Cozinha Inca

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CAMPO ABERTO TECNOLOGIA + MEIO AMBIENTE + INOVAÇÃO + GENTE outubro 2015 | GLOBO RURAL 19 Novos chefs peruanos resgatam o passado pré-hispânico e valorizam a tradicional agricultura de cultivo em terraços Cozinha inca Texto Leonardo Blecher © THINKSTOCK

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Matéria publicada na revista Globo Rural em outubro de 2015.

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CAMPO ABERTO

TECNOLOGIA + MEIO AMBIENTE + INOVAÇÃO + GENTE

outubro 2015 | GLOBO RURAL 19

Novos chefs peruanos resgatam o passado pré-hispânico e valorizam a tradicional agricultura de cultivo em terraços

Cozinha incaTexto Leonardo Blecher

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CAMPO ABERTO

20 GLOBO RURAL | outubro 2015

Os mais badalados res-taurantes de Lima, que figuram anualmente nos principais rankin-

gs gastronômicos do mundo, têm em seus cardápios pratos que já faziam parte do cotidiano dos habitantes do território peruano muito antes da chegada dos es-panhóis. O exemplo mais óbvio é o ceviche, estandarte da presti-giada culinária do Peru, que era preparado com toda a sofistica-ção atual pela civilização mochi-ca, na costa norte do país, entre os séculos II e VI da era cristã.

Há diversos outros ingredien-tes e receitas pré-hispânicas que hoje são utilizados por renoma-dos chefs para a composição de seus menus. As milhares de va-riedades de batata e milho, a va-lorizada quinoa, a mandioca, o feijão e o abacate são alguns des-ses produtos, que eram cultiva-dos pelos incas em cidades me-ticulosamente arquitetadas em função da agricultura.

Nem sempre foi assim. A va-lorização das culturas ancestrais, em especial a inca, faz parte de um processo maior pelo qual a culiná-ria peruana começou a passar há cerca de duas décadas – e que ho-je é conhecido como “boom” ou “revolução” gastronômica. O re-sultado é visto nas seguidas pre-miações internacionais recebidas

cionais não saía das casas dos pequenos agricultores e os res-taurantes das grandes cidades serviam poucas variedades de alimentos andinos. Os princi-pais chefs em Lima ou em Cus-co se especializavam em comi-da francesa e não havia algo que definisse a identidade da culiná-ria peruana.

Agricultura em terraços A Apega tem se esforçado para

estreitar os laços entre o restau-rante e o campo. Uma das iniciati-vas nessa direção é o projeto Ado-te um Andén, que estimula chefs a comprar alimentos diretamente dos produtores familiares que cul-tivam em “andenes”, os terraços construídos pelos incas – e, em alguns casos, por povos anterio-res a eles – para o cultivo nas ser-ras. Até hoje, essas estruturas re-sistem em muitas regiões do Peru, a maioria em propriedade de pe-quenas famílias rurais.

“Os andenes são um valor cul-tural que tem de ser destacado e onde se encontram produtos ma-ravilhosos”, diz Roca-Rey. “Mui-tas vezes, estão localizados em regiões afastadas, vão perdendo o valor comercial e sendo desfeitos a favor do monocultivo, em bene-fício de empresas muito grandes”, explica o presidente da Apega.

Os andenes foram criados pe-

por restaurantes peruanos, mas também no orgulho e na autoes-tima da população, que hoje se vê como integrante de uma nação referência em cozinha.

Segundo o presidente da So-ciedade Peruana de Gastrono-mia (Apega), Bernardo Roca- Rey, o início da revolução acon-teceu com a aproximação en-tre chef e camponês. “O primei-ro passo foi nos convencermos de que a gastronomia é um ato cultural, e por isso tínhamos de chegar mais perto do lugar de origem”, diz. “Eu inventava re-ceitas com insumos que encon-trava nos pequenos povoados rurais do Peru. O que se encon-trava era uma infinidade de es-pécies que antes nunca chega-riam às mesas”, conta Roca-Rey, um dos precursores da chamada cozinha nova andina.

Antes desse processo, a maior parte dos cultivos tradi-

los povos pré-hispânicos pa-ra proteger o cultivo de fenôme-nos como erosões, deslizamen-tos, geadas, chuvas de granizo e inundações, comuns na região andina, em que o terreno é mon-tanhoso, além de permitir o me-lhor aproveitamento da água.

Apesar de parecer simples quando comparada às tecnolo-gias atuais, a estrutura tem uma sofisticação arquitetônica no-tável. Cada nível é composto de uma barreira de pedras, coberta por uma camada de argila, pa-ra reter a umidade, seguida de areia e terra fértil, muitas ve-zes transportada de regiões dis-tantes, com melhor qualidade de solo. Os andenes, que chegam a ter centenas de níveis, foram construídos por civilizações que

tinham como único animal de carga a pouco resistente lhama.

Por sua capacidade de defesa contra intempéries e aproveita-mento de água, os terraços incas são vistos por especialistas como uma das melhores formas de cul-tivo em serra até os dias atuais.

Segurança alimentar A cientista especialista em

solos Carmen Felipe-Morales, professora emérita da Univer-sidade Nacional Agrária La Mo-lina, por meio de pesquisas de-monstrou que os andenes bem manejados podem ser extrema-mente produtivos, além de per-mitirem a conservação de mui-ta água, que aos poucos vai ali-mentando os mananciais nas partes mais baixas.

Roca-Rey é um dos precursores da chamada cozinha nova andina

Há duas décadas a culinária peruana vem resgatando produtos ancestrais, utilizados em receitas premiadas

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TRADIÇÃO

Estima-se que no Peru exis-tam 340.000 hectares de terra-ços, onde vivem cerca de 300 mil pequenos agricultores. Boa par-te desses andenes não tem con-dições de uso atualmente, de-vido ao desgaste causado pelos séculos e à falta de apoio gover-namental significativo para sua manutenção. Por isso, a recupe-ração dessas estruturas é vista por estudiosos agrícolas perua-nos como fundamental para ga-rantir a segurança alimentar da população e a saúde da econo-mia do país.

“Deveríamos dar prioridade a recuperar essa tecnologia que ainda se conserva e já demons-trou ter uma série de benefícios a oferecer”, afirma a professo-ra Carmen.

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