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Texto da filósofa brasileira Iná Camargo, Transições.

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  • 14 Literatura e Sociedade

    TRANSIES

    IN CAMARGO COSTAUniversidade de So Paulo

    ResumoPautado pelo livro de Peter Szondi, mas adotando um vis aber-tamente brechtiano, o texto examina peas de Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Hauptmann, Ernst Toller e outros, buscando mos-trar como Brecht resolveu no mbito dos recursos do gnero pico a crise instaurada por Ibsen na forma do drama.

    AbstractGuided by Peter Szondis book, but adopting an openly Brechtian view, this essay examines plays by Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Hauptmann, Ernst Toller and others, and aims to show how Brecht has resolved, in the realm of procedures of the epic genre, the crisis established by Ibsen in the form of drama.

    Palavras-chave Crise do drama; drama naturalista; teatro poltico e teatro pico.

    KeywordsCrisis of drama; naturalist drama; political theatre and epic theatre.

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    Desde que Ibsen fez a dramaturgia do sculo XIX comear a narrar, instau-rou-se uma espcie de guerra civil no declarada na cena e na crtica. Na cena, alm da censura oficial que proibia uma infindvel coleo de assuntos, os pr-prios empresrios e elencos rejeitavam com vrios graus de resistncia os novos experimentos dramatrgicos. E, quando no o faziam e se dispunham a correr os riscos, seus prprios hbitos e tcnicas pautados pela sedimentao dos pres-supostos dramticos inviabilizavam os experimentos. Os resultados deixavam to-dos os envolvidos infelizes: os dramaturgos, porque viam seus textos literalmente destrudos; os elencos, porque se frustravam com os desastres; e os produtores, por causa dos prejuzos com a bilheteria.

    Quanto aos crticos, ainda mais empenhados na preservao de seus saberes e, como dizia Antoine, com uma disposio quase instintiva para preservar os inte-resses estticos de seus clientes burgueses, esses travaram uma luta sem quartel contra aquilo que identificavam como o risco de destruio do teatro e de seus valores eternos.

    A consequncia disso foi a produo de quantidades industriais de incompre-enso do que se passava na cena e sobretudo na dramaturgia. Foi preciso esperar o aparecimento de um pesquisador como Peter Szondi, j na segunda metade do sculo XX, para que fosse lanada alguma luz sobre o que ele chamou de crise do drama moderno.

    O texto que segue se pauta basicamente por suas reflexes, mas se desenvolve numa perspectiva mais especfica, pois aqui o horizonte a dramaturgia brechtiana.

    Ibsen, Tchekhov e a crise do drama moderno

    Ibsen

    Durante o sculo XIX, o drama alcanou um grau de hegemonia de tal ordem que passou a ser sinnimo de teatro. Sua expresso degradada, transformada em

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    receita na Frana por volta de 1820, a chamada pea-bem-feita, que depois serviu de modelo para os estdios de Hollywood na primeira dcada do sculo XX e at hoje ensinada em manuais de roteiros.

    De acordo com Peter Szondi,1 um dos primeiros abalos impostos forma foi obra de Ibsen, dramaturgo noruegus que durante uns bons vinte anos esforou-se para escrever segundo a receita. Ele j era um dramaturgo consagrado, encena-do em toda a Europa, quando produziu a primeira obra que, alm de se transfor-mar em escndalo e sofrer censura em mais de um pas, punha em questo a ideia de universalidade do indivduo livre, o mais importante dos pressupostos do dra-ma, ainda que de maneira pouco perceptvel para a poca, por se restringir ao mbito temtico. A pea em questo, Casa de boneca, encenada em 1879, demons-trou de maneira cabal (e crtica) que a ideia burguesa de liberdade humana ex-clua no mnimo a metade feminina dessa humanidade. Por isso a pea muito justamente considerada um divisor de guas na obra de Ibsen. A tal ponto que suas peas anteriores passaram a ter interesse apenas para fins de pesquisa, com a provvel exceo de Peer Gynt e, mesmo essa, mais por razes musicais (por cau-sa do bal composto por Grieg) do que dramticas.

    Em Casa de boneca temos a histria de Nora, casada com Torvald Helmer, trs filhos, que decide abandon-lo quando se descobre uma perfeita mulher da socie-dade burguesa, isto , uma boneca, sem nenhum direito, primeiro dependente do pai e depois, do marido que ostensivamente tinha com ela uma relao paternal. Sua deciso de abandonar esse papel e sair de casa em busca de liberdade e direitos foi to chocante para a poca que, na Alemanha, por exemplo, o dramaturgo foi obrigado pela censura a dar outro desfecho pea. Em compensao, o dramaturgo recebeu inmeras homenagens do movimento feminista (ento vinculado ao socia-lista) em vrios pases, e, de um modo geral, foram mulheres que primeiro tradu-ziram sua pea para outras lnguas, como Eleanor Marx-Aveling, para o ingls.

    A partir de Casa de boneca, at sua ltima pea, Quando despertamos de entre os mortos, Ibsen progressivamente por em crise outros elementos formais do drama, com especial nfase proibio do flashback. Isso o mesmo que dizer, como j fez Peter Szondi, que com Ibsen o drama comeou a narrar, a se interessar pelo passado e, por isso, houve quem classificasse suas peas de dramas analticos, pro-curando associ-las, por exemplo, ao dipo de Sfocles, como veremos adiante. De acordo com a teoria dos gneros, a essa altura mobilizada em carter normati-vo, s o pico tem acesso ao passado e a forma que lhe correspondia era o roman-ce (tambm sinnimo de literatura, assim como o drama era sinnimo de tea-tro). Por esses critrios conservadores, no era difcil de perceber que Ibsen, mesmo fazendo teatro, se voltava para interesses mais prprios do romance e que no seu horizonte estava o gnero pico.

    Esse interesse ainda no est muito claro em Casa de boneca, porque seu des-fecho contm uma pergunta pelo futuro de Nora e mesmo de sua famlia burguesa abandonada (Torvald Helmer agora diretor de um grande banco, um executivo

    1 Peter Szondi, Teoria do drama moderno, So Paulo, Cosac & Naify, 2001.

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    na linguagem mais atual e menos hipcrita que a do sculo passado). Mas a partir da pea seguinte, Os espectros (1881), Ibsen comea a matar ou a enlouquecer seus personagens, sempre como castigo por terem feito o jogo da sociedade bur-guesa no passado que as peas reconstituem casamentos por interesse, mentiras e hipocrisia em nome das convenincias etc.

    Com Os espectros, Ibsen passou a ser considerado um companheiro de via-gem do naturalismo, no apenas por sua temtica de carter cientificista (heran-a gentica), mas sobretudo por se tratar de pea censurada que s poderia mes-mo ser encenada num teatro livre (e, mesmo assim, na Frana o teatro que a encenou esteve ameaado de interdio).

    Tematicamente precedendo Solness, e encenada em 1877, Os pilares da socie-dade conta a histria de um comerciante muito rico e muito prestigiado na cidade, mas de passado obscuro. Ele era dado a prticas criminosas, mas nada excepcio-nais, como a do suborno e a de fazer contratos com navios sabidamente avariados para, depois do desastre premeditado, receber o seguro martimo (sem se importar, evidentemente, com detalhes como as mortes que um naufrgio provoca). Numa cerimnia em que homenageado, sua cunhada o desmascara e ele faz uma con-fisso pblica, com direito a perdo. Mas aqui ainda estamos diante de uma situa-o tcnica em que o passado condena de maneira dramtica.

    Com Os espectros, a crtica da poca entendeu que Ibsen teria achado o cami-nho da tragdia moderna, pois, ao definir o destino de seu personagem por meio da herana gentica, inteiramente fora do controle humano, o dramaturgo desco-brira para o teatro moderno um modo de reintroduzir a prpria noo de destino e de fatalidade, essencial ao conceito de tragdia. Por esse prisma, o heri da pea seria Helena Alving, que, ao descobrir a sfilis do marido, teria tentado abando-n-lo, mas foi convencida pelo pastor a no o fazer. O resultado o nascimento do filho que ficar louco quando adulto. Otto Maria Carpeaux resume assim essa opinio da crtica mais avanada:

    O verdadeiro heri de Os espectros Helena Alving: culpada ativa e vtima passiva em uma pessoa. Essa me da estirpe dos dipos, das Antgonas, das grandes figuras da tragdia grega. A prpria pea, guardando rigorosamente as trs unidades da ao, do tempo e do espao, uma tragdia clssica. A maior tragdia do teatro moderno.2

    A possibilidade de entender essa pea por um prisma materialista foi demons-trada por Brecht em uma crtica fulminante: trata-se da histria de uma mulher que casou por dinheiro e passou toda a vida cultivando mentiras; no final, as men-tiras custaram muito caro e deu tudo errado, pois elas foram descobertas e a situa-o ficou ainda pior.3

    2 Otto Maria Carpeaux, Ensaio sobre Henrik Ibsen, in Henrik Ibsen, Seis dramas, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 41.

    3 Bertolt Brecht, Les revenants, dIbsen, in . Ecrits sur le thtre, Paris, LArche, 1972, v. 1, p. 10-11.

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    Quanto a Solness, uma forma de associ-la tragdia clssica, particularmente ao dipo, decorre da identificao de sua estrutura como drama analtico: a histria j comea no fim da vida do heri (ele est velho); os incidentes servem para passar sua vida a limpo e, aps as ltimas e mais graves acusaes, ele morre mais ou menos com o mesmo grau de deliberao que levou dipo a furar os prprios olhos. Mas uma leitura mais detida da pea pode levar a outras concluses.

    Solness um construtor (meio-engenheiro, meio-arquiteto) muito esperto e inteligente o suficiente para perceber que na profisso (como projetista) quando muito medocre. Mas ele se tornou clebre porque soube explorar com mtodo a criatividade de dois de seus empregados, pai e filho. Ele sabe que o jovem Rag-nar um gnio, mas, felizmente para ele, sem conscincia do prprio valor. Seu objetivo, nesse caso, mant-lo como empregado em seu escritrio. No econo-miza meios para isso e o que temos oportunidade de ver no primeiro ato o modo como envolve Kaia noiva do rapaz, mas apaixonada por Solness , fazendo-a acreditar que precisa dela a seu lado. Por Knut Brovik (pai de Ragnar, que est muito doente) ficamos sabendo que Solness comeou a vida profissional como seu empregado e ento no entendia grande coisa do ofcio. Mas Solness subiu na vida esmagando muita gente, ele includo mais adiante saberemos como e a que preo. Ainda nesse primeiro ato aparece uma pista sobre a origem da fortuna de Solness: um incndio que destruiu a casa herdada dos pais de sua mulher. Fica tambm sugerido que na mesma ocasio, sua esposa Aline, doente dos nervos, sofreu um outro golpe alm desse.

    Esse ato se encerra com a chegada de uma jovem, Hilda Wangel, que conhe-ceu o casal dez anos antes na festa de inaugurao de uma torre que fora restaura-da por Solness. Ela uma espcie de precursora dos hippies: tem vinte e poucos anos, saiu de casa com uma mochila nas costas, sem dinheiro e sem planos. Che-gou ali porque foi convidada por Aline Solness quando ambas estavam internadas em um sanatrio. No sabe quanto tempo vai ficar.

    Hilda se lembra de coisas que aconteceram, como a inaugurao, em que ficou fascinada com a figura do construtor no alto da torre, depositando uma coroa de flores, como era o costume. Mas tambm se lembra do que no aconteceu, como o beijo que teria recebido de Solness e sua promessa de fazer uma torre para ela. Solness deixa a iluso prosperar, concluindo que a moa lhe dava a energia de que precisava para enfrentar a mocidade (j sabemos quem).

    No segundo ato, as reminiscncias assumiro um tom mais pesado e sombrio. ento que ficamos sabendo que o casal teve gmeos que s viveram quinze dias. As histrias se juntam: a casa que est sendo construda fica no terreno da que se queimou; o incndio aconteceu logo depois do nascimento das crianas; em con-sequncia dele, Aline teve uma febre, mas assim mesmo continuou amamentando os filhos, que por sua vez morreram envenenados pelo leite da me. Quanto a Solness, loteou o terreno, construiu vilas e enriqueceu, porque renunciou a ter um lar e assim se compensou pela molstia da mulher.

    Na conversa com Hilda, ele esclarece a sua responsabilidade pelo incndio: sabia da existncia de uma fenda na chamin, no preveniu ningum, nem provi-denciou o conserto. Ele acreditava que a sorte poderia lhe chegar por aquela fen-da. Hilda acha tudo emocionante e Solness se entusiasma:

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    Eu queria que aquilo acontecesse no inverno... um pouco antes do meio dia. Nessa hora, Aline e eu estaramos fora. [...] Em casa, os criados teriam acendido um bom fogo [...] apenas chegados porta do jardim, toda a barraca j estaria em chamas [...] Eis como eu queria que que a coisa viesse.4

    Com a mesma placidez com que assume essa responsabilidade, explica que arruinou Knut Brovik e por essa razo no pode permitir que Ragnar tenha suces-so, caso em que esse poder fazer o mesmo com ele, isto , destru-lo, derrub-lo. Esse ato termina com o anncio da inaugurao da casa e da colocao das flores na torre. Aline avisa que Solness sofre de vertigens.

    Enquanto esperam pela inaugurao, Hilda e Aline conversam. Ficamos ento sabendo que Aline se conformou com a morte dos filhos, pois afinal foi obra da Providncia, no h o que lamentar. O que ela no pode aceitar e constitui a ver-dadeira causa do seu sofrimento a perda, no incndio, de suas coisas: retratos, vestidos, rendas e... suas noventa e uma bonecas! Todo o ato se constri em fun-o do suspense anunciado: Solness subir torre ou no? Forma-se uma multi-do; Hilda, cada vez mais exaltada, relata a subida de Solness por meio da tcnica da teicoscopia.5 Ibsen toma a palavra e descreve o desfecho na rubrica:

    As senhoras, de p, na varanda, agitam seus lenos. Ouvem-se vivas! na rua. Subitamente se faz silncio, depois a multido lana um grito de terror. Entrev-se indistintamente por entre as rvores a queda de um corpo humano, que cai entre as vigas e tbuas. Aline desmaia, o m-dico vai correndo em direo ao local da queda e Hilda parece ter enlouquecido de vez: fica repetindo meu mestre, meu mestre!6

    A aproximao dessa pea com o dipo estruturalmente justificada, pois em ambas temos a progressiva reconstituio do passado que tem uma catstrofe por desfecho cegueira de dipo e morte de Solness. Pode-se tambm avanar na interpretao da morte de Solness como uma espcie de autopunio equivalente de dipo. Mas, bem pesadas as situaes, veremos que Ibsen est tratando de coisa bem diferente de Sfocles.

    Antes de mais nada, bom verificar que, ao contrrio do que se passa em di-po, onde as revelaes so objetivas, isto , todos sabem quais so os crimes e s falta saber quem os cometeu, o que efetivamente ocorre, em Solness elas no ul-trapassam o campo da subjetividade. As confisses do empreendedor so feitas apenas a Hilda e por seu intermdio ns, o pblico, tambm ficamos sabendo delas. Assim se, ao estimular o velho com vertigens a cometer a loucura de subir torre, Hilda cumpre, meio inconscientemente, o papel de justiceira, de maneira alguma essa informao chega aos demais personagens. Por isso no se pode atri-buir morte de Solness a mesma objetividade que tem a cegueira de dipo.

    4 Henrik Ibsen, Seis dramas, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 375.5 To antiga quanto a Ilada de Homero, essa tcnica narrativa para relatar o que se passa no

    presente fora da cena significa literalmente olhar alm do muro. Sempre foi usada no drama para relatos de ocorrncias no dramticas, ou no encenveis como batalhas, catstrofes da natureza etc.

    6 Ibsen, Seis dramas, op. cit., p. 396.

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    Como observa Peter Szondi, para entender o dipo de Sfocles preciso lem-brar que squilo tambm tinha uma trilogia sobre o caso (perdida) e, portanto, j se dispunha de um relato cronolgico sobre o destino de dipo. Nas suas palavras:

    Sfocles podia se basear numa apresentao pica de eventos amplamente separados no tempo porque seu problema tinha menos a ver com os eventos em si do que com a sua qualida-de trgica. Esta tragdia no est presa a detalhes; ela est acima do fluxo temporal. A trgica dialtica da viso e da cegueira na qual um homem fica cego por causa do auto-conhecimen-to, atravs daquele olho adicional que ele tem esta peripcia s precisa de um nico ato de reconhecimento (anagnorisis) para se tornar uma realidade dramtica. O espectador ateniense conhecia o mito; ele no precisa ser encenado. A nica pessoa que ainda tem que passar por essa experincia o prprio dipo. E ele s pode fazer isso no final, depois que o mito se tornou a sua vida. A exposio aqui desnecessria, e a anlise sinnimo de ao. dipo, cego embo-ra enxergue, cria, por assim dizer, o centro vazio de um mundo que j conhece o seu destino. Passo a passo, mensageiros deste mundo invadem seu ser interior e o preenchem com sua hor-rvel verdade. No uma verdade confinada ao passado, que revelado. dipo o assassino do pai, o marido da me e o irmo dos seus filhos. Ele o mal da terra e s precisa saber do que aconteceu para reconhecer o que . Portanto, a ao em dipo rei, ainda que de fato comece antes da tragdia, est contida em seu presente. A tcnica analtica em Sfocles requerida pela prpria matria e no para reproduzir uma forma pr-existente, mas para mostrar a sua quali-dade trgica na mxima pureza e profundidade.7

    Nada disso se passa com Solness, a comear pela diferente concepo de desti-no. Enquanto dipo no conseguiu fugir deliberao dos deuses, Solness forjou o seu prprio destino, contra suas limitaes pessoais, econmicas e sociais. En-quanto a matria do dipo dramtica e trgica, a de Solness pica est circuns-crita ao passado e permanece subjetiva. Aqui ningum fica sabendo que o incndio no foi acidental, ningum tem acesso s motivaes (que a fresta da chamin era conhecida de Solness, que Aline sofria pela perda de suas coisas). Em consequn-cia, o desfecho, objetivamente, inteiramente acidental. Tanto ocorreu como pode-ria no ter ocorrido. E, finalmente, como a temtica (as motivaes) permanece na esfera da interioridade, impossvel dar a ela apresentao dramtica direta. Como diz Szondi, esse material tem necessidade da tcnica analtica. Como no romance, s pode ser encenado por meio dessa tcnica. E ainda assim a temtica continua no encenada, ela relatada. Esse o problema formal bsico da dramaturgia de Ibsen e por isso ele escreveu o primeiro captulo da crise do drama.

    Na sua penltima pea, Joo Gabriel Borkman (1906), todos os motivos trata-dos anteriormente se associam ao mais revelador deles: o heri fracassa justa-mente porque aderiu de maneira radical ao jogo da especulao financeira, que-brando o banco onde trabalhava e levando runa sua prpria famlia, muitos conhecidos que nele confiaram, sem falar na grande massa dos investidores. Para Borkman, todo o processo que protagonizou nada mais era do que a manifestao de sua infinita ousadia e livre iniciativa to nietzschianamente livre que nem s

    7 Szondi, Teoria do drama moderno, op. cit., p. 43-4.

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    regras do banco se sujeitava. Denunciado em pleno voo especulativo, sua queda resultou em priso de cinco anos e mais oito de recluso deliberada, pois a vergo-nha no lhe permitia encarar os conhecidos. O desfecho da combinao desse feito de dimenses picas devidamente reconstitudo por tcnicas picas e das mesquinharias da hipocrisia em famlia a morte igualmente mesquinha do per-sonagem, inteiramente destitudo de perspectivas. Nem preciso dizer que essa pea, talvez a obra-prima de Ibsen, nunca foi encenada no Brasil e mesmo na Europa foi muito cerceada pela censura (na Alemanha especialmente).

    Naquilo que nos interessa agora, sua marca principal a radicalidade com que se volta para o passado. A perspectiva de futuro inteiramente secundria e s diz respeito ao filho de Borkman que, como Nora Helmer, abandona a famlia e, mais radical que ela, vai-se embora do prprio pas (como alis o prprio Ibsen fez a cer-ta altura da vida). Aqui o dilogo inteiramente desdramatizado, pois sua funo estritamente rememorativa. O tempo, embora tecnicamente seja o presente do di-logo, o tempo da memria. Todos os participantes dessa conversa em cinco atos esto interessados em compreender o passado e, se possvel, convencer os seus in-terlocutores de que fizeram a coisa certa. Na medida em que s reafirmam as suas opes, so condenados solido (esposa), doena (cunhada) e morte (Borkman).

    Tchekhov

    Na pea As trs irms (1900), Tchekhov d um passo adiante na crise formal iniciada por Ibsen. Enquanto o noruegus esvaziou o dilogo da funo dramtica (impregnando-o da funo pica), o russo questionou a sua funo dramti-ca. Olga, Irina e Masha so as trs irms Prozorovas. Elas vivem com o irmo An-drei numa cidadezinha do interior da Rssia para onde se mudaram onze anos antes, acompanhando o pai que ali assumira o comando de um regimento militar. Como faz um ano que esse morreu, elas no tm mais motivo para permanecer ali (mas tambm no tm meios de sair), e passam o tempo todo sonhando com a volta a Moscou, lembrando dos bons tempos que l viveram. A casa frequentada pelos oficiais do regimento que so amigos das moas e por ocasio dessas visitas a conversa corre solta. Entre os acontecimentos cotidianos, Andrei se casa com Natasha que, ao longo da pea, vai tomando todo o espao da residncia (numa narrativa muda muito eloquente). Aps algumas peripcias, como um incndio de grandes propores e um duelo no qual morre o noivo de Irina, o regimento se retira da cidade deixando as irms para trs.

    Esse resumo procurou explicitar o fato de que a pea tem pouco mais do que os rudimentos de uma ao dramtica no sentido que j podemos chamar de tradicional. Na verdade, o que temos em cena so apenas lembranas, sonhos, desiluses, espelhamentos e resultados. Todos os acontecimentos se do fora de cena: casamentos, nascimentos, mortes, traies, paixes, situaes de trabalho, o incndio e o duelo. A nica ao (em sentido dramtico) a histria do casamento de Andrei e Natasha que, entretanto, s apresentada em seus efeitos, produzindo uma trajetria ascendente de Natasha (de rejeitada pelas cunhadas a senhora de

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    todo o espao) e uma trajetria descendente de Andrei (de medocre funcionrio da municipalidade a viciado em jogo que hipotecou a casa para pagar dvidas).

    Com exceo da quase muda Natasha (que cuida dos seus interesses), todos os personagens renunciaram ao presente: vivem de lembranas do passado e so-nham com um futuro que no vem. Uma renncia dessa ordem tem que neces-sariamente produzir efeitos sobre uma forma em que ficou sedimentada toda a f renascentista no aqui e agora e nas relaes interpessoais. Esses efeitos aparecem na ao e no dilogo, as mais importantes categorias formais do drama.

    Como ficou dito, a pea apresenta apenas rudimentos de uma ao dramtica, sem muita conexo no sentido dramtico (lei da causalidade). Esses rudimentos de ao servem antes de pretexto para o que realmente interessa no teatro de Tchekhov: o dilogo, que, por sua vez, dada a situao que o determina, tambm no tem peso ou funo dramtica. O dilogo em Tchekhov conversa monolgi-ca e nela se concentra o significado de seu teatro.

    Como explica Peter Szondi (que estamos resumindo), conversa monolgica inteiramente diversa de monlogo. Tomando o exemplo clssico de Hamlet, ali o ser ou no ser necessrio solilquio porque, entre outros motivos objetivos na pea, ningum pode saber de seus planos de vingana, mas o pblico sim. Em As trs irms, conversando que os personagens se isolam. Esvaziado de sua funo dramtica, que estabelecer as relaes interpessoais, o dilogo se transforma essencialmente em monlogo e, com isso, o drama sai do seu elemento (dilogo) tomando o rumo do gnero lrico. O que temos nessa pea o constante movi-mento da conversa em direo lrica da solido. Mas na maior parte do tempo, a aparncia de dilogo fica preservada porque nessa conversa podemos ver como um personagem participa da solido do outro, ou como a solido individual par-ticipa de uma crescente solido coletiva. isso que impede a dissoluo da forma dramtica, mas ao mesmo tempo verificamos que essa chegou a seu limite, ence-nado e tematizado pelos personagens Andrei e Ferapont.

    Andrei o nico personagem incapaz de participar daquela conversao. Sua solido o leva ao isolamento e ao silncio. Ele evita qualquer companhia. S se permite falar quando sabe que no ser entendido. esse o pressuposto da cena em que Andrei estabelece com Ferapont um dilogo de surdos sem nenhuma comici-dade. Como se sabe, o dilogo de surdos um lugar-comum milenar da com-dia, tcnica que produziu um sem nmero de divertidssimos quiproqus. Mas aqui, Ferapont quase surdo mesmo, e, segundo a regra geral da pea, o que ele deixa de ouvir no produz nenhum efeito na cena. Quanto a Andrei, esse explici-ta a razo de seu procedimento: Se no ouvisse mal, irmozinho, eu no conver-saria com voc. Eu preciso conversar com algum, mas minha mulher no me entende e minhas irms ririam de mim.

    Nessa cena temos, assim, dois discursos monolgicos radicais, tematicamente apoiados no motivo da surdez. Essa radicalizao os contrape aos demais mon-logos das outras conversas nas quais est sempre presente a possibilidade de en-tendimento (intercmbio inter-humano). Mas entre Andrei e Ferapont, a impossi-bilidade expressa temtica e formalmente: trata-se do colapso da comunicao. Como a inviabilizao formal do dilogo conduz necessariamente ao pico, Peter

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    Szondi pode dizer que a surdez de Ferapont aponta para o futuro8 (da drama-turgia a que interessa continuar tratando dos problemas humanos do seu tempo).

    Desde que se candidatou modernizao, o teatro brasileiro sempre teve difi-culdades para lidar com Tchekhov, tanto na cena como na crtica. Dona Gilda de Mello e Souza explicou as razes desse fenmeno em ensaio da dcada de 1950: desprovidos de ao dramtica e personagens de exceo, os textos de Tchekhov correm o tempo todo o risco de cair na monotonia. Os monlogos desencontrados, travestidos de dilogos, a tcnica fragmentada, a nostalgia e a melancolia dos per-sonagens que constituem uma galeria de vencidos, expondo vrios graus de derro-ta ou frustraes, presos ao passado ou sonhando com um futuro irrealizvel so os ingredientes que dificultam a direo, a interpretao e a recepo de Tchekhov entre ns, habituados a contrastes vivos e de fcil apreenso, porque apoiados em situaes de conflito claramente delineados (os ingredientes do drama).9

    O desafio, segundo o prprio dramaturgo que citado por Gilda, compreen-der que para aqueles que no tm objetivos imediatos ou remotos s resta na alma um grande vazio.10 A essa percepo no faltou um adepto das concluses taxativas de Lukcs para acrescentar que, como Ibsen, Tchekhov percebeu e mos-trou em seu teatro que esse tipo de gente estava condenado pela histria, assim como a forma que cristalizou a ideologia de seus antepassados.

    Teatro livre e naturalismo: Antoine e Hauptmann

    Com Ibsen e Tchekhov, vimos como a forma do drama entrou em crise pelo simples fato de que, procurando observar e configurar na cena o comportamento de satlites da burguesia (ou pequenos burgueses, como os chamou Gorki), esses dramaturgos acabaram questionando os pressupostos da forma do drama (liber-dade, conquista de objetivos) e esvaziando suas principais categorias formais (ao e dilogo). Em ambos o futuro inexiste, ou melhor, o presente vazio e as ocorrncias desse agora no forjam futuro nenhum, at porque esses personagens no so senhores de seu prprio destino. Se em Ibsen o dilogo se transformou em relato, inteiramente comprometido com a reconstituio e tentativa de justifica-o do passado, explicitando a matria romanesca e a vocao pica do dramatur-go, em Tchekhov essa categoria se transformou em monlogo travestido de dilo-go, explicitando a solido e a ausncia de comunicao at chegar ao impasse a falncia total das relaes inter-humanas, apontando para a possibilidade de sua superao no mbito do gnero pico.

    Antecedentes histricos

    O Segundo Imprio francs, o mais legtimo resultado dos massacres parisien-ses de julho de 1848, imps ao teatro (s artes, literatura, imprensa) um dos

    8 Idem, ibidem, p. 53.9 Gilda de Mello e Souza, Exerccios de leitura, So Paulo, Duas Cidades, 1980, p. 131-136.10 Idem, ibidem.

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    mais ferozes e bem-sucedidos sistemas de censura de que se tem notcia. A drama-turgia realista, do Alexandre Dumas Filho de A dama das camlias (1852) ao mi-le Augier de As leoas pobres (1858), a expresso legitimista desse perodo que se encerrou com a guerra franco-prussiana (uma das origens da primeira Guerra Mundial) e com a Comuna de Paris. Sobre a eficcia do sistema de censura ao tea-tro, basta lembrar que o mesmo mile Augier aqui referido acumulava as funes de dramaturgo prestigiado e censor. No teatro realista, portanto, as convenes do drama degradadas na frmula da pea-bem-feita so consagradas pelo pblico, pela crtica e asseguradas pelo Estado.

    No campo dos derrotados de 1848, ou simpatizantes de sua causa, encontra-vam-se escritores como Baudelaire, Flaubert e Zola. Foi este um dos primeiros a mostrar, logo depois da Comuna de Paris, mais precisamente em 1873, um dos caminhos que o teatro poderia seguir entre os escombros que restaram do teatro realista e similares. Sua contribuio prtica foi a adaptao para a cena de seu romance Teresa Raquin e, no plano da crtica, foi o autor dos primeiros manifes-tos do teatro naturalista.

    A Terceira Repblica proclamada em Versalhes porque em Paris havia uma revoluo em andamento , para deixar bem claro o seu compromisso com a po-ltica social de Lus Bonaparte, como primeira providncia diplomtica, combi-nou com o exrcito prussiano a melhor estratgia para massacrar os operrios parisienses, que haviam se assenhoreado da cidade abandonada.

    Depois que os nimos se acalmaram, no mbito teatral, o elo com o regime apeado foi a manuteno e o aperfeioamento do eficiente sistema de censura herdado, de modo que por algum tempo os esforos de Zola e outros, como os irmos Goncourt, continuavam cerceados a ferro e a fogo.

    Teatro Livre

    Andr Antoine aparece nesse cenrio. Tratava-se de um funcionrio da Compa-nhia de Gs, apaixonado por teatro a ponto de prestar servios de claque e figura-o na Comdie Franaise desde muito jovem. Acabou se envolvendo em um gru-po de teatro amador com mais alguns companheiros de trabalho e em breve tempo comeou a encenar as peas proibidas pela censura (que no alcanava os grupos amadores), mas interessantes para ele e seu pblico de trabalhadores e amigos. As portas do teatro comercial estavam evidentemente fechadas para uma companhia que no dispunha de capital e contava com um repertrio que a censura pusera no ndex ou peas que j tinham sido recusadas pelos teatros convencionais.

    As dificuldades econmicas do grupo amador (Crculo Gauls) e a descoberta de um teatrinho desativado em Montmartre levaram fundao do Teatro Livre, soluo para a maioria dos problemas: criava-se uma associao de artistas e p-blico (amigos e simpatizantes) que, por meio de assinaturas, garantia o finan-ciamento das produes programaticamente baratas; por se tratar de sociedade fechada (como o grupo amador), as peas a serem encenadas no dependiam de aprovao da censura. Essa a essncia poltica e econmica do Teatro Livre: li-berdade na escolha dos textos e liberdade em relao s convenes estticas e

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    econmicas da pea-bem-feita (ou do teatro realista). , pois, emblemtica a esco-lha do texto com que estreou o Teatro Livre em 1887: Jacques Damour, adaptao por Lon Hennique do conto de Zola sobre a histria de um veterano da Comuna de Paris que, tendo escapado ao massacre, mas dado por morto, volta cidade, encontra a famlia destruda e, depois de algumas peripcias extremamente dolo-rosas, vai trabalhar como caseiro para a filha que se tornou prostituta (como Nan, personagem do romance de mesmo nome).

    Essas condies econmicas, estticas e polticas explicam por que o Teatro Livre foi o introdutor na cena francesa de dramaturgos como Ibsen, Hauptmann e Strindberg os mais relevantes expoentes da dramaturgia naturalista no france-sa. E, entre os franceses que experimentavam novos caminhos como Zola, vale a pena destacar Henri Becque (Os corvos, A parisiense), que j conhecia tanto o de-sencontro entre as convenes do teatro realista e sua dramaturgia (o Odon pro-duziu sua pea Os corvos que fracassou), quanto os muito eficientes mtodos e critrios de censura dos empresrios teatrais (A parisiense foi recusada pelo mes-mo Odon por causa do fracasso da primeira).

    Do ponto de vista formal, o que distingue peas como as de Henri Becque do repertrio realista habitual especialmente aquilo que os crticos contemporneos (como Sarcey) chamavam de inapetncia dramtica: dilogos com funo pica (comentrios, relatos); ao pouco relevante quando no propriamente inexisten-te (prejudicando o ritmo) e personagens desprovidos de carter dramtico (no eram heris burgueses, at porque provenientes das camadas sociais inferiores). Uma outra marca desse teatro foi a progressiva incorporao cena de conjuntos cada vez mais numerosos de personagens (ensembles), contrariando abertamente uma das mais insistentes recomendaes da crtica (e dos produtores, por razes salariais bvias): restringir o nmero de personagens ao estritamente essencial para o bom andamento da ao dramtica.

    Antoine experimentou produzir o efeito ensemble, ou efeito de multido, pela primeira vez, em 1889. Foi com a pea A ptria em perigo, dos irmos Goncourt, que ficara retida pela censura desde 1866. Como o prprio diretor relata em Mes souvenirs sur le Thatre-Libre (1921), a cena de protesto popular diante da prefeitu-ra de Verdun foi a principal razo do seu interesse em encenar a pea. E seu empe-nho tambm se explica pelas convices polticas dos militantes do Teatro Livre (que iam do republicanismo ao anarquismo, passando pelo prprio socialismo). Por isso no demorou muito tempo para a dramaturgia naturalista apresentar uma pea inteiramente inspirada num episdio histrico das lutas dos trabalhadores.

    Hauptmann

    A criao do Teatro Livre em Paris funcionou como uma espcie de fogo em palha seca. Pouco tempo depois, quase todos os pases europeus tinham empreen-dimentos teatrais similares, dos quais os mais famosos so os de Berlim, Moscou, Londres e Dublin (que existe at hoje). Para se ter ideia da extenso do fenmeno, basta mencionar que Lukcs aos dezoito anos foi um dos fundadores do teatro livre de Budapeste, chamado Companhia Talia. De todos esses grupos, interessa agora o

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    de Otto Brahm, que em 1889 fundou a Cena Livre de Berlim lanando o dramaturgo Gerhart Hauptmann. Como se pode imaginar, no Imprio alemo a censura ao tea-tro era ainda mais feroz que a francesa, de modo que a motivao dos naturalistas alemes para viabilizar um teatro que escapasse s suas restries era ainda maior.

    Essa a principal razo por que Os teceles de Hauptmann estreou em Paris apenas trs meses depois de Berlim. que nessa cidade a polcia imperial no respeitou as garantias legais da Cena Livre. Em vista da repercusso que teve a pea, tratou de proibi-la em qualquer circunstncia e de garantir que no mais seria encenada em territrio alemo. At por uma questo de solidariedade polti-ca, o grupo de Antoine tratou de providenciar a traduo da pea e estre-la em Paris, o que aconteceu em maio de 1893 sob todo tipo de ameaas, diga-se de passagem, inclusive de interdio do teatro. Para alm da questo poltica, Antoine tinha um interesse experimental por essa pea: nela havia mais de uma oportuni-dade de criar cenas de multido no palco.

    Embora Os teceles j esteja bem distante da forma do drama, Hauptmann ainda se encontra preso a algumas das expectativas dramticas, em particular a da unidade de ao, de modo que nessa pea possvel perceber uma espcie de luta entre forma (dramtica) e contedo (pico) bastante instrutiva. Seu assunto a rebelio dos trabalhadores txteis e camponeses da Silsia, ocorrida em 1844. Foi uma rebelio espontnea, desorganizada, expresso do desespero dos famintos e miserveis que foram facilmente massacrados pelo exrcito. Numa primeira indi-cao de que Hauptmann queria escrever um drama sobre esse assunto, a pea dividida nos cinco atos da tragdia clssica. Mas no so atos o que temos aqui, pois essas unidades no tm o encadeamento causal que o drama exige. Seu nome tcnico quadros, que nessa pea tm encadeamento temtico.

    O primeiro quadro mostra duas coisas em contraste e em relao: a misria e a explorao dos teceles e os patres s voltas com as oscilaes do mercado em fase de modernizao tecnolgica. No segundo, uma cena da vida privada mise-rvel, a rebelio anunciada pela cano dos teceles. O terceiro quadro mostra os incidentes numa taberna comentrios dos acontecimentos locais e nacio-nais que so interrompidos pela prpria rebelio, j em andamento. Indicando simultaneidade parcial com esses incidentes, no quadro seguinte o jantar da casa burguesa tambm interrompido pelos rebeldes. A casa invadida e destruda. No quadro final, voltamos cena do segundo, mas agora o que est em andamento o massacre dos rebeldes. Uma bala perdida mata o nico personagem contrrio rebelio por acreditar na soluo pacfica dos conflitos.

    Nem preciso dizer que s no primeiro quadro e em parte do quarto o dilogo mantm alguma semelhana com o dilogo dramtico. Afinal, no primeiro, os trabalhadores esto negociando o valor do produto do seu trabalho ou as quanti-dades de tecido (e perdem). No incio do quarto quadro, a famlia burguesa e seus amigos conversam sobre a vida, o regime poltico e outras amenidades, mas em seguida a cano dos teceles acaba com aquela paz confortvel. Nas demais si-tuaes sua funo bsica pica: ou relato e comentrio de acontecimentos do passado, ou descrio de acontecimentos do presente que se passam fora da cena. Hauptmann lanou mo da teicoscopia, a tcnica considerada prpria para aque-

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    les acontecimentos que, por suas dimenses picas (como o caso da rebelio), dificilmente podiam ser encenados segundo as convenes do drama.

    Esse esforo de Hauptmann acabou involuntariamente dando forma no teatro luta de classe propriamente dita. Como se sabe, o dilogo um dos bens mais preciosos do drama burgus. Mas a sua viabilidade cnica depende da presena de personagens livres e iguais (homens burgueses) em conflito. Em Os teceles temos um confronto de classes, ambas tratadas como coletivos, em sinal de respeito por parte do artista a seu material e verdade histrica. Mas sendo o dilogo o nico tipo de discurso que o drama reconhece como legtimo, ele teria que ser o veculo predominante do assunto. Mas j vimos que a partir do segundo quadro essa fun-o passou a ser desempenhada tambm pela cano dos teceles (uma s voz, porm coletiva). Tecnicamente no chegou a haver disputa entre dilogo e cano at o quarto quadro pois, a cada aparecimento da cano, o dilogo lhe cedeu o lugar. Mas no quadro da rebelio propriamente dita o dilogo permaneceu em cena, assim como os burgueses acuados. A famlia burguesa no tinha como resis-tir ao ataque, mas permanecendo em cena o dilogo tambm resiste. S que esva-ziado de funo dramtica e desempenhando a funo pica de informar plateia sobre os avanos dos rebeldes. No segmento final, aps um instante em que o palco fica vazio, a multido o invade.

    H, portanto, perdas e danos de ambos os lados: se o dilogo perdeu a sua funo, o que no pouca coisa, a rebelio ficou fora de cena, o que tambm sig-nifica uma perda aprecivel. Mas o valor histrico e esttico dessa pea est nisso mesmo para alm das questes levantadas por Peter Szondi e Anatol Rosenfeld em anlises muito mais minuciosas. Nas mos de Hauptmann ficou evidenciado, para alm de qualquer dvida, o compromisso do drama e suas categoriais for-mais com a burguesia. A classe trabalhadora, se quiser se ver no teatro, ser obri-gada a forjar seus prprios meios de expresso, assim como fez a burguesia no sculo XVIII. por esse feito que a experincia da dramaturgia naturalista, como j disse Brecht, necessariamente deve figurar como o primeiro captulo do teatro dos trabalhadores. E Os teceles de Hauptmann, exatamente pelos problemas que evidencia, entrar nessa histria como a sua primeira obra-prima.

    Mesmo correndo o risco do excesso, vale a pena acrescentar que esse o prin-cipal motivo por que o naturalismo (no s no teatro) to maltratado nas hist-rias convencionais da literatura, da arte e sobretudo do teatro.

    Strindberg e a superao do naturalismo no drama

    Ainda no existem os estudos necessrios ao conhecimento adequado do movimento naturalista nem mesmo nos principais centros onde ele se desenvol-veu Paris, Berlim, Londres, Dublin e Moscou. As razes para esse desastre cul-tural podem ser resumidas em uma s proposio: as derrotas que os trabalhado-res sofreram ao longo desse sculo, comeando logo aps a Revoluo de Outubro, respondem pela progressiva incapacidade desses mesmos trabalhadores defende-rem os seus interesses tambm no plano da cultura. E se ns no o fizermos no ser o inimigo a faz-lo.

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    Apesar disso, possvel conceituar o naturalismo como a experincia teatral na qual pela primeira vez os trabalhadores se viram nos palcos como classe. Os teceles apenas uma dentre as inmeras peas escritas e encenadas ou censura-das no perodo. Para dar um exemplo no muito distante, o romance Germinal de Zola teve censurada uma adaptao para teatro na mesma poca. Do ponto de vista da dramaturgia, o recorte que interessa aqui, foi com o naturalismo que se explicitaram as razes de classe das incompatibilidades entre o drama como forma e as lutas dos trabalhadores como assunto.

    Mesmo os dramaturgos que no estavam minimamente envolvidos com as lutas dos trabalhadores, caso de Strindberg, tinham preocupaes que, levadas ao teatro, tambm se mostravam incompatveis com a forma do drama. Por isso mes-mo a sua obra s encontrou o caminho do palco pelas mos de encenadores na-turalistas como Antoine ou de empreendimentos desde logo inspirados na luta contra teatro livre, como foi o caso do LOeuvre de Lugn-Poe.

    Senhorita Jlia (1888), encenada por Antoine, faz parte da famlia naturalista e ainda est muito prxima da pea-bem-feita, mas tem duas qualidades que interes-sam aqui. A primeira lhe extrnseca, pois se trata do prefcio (publicado por An-toine no programa do espetculo) no qual Strindberg mostra o grau de conscincia dos artistas de ento sobre a necessidade de se inventar novas formas. A segunda, paradoxalmente inspirada na paranoia misgina de Strindberg, acrescenta uma nova explicitao do carter machista e de classe da ideia de liberdade, ou livre ini-ciativa, que nessa pea aparece sob a temtica do assdio sexual (no bom sentido).

    Depois dos manifestos de Zola, o prefcio da Senhorita Jlia o documento mais importante da gerao naturalista. Embora no chegue a ter o mesmo esta-tuto do prefcio de Victor Hugo ao Cromwell, com ele estabelece um dilogo rele-vante. Victor Hugo defende com grande empenho o direito do artista de transitar pelos vrios gneros segundo as exigncias da matria. Strindberg radicaliza a ideia de que gneros e formas tm vigncia histrica e, como tudo o mais, enve-lhecem e morrem. Mas, enquanto no morrem, constituem obstculo apresenta-o de novos contedos. Por isso ele considera morto o teatro em pases como a Inglaterra e a Alemanha, enquanto em outros, como na Sucia, gente como ele pensou ser possvel criar o novo drama preenchendo as velhas formas com o con-tedo dos novos tempos (suas palavras, literais). Senhorita Jlia seria um exemplo dessa tentativa, na qual a forma j sofreu algumas modificaes importantes. Por exemplo: seus personagens no tm carter no sentido valorizado pelo drama, porque ele no acredita na imobilidade da alma, ou fixao de temperamento, que a ideia de carter pressupe. De acordo com isso, seus personagens seriam mais bem descritos como febrilmente histricos, vacilantes e fragmentrios, mais de acordo com a poca de transio em que vivem. Quanto ao dilogo, Strindberg, por assim dizer, confessa ter rompido com a tradio na qual os personagens se comportam como catequistas fazendo perguntas tolas para receberem respostas inteligentes. E, no plano estrutural, Strindberg aboliu a diviso em atos.

    Como no o caso de reconstituir aqui a iluminadora anlise que ele faz de sua prpria pea, nem suas crticas bem-humoradas aos costumes e convenes teatrais ainda em vigor, encerremos esse passeio por seu prefcio com a metfora bblica que sintetiza o maior problema do teatro de seu tempo e que alguns anos

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    depois ele mesmo contribuiu para solucionar: no temos ainda novas formas para os novos contedos, e o novo vinho fez explodir as garrafas velhas.11

    Como Senhorita Jlia apresenta caractersticas de transio semelhantes s que vimos em Ibsen e Tchekhov, vamos restringir aqui o seu exame ao fio princi-pal do enredo que, mesmo constituindo uma ao dramtica, produz uma saboro-sa e significativa inverso de seus pressupostos. Reduzido ao essencial, o caso aqui que Jlia tem forte atrao sexual por Jean, um criado cujos atributos fsicos justificam-na inteiramente. Os obstculos realizao desses desejos (que tm alguma reciprocidade, independentemente de motivaes) so naturalmente de classe. Mas, transformando o obstculo em vantagem, Jlia quem toma a inicia-tiva do assdio e, numa sutil guerra de trincheiras, vai quebrando as resistncias do atraente criado at conquistar seu objetivo. Essa conquista por certo tem um preo: primeiro a relao senhor-escravo se inverte, e, no desfecho, induzida por Jean, Jlia paga com a prpria vida pela transgresso.

    Aqui interessa a fase ascensional da curva dramtica da trajetria de Jlia, tambm compreensvel por ser seu criador um sueco que conheceu pessoalmente o processo feminista de conquista de muitas liberdades, incluindo a sexual, como se sabe. Jlia pode tomar, e toma, a iniciativa porque na ausncia do pai a se-nhora do castelo, mesmo que temporariamente. Para o prprio Strindberg, esse comportamento privativo dos homens e por isso ele define Jlia como uma se-mimulher. Em suas palavras, ela um tipo moderno que est lanando para a frente, que hoje em dia se vende em troca de poder, de ttulos, de distines, de diplomas, assim como estava acostumada a vender-se por dinheiro.12 Isso o que pensa o homem Strindberg. Mas o artista mostrou com muita clareza (e o homem no percebeu) que h uma determinao de classe no comportamento tido por masculino. O teorema da primeira parte da pea demonstra que, se a personagem fizer parte da classe dominante, mesmo sendo mulher, a ela tambm esto abertos os caminhos da livre iniciativa, ou da liberdade, como preferem os poetas e filso-fos. A segunda parte, em que Jlia paga com a vida pela transgresso, corre por conta dos valores assumidamente misginos do dramaturgo. Mas, independente-mente disso, ele acrescentou ao repertrio do teatro naturalista um ingrediente importante da ampla agenda das reivindicaes feministas.

    Se no tivesse ultrapassado esse ponto, Strindberg seria apenas mais um dos dramaturgos naturalistas, talvez nem tivesse entrado para a histria. Seu lugar na histria do teatro moderno se deve s experincias mais radicais que realizou no plano da forma, na ltima fase de sua vida: coerente com a metfora do vinho que explodiu a garrafa velha, no ano de 1898, aps outras experincias bem e malsu-cedidas, Strindberg finalmente deu com a forma que pavimentou o caminho por onde passou o teatro do sculo XX, em particular o expressionista e o pico.

    Entre as convenes do drama, uma em especial se lhe apresentava como obs-tculo: a objetividade da forma, ou a impossibilidade de tratar da interioridade dos

    11 August Strindberg, Senhorita Jlia, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 18.12 Idem, ibidem, p. 23.

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    personagens, como faz o romance, na medida em que a forma s reconhece aquilo que se passa na esfera das relaes inter-humanas, cujo veculo o dilogo. Na pea A mais forte, Strindberg j experimentara a forma do monlogo encenado como falso dilogo (s um personagem fala, como far Cocteau muito mais tarde em O belo indiferente), mas no era isso o que procurava. O pai, anterior a Senho rita Jlia, foi uma tentativa inteiramente incompreendida de introduzir o foco narrativo no drama. ento que em 1898, em Rumo a Damasco, os dois problemas foram resolvidos pelo resgate de uma das formas do teatro medieval, o drama de estaes. Como indica o conceito, a matriz dessa forma o teatro processional, ou mais sim-plesmente a procisso em que se rememora a Via Sacra, na qual cada estao re-constitui um episdio do ltimo dia do Cristo, do palcio de Pilatos ao Calvrio.

    Rumo a Damasco uma trilogia cujas duas primeiras partes ficaram prontas em 1898 e a terceira, em 1904. O ttulo remete histria da converso de Saulo de Tarso e de converso mesmo que a obra trata. Limitando-nos primeira etapa desse trptico monumental (que estreou em Estocolmo em 1900 e na Frana s em 1949), a primeira coisa que salta aos olhos a combinao da estrutura em esta-es (quadros) com a diviso em cinco atos (inteiramente desnecessria, como se pode imaginar: a pea em quadros est nos antpodas da tragdia neoclssica).

    Os quadros se sucedem num movimento de ida-e-volta perfeitamente simtri-co. A ida comea numa esquina, passa pela casa de um mdico, um quarto de hotel, praia, estrada, desfiladeiro, cozinha de uma casa na montanha, quarto nessa mesma casa e culmina num sanatrio. Essa a nona estao, a partir da qual dois (por as-sim dizer) personagens, Desconhecido e Mulher, retornam at chegar novamente esquina inicial, num total de dezessete estaes (trs a mais que a Via Crucis origi-nal). Desconhecido e Mulher desenvolvem uma problemtica relao amorosa, marcada por infidelidades, problemas econmicos, psicolgicos e rejeio social (esto impedidos de legalizar a unio). Ao mesmo tempo ambos so reciprocamen-te estmulo e obstculo, conhecimento e ignorncia, desdobramento psico lgico e espelhamento, identificao e estranhamento. O clmax, se assim se puder chamar, um colapso nervoso do Desconhecido que recebe tratamento num sanatrio. O caminho de volta uma peripcia para os que acreditaram na aluso converso de So Paulo: aqui o autoconhecimento, ou a descoberta da verdade, ou cura, na opinio dos mdicos, no resulta em mudana de comportamento, at porque os problemas objetivos (falta de dinheiro, especialmente) continuam irresolvidos. S na cena final do ltimo quadro teremos uma espcie de promessa de converso, quando a Mulher convence o Desconhecido a entrar numa igreja.

    O exame de todas as questes discutidas pela pea nos levaria longe demais. Mas para que se tenha uma ideia, basta enumerar as seguintes: problemas de um escritor em crise com seus editores que se recusam a lhe fazer adiantamentos, discusso dos mtodos de educao dos filhos, busca de identidade jamais encon-trada, blasfmia explcita inspirada em textos do Deuteronmio (especificamente: as maldies de Moiss), mtodos convencionais e heterodoxos de tratamento psiquitrico e assim por diante.

    O que realmente interessa nesta pea de Strindberg, e j foi destacado nas anli-ses de Peter Szondi, a descoberta (ou redescoberta) de uma forma teatral pica em

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    condies de permitir a encenao daquilo que mais tarde veio a chamar-se drama-turgia do ego, na qual no se tem mais dilogos, pois no h mais personagens. O que se tem o sonho (ou pesadelo) de um nico personagem (nesse caso, o Desco-nhecido) no qual todos os demais so suas prprias emanaes, ou projees. Para dizer o mesmo em outras palavras, a partir de Rumo a Damasco, tudo em Strindberg passa a ser funo de um eu central, ou seja, um narrador. O texto passa a ser na verdade monlogo (com discurso indireto livre, apenas convencionalmente distri-budo entre personagens que s aparentemente dialogam) no qual se assiste ence-nao de episdios (quadros) da vida psquica encoberta (ou revestida) de aconte-cimentos da esfera das relaes inter-humanas. Essa revelao ilimitada: no respeita as convenes de tempo, espao, verossimilhana, valores consagrados, nada exatamente como no inconsciente a que se refere Freud em sua Interpretao dos sonhos, que tem praticamente a mesma idade dessa pea, e no por coincidncia.

    Como resultado dessa estratgia (monlogo, estaes), desapareceram as trs unidades (ao, tempo e lugar) do drama tradicional e elas foram substitudas pela unidade de personagem, que entretanto nem ao menos tem identidade. A lei da causalidade, determinante da unidade de ao, substituda pela sequncia solta, por fragmentos cujas ligaes devero ser identificadas por meio de catego-rias do repertrio da crtica literria como os expostos por Freud no livro citado: condensao, fuso, metfora, metonmia e assim por diante. Sem exagero, pode-se dizer que com Strindberg est tecnicamente consumada, tambm na dramaturgia, a liberdade de trnsito por todos os gneros.

    Em 1902, Strindberg escreveu O sonho, que j explicita no ttulo a referncia ao modo como a estruturou. A novidade aqui, em relao ao drama de estaes, a ma terializao de um narrador (cuja ausncia at hoje confunde intrpretes de Rumo a Damasco), que o prprio dramaturgo no reconheceu como tal, embora no lhe faltem antecedentes, na figura dos compadres do teatro de revista ou dos raisonneurs do teatro realista francs. A prova tcnica do no reconhecimento do narrador (responsvel pela consistncia do foco narrativo e da prpria narrativa como um todo) a sua morte no terceiro ato, uma vez que ele apareceu sob a mscara de personagem dramtica e essa morte compromete a consistncia da pea como um todo.

    Avaliando esse resultado, Peter Szondi observa que, enquanto em Ibsen a per-sonagem dramtica tinha que morrer porque faltava s peas um narrador pico, o primeiro narrador de Strindberg morreu por no ter sido reconhecido como tal. por isso que, mesmo tendo encontrado a forma pica no drama de estaes ou na estrutura do sonho para a temtica pica que o sculo XIX j vinha apresentan-do havia tempo, Strindberg permanece no limiar do teatro moderno. Para o que nos interessa agora, por ter encontrado a forma pica da dramaturgia do ego, ele o elo com o teatro expressionista.

    Georg Kaiser e Ernst Toller: o expressionismo no teatro

    Uma vez que a primeira gerao expressionista, anterior Primeira Guer-ra Mundial, no avanou de um ponto de vista formal sobre as experincias de Strind berg, aqui vamos nos concentrar na segunda, a do entreguerras que, sem

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    abandonar a estrutura do sonho, procurou romper com os limites do subjetivismo que marcou Strindberg e discpulos.

    Mas, para fazer justia ao primeiro expressionismo, cabe registrar que foram esses dramaturgos que seguiram o conselho da Me, personagem de Rumo a Da-masco. Essa, no quadro/estao que precede o colapso nervoso do Desconhecido, d-lhe o seguinte conselho: voc deixou Jerusalm e est na estrada de Damasco. V pelo mesmo caminho por onde veio. Plante uma cruz em cada estao, mas pare na stima. No precisa sofrer as catorze como ele.13 O prprio Strindberg ultrapassou at mesmo as catorze estaes, mas os primeiros expressionistas fica-ram nas sete, que se transformaram numa espcie de marca registrada da estrutu-ra pica de suas peas.

    Antecedentes histricos

    Para entender o teatro da segunda gerao expressionista indispensvel um conhecimento engajado da histria alem desde o final do sculo XIX at a procla-mao da Repblica de Weimar, quando a experincia se generalizou e expandiu.

    O principal personagem dessa histria o Partido Socialdemocrata Alemo (Sozialdemokratische Partei Deutschland SPD) que conquistara a legalidade no final da dcada de 1880 e no incio do sculo XX veio a constituir o maior partido da classe trabalhadora, com nmero de parlamentares no Reichstag capaz de deci-dir votaes (maioria). Uma das formas de luta desse partido se desenvolveu no front cultural, pois seus militantes e dirigentes sabiam muito bem do valor da Kultur naquele pas, por eles definida como importante campo de luta. Por isso mesmo a Freie Bhne (Cena Livre), fundada por Otto Brahm inspirado em Antoine, em pouco tempo se viu obrigada a debater e votar a proposta de vinculao ao SPD. Com a vitria da faco favorvel, isto , dos militantes do SPD na Cena Livre, criada a Volksbhne (Cena do Povo). O resultado foi a multiplicao dos grupos de teatro por toda a Alemanha, com o apoio da poderosa estrutura partidria e sindi-cal do SPD. Segundo Anatol Rosenfeld, quando Hitler chegou ao poder em 1933, s em Berlim a Volksbhne contava com mais de cem mil militantes (ou scios).14

    Atalhando um pouco essa histria, sabe-se tambm que em agosto de 1914, quando o Kaiser solicitou ao Reichstag a aprovao dos crditos necessrios para declarar guerra Frana, o SPD tinha deputados em nmero suficiente para barrar a proposta. Para escndalo dos socialistas do mundo inteiro, em particular Lenin, que por isso mesmo rompeu com a Segunda Internacional, os deputados socialis-tas, com louvveis excees como Karl Liebknecht, votaram a favor dos crditos de guerra. E, uma vez enredados nessa lgica, votaram tambm a favor das leis de exceo que, entre outras providncias, permitiam prender militantes pacifistas do prprio SPD por crime de alta traio, como aconteceu com Rosa Luxemburg.

    13 August Strindberg, Rumo a Damasco, in . Thtre complet, Paris, LArche, 1983, v. 3, p. 209.

    14 Anatol Rosenfeld, Teatro alemo, So Paulo, Brasiliense, 1968, p. 122. Nosso mestre lembra ainda que, encerrado o pesadelo hitlerista, a organizao renasceu dos escombros alemes e, nos anos 60 do sculo XX, j contava com cerca de 100 associaes e mais de 500 mil scios.

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    impossvel supervalorizar o efeito desse desastre poltico sobre os socialis-tas, em geral, e os militantes da Volksbhne, em particular. Mas, para alm do efeito psicolgico, a guerra propriamente dita se encarregou de dar fim prpria vida de quase todos eles: poetas, dramaturgos, atores e diretores.

    Outro acontecimento, que em alguma medida reverteu a expectativa da es-querda alem, foi a revoluo na Rssia em outubro de 1917. Especialmente por-que o tratado de paz assinado em separado pelos bolcheviques foi fundamental para determinar o fim da guerra. Muitos veteranos, entre os quais Piscator, volta-ram das trincheiras dispostos a repetir o feito sovitico na Alemanha.

    Como, nesse meio tempo, a esquerda do SPD j fundara o Partido Socialde-mocata Independente da Alemanha (Unabhngige Sozialdemokratische Partei Deutschlands USPD) e a Liga Espartaquista, que em seguida (1918) formaria o Partido Comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands KPD), mal assinado o Tratado de Versalhes, comea a revoluo em Berlim, Munique e demais centros operrios da Alemanha. Nos meses que vo de dezembro de 1918 a maio de 1919, temos um rpido processo no qual o Kaiser abdica, proclamada a Repblica em Weimar (porque em Berlim havia uma revoluo nas ruas), os socialistas assumem o poder republicano e tratam de massacrar a revoluo massacre cujo ponto alto certamente o assassinato de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht (em janeiro). Munique foi o ltimo reduto revolucionrio a cair (em maio) sob os ataques dos freikorps (uma espcie de esquadro da morte), que mais tarde vieram a integrar as SS de Hitler.

    Depois de instaurada a paz de Weimar, assistiremos ao grande surto do se-gundo expressionismo em todas as artes, mas com especial destaque no teatro e no cinema, gmeos fraternos.

    Georg Kaiser

    Como j ficou dito, a primeira gerao do teatro expressionista dera continuida-de dramaturgia do ego de Strindberg. Aproveitando-se do repertrio j consoli-dado, sobretudo a estrutura de sonho-pesadelo, De manh meia-noite, de Georg Kaiser (encenada em Frankfurt em 1917), d um passo adiante no plano do conte-do, em relao aos personagens mais abstratos e relativamente sem identidade da gerao anterior. O protagonista-narrador que tem um pesadelo um bancrio (cai-xa) e como tal designado. Isto : comeam a interessar as determinaes de classe das experincias. O sonho se desenvolve em sete estaes: no primeiro episdio, ele uma espcie de rob que trabalha enjaulado em seu guich; depois de dar um desfalque no banco, num campo coberto de neve, interpreta como a morte uma fi-gura formada pela neve depositada sobre uma rvore; mais adiante aposta nas cor-ridas de cavalo, onde burgueses (de cartola) tambm agem como autmatos; num cabar, uma das bailarinas tem perna-de-pau, outras caem de bbadas e outras se transformam em bruxas assustadoras; por fim ele acaba se suicidando.

    O interesse dessa pea sua ambiguidade: lida (ou encenada) segundo as con-venes realistas, ela tambm faz sentido, embora perca muito de seu contedo. Veja-se, por exemplo, a sntese de um leitor simpatizante, mas desavisado: De manh meia-noite a sombria histria de um bancrio cuja necessidade de se

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    libertar da futilidade da civilizao moderna o leva ao suicdio.15 Esse crtico no percebeu que estamos diante de um pesadelo que demonstra ao infeliz sonhador as seguintes verdades: primeiro, que no h sada individual para a priso em que se encontram os trabalhadores, mesmo os dos estratos superiores; e segundo: a sada mgica (desfalque), na melhor das hipteses, leva a participar da vida dis-sipada e sem propsito da burguesia (jogo e diverso) que no fim das contas o espelho s na aparncia desejvel da vida de autmatos que levam os trabalha-dores. Como se v, a Escola de Frankfurt no caiu do cu, pois aqui j se encon-tram os mais importantes temas dos melhores crticos da indstria cultural.

    Assim como no caso do naturalismo, a experincia expressionista passa neces-sariamente pela encenao. E assim como as propostas de Antoine ainda consti-tuem verdadeiro desafio para encenadores exigentes (Stanislavski ser tratado em captulo parte), as dos diretores e cengrafos expressionistas constituem refe-rncia obrigatria para o teatro exigente at hoje. Com as peas e as recomenda-es do prprio Georg Kaiser, as seguintes conquistas se consolidaram, ao menos na Alemanha: cenrios abstratos, indeterminados, distores e outros recursos ca-pazes de sugerir atmosfera de pesadelo; poucos adereos, o estritamente essencial (como cartolas para burgueses), com sugestes simblicas; como os personagens so tambm abstratos e representam grupos sociais (Kaiser chama-os de figuras), os atores devem preferencialmente atuar de modo grotesco, suas caractersticas devem ser enfatizadas pelos adereos, mscaras ou maquiagem; as cenas de multi-do (tambm despersonalizadas) devem obedecer a movimentos rtmicos e mec-nicos, cuidadosamente coreografados; como o dilogo fragmentado (assim como a ao dividida em episdios), os atores devem desenvolver um estilo telegrfico de interpretao, acompanhando o esprito do texto; enfim, como se pode ver nos filmes expressionistas, o estilo de interpretao adotar inclusive critrios musi-cais, sobretudo os relativos a ritmo e andamento (h uma forte preferncia pela rapidez frentica e pelo staccato).16

    Ernst Toller

    Como ficou sugerido, uma das operaes de Georg Kaiser no plano do conte-do foi reduzir o grau de abstrao do personagem herdado de Strindberg, ao ado-tar determinaes de classe a partir das quais faz sentido a crtica aos rumos da sociedade moderna. J Ernst Toller, um veterano da revoluo massacrada em 1919 (foi preso e condenado a vinte anos por crime de alta traio), tratou de aprofundar essa orientao mais claramente poltica do segundo expressionismo.

    Ainda na priso, Toller escreveu As massas e o homem, encenada pela Volksbh-ne de Nuremberg em 1920 e pela de Berlim em 1921. Trocando essas informaes em midos, o pblico a que se dirigia a pea era constitudo majoritariamente por veteranos da revoluo, como o prprio autor. Isso explica, por um lado, o sucesso

    15 Apud J. L. Styan, Modern drama in theory and in practice 3. Expressionism and Epic Theatre, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 48-50.

    16 De acordo com o resumo do mesmo Styan, Modern drama in theory and in practice 3, op. cit.

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    absoluto da pea e a projeo de Toller a maior dramaturgo alemo da era pr-bre-chtiana. Por outro lado, explica tambm a leitura inteiramente equivocada da crtica e do pblico nos pases onde a pea foi encenada, sempre com muito sucesso, como o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos (pas para onde seguiu o dramaturgo exilado). Esse fenmeno se verificou ainda na Alemanha, uma vez que a pea aca-bou sendo vista (e criticada) tambm pelos inimigos de classe. A esses o prprio dramaturgo respondeu, no prefcio segunda edio da pea, nos seguintes termos:

    pode ser que, para o crtico ligado burguesia, que no conhece os proletrios como ns [...], a formulao das lutas ideolgicas mais significativas e revolucionrias, que mexem com os homens dos ps cabea, parea uma simples figura de retrica ou uma frase de editorial. Mas de uma coisa no h dvida: o que, tanto na arte quando na vida real soa ao burgus como uma discusso tola em torno de palavras sem maior significado, para o proletrio a expresso mais pura da sua tragdia e da sua aflio. Por outro lado, o que o burgus interpreta como um pen-samento altamente profundo e filosfico, a prpria essncia da efervescncia intelectual, para o proletrio no diz rigorosamente nada.17

    Toller h de ter se indignado com o profundo grau de ignorncia e insensibili-dade, inclusive auditiva, em relao a uma pea que tentou simplesmente recons-tituir, por meio das mais eloquentes estratgias discursivas, a histria da revoluo ento recente. Mas, com a distncia histrica, foroso admitir que seria demais pedir a crticos, provavelmente ignorando at o assassinato de Rosa Luxemburg, que identificassem no enfrentamento entre as lideranas revolucionrias dos traba-lhadores os movimentos da classe desde a luta pacifista (clandestina) at a derrota e os debates em torno das estratgias de sobrevivncia ento em andamento.

    Para remediar um pouco esse estado de opacidade em que o texto mergulhou desde que se viu separado de seus originais e legtimos interlocutores, comecemos pela descrio de sua estrutura e principais figuras (para j adotar a terminologia de Georg Kaiser).

    Dividida em sete episdios, As massas e o homem apresenta uma novidade que indica a tendncia a abandonar o campo da subjetividade, num retorno objetivi-dade, mas em nova chave, pois esse retorno traz consigo as conquistas formais do momento anterior, como o foco narrativo e o clima de pesadelo. A novidade a al-ternncia entre os planos do sonho e da realidade: os quadros mpares esto na rea-lidade e os pares so pesadelos, ou sonhos muito reveladores devidamente indica-dos como tais. Mas o dramaturgo recomenda ao encenador que procure, no plano da interpretao e demais recursos cnicos, confundir as fronteiras entre sonho e realidade, evitando sobretudo os ambientes realistas. Nessa moldura, o protagonista o processo histrico alemo no perodo que vai do final da guerra ao massacre da revoluo. O que vemos por meio das figuras so seus diversos agentes. A primeira estao mostra o processo vivido por uma Mulher (assim designada) que abando-nou um casamento burgus para aderir causa pacifista dos trabalhadores, enfren-tando duas consequncias de igual importncia: foi denunciada pelo marido, alto

    17 Ernst Toller, Prefcio a As massas e o homem, in Ulrich Merkel (org.) Teatro e poltica. Expressisonismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p. 29.

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    funcionrio do Estado, por crime de alta traio, e ao mesmo tempo acaba sendo aclamada como lder pelos trabalhadores mobilizados. Esse seu movimento no inteiramente radical, pois ela continua presa ao marido, sobretudo no plano sexual. O segundo quadro o maior dos pesadelos: na bolsa de valores, os banqueiros dis-putam as aes da indstria blica que a certa altura comeam a cair (isto , a guer-ra est prxima do fim); numa derradeira tentativa de prolong-la, e para tanto in-fundir nimo nos soldados, os concorrentes se unem para impor ao Estado a criao de um imenso bordel destinado aos soldados. E para dar incio ao levantamento de fundos, organizam um baile no qual j comeam a arregimentar as prostitutas. No terceiro quadro, uma assembleia de trabalhadores mostra como foi rpida a transi-o da luta pacifista para a revoluo. No incio prevalecem as intervenes em de-fesa da proposta de greve dos trabalhadores da indstria blica para forar o fim da guerra. A Mulher lidera essa tendncia at comear a ser enfrentada pelo Annimo que prope revoluo. No desfecho, o coro toma a palavra: venceu a proposta de revoluo. O quadro seguinte o sonho da Mulher, no qual a revoluo vitoriosa e ela tem que enfrentar suas consequncias: seu marido preso e condenado mor-te; intercedendo sem sucesso em seu favor, ela pede para ser executada junto com ele. No quinto quadro, temos a revoluo propriamente dita. Estamos no quartel-general dos revolucionrios, onde chegam sucessivas notcias de derrotas e as ten-dncias representadas pela Mulher e pelo Annimo agora se confrontam sobre ques-tes como indivduo versus massa, luta armada versus no violncia, e assim por diante. So as polmicas entre os leninistas e os luxemburguistas. Estes ltimos so contra a violncia por princpio, no aceitando nem mesmo a violncia revolucio-nria, contra a qual defendem os direitos individuais; e aqueles defendem a luta armada, falam em nome da massa, que acreditam ser capazes de conduzir. No final, a revoluo foi derrotada, os dirigentes esto cercados e se entregam cantando A internacional. No quadro seguinte, h outro sonho da Mulher: numa jaula em um sanatrio, ela observada por um enfermeiro e est sendo processada, isto , trata-da. Nesse tratamento, investigam-se vrios tipos de culpas e quando todos con-cluem que o maior culpado Deus, ela recebe alta. No quadro final, a Mulher est presa, foi condenada morte e aguarda a ordem de execuo. Seu companheiro de luta e adversrio terico, o Annimo, consegue infiltrar-se na cela e apresenta-lhe um plano de fuga, uma vez que seus companheiros de partido dispem de um es-quema eficiente. Ela o recusa porque no aceita mtodos violentos e o plano inclui a necessidade de matar um guarda. Assim sendo, ela mesmo executada.

    Pelo exposto, d para perceber que h muito o que discutir sobre essa pea em diversos planos. Para o que interessa agora, basta esclarecer dois pontos: formal-mente, a Alemanha j encontrou a forma do teatro pico; criticamente, dadas as condies de recepo dessa pea, j referidas, ela foi transformada numa espcie de suma do teatro expressionista, e como tal conhecida, especialmente nos pa-ses onde foi encenada. No entanto, por maiores que sejam a simpatia e o interesse que a cercam, ela teve seu contedo inteiramente esvaziado; as referncias a seu respeito se prendem estritamente a seus feitos cnicos e de interpretao (indi-viduais e ensembles). Uma sntese desse esvaziamento est cifrada em uma refe-rncia inglesa ao espetculo assistido na Alemanha, segundo a qual, na cena da priso dos dirigentes revolucionrios, esses teriam cantado A marselhesa. Para

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    quem conhece histria desde 1789, confundir A Internacional com A marselhesa, e numa pea que tem como protagonista a revoluo proletria, esse no um equvoco de pequenas consequncias.

    Piscator e Brecht: formas do teatro poltico

    Piscator

    Erwin Piscator serviu na guerra como soldado e viveu todo o seu horror nas trincheiras. Nessa situao, organizou um grupo de teatro que tinha a funo de distrair os soldados. Aps o tratado de paz com a Rssia bolchevique, teve opor-tunidade de se confraternizar com os soldados russos com os quais tomou conhe-cimento da forma de teatro criada pelos revolucionrios, o agitprop, que aqui re-feriremos simplesmente como teatro de agitao. De volta a Berlim, tratou de adaptar para a situao alem, pr-revolucionria, aquele modelo relativamente simples de interveno esttico-poltica: um curto esquete, de durao entre dez e quinze minutos, sobre assunto da ordem do dia, era preparado e apresentado nas ruas, em portas de escolas e fbricas, em assembleias de trabalhadores, comcios e demais manifestaes polticas. Os inmeros grupos contavam com elenco relati-vamente pequeno, no trabalhavam com cenrios nem figurinos, mas apenas com adereos fceis de transportar (e de carregar em caso de necessidade de fugir da polcia, ocorrncia comum), assim como procuravam combinar a interpretao, to esquemtica quanto a expressionista, com nmeros musicais (de preferncia coros aos quais os espectadores costumavam aderir) que iam dos hinos dos traba-lhadores a pardias de canes conhecidas.

    Aps o massacre de 1918-1919, a modalidade naturalmente entrou em baixa e Piscator tratou de se dedicar ao teatro convencional, isto , profissional, vincu-lando-se Volksbhne de Berlim (no podemos nos esquecer de que, com o SPD no poder, a administrao dos teatros pblicos alemes ficou em suas mos). Quando comeou a participar da direo do Deutsches Theatre, Piscator registrou: pela primeira vez eu tinha em mos um teatro moderno, o teatro mais moderno de Berlim, com todas as suas possibilidades.18 Entre essas possibilidades estava a da participao ativa do pblico trabalhador em todo o processo da encenao: desde a escolha do texto, passando pela produo, at o debate aps as apresenta-es (havendo casos de interferncia durante o prprio espetculo). Piscator relata o divertido episdio ocorrido num sindicato em que, cansados de esperar pela chegada de um painel, o espetculo foi iniciado. Quanto o painel chegou, o espe-tculo foi interrompido e fez-se uma assembleia para decidir se comeavam tudo de novo com o painel instalado ou continuavam do ponto em que estavam.

    Como seria de esperar, Piscator levou para o teatro convencional a experincia do teatro de agitao e, entre outras, encenou em 1924 a pea Bandeiras (sobre os acontecimentos de Chicago que esto na origem das comemoraes do Primeiro de Maio), na qual foram vistas todas as experincias cnicas que apontavam para o teatro pico, como os efeitos de multido de Antoine, a rebelio que s ficou

    18 Erwin Piscator, Teatro poltico, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1968, p. 67.

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    sugerida em Os teceles, assim como as assembleias e passeatas do teatro expres-sionista. Novamente a crtica conservadora foi luta. Entre outras acusaes, esse espetculo recebeu a de que no tinh a nenhuma qualidade dramtica.

    A polmica sobre esse espetculo na imprensa alem tem interesse histrico: pela primeira vez a qualificao pico, que at ento tivera conotao negativa, passou a ser assumida como positiva. Um dos responsveis pelo feito foi o roman-cista Alfred Dblin, que saiu em defesa do espetculo com o seguinte argumento, reproduzido por Piscator no livro citado: colocando a pea num muito frtil ter-reno intermedirio entre o romance e o drama, aposta que ser procurado pelos que tm algo a dizer e representar, e aos quais no agrada a forma empedernida do nosso drama que obriga a uma arte dramtica tambm empedernida. O nome dessa forma, que vinha sendo procurada desde o drama social dos naturalistas, podia mesmo ser pica, pois a descrevia muito bem.

    Brecht

    Quando Brecht entrou nessa histria, portanto, at o conceito de teatro pico j estava disponvel, embora ainda estivesse longe de consolidado (se que se pode falar nisso). Tanto assim, que seus primeiros textos tericos, de meados dos anos 1920, ainda participam da luta pelo direito forma e pelo conceito.

    Como Piscator, Brecht tambm conheceu pessoalmente a guerra, embora no tivesse servido nas trincheiras. Estudante de medicina, foi recrutado como enfer-meiro em 1917. O que viu, fez e entendeu no perodo est resumido na atroz Ba-lada do soldado morto, em que, entre outras imagens chocantes, um mdico d o diagnstico est bom pro servio a um soldado morto, mas ainda inteiro.

    Terminada a guerra, participa ativamente da vida literria, teatral e poltica em Munique e Augsburg, a ponto de ter sido eleito membro do Conselho (Soviet) de Trabalhadores e Soldados de sua cidade durante a Revoluo. Na condio de delegado do Conselho de Augsburg, participou da Repblica Sovitica de Muni-que, liquidada em maio de 1919 pelos freikorps.

    Suas duas primeiras peas teatrais, Baal (1918) e Tambores na noite (1920), esto nitidamente vinculadas s experincias expressionistas. Mas o assunto da comdia grotesca que Tambores na noite o mesmo da pea de Ernst Toller a revoluo, nesse caso vista do ngulo dos srdidos interesses de uma famlia pequeno -burguesa . Baal experimenta, maneira do primeiro expressionismo, a es trutura em estaes e, em relao a ela, Tambores na noite constitui um ntido recuo formal, com a estrutura em trs atos e o encadeamento dramtico dos acon-tecimentos que envolvem os personagens grotescos. Mas como as marchas e con-tramarchas da guerra e da revoluo so o pano de fundo, esta ltima acaba inva-dindo a cena, um pouco maneira do ocorrido em Os teceles de Hauptmann.

    As experincias seguintes mostram o dramaturgo s voltas com o programa comunista e, como as peas de Toller, tambm dependem da incorporao da his-tria da Repblica de Weimar para serem analisadas com menos parcialidade. Estamos evidentemente nos referindo s peas didticas que s muito recente-mente (anos 80), a partir dos trabalhos de Reiner Steinweg, comeam a ser mais propriamente decifradas.

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    A ltima delas A exceo e a regra, que, por motivos enraizados na histria dos ltimos dias da Repblica de Weimar (entre eles o massacre dos trabalhadores promovido pelo governo socialista no primeiro de maio de 1929), no chegou a ser encenada na Alemanha nem mesmo pelos grupos comunistas.

    Sem querer forar demais, o teorema central da pea pode ser formulado a partir da sentena de absolvio do ru: O acusado, portanto, agiu em legtima defesa, tanto no caso de ter sido realmente ameaado quanto no caso de apenas sentir-se ameaado. O acusado um comerciante que assassinou seu empregado durante a travessia de um deserto. A vtima se aproximara do patro com um cantil para dar--lhe de beber. Seu temor era que o patro morresse de sede, caso em que com certe-za seria condenado por assassinato. Confundindo o cantil com uma pedra e certo de que o trabalhador tinha todos os motivos para atentar contra a sua vida, o comer-ciante atira queima-roupa. Examinada a situao, legtimo concluir que para o trabalhador no havia sada estava condenado de antemo. Da mesma forma, o patro estava absolvido de antemo e sobre esse beco sem sada que o dramaturgo dialtico espera que pensemos. Trata-se de examinar, ou pelo menos atinar com a ideia de que o Poder Judicirio expresso em ltima instncia do medo que a clas-se dominante tem dos dominados. Esse medo se exacerba quando fica evidente a violncia necessria ao exerccio da explorao, da qual tambm depende a realiza-o de grandiosos projetos econmicos de ponta. Angustiado pelo enfrentamento com os concorrentes e se esforando para venc-los (ou de preferncia elimin-los), e aterrorizado pela simples ideia de que o trabalhador possa reagir a seus desmandos com violncia proporcional segundo a lei de Talio, no passa pela cabea do comer-ciante que o trabalhador oprimido, sabendo-se sem nenhum direito, descarta a priori qualquer tipo de reao violenta. Digamos que a situao chegou ao ponto no qual no d mais para a classe dominante confiar no poder da ideologia. Cometendo o desatino de destruir quem lhe asseguraria a vitria sobre seus concorrentes, ainda resta a esse assassino o consolo de verificar que a Justia de Classe est a postos para ao menos evitar que lhe chegue a cobrana do preo a pagar por seu crime. Por certo no se trata de atribuir a Brecht nenhum poder premonitrio. Mas no pre-ciso ser especialista na histria do nazismo para ver que foi mais ou menos isso que aconteceu com a ascenso de Hitler, cujas providncias assassinas de amplo alcance foram todas sacramentadas por uma serena estrutura judicial, como ficou ampla-mente demonstrado depois da guerra pelo Tribunal de Nuremberg.

    Posta em perspectiva da histria do teatro que aqui nos interessa, A exceo e a regra d continuidade discusso sobre a violncia iniciada por Hauptmann e ampliada por Toller. O passo adiante de Brecht consiste em mostrar as prerrogati-vas legais da violncia exercida pela classe dominante.19

    19 Suzana Mello defendeu dissertao de mestrado sobre essa pea de Brecht, na qual mostra at mesmo o dilogo crtico que o dramaturgo desenvolve com as teorias de Carl Schmitt. de extremo interesse sua anlise indireta do papel socialdemocrata na configurao dos paradoxos polticos que Brecht examina (cf. Suzana Campos Albuquerque Mello, A exceo e a regra, de Bertolt Brecht ou a exceo como regra: uma leitura. 2009. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humana, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009).

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    Todos tm conhecimento da sanha genocida de Hitler. O que ficou restrito ao campo da esquerda foram as suas investidas contra os partidos dos trabalhadores e todas as suas organizaes. Nas palavras de Eve Rosenhaft:

    bares, diretrios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de, assistncia social e teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem, da decncia pblica e da economia.20

    Como tambm se sabe, Brecht no pagou para ver: em 28 de fevereiro de 1933, dia seguinte ao incndio do Reichstag, fugiu da Alemanha com a famlia. Hitler assumiu o poder nesse mesmo dia.

    No exlio, Brecht escreve (ou conclui) suas obras primas, que tambm so as obras primas do teatro pico. Dessas cabe destacar A Santa Joana dos Matadouros que, embora escrita entre 1929 e 1930 e tendo partes apresentadas em rdio em 1932, integra esse conjunto e tem impressionante atualidade. Sobre esse ponto, basta referir a permanncia em cartaz da produo brasileira da Companhia do Lato por cerca de um ano.

    Conforme um crtico bem informado, Brecht ps o capitalismo no centro des-sa pea. Avanando um pouco, diramos que ele examinou a crise de superprodu-o (que em 2008 voltou ordem do dia) e seus efeitos: paralisia da produo, transformao de populaes inteiras de trabalhadores em item suprfluo (exclu-dos, como se diz atualmente) e a necessidade de pensar na prpria sobrevivncia da espcie humana, ameaada pelos exploradores da mais-valia.

    A partir da produo paralisada, somos expostos a episdios que se passam na esfera da circulao a das mercadorias encalhadas que so tanto a fora de traba-lho como a carne enlatada ou rebanhos inteiros. Temos ao mesmo tempo a crise de abastecimento, que em linguagem no especializada pode ser simplesmente chamada de produo da fome em escala industrial. Tudo isso se passa em Chica-go, que desde o sculo passado concentra na bolsa de mercadorias o essencial dos negcios mundiais no ramo da agricultura. l que se decidem, em curto, mdio e longo prazos, o destino dos produtores agrcolas de todo o mundo e a fome ou o abastecimento de populaes inteiras.

    Nesse quadro, em que o capital (ou sujeito automtico, segundo alguns con-temporneos de Marx) parece assumir vida prpria, todos os envolvidos pela crise se comportam como baratas tontas. Ningum entende o que se passa, aproveitado-res ou vtimas; nem mesmo o partido (comunista) que deveria ter a capacidade de formular alguma estratgia de sada para os trabalhadores. Como a luta que se abre entre exploradores e explorados vencida pelos primeiros (que apelam para a vio-lncia mxima), e como, no mesmo processo, esses encontram a sada para a sua crise (com direito a interveno do Estado), abre-se uma situao na qual dever ser

    20 Eve Rosenhaft, Brechts Germany: 1898-1933, in Peter Thomson e Glendyr Sacks, The Cambridge Companion to Brecht, Cambridge University Press, 1994, p. 20.

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    ampliado o papel da organizao religiosa, uma vez que a sada encontrada pelo capital envolve uma revoluo tecnolgica que dever produzir ainda maior desem-prego, mais fome e mais misria. Por isso, Joana, que morre durante os enfrenta-mentos da guerra civil, canonizada pelos capitalistas e seus aliados na imprensa.

    No se tem notcia de outra obra teatral no sculo XX com o mesmo grau de ambio artstica e intelectual. Nessa pea, Brecht mobiliza todos os recursos da forma pica, inteiramente a servio do contedo. Por isso, A Santa Joana dos Ma-tadouros pode ser pensada como uma sntese do teatro pico moderno.

    O teatro pico pode agora ser definido como a forma teatral encontrada, num processo de aproximadamente quarenta anos, por dramaturgos e encenadores de alguma forma ligados s lutas dos trabalhadores, para expor o mundo segundo a experincia dos trabalhadores.

    Com Hauptmann vimos a forma do drama burgus operando como um obst-culo real para a exposio da luta ocorrida na Silsia. Ibsen questionou objetiva-mente a universalidade do conceito burgus de indivduo, mostrando que ele ex-clui pelo menos a metade feminina da humanidade. Tchekhov mostrou que a burguesia e sua forma teatral no tinham futuro. Strindberg descobriu com o dra-ma de estaes uma forma de romper com a objetividade do drama, abrindo o caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele, a possibilidade de ul-trapassar as limitaes da narrativa dramtica, que exige entre outras determina-es o encadeamento causal dos acontecimentos. As duas geraes do expressio-nismo consolidaram a forma pica e a segunda mostrou o seu interesse para os trabalhadores na exposio de seus prprios assuntos. Brecht constitui a sntese desse processo e por isso o conceito de teatro pico vinculou-se, com justia, a seu nome, porque sua obra teatral foi acompanhada de uma permanente militncia crtica e terica, por meio da qual o conceito se consolidou.

    Para quem se dedica ao assunto tanto tempo depois, entretanto, bom lembrar da observao do mesmo Brecht num ensaio muito a propsito intitulado O teatro como meio de produo: o teatro pico pressupe, alm de um certo nvel tcnico, um poderoso movimento social, interessado na livre discusso de seus problemas vitais e capaz de defender esse interesse contra todas as tendncias adversrias.21

    Esse alerta para introduzir o problema central do nosso tempo: depois de todas as derrotas sofridas pela classe trabalhadora ao longo do sculo XX, no se pode esperar que o conhecimento dessa histria esteja disponvel e muito menos organizado em livros. Ao contrrio, em vista dos direitos do vencedor, as histrias do teatro no sculo XX so escritas com apoio em outr