CostaLima1997Pai&Trickster

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DO AUTOR Porque literatura, Petrópolis, Vozes, 1966. Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral), Rio, Civilização Brasileira, 1968; 2- ed. revista: Rio, Topbooks, 1995. Estruturalismo e teoria da literatura, Petrópolis, Vozes, 1973. A metamorfose do silêncio, Rio, Eldorado, 1974. A perversão do trapezista (O romance em Cornélio Penna), Rio, Imago, 1976. Mimesis e modernidade (Formas das sombras), Rio, Graal, 1980. Dispersa demanda, Rio, Francisco Alves, 1981. O controle do imaginário (Razão e imaginação nos tempos modernos), São Paulo, Brasiliense, 1984; 2- ed. revista: Rio, Forense, 1989. Sociedade e discurso ficcional, Rio, Guanabara, 1986. O fingidor e o censor, Rio, Forense, 1988. A aguarrás do tempo (Estudos sobre a narrativa), Rio, Rocco, 1989. Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II), Rio, Rocco, 1991. Limites da voz, 2 vols., Rio, Rocco, 1993. Vida e mimesis, Rio, 34 Letras, 1993. TRADUÇÕES Control ofthe hnaginary (Reason and Imagination in Modern Times), Minnesota, University of Minnesota Press, 1988. Die Kontrolle des Imagmüren (Vernunft und Imagination in der Modeme), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1990. The Dark Side o f Reason. Fictionality and power, Califórnia, Stanford University Press, 1992. TheLimits ofVoice. Montaigne, Schlegel, Kafka, Califórnia, Stanford University Press, 1996. Luiz Costa Lima Terra Ignota A construção de Os Sertões CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro

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  • DO AUTOR

    Porque literatura, Petrpolis, Vozes, 1966.Lira e antilira (Mrio, Drummond, Cabral), Rio, Civilizao

    Brasileira, 1968; 2- ed. revista: Rio, Topbooks, 1995.Estruturalismo e teoria da literatura, Petrpolis, Vozes, 1973.A metamorfose do silncio, Rio, Eldorado, 1974.A perverso do trapezista (O romance em Cornlio Penna), Rio,

    Imago, 1976.Mimesis e modernidade (Formas das sombras), Rio, Graal, 1980.Dispersa demanda, Rio, Francisco Alves, 1981.O controle do imaginrio (Razo e imaginao nos tempos

    modernos), So Paulo, Brasiliense, 1984; 2- ed. revista: Rio, Forense, 1989.

    Sociedade e discurso ficcional, Rio, Guanabara, 1986.O fingidor e o censor, Rio, Forense, 1988.A aguarrs do tempo (Estudos sobre a narrativa), Rio, Rocco, 1989.Pensando nos trpicos (Dispersa demanda II), Rio, Rocco, 1991.Limites da voz, 2 vols., Rio, Rocco, 1993.Vida e mimesis, Rio, 34 Letras, 1993.

    TRADUES

    Control ofthe hnaginary (Reason and Imagination in Modern Times), Minnesota, University of Minnesota Press, 1988.

    Die Kontrolle des Imagmren (Vernunft und Imagination in der Modeme), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1990.

    The Dark Side of Reason. Fictionality and power, Califrnia,Stanford University Press, 1992.

    TheLimits ofVoice. Montaigne, Schlegel, Kafka, Califrnia, Stanford University Press, 1996.

    Luiz Costa Lima

    Terra IgnotaA construo de Os Sertes

    C IV ILIZ A O B R A S IL E IR A

    Rio de Janeiro

  • COPYRIGHT 1997 Lu iz Costa Lim a

    CAPA

    Evelyti Grumach

    PROJETO GRFICO

    Evelyn Grumach Joo de Souza Leite

    PREPARAO DE ORIGINAIS

    Milton Alves

    EDITORAO ELETRNICA

    Imagem Virtual Editorao Ltda.

    C IP-B R A SIL C A T A LO G A O -N A -FO N T E SIN D IC A T O N A C IO N A L D O S E D IT O R E S D E L IV R O S, RJ.

    Lim a, Luiz C osta (1937- )

    L 6 9 8 t Terra ignota : a construo d e O s Sertes / Luiz C ostaLim a. Rio de Ja n e iro : C ivilizao Brasileira, 1997.

    304p .

    Inclui bibliografia e apndice

    ISB N : 85-200-0457-1

    1. C unha, Euclides da, 1866-1909 . O s sertes. 2 . Literatura e histria. 3. C aractersticas nacionais brasileiras. I. Ttulo. II. Ttulo: A construo de O s Sertes.

    C D D 8 6 9 .9 0 9

    9 7 -1 5 7 2 C D U 8 6 9 .0 (8 1)-09

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, arm azenam ento ou

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    Im presso no Brasil

    1997

    Difficulty is our plougk.W B. YEATS

  • apndice ii O Pai e o Trickster(Indivduo e cu ltura n os cam p os m etropolitan o e m arginal)

    1. Parta-se de uma caracterizao banal. Entendida como termo geral e abstrato, abrangente dos processos de transformao socialmente operados, que afetam tanto, materialmente, o meio externo, o m undo, como, simbolicamente, o meio interno, a psique, a cultura tem, por certo, uma extenso universal. E da que parte nossa questo: tal exten- sionalidade global significa que um conceito seu, fundado no trao transformao dos meios externo e interno ao homem, suficiente? No seria o caso de indagar-se se ele no faria tabula rasa ento de diferenas, temporalmente engendradas, de continentes, Estados, naes e mesmo de unidades menores?

    Seria justo o reparo: descobrimos a plvora. Qualquer pessoa razoavelmente informada costuma explicar a disparidade de produo cultural pela diferena de oportunidades que cercam os indivduos. Contudo, a explicao causalista a que ento recorre, no limite determinista, termina por criar outros problemas. Os imensos espaos fora dos centros desenvolvidos estariam fadados a primeiro progredir m aterialmente para que s ento fosse legtimo investir na cultura? Ou a esperar, a exem plo do que se deu no incio do sculo com a arte africana ou, em dcadas mais recentes, com o romance hispano-ame-

  • ricano, que artistas e ensastas de ponta reconhecessem, em seus padres expressivos, motivos revigoradores de sua prpria tradio? Essa prpria dinmica inovadora de artistas pertencentes a reas m arginais j estaria suficientemente explicada por seu prim itivism o , que abriria seus criadores a um tipo de explorao que teria estado interdito aos criadores do primeiro mundo por efeito mesmo do refinamento de sua educao? Ou ainda: estariam as reas marginais condenadas a se dedicar a produes culturais tradicionais, o quanto possvel no contaminadas pelos padres dos brancos ? As questes poderiam ser multiplicadas. Teriam elas com o denom inador comum a desconfiana ante as explicaes causalistas habituais, que, ao se associarem definio antropolgica de cultura, parecem afirmar que nela no h problema, bastando-lhe apenas ligar-se a uma causalidade m otivadora. M as seria isso verdade?

    Universalista, a concepo antropolgica de cultura tanto se opusera e esse no um de seus menores feitos explicao por uma cadeia evolutiva que separaria as raas e daria raa branca o lugar de privilgio, que, por excelncia no X IX , justificava os imprios poltico- econmicos de que dispunha, como, do ponto de vista de construo do argumento, se contentava com seu carter descritivo. Carter descritivo, acrescente-se, que facilitava sua articulao com explicaes causalistas.

    A questo que iremos aqui esboar se prende a esses dois pontos: o universalismo da cultura, a descrio como maneira de formul-lo. N o se cogitar de negar o primeiro ou de afirmar a dispensabilidade do segundo, mas sim de, articulando-os, verificar o que eles tornariam impossvel de ser visto. Essa forosa cegueira obscureceria o papel do cam po ou lugar de sua produo. Empregamos o termo cam po no sentido precisado por Wlad Godzich. Embora o prprio termo exigisse maior refinamento em que seria desenvolvido que ele deriva de um dilogo com a questo do sujeito na terceira crtica kantiana , contentemo-nos em assinalar (a) que ele no se confunde com a totalidade dos fenmenos construveis sob o objeto da abordagem (Godzich, W.: 1994, 277), caso em que, pensamos, seria apenas um

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    cmodo instrumento de laboratrio. Ousemos mais: o conceito de campo no se confunde com a totalidade dos fenmenos construveis porque ele prprio no pura construo. Com o o entendemos, cam po supe uma certa imanncia, i.e., algo que no se confunde nem com o pensamento nem com uma discriminao material um campo no um territrio geogrfico. N em pura construo, nem pura m aterialidade, o campo se localiza por seus efeitos: uma relativa coeso simblica que agrupa coletividades (porque no se identifica necessariamente com uma comunidade, cam po no sinnimo de nao); (b) supe o lugar em que o sujeito se experimenta, em que se opera a constituio do sujeito , no medida que ele internaliza certa forma ou privilegia certo contedo, mas, muito ao contrrio, a partir da ausncia de contedos ou formas transcendentais (cf. G odzich, W.: op. cit., 283). Poder-se-ia assim com parar o cam po a uma mola que no remete a um corpo (mquina) preciso; (c) dos apontamentos anteriores, parte sua caracterizao operacional:

    em um cam po concretamente delimitado que se elaboram tanto a comu

    nidade como a sociedade; a primeira pelo estabelecimento de uma relao

    entre todos que so constitudos sujeitos em e pelo cam po, e a segunda por

    meio das relaes que se estabelecem com respeito ao carter de dado (gi-

    venness) que deu origem ao cam po (idem , ibident).

    Por conseguinte, o carter de dado do campo faz com que ele seja anterior conscincia que o sujeito dele tenha e que no se esgote nas relaes que objetiva. Da que no se o descubra ao apontar-se a tradio vigente em certo lugar. Implcito na tradio que se engendra em certo lugar, o campo ainda condio para a inveno que se processa. Um mnimo exemplo: h muitos anos, Paulo Rnai identificou, nas inovaes da linguagem de Guimares Rosa, a presena da estrutura do hngaro, idioma cuja estrutura Guimares Rosa conhece intimamente [ ...] (Rnai, R: 1962, XLIX-1). Ora, as prticas do idioma estrangeiro no Passariam se no fossem adaptveis ao falar de vasta extenso do interior mineiro, baiano e sertanejo.

  • Parciais, esses esclarecimentos so suficientes para que se entenda que no se trata de, sob uma nova designao, reintroduzir um mecanismo causalista ou, para usar os termos de Godzich, de ceder tentao de hegelianismo dentro do kantismo (idem, 280).

    Cientes do estado de esboo do que se apresenta, esforcemo-nos em trazer o leitor para o que se debate. Para tanto, comece-se por uma breve reconsiderao do estado terico da questo da cultura.

    1.1. Em 1917, um pouco antes da primeira grande onda de difuso do conceito de cultura, Alfred Louis Kroeber, o mais destacado aluno de Franz Boas, publicava, na prestigiosa American anthropologist, o artigo The Super-organic . Kroeber opta pelo termo civilizao, que, sinnimo de cultura na definio pioneira de Tylor Cultura ou civilizao [...] aquele complexo que inclui conhecimento, crena, arte, direito, moral, costume e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (apud Kroeber, A. L. e C. Kluckhohn: 1952, 81) , era de maior aceitao pelo leitor de lngua inglesa do que o germanismo de seu par (culture' < Kultur). O ensaio pertence ao momento herico de implantao do conceito (cf. Stocking, Jr., G. W : 1968, espec. caps 9 e 11): com o o prprio Kroeber assinalar em obra posterior (Krober, A. L. e Kluckhohn: 1952, 292), da definio de Tylor, em 1871, at 1920, quando Wissler retoma o critrio enumerativo de Tylor, apenas sete definies so propostas. Sua excepcionalidade resultava da luta acirrada que ela mantinha contra os conceitos de raa e evoluo, ainda largamente dominantes.

    Teoricamente simples, a virulncia do conceito por Kroeber resultava da taxativa oposio manipulao do conceito de hereditariedade, assim como do contexto orgnico, considerados empecilhos para o desenvolvimento da disciplina:

    A tentativa atual de tratar o social como orgnico, de compreender a civi

    lizao como hereditariedade, essencialmente to estreita como a suposta

    inclinao medieval de retirar o homem do reino da natureza e do mbito

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    do cientista porque se acreditava que ele possusse uma alma imortal (Kroe

    ber, A. L.: 1917, 180).

    Associando-se luta empreendida por Boas, no mbito da antropologia norte-americana, para Kroeber nenhum com prom isso seria possvel com a tradio tnico-evolucionista que necessariamente se movia dentro de parmetros biolgicos ou orgnicos: O aparecim ento do social no assim um elo de qualquer cadeia, no um passo em uma trilha mas sim um salto para outro plano {idem, 209). A cultura supe esse outro horizonte.

    O carter polmico do artigo obscurecia contudo os problemas que continha. Talvez mesmo porque a antropologia no estava consciente dos problemas de teoria e lgica da cincia (Kroeber, A. L. e Kluckhohn, C.: 1952, 69-70), na busca de mostrar a utilidade do conceito o autor exibia as dificuldades que iro melhor marc-lo, depois de sua plena adoo. Dificuldades oriundas de sua impreciso. N o sublinhada, esta impreciso facilitava que ele se impusesse a conceitos rivais. O embarao, de que o autor esteve longe de se dar conta, transparece em sua crtica a L a psychologie des foules, de Le Bon. A tentativa do historiador francs de explicar a civilizao com base na raa o leva a estabelecer a equivalncia entre indivduo e raa, tomada como homloga existente entre clula e corpo (Kroeber, A. L.: 1917, 184 e 185). A estaria a vantagem do novo conceito:

    Se, ao invs de alma da raa, o distinto francs houvesse dito esprito da

    civilizao ou tendncia ou carter da cultura, seus pronunciamentos seriam

    menos empolgantes porque na aparncia mais vagos mas no teria sido obri

    gado a fazer todo seu pensamento depender de uma idia supranatural, an

    tagnica ao corpo de cincia a que procurava prender sua obra (idem, 185).

    Aparentemente, Kroeber estava certo; a substituio era possvel e asseguradas todas as vantagens. M as por que s na aparncia? Porque no considerava que a validez da substituio dependia da presena de um terceiro termo, a nao, em cujas fronteiras atuaria quer a raa, quer

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    a cultura. S dentro de parmetros nacionais relativa ou completamente estveis, era possvel substituir raa , cuja cientificidade era ento negada, por cultura (ou civilizao). Pois, embora raa e cultura ocupem planos diversos, ambas rebatem sobre um mesmo espao. Contudo, embora se possa dizer, usando argumento posterior do prprio Kroeber, que seu artigo padecia da falta de um prvio ou concomitante investimento terico, a razo mais imediata para a falha dependia do curso descritivo em que era moldado o argumento. Ora, como mostraria exaustivamente seu livro com Kluckhohn, o descritivismo era, desde Tylor, recurso absoluto na definio da cultura. Com efeito, das 164 definies coletadas entre 1871 e 1950, nenhuma deixa de recorrer ao mesmo procedimento.

    A essa estabilidade de seu meio de formulao corresponde a pequena variedade dos elementos enfatizados. Assim, se a primeira caracterizao da cultura como coleo de costumes raros cede progressivamente lugar ao realce da adaptao, da modelagem de normas ou valores, da aquisio por aprendizagem, do desenvolvimento da capacidade de simbolizao, as mudanas no abalam a maior constncia do que a variao nas noes centrais ligadas ao conceito de cultura (Kroeber, A. L. e Kluckhohn, C.: op. cit., 302). A posio dos prprios autores [...] Pensamos que a cultura um produto: que histrico; que inclui idias, padres e valores; que seletiva: que aprendida; que baseada em smbolos; e que uma abstrao da conduta e dos produtos da conduta (idem , 308) apenas condensa as vrias tematizaes e de todas mantm o papel concedido descrio.

    Cabe ento perguntar: qual o problema que vemos no descritivismo? ele de dupla ordem. A primeira j foi assinalada a propsito do comentrio de Kroeber sobre Le Bon. O descritivismo tende, por sua neutralizao do questionamento terico, a no ver a presena, no objeto que focaliza, de categorias cujo prprio xito dificulta a percepo delas. Era o que, no exemplo analisado, sucedia com a categoria nao. A segunda razo est a um passo da primeira. Em After the fact, livro que uma espcie de acerto de contas com o credo em que se educara, Clifford Geertz assinala a distncia que medeia entre as ltimas quatro

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    dcadas. Outrora, no h muito tempo, quando o Ocidente estava muito mais seguro de si do que era e no era, o conceito de cultura tinha uma meta firme e um limite definido (Geertz, C .: 1995, 42). M eta e limite que supunham tom-la como uma fora causai macia, modela- dora da crena e da conduta e capaz de caber em um padro passvel de se fazer abstrato (abstractable pattern) (idem, 44). Essa concepo hoje parece contestvel porque tal causalidade macia, tal integrao explicativa, agora parece mais dependente da descrio do que daquilo que a descrio descreve (ibidem , 62). Noutras palavras, o descritivismo tornava o conceito de cultura demasiado harmnico e epigonica- mente romntico. Por isso, em vez do equilbrio dependente da descrio, os estudos de cultura passam a ressaltar seus vazios, seus pontos de tenso e indeterminao. Em suma, a segunda objeo ao descritivismo assim se formula: como Narciso, o descritivismo se encanta com sua prpria imagem e empresta ao objeto a plena determinabilidade que pertence sua prpria construo.

    N o sendo a auto-imagem de um Ocidente menos seguro de si mesmo antdoto bastante contra a permanncia do descritivismo, caberia perguntar como poderia ser ela evitada. Uma resposta razoavelmente bvia consiste em enfatizar a importncia da sensibilidade terica e epis- temolgica, na construo do argumento analtico. Que se poderia acrescentar a respeito?

    E conhecida a distino anteriormente estabelecida por Geertz:

    [...] A tarefa essencial da construo de teoria aqui (i.e., no m bito da

    interpretao cultural) no codificar regularidades abstratas m as sim

    tornar possvel uma descrio densa (thick description)-, no generalizar

    atravs de casos mas dentro deles. Generalizar dentro de casos usual

    mente cham ado, ao menos na medicina e na psicologia profunda, infe

    rncia clnica. Em vez de comear com um conjunto de observaes, de

    tentar subsum i-las a uma lei geral (a governing law), essas inferncias

    comeam com um conjunto de significantes (presumveis) e com a tenta

    tiva de disp-los em uma com posio (frame) inteligvel. As m edidas so

    adaptadas a predies tericas, mas os sintom as (mesmo que sejam m e

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    didos) so analisados por suas peculiaridades tericas, i.e,, so diagnos

    ticados. ( ...) (Geertz, C .: 1973, 26).

    Se, nas cincias duras , a teorizao tem por meta codificar regu- laridades abstratas , condio para a previsibilidade, na interpretao da cultura a teorizao no pode ter esse carter porque seus objetos, quer interna quer relacionalmente, no tm o mesmo grau de homogeneidade. Da a proximidade que Geertz assinala com o diagnstico.

    A retificao proposta por Geertz em 1973 era autonomamente reforada um ano depois, por antrpologo doutra formao. Embora reconhea o dbito abordagem levi-straussiana do mito, Dan Sperber no se impede de criticar sua formulao terica. Ela prejudicaria seu avano analtico por consider-lo efetuado sob a gide da semiologia. Atualizando-se sobre os cdigos form ados pelas impresses dos cinco sentidos, a linguagem do mito se expandiria sob o modelo da langue, cuja estrutura reduplicaria. Sperber contesta o pressuposto:

    [ ...] Os dados lingsticos que servem de base para a construo de uma

    gram tica so definidos por sua pertena a uma lngua dada, com exclu

    so de todas as outras. Em troca, os dados sm blicos no so definidos

    por sua pertena a um conjunto exclusivo doutros conjuntos (Sperber,

    D .: 1974, 102).

    Por no levar em conta a diferena, justificando ao contrrio a estrutura do mito como captura de um m odo de operao do esprito humano, concretizado seja sob a forma como se d no pensamento indgena, seja sob aquela assumida no prprio analista (cf. Lvi- Strauss, C .: 1964, 21), Lvi-Strauss teria estabelecido uma heurstica, em lugar da desejvel teorizao: N a medida em que o objeto da teoria a fazer precisamente uma outra heurstica, a inconsciente do indgena, o antroplogo levado a se perguntar se uma no constitui o m odelo imperfeito da outra (Sperber, D .: 1974, 71).

    Fora da disciplina antropolgica mas refletindo a explcita influncia de Lvi-Strauss, Cario Ginzburg trar mais lenha fogueira. Com

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    parando o mtodo dedutivo-matemtico vitorioso na tradio ocidental com o mais modesto e pouco reconhecido mtodo indicirio restos e sinais, que, aparentemente ociosos, levam pista desvendadora , Ginzburg opta pelo segundo, como o modelo prprio escrita da histria. Os restos e sinais, como um pouco de cinza de cachimbo que o detetive perspicaz relaciona com certa marca de bota, funcionam como sintomas a serem diagnosticados, meios para uma descrio densa , indicam a peculiaridade terica do caso e no a possibilidade de generalizar-se acerca de atos semelhantes.

    E claro que essas advertncias e retificaes podero alcanar um enorme avano pela reconsiderao da teoria das prprias cincias fsicas, empreendida por um Ilya Prigogine (cf. seu debate com Ren Thom in Pomian, K: 1990, 102-112 e 247-265). M as, no nos aventurando onde som os completamente leigos, o rendimento a retirar do retrospecto de linhas atrs ser menor. Dele se extrai que, no mbito da cultura, a procura de generalizaes homogeneizantes prejudica a identificao de seu objeto. A soluo ingnua e incabvel consistiria em restabelecer a desconfiana ou mesmo ignorncia, clssica nas cincias sociais, na historiografia e nos estudos de literatura, do estatuto terico das anlises praticadas. Com o notam os, essa era a paralela que acompanhava o descritivismo no menos clssico.Enfatiza-se ao invs a necessidade de uma prtica terica capaz de estimular as thick des- criptions" e de ser por elas estimulada. At que ponto, cabe ento perguntar, essa teorizao particularizadora reage contra as descries hoje freqentes da cultura? N o pretendemos que algo assegure seu xito. N o fundo, o universo da cultura to amplo que se confunde com o universo humano. A corrupo, a violncia, a fetichizao, as formas de crena, de seduo de exaltao ou de humilhao no so menos afetadas por padres culturais do que as m anifestaes do egosmo, que o niilismo ou as formas de explorao doutros homens. Sendo assim to genrica, toda caracterizao da cultura descritiva. Mas render-se descrio e, portanto, implicitamente generalizao deixa escapar algo sempre particularizado: o papel do aqui e agora, do lugar onde se produz. Com o j se disse, essa relevncia no se h

  • de confundir com um causalismo, muito menos com um determinismo, um e outro traduzveis na frmula se x ento y \ Ao contrrio de uma proposio desse tipo, x uma fonte de motivaes variveis, no comparvel a uma gramtica, que, a partir de um nmero restrito de regras, produz um infinito de enunciados; uma informidade que produz formas que, no sendo aleatrias, no so tam pouco previsveis. Trata-se em suma de esboar uma teorizao que, explicando a superposio extensiva entre os universos humano e da cultura, d condies de entender-se a diferena intensiva das produes, i.e., que, generalizante, no se contente com a generalizao; que, inde- terminista, no se contente com o vago. Recorreremos para isso a algum as idias de Arnold Gehlen.

    2. Para o pensador alemo, em vez de o homem ser tom ado como o animal superior a todos, fadado a domin-los ou a extingui-los, sem excluir a si prprio , ele, mesmo do ponto de vista de uma estrita tica biolgica, a criatura problem tica; aquele que Prometeu encontrara nu, sem calados, sem vestes, sem armas, ao contrrio dos outros animais(,) corretamente equipados de tudo que convm (Plato: Protgoras, 321c). Se, em todas as pocas de sua histria, o homem se mostra necessitado de uma interpretao que ponha em jogo sua razo de ser e proponha um sentido para sua existncia, isso se lhe impe no por luxo inexplicvel mas por efeito do prprio lugar que ocupa na escala biolgica: o homem o animal ainda no determinado (Nietzsche), o no firmemente estabelecido , o animal sem especializao biolgica, aquele que sofre da reduo dos instintos, um prematuro (Frhgeburt).

    a partir destas carncias, no apesar delas, que o homem conquista sua posio:

    Mesmo esta reduo do instinto e a ausncia de meios de descarga (Ausl- serwerten) firmemente coordenados e especficos espcie, m o str a m - se agora, vistos por outro ngulo, como uma presso crnica. [...] H uma

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    correlao direta entre as condies existenciais constitutivas do homem esua carncia crnica (Gehlen, A.: 1950, 357).

    Pela falta, pois, de um aparato instintivo forte e dos meios de descarga adequados, ao contrrio do que sucede com os outros animais, o homem no dispe de um territrio delimitado, nem da possibilidade de saciar de maneira constante suas necessidades. Se sempre se mostra desejoso de descobrir razes para sua existncia, mesmo porque precisa inventar um sentido para si. Da sua marca bsica: o homem um- weltfrei oder weltoffen, livre para o que o cerca ou aberto ao mundo; portanto um ser cultural por natureza (idem, 122).

    Embora, do ponto de vista da caracterizao de Gehlen, este seja um quadro parcial, ele aqui nos basta, pois j nos permite repensar a funo da cultura.

    Podemo-nos perguntar: se no dispe de um territrio demarcado por suas necessidades instintivas, se a amplitude do mundo lhe est aberta, como, a cada instante, no cai o homem nas armadilhas armadas pela prpria natureza ou criadas por seus semelhantes? Com o, ante ambigidades permanentes, no se torna ele a infalvel presa? Da parte nossa hiptese preliminar: antes de ser instrumento de criao, a cultura a ferramenta humana de reduo e, idealmente, de neutralizao das ambigidades. Pode-se supor que para os outros animais, dotados pela espcie de garras adequadas s necessidades instintivas, as situaes no mostram ambigidades. Embora, eventualmente, o gato erre o salto e se estatele no cho e o costume de encontrar abrigo e salvaguarda na estrebaria faa o cavalo procur-la mesmo quando ela se incendeia, cada situao traz consigo uma resposta codificada, em princpio suficiente. O estoque de respostas do animal um estoque de descargas. M as, se os instintos no demarcam reas privilegiadas para sua satisfao, ento as prprias necessidades so apenas parcialmente determinadas pela natureza da espcie. Em conseqncia, como evitar, a cada instante, o surgimento de novas ambigidades? Por mais rudimentar e diminuta que Seja a comunidade a que corresponde, a cultura o conjunto de respostas Padronizadas a cada situao previsvel do cotidiano. O termo respos

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    tas talvez no seja o mais oportuno, porque acentua em demasia a margem pessoal de deciso. Ora, para que, idealmente, se neutralizem as ambigidades, ser preciso que o ato se imponha ao indivduo, que seja para ele uma descarga quase instintiva. Ao cumprimentado, por exemplo, se exige que manifeste certo gesto ou articule certas palavras. Chamar essa imposio de resposta , ainda que se acrescente padronizada, implica admitir que haja uma certa margem de escolhas. M as, fora uma mnima variao, que escolha a haveria salvo a de explicitao da hostilidade?

    prefervel evitar-se a pea frouxa e usar-se o conceito de frame (Goffm an).1 De imediato, a cultura ento descrita como o conjunto de frames pelo qual um agrupamento social se identifica e, simultaneamente, se diferencia, em seu enfrentamento de situaes cotidianas. Tais frames so por certo, dentro da prpria unidade social considerada, extremamente variveis. Quanto mais ampla ela seja, tantos menos de- terminveis so os frames esperveis. Partir-se ao invs do pressuposto de que, se alemo, ento louro e grosseiro, se russo, ento louco por vodca, se brasileiro, hbil em manhas molecagens, no passaria de rematada idiotice. Da entretanto no se chega a negar que h um estilo mnimo que, em certa ocasio, revela de onde somos. Admitido esse mnimo conquanto minimalista, a identificvel se torna mais certeira se soubermos diferenciar os nacionais por traos de regio, classe e posio de classe. O fato que o lugar onde nos aculturamos nos marca tanto

    1 Eduardo Viveiros de Castro observa-me que os conceitos de campo e frame no tm aqui sua conexo bem estabelecida. O reparo justo. Esta nota s muito parcialmente lhe responde. Entendendo-se que os frames supem o emprego, por um lado, e a decodificao, por outro, de um conjunto de traos verbais e/ou no verbais que se mostra fundamental para a organizao da atividade (Goffman, E.: 1974,305), que, mltiplos, povoam o cotidiano de cada comunidade e assim constituem uma espcie de mvel carapaa simblica com que interagimos, so eles os veculos pelos quais um campo se manifesta. Numa analogia arriscada, o campo seria comparvel langue saussuriana, dela se distinguindo por no ser codificvel e, portanto, passvel de uma gramtica Do mesmo modo, os frames se pareceriam a seus mveis fonemas, com a diferena de que no seriam finitos.

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    ou mais fortemente que nosso sotaque, sem que, entretanto, se dissolva a socializao primeira. (Os conhecedores do polons tm sabido reconhec-lo no ingls to fino de Conrad.) Antes de ser privado, o inconsciente pertence s respostas grupais ao campo. Com o os frames, por maior que seja sua automatizao, nunca se convertem em instintos, nada h de problemtico em aceitar-se que esto sujeitos a modificaes, at mesmo a metamorfoses considerveis. O decisivo sim entender que os diversos frames que se aglutinam em uma cultura oferecem a seus membros um modo adequado contra a ameaa da ambigidade.

    Que ambigidade ainda resta quando deixo de responder ao aparentemente andino bom dia ? Talvez a nica defesa contra a afirmao ento explcita de hostilidade seja alegar com veemncia que estava distrado ou que os anos j me tornaram mope. Que ambigidade resta a algum, se no a de se confessar estrangeiro, que, diante da expectativa de uma resposta padronizada, utiliza combinao ligeiramente diversa? Isso entretanto no justificaria que se descurasse a existncia de frames, cuja funo justamente oferecer respostas ambguas. Seria a capital o exame das situaes de seduo. Ser fcil entender-se que os frames que tm a seduo ertica como o elemento-alvo so os de apreenso mais difcil para o estranho ao meio; e estranho no necessariamente no sentido de estrangeiro. Que resposta convincente daro os pais ao pr- adolescente que lhes pergunta como poder estar certo que ela (ou ele) o (ou a) est cantando? E bvio que a dificuldade aumenta se o estranho um estrangeiro. Ao menos para este, mesmo que habituado ao puri- tanismo norte-americano, parecer apenas ridculo o manual de universidade norte-americana, que, pretendendo defender seus alunos contra os riscos da acusao de sexual abuse , prope que o agente anteceda cada iniciativa com a pergunta: posso fazer isso? e, a seguir, posso fazer aquilo? , etc. Imaginando, contudo, que, para um certo

    grupo, nada haja de raro na instruo, devemos concluir que a eficcia do manual est em neutralizar a ambigidade, mesmo em um frame onde Pareceria indispensvel.

    Um frame tanto mais eficiente quanto menos dependente de interpretao pessoal. Se cada frame tanto mais eficaz quanto mais impes

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    soalmente manipulado, isso no significa que cada um forosamente encaminhe para a automatizao. Contento-me em anotar: tendo por meta descomplexificar situaes comuns e previsveis de ambigidade, tanto mais previsveis porque seu agente no dispe de descargas fixas para suas necessidades invariveis, a cultura se atualiza pela internalizao socializada de formas de conduta padronizadas. Mesmo por serem instrumentos da cultura e no manifestaes da natureza, os frames so no s variveis mas flexveis. Propriedade que lhes indispensvel para que o analista possa dar conta da possibilidade de metamorfose de sua funo primeira, a funo de defesa contra a ambigidade. Com efeito, os instrumentos de atualizao da cultura podem assumir a funo inversa de explorao das ambigidades-, em seu limite, mesmo de inveno de resposta ambigidade. O que vale dizer, se, em sua base, a cultura visa permitir a sobrevivncia de seus membros, a cada instante biologicamente ameaados pela morte, em seu curso, na dependncia das condies materiais da sociedade, pode-se metamorfosear, oferecendo tambm a possibilidade de com- plexificao da prpria vida. Ela agora se torna tambm ferramenta de descoberta e inveno. Dito doutro modo: se sempre, e mesmo nos frames mais rudimentares, a cultura um produto da poiesis i.e., no o reconhecimento de um substrato naturalmente dado mas postulao de um sentido de antemo inexistente , essa poiesis visa, em sua dimenso mais generalizada, preservao de seu agente. A insistncia sobre esse ponto tem uma dupla razo: (a) desligar-nos de uma explicao identitria, que termina por tornar ociosa a indagao da cultura, (b) sem, por isso, recair- se no culto individualista do criador. Ou, formulando-o pela afirmativa: trata-se de enfatizar que a cultura, embora por certo esteja articulada razo poltico-econmica, tem sua problemtica constituda por traos no decodificveis por aquela razo.

    Completemos esse esboo pelo destaque de uma das conseqncias da teorizao de Gehlen. Mesmo porque o homem no tem um territrio prprio para suas descargas instintivas, seus impulsos so plsticos e passveis de ser diferidos. Ou seja, com a prpria vida ele aprende a inibi-los e a adiar o momento de sua satisfao. A essa capacidade temos chamado o aspecto constitucionalmente positivo do controle (cf. LCL: 1995, 295).

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    Contudo, acrescenta Gehlen, ela apresenta um outro lado. Tal diferimento no impede que, ao se realizar, estabelea uma relao do sujeito com o mundo. Para Gehlen, essa a condio, do ponto de vista da sociedade, de sua positividade. Ela, entretanto, se acompanha de um grande perigo , de um perigo constitucional (Gehlen, A.: 1950, 315), o de que essas aes que se tornam cada vez mais indiretas assim se convertam em necessidades de aes ainda mais indiretas e refinadas. Os apetites mais refinados, os interesses funcionalizados, ramificados e altamente condicionados, como a ambio de poder, a cobia e as manias, nos mostram quanto os complexos de impulsos podem alcanar independncia (idem, ibidem). Desse risco no esto isentas as mais altas funes intelectuais, ento convertidas em intelectualismo ou esnobismo artstico. A nica maneira de evit-lo consiste na imposio pela sociedade da disciplina como educao e autodisciplina, subordinao e direo que, permitindo aos impulsos continuarem a responder s demandas da vida, os impea de deixarem de remeter ao mundo. Ora, mediante que critrio a sociedade definiria o momento em que os impulsos deixariam de ser louvveis? Se, portanto, chamamos a capacidade de inibio e diferimento dos impulsos de controle positivo, devemos entender que a todo instante ele capaz de assumir outra deriva, i.e., de em nome da sociedade justificar um controle tambm negativo. Em suma, o aspecto por ltimo destacado supe que, pela prpria precariedade biolgica do ser humano, sua sociedade levada prtica do controle da produo cultural; que, dentro desta, distinguem-se um aspecto positivo a aprendizagem da inibio necessria e um aspecto negativo a condenao de prticas ou formas , sob a alegao de que no remetem ao mundo (para maiores detalhes, cf. LCL: 1995: 293-299).

    Em Gehlen, portanto, buscamos uma base para nos oporm os ao imprio do recurso da descrio, na concepo antropolgica da cultura. N o nos referimos sequer concepo humanista, que identifica a cultura com o produto superior de pessoas excepcionais, porque ela no pode ser levada a srio. De todo modo, considere-se, antes do salto para 0 item seguinte, que no se cogita de recuperar nem o descritivismo, em o humanismo, nem tampouco de identificar a cultura com uma

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    inveno imperialista (cf. Sahlins, M .: 1996). N osso propsito repens-la, a partir de uma situao particularizada.

    3. A situao da Amrica Latina aumenta a necessidade desta reflexo. A partir da metade dos anos 60, a conscincia de seu carter de continente perifrico, alheio s decises mundiais, apndice dos blocos de poder, substituiu a euforia desenvolvimentista. Sua marginalidade, ademais agravada, a partir dos anos 80, pela recesso econmica, s parece compatvel com estritas anlises poltico-econmicas. Assim sucede menos pelo estado de atraso endmico das naes do continente do que como efeito de uma caracterstica cultural de sua intelligentsia: desde a independncia de seus pases, os intelectuais latino-americanos tm interpretado suas respectivas sociedades com um instrumental de ordem sociolgica, do qual afastavam como suspeito de diletantismo qualquer questionamento de tipo filosfico. O tratamento filosfico das questes era confundido com o ecletismo e o antiexperimentalismo da poca colonial, sendo ento tomado como trao de letrados tradicionais e incapazes de contribuir para a soluo prtica dos problemas. Ora, qualquer que tenha sido o transtorno ao tradicional introduzido pelos modernismos hispano-americano e brasileiro, nenhum dos dois atacou essa frente. Permanecendo intacta, essa alergia reflexo filosfica se mostra, na conjuntura atual, pela incapacidade de lidar com a interpretao da cultura seno como prolongamento da conjuntura po- ltico-econmica. E isso apesar do boom do romance hispano-americano, que, sobretudo nas dcadas de 70 e 80, assegurou a circulao mundial de uma meia dzia de escritores nossos. Embora parea estranho e intrigante, esse reconhecimento no afetou em profundidade o tipo de reflexo produzida no continente. Assim, por exemplo, tratando da propagao pela Amrica Latina das direes vanguardistas das primeiras dcadas do sculo, escrevia um conhecido ensasta argentino:

    N osotros hemos practicado todas estas tendencias en la misma sucesin que

    en Europa, sitt baber entrado casi a l reino mecnico de los futuristas, sin

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    baber llegado a ningn apogeo industrial, sin baber ingresado plenamente

    en la sociedad de consumo, sin estar invadidos por la produccin en serie ni

    coartados por un exceso de funcionalism o; hemos tenido angustia existen

    cial sin Varsovia ni Hirosbima (Yurkievich, S.: 1974, 179).

    O que vale dizer: imitaram-se, no sentido forte do termo, tendncias e direes que nada refletiam da realidade local. Em conseqncia, pro- pagaram-se sentimentos completamente falsos: angustia existencial sin Varsovia ni Hirosbima. Se o ensasta estivesse interessado em dar um toque erudito sua concluso-denncia, poderia haver recorrido a exemplos como o de Joaquim Nabuco, no Brasil, de que se diz haver chorado ao saber da ocupao de Paris pelos alemes, em 1871. A aplicao da categoria do reflexo, que, entre ns, se costuma associar, seja para execr-lo como para exalt-lo, com o marxismo, na verdade se entronizou desde o positivismo e o evolucionismo. O marxismo latino-americano tem sido apenas uma variante daquelas correntes j cientificistas.2 verdade que, na dcada de 90, tal tipo de economicismo se torna menos freqente nos ensastas e crticos de esquerda. Mas no menos verdade que deles se afasta para que, em estilo mais burocrtico do que empenhado, reaparea sob os nomes dos encarregados de instituies culturais. Definir seus relatrios como economicismo identitrio seria quase ridicularizar a terminologia de Castoriadis. Seria, ademais, no levar em conta que seus redatores no dispem de alternativas e que, a menos que se dedicassem

    2 Constat-lo entretanto no nos deve impedir de reconhecer que o elo do marxismo com o cientificismo oitocentista no exclusividade de um continente sem tradio de reflexo filosfica. Veja-se a respeito o que, a propsito de personagem marcante do relato In extremis", anotava o escritor croata Miroslav KrleZa (1893-1981) assinale-se que Krle2a era amigo e colaborador de Ti to, sob cujo governo foi vice-presidente da Academia Iugoslava das Cincias e das Artes): Ele considerava o materialismo como uma espcie de movimento protestante luterano, em que era preciso se engajar submetendo-se estritamente disciplina intelectual obrigatria. Era para ele um manual genial de matemtica e pensava que, desde o sculo XIX, era preciso crer nestas frmulas, do mesmo modo que, do sculo IX ao XII, se havia acreditado na Sagrada Escritura. Era uma concepo da vida sistemtica (KrleZa, M.: 1957,200-1).

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    a pensar sobre a especificidade do que escrevem, esto condenados a repetir esse estilo. Em comum, latino-americanos ou no (a respeito do uso de meios estatsticos como aferidor de produo cultural, cf. Readings, B.: 1995, 465-492), esses relatrios descrevem o estado das instituies por tabelas e projees. Nos que se referem s universidades, tornou-se um topos, at h pouco desconhecido, a correlao entre nmero de professores, ademais discriminados em termos de com/sem ps-graduao, e nmero de alunos por classe, entre nmero de alunos e profisses, etc., etc. Como semelhantes grficos captariam o que se ensina ou deixa de ensinar, o (pouco) que se publica ou o (muito) que no circula, o (pouco) que se integra ao acervo das bibliotecas ou o (muito) que nem sequer se sabe que existe? Exceto pela ltima questo, melhores programas computadorizados podem inclu-las. Mas a questo continua a mesma: como atravs da homogeneizao numrica entrar em e no simplesmente medir o universo de um produto de cultura? Outra vez nos deparamos com a inrcia da tradio.

    Se consultarmos um adversrio ilustre da tradio cientificista, encontraremos a obsesso numrica substituda por outro vazio, estilisti- camente mais refinado, porm no menos catastrfico. N o discurso de recepo do prmio Nobel de literatura para o ano de 1990, escrevia o poeta e ensasta premiado:

    Los espanoles encontraron en Mxico no slo una geografia sino una historia.

    Esa historia est viva todavia: no es un pasado sino un presente. E l Mxico

    precolombino, con sus templos y sus dioses, es un montn de ruinas, pero el

    espritu que anim ese mundo no ha muerto (Paz, O.: 1990-1991, 13).

    Se a histria, por continuar viva, incorpora o passado ao presente, pode-se supor que a moraleja implcita passagem consiste em que, para continuar-se a vida, se h de manter o passado. Afirmao que ou seria bvia ou serviria de justificao no muito sub-reptcia para a poltica da continuidade. N o entretanto o endosso ao conservadorismo o que mais incomoda no discurso do consagrado escritor, seno seu contentamento em manter a palavra separada do pensar. (Cantinflas, que nunca

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    aspirou ao prmio de humorismo, seria o parodista insupervel de toda uma tradio que mantm suas galas e prestgio.)

    Seria, pois, essa falta de disposio de pensar, esse satisfazer-se com a palavra eficaz, seja sob a forma de causalism o linear e determinista, seja sob a de conjuro retrico, poltico-economicamente explicvel? Sem dvida que sim. N o momento em que os estados latino- americanos se autonomizavam, cabia sua rala intelligentsia ocupar os lugares e pr em movimento a mquina estatal, com recursos e experincia escassos e muita pressa. N o se duvida tam pouco que haja uma explicao semelhante para a permanncia, mesmo agora, de nossa falta de inquietao filosfica. N o se trata de negar a validade de tal tipo de explicao mas sim de enfatizar sua insuficincia em lidar com objetos da cultura. Que significa a explicao de Yurkievich se tentarmos superp-la obra de autores como Vallejo, Carpentier, M rio e Oswald de Andrade e Octavio Paz, que dialogaram com as vanguardas contemporneas? Por acaso que so obras falsas ou que tm qualidade, embora hajam nascido de sentimentos alienados? M as se o intrprete no optar pelo primeiro caminho, com o justificar o segundo? Em contraposio, que dimenso se alcana invocando-se a santa palavra do esprito ? Que seria ele capaz de dizer sobre um ensaio notvel como o Sor Ju an a o las tram pas da f, do prprio Paz? Tanto o funcionalismo e o economicismo quanto o culto do gnio e do esprito se mostram incapazes de entender a produo da cultura. N o caso latino-americano, o reexame do cam po da cultura se impe ao menos para que depois no se diga que s o comeam os quando os centros legitimados j haviam dado o sinal de partida.

    4. Entendida como o conjunto mltiplo e no limitvel de frames que tem por funo inicial reduzir e, idealmente, neutralizar as ambigidades, por funo mediana, explor-las e, por limite, inventar com binaes de ambigidades, a cultura no tem, entretanto, um perfil igual em qualquer latitude. Pois o cuidado que temos tido em no a reduzir incidncia doutra fora, seja o meio natural, seja a instncia econmica,

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    no deve tampouco insinuar que ela seja livre de interferncias. Sua razo de arranque a descomplexificao de situaes cotidianas j modelada sob a presso dos outros elementos co-presentes sua feitura. Neste sentido, muito embora um Caillois estivesse pontualmente certo ao distinguir a resposta das culturas norte-americana e mexicana perante a morte [...] Em nenhum pas, sem dvida, (a morte) tem to pouco lugar na imaginao coletiva como nos Estados Unidos, assim como h poucos pases onde ela o tenha mais que no M xico (Caillois, R .: 1964, 122) , ser, em princpio, sujeitar-se a erro grosseiro generalizar a identificao da cultura com um pas. A superposio entre as unidades poltica e cultural seria tida por implcita, o que, reiterando o pressuposto de estudos das primeiras dcadas do sculo, obrigaria o analista a no concretizar as questes e a desprezar diferenas. Se sempre podemos aprender com falhas anteriores, se h de levar em conta que, hoje em dia, na maioria dos casos, os estados nacionais so menos unidades que um aglomerado de zonas prsperas se as tiverem , verdadeiras ilhas de riqueza, cercadas de estagnao ou recesso. Ao diz-lo, automaticamente se alerta para que no se cogita, em nome do autono- mismo da cultura, de consider-la fora do quadro poltico-econmico. Tambm este cultural.

    Feitos esses esclarecimentos, legtimo pensar-se que o estado da cultura sofre como interferncia bsica o carter de estabilidade ou instabilidade scio-econmica da rea em que incide3. E isso quer dizer: os indivduos socializados dentro de reas estveis ou instveis internalizam modos de conduta bastante diferenciados. Dito doutro modo, so incomparveis suas respectivas constituies do tempo interno e de seu ajuste com o tempo dos relgios. Suas dessemelhanas no se explicam

    Hesitamos em definir a estabilidade ou instabilidade em funo de fatores scio-econ- micos. Isso no significaria retornar ao causalismo identitrio que tnhamos repudiado? Embora o risco seja real, era preciso corr-lo. Se fatores scio-econmicos no explicam um estado de cultura, no os considerar seria estupidez. Interferindo basicamente no estado da cultura, o scio-econmico se defronta com o grau de coeso interna, com a valncia que suas prticas culturais mantenha para o grupo em estudo.

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    simplesmente por pertencerem a reas diferentes seno pela diferena scio-econmica que pesa sobre elas. Embora aos defensores de um des- construcionismo absolutista e simplificador isso parea uma concesso suspeita ao hors texte , assim evitamos a necessidade de retificaes posteriores.

    Com o exemplo de rea hoje no estabilizada, tomo a rea de Qu- bec. Embora dezenas doutros exemplos pudessem ser aludidos a situao balcnica ou palestina, a recente revolta na regio de Chiapas, h poucos anos o conflito do governo revolucionrio nicaragense com sua populao indgena , o de Qubec escolhido porque nos remete a documento que respalda a hiptese aqui exposta. N a longa entrevista que a ex-companheira do romancista e dramaturgo Hubert Aquin concedeu a Gordon Sheppard, transcrita carta que ela endereara a Aquin, pouco antes de seu suicdio. Transcreve-se a passagem decisiva:

    N o se vive em Qubec com o se pode viver noutra parte, tu o sabes

    melhor do que eu. N os pases estabilizados (Frana, Inglaterra, Estados

    U nidos...) cada um pode ser para si mesm o seu prprio fim. Aqui, o

    individual e o coletivo se confundem com freqncia: o que se faz a ttulo

    pessoal tem uma im portncia, uma significao coletiva e isso tanto mais

    quando se uma personalidade (Sheppard, G.-Andre Yanacopoulo:

    1 9 8 5 ,4 1 ).

    Ao l-la, tive a estranha sensao de que j a conhecia. Para descobrir a fonte coincidente no seria preciso recorrer minha experincia pessoal, no caso muito menos confivel: qualquer leitor dos dirios de Kafka saber v-la seja em sua aluso a Praga, essa mezinha tem garras , seja em trecho de sua reflexo sobre o carter da literatura menor :

    A vivacidade de tal literatura mesmo maior do que a de uma rica em

    talentos, pois, como no h um escritor cujo talento impusesse silncio ao

    menos maioria dos cticos, o debate literrio adquire, na maior escala

    possvel, uma justificao real (Kafka, F.: 1911, 152).

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    N o instante de anlise mais refinada, talvez venha a ser necessrio distinguirem-se as reas instveis investidas de longa tradio, semelhantes que servia de objeto para a reflexo do escritor, daquelas cuja histria recente, mesmo porque nascida sobre os escombros de culturas arrasadas, fossem elas ricas, a exemplo da asteca, inca ou maia, ou no. N o momento em que nos encontramos, porm, a distino pode ser abandonada. Em troca, foroso pensar-se como as duas passagens citadas se combinam.

    Com o se explicaria, dentro das reas no estveis, como formulava Yanocopoulo, a menor possibilidade de decises exclusivamente individuais seno porque a insegurana coletiva provoca um forte sentimento gregrio? Podemos do mesmo modo entender que as aglomeraes a situadas prendem como garras, a exemplo de Praga para Kafka, por certo no a partir da massa indiscriminada de seus habitantes mas de seu grupo de referncia afetivo e/ou profissional, cujo abandono seria sentido como uma quase traio cometida pelo que escapara. Por outro lado, esse gregarismo poderoso teria um efeito intelectual Kafka aludia, mais restritamente, ao literrio porque no h concentrao em torno de um talento que no se contesta o caso de Goethe, dentro da cultura alem , a discusso de idias adquire uma justificao real . A dependncia de uns em relao aos outros, em suma, tanto criaria um sentimento gregrio como estimularia o prprio debate; ao mesmo tempo que diminuiria a margem de decises individuais, aumentaria a di- namicidade das trocas. Esse segundo ponto, entretanto, obriga ressalva: podemos t-lo por correto apenas se, na rea considerada, um sistema enquanto intelectual j se houver imposto. Do contrrio, como sucede no Brasil, se no em toda a Amrica Latina, o gregarismo tende a agir como mero esprito corporativista, i.e., como simples instrumento de defesa em face da sociedade. (Mesmo pois que tenhamos optado por no tratar no momento da diferena entre instveis com tradio e de histria recente, fomos obrigados a mencion-la.) Deve-se ainda acrescentar: esse gregarismo, corporativista ou no, parece explicar a menor autonomizao do campo intelectual. Dito de modo mais preciso: a especializao, tanto em sua acepo positiva o abandono do enci-

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    clopedismo como negativa a capacitao cada vez mais reduzida a uma rea cada vez menor, impossibilitando ao especializado conexes amplas e inesperadas , se torna provvel apenas quanto s reas de que o poder poltico-econmico tem absoluta necessidade. N o exatamente esse fator o que motiva a permanente carncia de inquietao filosfica do intelectual latino-americano? Pois a que necessidade do poder ela responderia? Ou aumentaria ela a penetrao popular de certa orientao poltica? Como a histria das naes latino-americanas coincide com a legitimao suprema reservada cincia enquanto instrumento de domnio da natureza (e da sociedade), nelas a filosofia reconhecida tem sido ou aquela que d ttulo de nobreza prtica cientfica ou aquela que justifica um causalismo determinista. Com o, por outro lado, no h, da parte da sociedade, nenhuma tradio cultural arraigada, tampouco h possibilidade de negociar-se sobre os critrios de legitimao. M as o aprofundamento dessa discusso s seria cabvel em um momento posterior. Por enquanto, devemos dar firmeza aos primeiros passos.

    Adianta-se pois a hiptese de que se partia, agora se acrescentando que a diferena entre os modos de socializao dos membros das reas culturalmente estveis ou instveis poder ser assim formulada: para os primeiros, a socializao se caracteriza pela confiana na eficcia das normas existentes e, em conseqncia, na internalizao dos frames em vigncia. Note-se que, pelos termos com que se procura descrever a situao estvel, j se visualiza a cultura como existente, como possuidora de normas e frames que despertam em seus membros uma determinada resposta . Ora, essa mesma resposta que assume direo oposta no caso dos pertencentes a uma rea instvel. Nesta, a eficcia das normas est sempre em questo, a lei no internalizada, se h de decidir diante de cada caso concreto; como se diz no Brasil, a lei pega ou no pega . Se ridculo ainda pensar-se que h povos dceis e povos rebeldes, se inconcebvel, a no ser para os racistas, que h diferenas naturais, i.e., tnicas, entre os povos, ento as diferenas s podem ser culturalmente motivadas, portan

    to historicamente localizadas e modificveis.

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    Se tal descrio for aceitvel, alguns passos se mostram de imediato possveis.

    5. Se cada rea cultural vivesse em estado de isolamento ou se os vizinhos com que se inter-relacionasse tivessem um nvel semelhante de satisfao de necessidades, as quais, de sua parte, fossem entre si semelhantes, podemos supor que as marcas de coeso de cada uma permaneceria por uma longue dure, sem cataclismos ou descontinuidades ou tam pouco imobilismo. Foi essa pequena afeco passagem do tempo que permitiu a Lvi-Strauss indagar a unidade sob transformao de um universo mtico to amplo quanto o que abarca o Mythologies. M as que sucede quando essas reas so invadidas por conquistadores cuja eficcia tecnolgica provoca a acelerao constante de mudanas? O que se costuma chamar bom senso com freqncia, apenas um eufemismo para a apreciao grosseira estabeleceu que o resultado seria inevitavelmente desastroso: do laborioso universo simblico de identidades e diferenas restariam os sinais de saque e runas. Mais recentemente, co- meou-se a considerar a resistncia dos vencidos, a mescla dos universos. Destaque-se a a pesquisa de M. Taussig a propsito dos Cuna, da Ilha de St. Blas, cujo imaginrio apresenta o trao de incorporar sem limites as figuras mais heterclitas dos vrios brancos conquistadores e de tirar partido de suas divergncias para manter sua coeso grupai (Taussig, M .: 1993). Tais reparos, contudo, no tm aqui outro papel seno o de acentuar que, na questo do confronto das culturas, dotadas de potenciais tecnolgicos desiguais, j no podemos manter uma viso determinista: ao vencido, no resta mais do que pactar ou encarar a morte. O exame do choque de culturas revela uma realidade mais complicada: o vencido no s aquele que, quando no o matam, sobrevive ou com runas ou sob o completo desamparo de seu universo simblico, mas, outras tantas vezes, aquele que submete as runas a uma toro que, combinada aos signos heterclitos dos dominantes, o ajuda a manter a relao diferencial frente aos outros.

    Pode-se entretanto alegar que nosso raciocnio se baseia no clssico

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    choque entre sociedades frias e quentes , esquecendo o atrito entre reas bem mais prximas, entre cam po e cidade . Ora, se comparamos o subttulo deste ensaio com o que at agora tem-se dito, pode-se verificar que ele estabelece uma homologia entre metropolitano : estvel :: m arginal: instvel, a qual parece absurda diante do par opositivo mais usual cidade : cam po, pois, neste, a correlao correta a oposta: cidade : instvel :: campo : estvel. A objeo derivaria do equvoco de homogeneizar tempos histricos incomparveis. A oposio cidade : cam po supe um tempo em que as mudanas tecnolgicas e os contatos internos entre as reas eram lentas, permitindo ao plo digamos receptor internalizar a mudana aos poucos. Dentro desse marco, que podemos supor genericamente vigente at aos anos prximos ao fim da Segunda Grande Guerra, os costumes e normas rurais eram estveis e a rea no seria tomada como marginal, ao passo que a cidade era dinmica, no necessariamente marcada pela instabilidade. N a situao atual, ao invs, rea rural e cidade se tornam ou centros economicamente dinmicos ou reas estagnadas, e, assim, ou culturalmente estveis ou instveis. Note-se ainda que se impe a distino entre dinamicidade e instabilidade cultural. A primeira sem dvida provoca a mudana de hbitos e mesmo de valores, a qual, entretanto, se cumpre por assim dizer dentro dos sulcos estabelecidos, sem a insegurana crnica e a experincia de iminncia de caos que acompanham a segunda. Em suma, pois, se, genericamente, dentro do marco temporal da segunda metade do sculo atual, a homologia entre metropolitano e estvel, marginal e instvel parece legtima, se h de ter o cuidado de verificar se, no caso emprico em considerao, pode ou no ser mantida. A homologia entre estvel e metropolitano , instvel e marginal apenas a mais ampla. As restries a seu uso no abalariam a diferena entre reas estvel e instvel.

    Essas consideraes se impuseram para que melhor se entendesse por que a diferena entre reas estveis e instveis no passvel de ser tratada com os conceitos clssicos de cultura. Se o conceito humanista inadequado porque, enfatizando o momento individual de criao, d Por pressuposta uma coeso passiva do grupo que, cedo ou tarde, reco

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    nhecer a qualidade do criador, o antropolgico no menos invlido porque, descritivo, d por pressuposta a mesma qualidade indiscriminada por todos os grupos que observe. Em ambos os casos, no h instrumentos para que se apreenda esse jogo complexo de semelhanas e diferenas, de redundncia e rudo, de circulao e mudana; jogo, ademais, cumprido sob ambincias assimtricas; precipitador, portanto, de resultados no superponveis. Vejamos pois que inteligncia se pode retirar do exame de cada uma das duas situaes.

    5.1. A partir da socializao cumprida em uma rea culturalmente estvel, dois modos de atualizao so imediatamente provveis. O primeiro, de uso majoritrio, se tipifica pela tendncia automatizao dos frames estabelecidos. Assim, por exemplo, o que at h pouco parecia privilgio dos franceses hoje se torna propriedade dos norte-americanos (e no s de seus turistas): a suposio de que, em qualquer parte do mundo, lhes ser suficiente o uso de sua lngua, como, o que mais grave, a de que os padres de conduta e qualidade sero os mesmos. As redes de turismo respondem presuno de seus clientes e oferecem resorts a tal ponto duplicadores do critrio de excelncia, que, se tudo funcionar bem, no final de suas frias o cliente ter a sensao de que viajou sem viajar. Do local visitado, restar o extico domesticado: a diferena do que se comeu e bebeu, o emocionante da paisagem, o ex- celso da histria sob visita. A automatizao traz o curioso resultado de controlar-se a diferena; de experimentar-se a mesmidade do diferente.

    Com o tal duplicao ideal no padroniza apenas o turista, torna-se freqente ouvirem-se conferncias e intervenes de scholars norte- americanos que antes pareceriam destinadas a seu auditrio nativo, em dia com as preocupaes e os modismos de alguma rea norte-americana intelectualmente legitimada. (A feminista falando das conquistas das mulheres em Nova York; o comparatista, das vantagens do cultural studies de sua universidade.) A variante no menos freqente, nem tampouco inventada pelos automatizados de agora: o falante parte do suposto de que o auditrio apenas conhece o ingls e que, portanto, seu papel ser diluir da maneira mais corriqueira algumas proposies j

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    bem estabelecidas. Em suma, a confiana em suas prprias normas se atualiza, no contato com os outros, sob a forma, mais ou menos intensa, da automatizao. A procura do extico passa a fazer parte das regras internalizadas; as frias, a viagem, a priori pasteurizadas, significam a abertura, com data fixa, de um espao normalmente interditado.

    E possvel que essa tendncia seja pouco visvel no contato do automatizado com seus prprios pares, tornando-se ento menos notada a perda de flexibilidade que implica e, portanto, seu carter negativo. N o ser preciso que a anlise tenha um objetivo acadmico para que essa tendncia seja percebida: qualquer estada mais prolongada do estrangeiro em rea sujeita ao modo de vida norte-americano obrigar o viajante a ajustar sua conduta ao uso automatizado dos frames. N o ser assim aconselhvel que, diante de um desconhecido, em um trajeto de metr, os olhos sejam nele fixados ou que, na relao pessoalizada, as palavras se prolonguem em alguma forma de contato corporal.

    Ao lado dessa primeira, ocorre atualizao diversa. Seja por efeito do ethos da atividade intelectual, seja por opo pessoal, seja por vicis- situdes de sua biografia, o estabilizado se mostra sensvel s respostas habituais a seu meio e se faz consciente do significado da automatizao. Se sensibilidade e conscincia crescem, tendem a se sistematizar, sem que, por isso, seu agente rompa o vnculo com sua socializao bsica, i.e., se torne um estranho a seu prprio meio. Isso no supe que seu modo de atuao seja o de um ureo meio-termo, entre M eca e Roma. Ele no se caracteriza menos que o primeiro modo, muito embora a direo seja agora a contrria: em vez de automatizao, explorao dos limites dos valores internalizados.

    Tome-se um pequeno exem plo. Em M orte em Veneza (Der Tod in Venedig, 1912), Gustav Aschenbach um escritor de meia-idade, fam oso e beira da esterilidade. Sua escolha de Veneza j parece conter mais do que a mera deciso de frias em um hotel de luxo. Alm do que a viagem Itlia tem significado, desde Goethe, para o intelectual alem o, Veneza se singulariza por sua mescla de potncia do passado e fausto corrom pido pela passagem dos sculos e a proxim idade de guas insalubres. A princpio, de seu processo de seduo pelo fascnio

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    que nele inspira o jovem Tadzio, Aschenbach ainda imagina que, tingindo os cabelos, se pe a seu alcance. M as a m scara do pretenso rejuvenescimento no capaz de resolver a luta entre o fascnio hom ossexual e o rgido cdigo tico. Informado da peste que grassa, Aschenbach opta por permanecer. Fugir seria recair na esterilidade que j o consumia. Aceitar o desafio da peste que ento assume uma dupla direo: ertica e vital era mostrar-se em vida. Se a ordem que o elevara, a que a narrativa aponta seja enumerando as distines que recebera, seja assinalando sua residncia no centro principal das tradies bvaras, a PrinzregentstraEe, no tinha meios contra a impotncia que o assediava, que melhor podia fazer seno lanar-se contra os fram es que neutralizavam a complexidade relativa identidade sexual? A atrao dionisaca que Aschenbach persegue, sem tam pouco renunciar interdio tica de maior proxim idade, no se l adequadamente quando se a interpreta como marca do esteticismo do escritor. M uito menos o decisivo estaria na obsesso de Thom as Mann pelo tem a, presente seja na M ontanha Mgica (Der Zauberberg, 1924), seja de maneira ainda mais elaborada no Doktor Faustus (1947), mas sim em sua deciso de, atravs do protagonista, refletir ficcionalmente sobre um fascnio que sua socializao neutralizava; i.e., de explorar seus limites. Esse gesto contudo no convertia Aschenbach em um prfugo. A morte com que a novela se encerra e o mesmo valeria para o Doktor Faustus tanto diz da ousadia do tratamento quanto da vitria do frame contra que se lanara. A morte corrobora seu enlace com eros ao mesmo tempo que impede que eros contamine a vida; explora os limites do valor relativo identidade sexual ao mesmo tem po que o resguarda; h explorao e no transtorno.

    Em suma, a socializao sob condies de estabilidade apresenta dois modos de operao antitticos. Obviamente, no se diz que eles so os nicos; sua anttese, ela mesma, de limites. A situao o campo que se atualiza por aqueles modos-limite.

    5.2 A situao oposta tambm admite dois modos de atualizao. Cada um deles tem o mesmo sentido de direo do modo correspondente

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    na primeira situao. O fato de terem, dois a dois, o mesmo sentido de direo no significa que sejam superponveis; essa impossibilidade resultante mesmo do carter dos campos, estvel e instvel, a que pertencem.

    Caracterizando-se a situao de instabilidade pela constituio de uma vivncia bsica de insegurana quanto a normas e valores, seu primeiro modo de atualizao se manifesta, no contato com o estrangeiro estvel , pela tendncia imitao de suas formas de conduta ou mesmo pela assimilao de seus frames. Em Minima moralia, Adorno observava a decepo dos intelectuais marxistas com os estudantes vindos dos pases colonizados, que, em vez de terem a atitude de rebeldia esperada, eram os mais dceis s direes mais conformistas da cultura metropolitana.

    Essa tendncia imitativa s tende a crescer ante a crise econmica prolongada desde a dcada de 80. Ao passo que, durante a ltima onda de ditaduras que dominou grande parte das naes latino-americanas entre meados de 60 at os anos 80, a resistncia de parcelas da populao era estimulada pelo sentimento de que lutvamos por um destino no marginalizado, o modo como se tem dado a redemocratizao, tornando outra vez ntida a separao entre o pas real e sua representao poltica, combinado aos efeitos da recesso econmica mundial, falncia do bloco socialista e ao questionamento das correntes derivadas do racio- nalismo iluminista, tem criado um clima de desnimo, cinismo e desespero. Se alguma coisa tem, entre ns, ultimamente prosperado a tendncia assimilacionista. Ela j no se limita mitificao das naes que deram certo como tentativa de, por qualquer modo, para a emigrar. Pareceria um absurdo negar que esse desesperado frenesi economicamente explicvel. Enquanto os media abrem espao para a falncia da previdncia social sueca, para o nmero crescente de desempregados na Frana e no Canad, em quase todos os pases latino-americanos o destaque desses dados ainda seria um eufemismo. H de se reconhecer, contudo, que o quadro agravado pela consonncia entre o descalabro econmico e a tendncia assimilacionista das reas culturalmente instveis. E seria erro injustificvel limit-la s ltimas dcadas. N o menos grosseiro seria o erro daqueles que opusessem ao culto basbaque do

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    estrangeiro a idolatria do nacional. Esta, tanto sob a forma do populismo como do regionalismo, uma atitude reativa, to imitativa como o mais evidente assimilacionismo.

    Por mais forte que seja esse modo de atualizao da insegurana, ser preciso considerar, dentro da segunda situao, o modo de direo contrria. Se, em contraposio ao automatismo, o agente estvel se lana aventura da explorao de limites, em reao vontade de assimilao, o agente instvel se entrega exploso dos limites. Assim, por exemplo, partindo da mesma marca do romance de formao goethiano, estimulante da identificao do leitor com o protagonista, Kafka viria a explorar ironicamente essa confluncia e, instituindo o paradoxo como seu procedimento de base, faria explodir a tradio ficcional fundada na crena no substrato natural da lei. M uito menos que um cenarista do absurdo que a idia comum que se faz sobre Kafka , sua obra joga com as expectativas iluministas do receptor, reduzidas no correspondncia com o mundo vivido pelos personagens (cf. LCL: 1993).

    Pode-se por certo contestar que a linhagem dominante no romance j fora contrariada, no momento mesmo em que se estabelecia, pelo Tristram Shandy. bvio que sim, nem apresentaria dificuldade admiti-lo. Faz-lo ter mesmo a vantagem de nos permitir dizer que a relao entre situaes e modos no determinista. (Se Morte em Veneza nos serviu de exemplo para a situao de explorao de limites, o Voyage au bout de la nuit (1932) nos mostraria um niilismo prximo da exploso de limites. M as to-s prximo: o nazismo a que o autor aderir mostraria o limite a que se agarra contra a destruio que obseda seus personagens.) M as no ser determinista no significa que seja aleatria. sim historicamente motivada. E o que nos faz ver com maior clareza o destino do romance de Sterne. Por que, afinal, sua cmica agresso narrativa linear e envolvente terminou posta no ostracismo com a vitria do romance realista seno porque no era historicamente apropriada a um gnero que empolgaria a literatura da burguesia estabelecida? Dentro dessa ordem de raciocnio, seria fecundo que se refletisse sobre a radicalidade que M achado de Assis daria matriz sterniana e, ao con

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    trrio, sua converso por Diderot em uma comdia engenhosa, em Jac- ques le fataliste.

    Da mesma maneira, seria oportuno lembrar-se a importncia que desempenhar em Borges a apropriao ficcional da alternativa gnstica como explicao do carter do mundo O gnosticismo e, em parte, o prprio Kafka4 foram instrumentos para que a fico borgiana fizesse explodir a tradio racionalista presente no romance ocidental, com seu respeito ao fato histrico e sua concepo naturalista do tempo. Interessa-nos contudo menos acumular exemplos do que apresentar os caminhos passveis de ser abertos pela hiptese aqui exposta. M esmo porque ela se encontra em estgio inicial, convm discutir uma dvida que provoca sua formulao.

    Que significa propriamente dizer-se que o segundo modo segunda situao se caracteriza pela exploso de limites, enquanto o correspondente primeira situao se definia pela explorao de limites? Estara- mos por acaso insinuando que aquela mais extrema? Escrevamos, com efeito, que a explorao de limites sempre oferece ao agente estvel a possibilidade de dispor de uma margem de segurana, de manter um p em terra firme, enquanto, sob a situao instvel, a exploso de limites estabelece a descontinuidade. [E a respeito preciosa a observao de Srgio Buarque de Holanda, em artigo de 1940, de que nossa literatura (...) at aqui tem evoludo menos por progresso contnua do que por meio de revolues peridicas (Holanda, S. B.: 1996, 1, 274).] Teramos, pois, uma espcie de compensao para os obstculos que conhece o criador em um campo instvel: no s escaparia da voracidade assi- milativa em que sua sociedade se esteriliza, como desmistificaria a continuidade preservada pelos dominantes. Por virtude de sua prpria pequenez, o ano mostraria ao mundo a desnudez do rei.

    Se essa for a leitura desejvel, to ridiculamente ingnua que compromete todo o percurso. Contudo, no nem a intencionada, nem a

    4 Emir Rodrguez Monegal assinalava que, no final dos anos 30, Borges studied and discussed Kafka when he was about to begin a new career as a storytellef' (Monegal, E. R.: 1978,313).

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    que se impe. Manter um p em terra firme ou jogar-se sem proteo no abismo so tendncias que contm, cada uma, dupla orientao. N o caso da primeira, o risco negativo por certo que seu salto de algum m odo permanea comprometido e engendre um neoclassicismo. M as esse risco compensado, e a est sua orientao positiva, por a prpria explorao ser estimulada pela sensao que ela tem limites, que a busca no um delrio, pois, sendo capaz de questionar a carga de sentido at ento afirmado, conta entretanto com uma base.

    Tome-se como exemplo o princpio das correspondncias em Proust. Sabe-se que, de acordo com a postulao do Narrador em La recherche, indo alm do que permite a inteligncia, a memria involuntria capaz, a partir de um acidente casual a degustao da madeleine ou o contato redivivo com a irregularidade das pedras de Veneza , de escapar da linearidade do tempo e recuperar o tempo abolido. O que porm retorna se retorna, pois outras tantas passagens seriam enumerveis de fracasso retorna noutro registro: o registro das palavras. Ora, essa mudana do ponto de chegada do que entretanto retorna significa, como admiravelmente expuseram Deleuze e Guattari, que a essncia proustiana no a Idia platnica, pois ao contrrio se assemelha com um Kern de mltiplas camadas, cujo desdobrar-se no se completa. O acesso ao passado, o tempo redivivo, tanto se define como instantneo, fugitivo e incompleto, quanto pelo acesso a um ncleo duro que o curso do tempo no desfaz. O que vale dizer: o explorador de limites inconscientemente se assegura contra o desespero do nada por sentir que sua busca, oposta descrio realista, conta com a possibilidade de encontro de algo que, temporal, no se submete linha do tempo. Em vez de prend-la, a explorao de limites a dimensiona. E condio para sua profundidade. O agente estvel pode falar de um grau zero porque, inconscientemente, sente que parte de algum lugar. A sensao referida no se propaga ao agente criador da rea instvel. As possibilidades negativa e positiva que ento se lhe mostram no so superponveis s da primeira. A possibilidade negativa se torna iminente: explodir os limites significa no s a sensao de partir de uma terra de ningum, como alcanar uma conquista restrita. Essa caracterizao pesa

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    sobre a prpria possibilidade positiva: a liberdade de movimentos tanto maior quanto menor sua eficcia.

    Isso posto, podemos ainda nos acercar da caracterizao dos m odos alternativos aos dois campos por outro caminho. Propomo-nos ver nas figuras mitolgicas do pai hiertico e do trickster as encarnaes emblemticas das direes alternativas. Tomar a figura do pai hiertico como o emblema orientador da explorao de limites implica que sua viagem se cumpre sob a imagem de algum cuja lio, embora repudiada, permanece como indicao de lugar. Para Ulisses, h sempre taca. A viagem no um mero enfrentamento do desconhecido porque sua orientao cclica. (O eterno retorno nietzschiano no o retorno ao mesmo ponto.) O trickster, ao invs, aquele cujo xito depende da astcia em vencer as regras de um jogo que, em princpio, lhe so desfavorveis. Para o trickster, o pai aquele cujo poder h de ser destrudo. Sua vitria ser a da astcia contra a lei internalizada. Assim, no relato Simo, o m ago do escritor srvio Danilo Kis, o protagonista um trickster, cujos milagres ameaam a segurana dos apstolos. Porm o trickster maior Deus. Ante a ameaa do milagre da subida aos cus de Simo, Pedro invoca a ajuda do Pai, cuja voz no se faz esperar:

    Segue meus conselhos, oh fiel. Diz ao povo que a f mais poderosa que a

    iluso dos sentidos (...). E diz-lhe, com uma voz forte para que todos te

    escutem: Deus uno e seu nome Eloim, e o Filho de Deus uno e seu

    nome Jesus e a f una e a f crist. E aquele que sob vossos olhos subiu

    ao cu at s nuvens, Simo dito o mago, um desertor da f e um profa-

    nador dos Preceitos divinos; ele realmente voou pela fora de sua vontade

    e pela fora de seus pensamentos e agora voa, invisvel, rumo s estrelas,

    levado por sua dvida e pela fora de sua curiosidade humana que, entre

    tanto, tem seus limites. E diz-lhes, com uma voz forte para que todos se

    escutem, que fui igualmente eu que lhe dei essa fora de tentao, que seu

    poder e sua potncia lhe vm igualmente de mim, pois lhe concedi por seus

    milagres e pr prova a alma dos cristos (...) (Kis, D .: 1983, 25).

    A escolha do exemplo proposital para que se evidencie a comple-

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    xidade que se arma. Do ponto de vista do apstolo, o princpio seria o de que s ao filho de Deus e a seus fiis fora concedido o direito de romper com as leis naturais. Se um hertico o usurpa, a doutrina est desacreditada. O Pai intervm e, mostrando que tambm ele pode ser um trickster, destri o limite do princpio, que estabelecia que nenhum infiel poder fazer o que Simo far, e, explicando a anomalia, restitui os limites da lei, i.e., salva a ortodoxia. Simo de fato subir ao cu, mas apenas para que volte terra, contra a qual seu corpo se estraalhar. Pois o Pai poder ser um trickter, mas o trickster no poder ser como o Pai. S Ele enfeixa o poder de, hiertico, manter a lei.

    Algo semelhante pensvel quanto a Kafka. Como Adorno escrevia: Em Sade e em Kafka [...] a razo opera (ist Vernunft am Werk) para que marque, pelo principium stilisationis da iluso (Wahn), o lado objetivo desta (Adorno, T. W : 1953, 280). Assim, em O processo (Der Prozef, 1925), Joseph K. vive sob a iluso de que est em um Estado de direito; portanto, de que o processo que movem contra ele devia estar de acordo com uma norma de conhecimento pblico, a todos visvel. M as sua crena exclusiva a ele (e ao leitor que no perceba a ironia kafkiana). O submeter a iluso ao estilo, no sentido literal do termo, significa mostrar seu aspecto objetivo, i.e., sua provenincia do raciona- lismo iluminista. Ainda que Adorno no explicite a deduo que fazemos, ela no lhe seria arbitrria, pois logo acrescenta: Ambos pertencem, em graus diversos, ao Iluminismo. Em Kafka, seu m odo de desencantamento (Entzauberungsschlag) assim (idem, ibidem). O trickster, no caso o narrador, que, inconfivel, no alerta o leitor para a armadilha que o relato lhe arma, responsvel pois pelo principium stilisationis, destri a iluso da continuidade dos princpios iluministas do Estado constitucional, mas obrigado ao conformismo final. Sob a iluso, delrio, alucinao, sentidos que cabem de igual em Wahn, a lei subsiste. Ou, formulando de outra maneira: se a lei em que o protagonista acredita ilusria, embora imperscrutvel uma lei ronda o mundo humano. O trickster apenas trickster apenas explode os limites de uma lei, digamos, de fora menor.

    Lembremos um terceiro exemplo: o do trickster Macunama. Como

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    recurso freqente da emblemtica figura, tambm aqui a farsa, a burla a pardia so os princpios de estilizao dominantes. Macunama, o que sai em busca de aventuras e da conquista da grande cidade, trapaceia e desmistifica a superioridade branca, para, afinal, saudoso das origens, empreender o retorno. Sua morte emblematiza o limite da exploso dos limites. Com o se ela dissesse: a assimetria das duas posies no anulada, por maior que seja a astcia do heri trapaceiro. Sua converso em estrela maximiza a ironia: para o estrangeiro ao campo que o heri emblematiza, ela parecer a eternizao do brilho e da glria.

    Ao contrrio do que afirma a viso funcional-economicista, as reas marginais ou instveis no esto fadadas a produzir obras imitativas. Tampouco aceitvel a posio daqueles que esto prontos a reconhecer a qualidade igual de obras concebidas nas mais distintas latitudes. Todas elas, afirmam, trazem a marca da criao contempornea e so, em comum, explorao de limites. Ao invs da filantrpica afirmao, adequado repetir-se com Danilo Kis: [...] Tudo que parece primeira vista idntico apenas semelhante (Kis, D.: 1983, 54).

    A retificao que propomos, consistente em alertar para a diversidade de duas situaes e dos dois modos imediatamente apreensveis de atualizao, no termina por estabelecer uma perfeita simetria de possibilidades (o negativo e o positivo de uma situao correspondendo ao negativo e positivo da outra). Muito ao contrrio, a assimetria se mantm tanto nos modos que chamamos negativos o assimilacionismo dos inseguros corrobora a fora dos autmatos como nos positivos: a exploso dos limites afinal se revela vitria conjuntural tenha-se como exemplo o cinema de Glauber Rocha. Dizer que o trickster s supera seu raio de faanhas quando assume forma de atuao do pai hiertico significa que a plasticidade, a rapidez de aprendizagem e improvisao do agente instvel s se tornam duradouras quando o contexto que as contm se dinamiza e, ao mesmo tempo, adquire estabilidade. A dinamicidade, embora no se consiga sem um empurro social e sem meios concretos de lev-la adiante, no se confunde com a existncia de um positivo lastro scio-econmico.

    A necessidade de rebelarmo-nos contra os determinismos, que sem

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    pre nos condenaram a ns, membros das culturas menores e marginais, a necessidade ento de mostrar que, quando criadores, nossas criaes explicitam um outro horizonte, no nos deve contudo levar a supor que nossos tricksters podem ser demiurgos. Essa possibilidade nos negada. O campo a que pertencemos nos marca. Ele nosso umbigo. Outros ares precisam soprar para que ele assuma outra configurao. Que no h de ser necessariamente a do demiurgo. O trickster mais fecundo ser aquele que abra a possibilidade para a pardia do demiurgo; aquele cuja prtica da marginalidade o ensine a rejeitar, mesmo quando pudesse assumi-la, a postura do pai hiertico.

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    T

    Referncias bibliogrficas

    As datas entre colchetes indicam a data da edio original da obra, quando diferente da edio citada.

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