caminhos alternativos para trabalhar os indivíduos na

perspectiva de prepará-los para o exercício da cidadania, conseguindo, por

ora, somente doutriná-los no sentido de se adequarem às regras

disciplinares, integrando-os e adequando-os a padrões que são desejados

institucionalmente. Na realidade, o tratamento humanitário e respeitoso

disponibilizado nos CRs tem sido fundamental para a valorização e

dignidade dos indivíduos.

As condições de vida social dos indivíduos durante o cumprimento

de pena no CR, face à participação da comunidade, sem dúvida são

melhores do que as condições de vida daqueles que estão reclusos nas

prisões superlotadas, sem lugar para todos, onde muitos dormem no chão

ou sobre colchões imundos. O espaço no chão não é suficiente para todos, o

meio ambiente é insalubre, os doentes na maioria das vezes são misturados

com os sadios, os serviços de saúde, jurídico, assistência social e

psicológico são precários e acima de tudo a falta de consideração pela

dignidade humana dos presos é visível a qualquer olhar.

Ao concluir este estudo não tivemos a pretensão de esgotar o

tema, pois o sistema prisional CR é novo no debate acadêmico e se revela

por demais complexo e carente de conhecimentos acumulados. Deixamos

aqui inúmeras questões que merecem respostas a partir de novas

investigações, para, quem sabe, outros profissionais buscarem encontrar

essas respostas no universo heterogêneo e complexo que são as

instituições prisionais.

Page 110: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARATTA. A. Por um concepto critico de reintegración social del condenado. In: Oliveira.E. ( Coord.) Criminologia Critica ( Fórum internacional de Criminologia Critica). Belém: CEJUP, p.141-157. BARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: Fundamentos Ontológicos. São Paulo: Editora Cortez, 2001 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella – 2 ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2001. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2000. CALON, Eugênio Cuello. La Moderna Penalogia. Barcelona: Editora Bosch, 1958. Constituição Imperial de 1824, art. 179, nº18, 19, 20. In: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. COSTA JR, Paulo José da. Curso de direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1991 CUELLO Calon, Derecho penal. Barcelona: Editora Bosch, 1975. DONNICI, Virgílio Luiz. A Criminologia na administração da justiça Criminal. 2.ed, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976. DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São Paulo: Paz e Terra , 2003. FARIA Junior , João. Manual de criminologia. Curitiba: Editora Juruá, 1993. FARIA Junior, João. A ineficácia da pena de prisão e o sistema ideal de recuperação do delinqüente. Curitiba: Editora Juruá, 1997. FERREIRA G. Prisões, presos, agentes de segurança penitenciária e direitos humanos. São Paulo: Editora Loyola. 2002.

Page 111: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

111

FERRI, Enrique. Sociologia Criminal II. In: BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M.P. Vassallo. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1993. FUNES, Mariano Ruiz. A crise nas prisões. São Paulo: Editora Saraiva, 1953. Guzman, Luis Garido. Manual de ciência penitenciária. Valencia: Universidad de Valência, 1976. LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1998. LUZ, Orlandy Teixeira. Aplicação das penas alternativas. Goiânia: Editora AB, 2000. MESTRINER, Maria L. O Estado entre a filantropia e a assistência social. São Paulo: Cortez Editora, 2001. MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez Editora, 2002 MUAKAD, Irene Batista. Prisão Albergue. São Paulo: Editora Cortez, 1990. OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um Paradoxo Social. Florianópolis: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984. Pereira, Potyara A P. Necessidades Humanas – Subsídios à crítica dos mínimos sociais. São Paulo: Editora Cortez, 2000 PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. REALE, Junior, Miguel. Novos Rumos do sistema criminal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1983. SÁ, Alvino A. Prisionalização: um dilema para o cárcere e um desafio para a comunidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIN, ano 6, nº21. jan./mar. – março. 1998.

Page 112: COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.

112

SÁ, Alvino A. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. In: Manual de projetos de reintegração social. São Paulo: SAP/DRSP, 2005. SPOSATI. Aldaíza. Assistência social pública: desafios para uma política pública de Seguridade Social. Cadernos Abong, São Paulo, nº 3, 1995. SOUZA, Moacyr Benedito de. A participação da comunidade no tratamento do delinqüente. APAC: uma experiência vitoriosa. Revista dos Tribunais. São Paulo, 1984. THOT, Ladislao. Ciência penitenciária. La Plata: Taller de Impresiones Oficiales. 1937. TOUCHAND, Jean. História de lãs ideas políticas. Madri: Editora Tecnos, 1987. VOLPI, Mário. Sem liberdade, sem direitos – A privação de liberdade na percepção do adolescente. São Paulo: Cortez Editora, 2001. YAZBEK, Maria Carmelita. A assistência social na prática profissional: história e perspectivas. Revista Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Editora Cortez, nº85, 2006. Bragança Jornal Diário, 29.04.93. Decreto Governamental nº47. 849, de 29 de maio de 2003. Resolução SAP 59, de 13 de junho de 2003.