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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASPrograma de Ps-Graduao em Educao Faculdade de Educao

Dissertao

desafios e possibilidades de uma discusso/reflexo ancorada nas perspectivas terico-metodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire e na experincia profissional de um educador

A escola pblica hoje:

Dirlei de Azambuja Pereira

Pelotas, 2010

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DIRLEI DE AZAMBUJA PEREIRA

desafios e possibilidades de uma discusso/reflexo ancorada nas perspectivas terico-metodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire e na experincia profissional de um educador

A escola pblica hoje:

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao.

Orientador: Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira

Pelotas, 2010

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Banca examinadora: Prof. Dr. Alceu Ravanello Ferraro (UFRGS) Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira (UFPel) Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi (UFPel) Profa. Dra. Heloisa Helena Duval de Azevedo (UAB/UFPel) Profa. Dra. Neiva Afonso Oliveira (UFPel)

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Aos meus pais, Dilon e Arlete, e ao Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira.

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AgradecimentosAgradecer, em minha opinio, a melhor forma de revelar que qualquer caminho percorrido sempre se d em companhia de algum. Partindo desta premissa, gostaria de registrar os meus mais sinceros agradecimentos a quem esteve ao meu lado no decorrer da vida, da caminhada profissional e da trajetria de pesquisa. Primeiramente, agradeo a Deus pelo dom da vida e por ter sido constante em minha existncia. Aos meus pais, Dilon e Arlete, alm de dedicar-lhes o presente estudo, sou extremamente grato a eles por tudo o que fizeram por mim no transcorrer dos anos. Sem seus exemplos de superao diante das adversidades da vida, sem o amor que me dedicaram, sem a confiana em minha capacidade, enfim, sem tudo aquilo que realizaram por mim ao longo da vida, nada teria sido possvel. Talvez um simples agradecimento seja pouco diante de tudo o que merecem, mas os ofereo, com todo o meu amor, este MUITO OBRIGADO a vocs que tanto me deram sem exigir nada em troca. Igualmente grato sou ao Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira pela importncia do mesmo no caminhar desta investigao e na minha insero no vasto mundo da pesquisa em educao. Contar com sua presena, ao meu lado, ao longo deste perodo foi fundamental. Tenho a absoluta certeza que jamais conseguiria prosseguir, no decorrer desta investigao, sem seu apoio, sua amizade, sua orientao precisa e rigorosa. Meu muito obrigado por tudo o que fez por mim e meu profundo reconhecimento pelo grande mestre que . Ao Prof. Dr. Alceu Ravanello Ferrraro, agradeo por sua importante participao em minhas bancas de qualificao e de defesa e, por suas sempre precisas contribuies oferecidas pesquisa. Agradeo tambm ao Prof. Dr. Gomercindo Ghiggi por ter, de inmeras formas, contribudo para esta investigao e para minha formao enquanto educador e pesquisador. Profa. Dra. Heloisa Helena Duval de Azevedo, agradeo por sua participao e por suas relevantes contribuies na banca de qualificao do projeto de pesquisa e na de defesa da dissertao. Agradeo tambm pela amizade e pelos conhecimentos compartilhados comigo ao longo desta jornada.

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Profa. Dra. Neiva Afonso Oliveira, meu profundo agradecimento por sua presena em todas as fases percorridas por esta investigao. Seu exemplo de pesquisadora e de ser humano me acompanharo para sempre. Ao Darlan, meu irmo, que sempre esteve ao meu lado, de uma forma ou outra, agradeo pelo apoio e pelo carinho a mim dedicados. s amigas Ana Paula Manetti Porto, Angela Alves dos Passos, Anglica Ferreira de Mendona, Arani Corra dos Santos, Ariela dos Santos Canielles, Carla Simone dos Santos de Moura, Cibele da Cruz Cardoso, Cipriana Dvila Ulguim, Claudia Batesttin, Cristiane Azambuja dos Passos, Cristiane de Oliveira Madruga, Daiana Corra Vieira, Darlene Rosa da Silva, Denise Gamio Dias, Denise Lopes Furtado, Elizete Oliveira das Neves, lke de Jesus Ferreira, Eva Maria Dutra Pinheiro, Fabiane Tejada da Silveira, Jeonice Duarte Nunes, Josiane Moraes Quevedo, Joziane Garcia Ortiz Duarte, Ligiana Lopes Carvalho, Lucimar Madruga e Silva, Lucimar Peres Farias, Mrcia dos Santos da Silveira, Marcia Frizzo Amaral, Maria Cristina Madeira, Maria Zilma Karan, Marlenir Nunes Garcia, Maria Joaquina da Silva Louzada, Miriam Madruga Greque, Nelma Dutra Sria Leite, Patrcia Bonow Fassbender, Patrcia Rutz Bierhals, Patrcia Silveira Zaneti, Patrcia Tarouco Manetti Becker, Santa Ivoni do Amaral Carvalho, Simone Duarte Nunes, Tanize Duarte Nunes e Tatiane Madruga Lucas e, aos amigos derson Pereira Madruga e Flademir Pereira Becker, o meu muito obrigado pelo carinho oferecido, pela amizade compartilhada e pelo apoio dado em diferentes momentos da minha vida. s professoras Andra Paz Genovese, Beatriz Maria Bossio Atrib Zanchet, Cristiane dos Santos Azevedo, Denise Nascimento Silveira, Mariza Espndola de vila, Rita de Cssia Oliveira Hax, Rosimeire Simes de Lima, Tnia Maria Tarouco Manetti e ao professor Mrcio Xavier Bonorino Figueiredo, meu agradecimento por serem importantes referncias na minha trajetria profissional. A todos educandos e todas educandas com os/as quais tive a oportunidade de dialogar nestes anos de profisso, meu sincero muito obrigado. Aos professores do Curso de Mestrado em Educao da Universidade Federal de Pelotas, meu agradecimento pelos conhecimentos construdos. Ao Grupo de Pesquisa FEPrxiS, meu muito obrigado pela acolhida e pelos dilogos realizados.

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A doutrina materialista sobre a mudana das circunstncias e da educao se esquece de que tais circunstncias so alteradas pelos homens e que o prprio educador deve ser educado. [...] A coincidncia da alterao das circunstncias com a atividade humana e a alterao de si prprio s pode ser compreendida e entendida racionalmente como prxis revolucionria. Karl Marx (III Tese sobre Feuerbach, 2000, p. 109).

Escolhi a sombra desta rvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera v. Por isto, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens. Suarei meu corpo, que o Sol queimar; minhas mos ficaro calejadas; meus ps aprendero o mistrio dos caminhos; meus ouvidos ouviro mais; meus olhos vero o que antes no viam, enquanto esperarei por ti. No te esperarei na pura espera porque meu tempo de espera um tempo de quefazer. [...] Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrir na primavera. Paulo Freire (Cano bvia, 2000, p. 5).

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ResumoPEREIRA, Dirlei de Azambuja. A escola pblica hoje: desafios e possibilidades de uma discusso/reflexo ancorada nas perspectivas terico-metodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire e na experincia profissional de um educador. 2010. 104f. Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Educao - Faculdade de Educao - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. O estudo tem como foco problematizar, com base nas perspectivas tericometodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire e na experincia profissional do autor da pesquisa, o atual modelo de escola pblica, buscando elementos para a construo de um novo projeto de instituio escolar. O objeto da pesquisa, a escola pblica, analisado como um todo concreto resultado de mltiplas relaes e inter-relaes que ocorrem em seu interior. Para que haja uma leitura radical, global e rigorosa que resulte num concreto real e no em um concreto imediato, a pesquisa indica que sejam observadas as bases epistemolgicas das perspectivas terico-metodolgicas de Marx (a dialtica) e Freire (a conscientizao). Postula-se que um olhar dialtico e conscientizador sobre a escola pblica possibilitar conhecer o que verdadeiramente esta instituio e, com efeito, oferecer a oportunidade da edificao de aes capazes de construir um outro projeto de escola pblica, diferente do modelo hoje implementado, o qual no serve como espao para a fomentao de um mundo humano, justo e democrtico. O referido estudo ancora-se na metodologia filosfica. Para tanto, em um primeiro momento, procura-se engendrar uma compreenso sobre O que a Filosofia, indo raiz do que realmente pretende a mesma. A seguir, parte-se em busca de orquestrar a metodologia filosfica como um movimento de problematizao da realidade, especialmente neste caso, a realidade educacional-escolar. Conclui-se que, com base em um referencial terico substantivo, as alternativas possveis para transformar a realidade da escola pblica atualmente tornam-se concretude, ou seja, entendendo-se o que realmente a escola pblica, infinitas possibilidades se abrem a fim de que se possa construir um novo projeto de escola, capaz de contribuir decisivamente na organizao de um novo projeto de sociedade. Constata-se que a realidade e os projetos de escola atuais so opressores, desiguais e conduzem homens e mulheres ao ser menos. O que se deseja uma organizao social que tenha como princpios bsicos a solidariedade, a humanizao, a esperana e a justia social. mirando este tipo de sociedade que a escola deve conduzir o seu processo educacional. Com este horizonte de transformao da escola pblica, os contributos das perspectivas terico-metodolgicas de Marx e Freire tornam-se indispensveis. Palavras-Chave: Escola pblica; Karl Marx; Paulo Freire; mtodo; experincia profissional.

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AbstractPEREIRA, Dirlei de Azambuja. The public school today: challenges and possibilities of a discussion/reflection anchored on Karl Marxs and Paulo Freires theoretical-methodological perspectives and also on the professional experience of an educator. 2010. 104f. Dissertation (Masters thesis) - Education Post-Graduation Program Education College Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. The focus of this study is to problematize, based on Karl Marxs and Paulo Freires theoretical-methodological perspectives and also on the professional experience of the research author, the current public school model, pursuing elements for the construction of a new schooling institution project. The research object, public school, is analysed as a concrete whole as a multiple relations and interrelationships result that occur in their interior. For a radical, global and rigorous reading resulting in a real concrete, not an immediate concrete, the research indicates the observation of Marxs (dialectic) and Freires (awareness) theoretical-methodological perspectives epistemological basis. It is postulated that a dialectic and conscientizing view on public school will enable the knowledge of what this institution truly is and with effect, offer an opportunity of the action edification able to build another public school project, unlike todays implemented model, which does not suit as a place for a humane, fair and democratic world fomentation. The referred study is anchored on the philosophical methodology. Therefore, at first, it seeks to engender a comprehension on What Philosophy is, going to the source of what it really intents. Hereafter, it starts a search to orchestrate the philosophical methodology as a problematization motion of reality, especially in this case, educational-academic. In conclusion, basing on a substantive theoretical reference, the possible alternatives to process the current reality on public school become concreteness, that is, understanding what public school really is, infinite possibilities arise for the purpose of constructing a new school project, capable of decisively contribute with the organization of a new society project. It is in evidence that reality and current school projects are oppressor, unequal and lead men and women to being less. What it is desired is a social organization that has, as its basic principles, solidarity, humanization, hope and social justice. It is aiming this kind of society that school must conduct its educational process. By this transformation of public school horizon, Marxs and Freires theoretical-methodological perspectives contributions become indispensable. Keywords: Public school; Karl Marx; Paulo Freire; method; professional experience.

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Lista de FigurasFigura 1 Grfico: Mtodo Dialtico............................................................. 41

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SumrioPRIMEIRAS PALAVRAS: COMEANDO O DILOGO, APRESENTANDO A DISSERTAO....................................................................................................... 12 1 A METODOLOGIA FILOSFICA NA PESQUISA EM EDUCAO.................... 18 1.1 Caminhando ao encontro da Filosofia............................................................... 20 1.2 A Filosofia como possibilidade de problematizao da realidade educacional: a constituio do mtodo filosfico......................................................................... 25 2 O CAMINHO TERICO ESCOLHIDO: KARL MARX E PAULO FREIRE............ 30 2.1 Karl Marx........................................................................................................... 32 2.1.1 Os caminhos percorridos por Karl Marx......................................................... 32 2.1.2 Karl Marx e sua perspectiva terico-metodolgica........................................ 37 2.2 Paulo Freire....................................................................................................... 43 2.2.1 Os caminhos percorridos por Paulo Freire..................................................... 43 2.2.2 Paulo Freire e sua perspectiva terico-metodolgica.................................... 49

3 ESCOLA PBLICA E EXPERINCIA PROFISSIONAL: (DES)CAMINHOS (RE)CONSTRUIDOS ATRAVS DA MEMRIA..................................................... 59 3.1 Sobre memria, narrativa escrita e experincia: apontamentos balizadores na construo de um memorial............................................................................... 3.2 Escola pblica e experincia profissional: princpios constituintes de uma reflexo.................................................................................................................... 3.2.1 O comeo da caminhada: primeiras aproximaes com o mundo da escola...................................................................................................................... 3.2.2 A experincia profissional de um educador (re)construda: bases para a problematizao sobre a escola pblica hoje.......................................................... 61 68 68 70

4 O CAMINHO TERICO EM DILOGO COM A CAMINHADA PROFISSIONAL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA CONSTRUO DE UMA OUTRA ESCOLA PBLICA................................................................................................. 80 4.1 A prxis como contribuio emergente na relao pesquisapesquisador............................................................................................................. 83 4.2 Mirando um pouco alm: contributos das perspectivas tericometodolgicas de Karl Marx e de Paulo Freire na construo de uma outra escola pblica.......................................................................................................... 86 PALAVRAS FINAIS: REFLEXES SOBRE UM MOVIMENTO INCONCLUSO..... 94 REFERNCIAS....................................................................................................... 97

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Primeiras palavras: comeando o dilogo, apresentando a dissertao

A dissertao constitui portanto, neste sentido, uma espcie de pr-exerccio de toda atividade filosfica chegada a maturidade, um treinamento em tamanho natural para pensar filosoficamente. Longe de ser um exerccio de escola impessoal e rotineiro, ela torna-se a ocasio privilegiada para um pensamento inexperiente pr-se prova, pr-se em jogo assumindo riscos, efetuando escolhas, formulando concluses, ainda que provisrias ou hipotticas. Folscheid e Wunenburger

Apresentar uma pesquisa sempre um exerccio delicado pois, ao realiz-lo, necessrio, ainda que sucintamente, deixar claro ao leitor e leitora1 todo o arcabouo da investigao desenvolvida. Tal procedimento ainda requer, como afirmaram Folscheid e Wunenburger, na epgrafe anteriormente exposta, a disponibilidade de pr prova o conhecimento construdo ao longo do estudo desenvolvido buscando problematizar a relevncia, ou no, do mesmo perante a realidade em que este se inscreve. Ciente do desafio posto e com o intento de produzir, de forma mais precisa possvel, um sobrevoo pela investigao desenvolvida, penso ser interessante comear a dialogar sobre a questo inicial que me instigou a realiz-la: o lugar do qual profiro meu discurso o de ser educador na escola pblica. Desenvolvo minha escrita, no decorrer desta pesquisa, a partir de um movimento fundamentado no constante indagar sobre a realidade da escola pblica hoje. Ao me colocar contra a atual forma de estruturao deste espao escolar-pblico, pretendo, frente compreenso da possibilidade da minha constituio enquanto sujeito histrico e, desta maneira, capaz de escolha e de deciso, construir uma discusso que favorea a edificao de um projeto de escola capaz de possibilitar a formao deNo decorrer desta dissertao utilizarei o masculino e o feminino dos substantivos, como tambm os apresentarei alternadamente, por acreditar que a escrita atual deve contrapor-se opresso instituda dos homens para com as mulheres ao longo da histria da humanidade e que, por ordem de uma cultura opressora, extingue do discurso escrito a referncia do feminino.1

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um novo homem. Neste sentido, ao fazer a presente anlise, concordo com Ferraro (2004, p. 13) quando afirma: H que transformar a escola. H que revolucionar a lgica que rege seu funcionamento. A transformao da realidade escolar hodierna requer aes imediatas no presente, tendo como objetivo a construo de um novo vir-a-ser da mesma no futuro. Portanto, para se chegar at este horizonte necessrio escolher um caminho2. Mas qual caminho? Sobre a importncia de tal interrogativa, uma passagem que ilustra bem a reflexo apresentada o dilogo entre Alice, aquela do Pas das Maravilhas, e o Gato Cheshire, outro personagem da mesma histria:O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui? Isso depende muito de para onde voc quer ir, respondeu o Gato. No me importo muito para onde..., retrucou Alice. Ento no importa o caminho que voc escolha, disse o Gato. ...contanto que d em algum lugar, Alice completou. Oh, voc pode ter certeza que vai chegar, disse o Gato, se voc caminhar bastante (CARROLL, 2002, p. 59).

Ao trazer esta passagem de um clssico da literatura infantil, almejo discutir duas questes que me parecem evidentes frente a uma pesquisa sobre a escola pblica: Qual o caminho que devemos tomar diante da construo de um debate problematizador acerca da fundamentao de um outro projeto de escola pblica? e Onde queremos chegar com a realizao deste projeto?. Observando a pergunta dirigida Alice pelo Gato Cheshire quando este a indagou para onde ela gostaria de ir e a resposta da mesma declarando que no importaria o caminho a ser percorrido j que para a menina qualquer ponto de chegada serviria, penso que esta falta de objetivos concretos e a ausncia de uma reflexo sobre que resultados estes podem oferecer, presentes na declarao da personagem, resumem bem o contexto da escola pblica nos dias de hoje. Assim como para Alice, na maioria das escolas, tanto faz o caminho a ser trilhado, no h horizonte para ser conquistado ou construdo. Absolutamente contra este tipo deAo assumir a necessidade da escolha de um caminho para ser trilhado na construo de um projeto de mudana diante da forma como se assenta a escola pblica atualmente no pretendo, de maneira alguma, afirmar que existe somente um rumo a ser tomado, uma vez que a escolha de um caminho sempre pressupe uma srie de fatores e, neste sentido, tambm acarreta na multiplicidade de caminhos possveis a serem construdos. Como toda escolha feita, a opo adotada traz consigo todo o nus e o bnus a que ela se relaciona. Entretanto, o que no pode deixar de ser feito o ato de escolher um caminho que possibilite a efetivao de uma escola pblica capaz de contribuir na formao de mulheres e de homens plenos e sujeitos de suas histrias.2

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atitude, ou ainda em oposio falta de uma opo coerente e provocadora de transformao, fiz a escolha por um caminho a seguir, embora sabendo que escolher sempre um risco (GARCIA, 2005, p. 65). E que bom que assim seja! Somente quando nos aventuramos em um voo que, em um primeiro momento, pouco dele sabemos, nos desconstrumos para uma construo ainda maior. Mesmo assumindo os riscos das escolhas que fazemos, nunca as optamos firmadas no nada, no vcuo. Nossas escolhas contam sempre o que somos e onde queremos chegar. Foi substancialmente por este motivo que optei pelos autores Karl Marx e Paulo Freire3 bem como por suas teorias. Para corroborar a escolha destas matrizes tericas para a presente pesquisa, trago algumas declaraes que consolidam esta opo. Gadotti (1991, p. 4), ao comentar sobre sua viagem Alemanha, para tomar contato com a histria de vida de Marx e apreender suas ideias, quando ento comeou a escrever seu livro4, afirma que tambm estava naquele lugar porque encontrava em Marx as armas de uma teoria capaz de transformar o mundo. E, ao apresentar o primeiro captulo de sua obra, declara: O revolucionrio barbudo j morreu, mas suas idias esto presentes no nosso cotidiano, mesmo que no o percebamos (GADOTTI, 1991, p. 7). Ainda nesta esteira de compreenso da importncia de Marx e de sua teoria perante a realidade atual, Oliveira (1997, p. 180) assevera: A fecundidade da teoria marxiana reside nela instigar o pensamento presente, dirigindo-o busca de alternativas de prxis transformadoras em todos os campos da vida. A obra de Marx est impregnada por uma chama que atia homens e mulheres a lutarem pela construo de espaos realmente humanos e crticos e que, por sua vez, contribuam para a emancipao social. J Ghiggi, ao justificar a escolha por Freire como aporte terico em sua pesquisa A pedagogia da autoridade a servio da liberdade: dilogos com Paulo Freire e professores em formao, faz uma declarao a qual tomo emprestada para referendar a opo pelo mesmo autor na presente investigao:A deciso pela leitura de textos de Freire foi uma atitude a favor da transformao do instrumental terico em ferramenta, a fim de que A partir deste momento da dissertao, todas as referncias atribudas a Karl Marx e a Paulo Freire podero ser feitas tambm fazendo o uso apenas do sobrenome dos autores em questo, ou seja, os nomes Marx e Freire, citados no decorrer do escrito, estaro reportando-se a Karl Marx e a Paulo Freire, respectivamente. 4 O livro ao qual me refiro Marx: transformar o mundo, publicado em 1991 pela Editora FTD.3

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pudssemos olhar para o que fazamos com nossos alunos com outra lente, no para mudar a viso dos outros, mas para produzir novos e problematizadores espelhos e possibilidades para pensar a prtica social. [...] Assim encontrei Freire: que d o que pensar, cujos conceitos modificam comportamentos pedaggicos, epistemolgicos, ticos e polticos. Um Freire que quer educadores aptos interveno social, analistas sociais pesquisadores de sua prpria ao. Um Freire que quer educadores reflexivos, capazes de tomar o fazer docente como projeto pedaggico e investigao permanentes que, em confronto com referenciais tericos, so capazes de revisar prticas e provocar intervenes que mobilizem e criem comportamentos a favor de mudanas na organizao social (GHIGGI, 2002, p. 167-170).

Dialogando com a afirmao desenvolvida por Ghiggi no que tange a importncia de Freire e de sua produo terica, Freitas (2004, p. 54) tambm contribui discusso dizendo que:Freire nos desafia leitura e escrita enquanto processos indicotomizveis de pensar a existncia; nos desafia a fazer com que as experincias vividas constituam-se em fonte de reflexo terica. A leitura de Freire nos ensina a fazer da teoria um instrumento necessrio, desafiando-nos, sobretudo, a sermos sujeitos no processo de reconstruo permanente da prxis educativa libertadora.

Apoiando-me

nestes

construtos

argumentativos,

objetivo

com

esta

investigao problematizar, com base nas perspectivas terico-metodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire e na minha experincia profissional, o atual modelo de escola pblica, e, realizado tal movimento, possibilitar, enquanto horizonte possvel e partindo do mesmo referencial terico, elementos para a construo de um novo projeto de instituio escolar. Por tudo que foi exposto, acredito que as perspectivas terico-metodolgicas de Marx e de Freire contribuem decisivamente para a organizao de um projeto que promova a melhoria substantiva da escola pblica, pois partindo da possibilidade da constituio de um dilogo que elas podem vir a estabelecer com a realidade educacional-escolar, no fornecendo respostas, mas problematizando questes, permitir aos educadores e s educadoras democrticos, ticos, progressistas e comprometidos com o seu fazer, a busca por uma escola que tenha, definitivamente em suas bases, a esperana em construir uma nova histria para todos. Ainda no que tange a este tema, gostaria de ressaltar que o dilogo proposto entre as teorias de Marx e Freire no ocorreu ao acaso. Este se estruturou frente compreenso da ntima ligao existente entre a dialtica, enquanto perspectiva

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terico-metodolgica em Marx, e a conscientizao, como perspectiva tericometodolgica em Freire. Mesmo sendo evidente a contribuio terica de Marx na construo do pensamento de Freire, penso ser interessante chamar ateno em relao a pontos convergentes entre a dialtica e a conscientizao, com o propsito de tornar mais palpvel a inteno deste estudo, como ainda esclarecer de que forma a teoria escolhida vai se inserindo no corpo desta investigao sobre a escola pblica. Partindo da dialtica marxiana, quando existe a inteno de apreender a totalidade de um determinado objeto de estudo, h que, em um primeiro momento, desconstruir o alvo da reflexo buscando compreender todas as partes que o compem, observando ainda as relaes que estas partes realizam entre em si e no interior das mesmas, sempre concebida tal anlise a partir da premissa de que tudo isto se desenvolve em constante movimento para, em um estgio superior, termos a posse da sntese deste processo enquanto totalidade concreta. Desenvolvendo um dilogo entre esta fundamentao terico-metodolgica de Marx com a conscientizao de Freire, logo na apresentao das etapas presentes no trabalho com a alfabetizao de adultos, possvel observar a presena da dialtica de Marx neste caminho metodolgico. Freire, ao instituir as etapas de investigao, de tematizao e de problematizao, ao longo da alfabetizao, compreende, e intencionalmente as estabelece como bases no desenvolvimento de seu trabalho, a necessidade de construir, com os sujeitos inseridos neste movimento, o entendimento de todas as partes que constituem o mundo da vida dos mesmos e, com efeito, organizar uma ampla rede de reflexo sobre o tema. Esta perspectiva terico-metodolgica objetiva tambm favorecer a passagem da conscincia intransitiva para a conscincia crtica, no olhar freiriano, ou, em outras palavras, a superao do todo catico e da pseudo-concreticidade do objeto analisado, a partir do movimento de mediao dialtico pela via do pensamento e da reflexo, na concepo marxiana. Estabelecendo ainda uma outra analogia entre o mtodo de Freire e o de Marx, quando o primeiro autor prope que, na terceira etapa, toda a discusso construda no decorrer das fases anteriores seja problematizada, tendo em vista a urgncia da concretizao da prxis transformadora fundamentada na conscientizao, Marx assegura que a volta ao mundo concreto conclama o homem ao revolucionria.

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Dilogo desenvolvido sobre as relaes existentes entre a dialtica, em Marx, e a conscientizao, em Freire, me parece interessante problematizar a realidade da escola pblica fundamentada nestes movimentos e envolvendo, justamente porque estas perspectivas terico-metodolgicas tambm esto assentadas neste princpio, a permanente reflexo filosfica enquanto um constante caminhar indagador. Argumentos iniciais desenvolvidos acerca desta investigao, passo a apresentar a estrutura dos quatro captulos que compem este estudo. O Captulo 1, intitulado A metodologia filosfica na pesquisa em educao, pretende, em um movimento inicial, resgatar o que seja a Filosofia para, em um movimento posterior, discutir o Mtodo Filosfico como possibilidade de problematizao da realidade educacional-escolar. J no Captulo 2, O caminho terico escolhido: Karl Marx e Paulo Freire, trago as biografias dos autores que sustentam esta pesquisa e suas perspectivas terico-metodolgicas. O Captulo 3, Escola pblica e experincia profissional: (des)caminhos (re)construdos atravs da memria, primeiramente pretende fundamentar a importncia de um memorial em uma pesquisa na rea da educao para, logo a seguir, apresentar as minhas memrias acerca da escola pblica como forma de problematizar esta realidade educacional-escolar atualmente. Na construo da discusso proposta, o Captulo 4, O caminho terico em dilogo com a caminhada profissional: desafios e possibilidades na construo de uma outra escola pblica, debate a importncia da prxis, da dialtica (em Marx) e da conscientizao (em Freire) como bases problematizadoras na edificao de um novo projeto de instituio escolar-pblica. Por fim, apresento ainda, como palavras finais (porm, inconclusas) algumas consideraes acerca desta investigao. Ao desenvolver estas primeiras aproximaes em torno da pesquisa realizada, dialogo com Oliveira quando destaca a importncia da teoria frente aos problemas da hodiernidade. Diz ele: O que h de mais frtil numa construo terica a sua capacidade de sempre renovar-se, pr-se diante dos dilemas histricos, atiar o pensamento e fornecer-lhe os meios de ainda avanar (OLIVEIRA, 2004, p. 15-16). com este entendimento sobre a teoria e sua contribuio para o pensar a atualidade histrica da escola pblica e possibilitar a construo de um sonho possvel diante de um outro projeto de instituio escolar, que tambm fundamento esta investigao.

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1 A metodologia filosfica na pesquisa em educao

Em que a filosofia poder nos ajudar a entender o fenmeno da educao? Ou, melhor dizendo: se pretendemos ser educadores, de que maneira e em que medida a filosofia poder contribuir para que alcancemos o nosso objetivo? [...] Ser que o educador precisa realmente da filosofia? Que que determina essa necessidade? Em outros termos: que que leva o educador a filosofar? Ao colocar essa questo, ns estamos nos interrogando sobre o significado e a funo da Filosofia em si mesma. Poderamos, pois, extrapolar o mbito do educador e perguntar genericamente: que que leva o homem a filosofar?. Dermeval Saviani

As interrogativas acima expostas por Dermeval Saviani, acerca da relao entre filosofia e educao, tornam-se relevantes no momento em que se faz uma discusso sobre as questes do mtodo5 utilizado em uma investigao j que, diante das concepes metodolgicas aplicadas em pesquisas na rea da educao, as quais se configuram, em sua maioria, como pesquisas qualitativas e quantitativas, a cultura educacional acabou, de certo modo, atribuindo s pesquisas filosficas um valor menor ou at mesmo insignificante (se que podemos atribuir valores s pesquisas, haja vista que cada uma, ao seu modo, contribui para o avano do saber humano)6. Quando o pesquisador utiliza uma metodologia que se enquadre em uma das duas concepes apontadas anteriormente, a simples

O texto apresentado neste captulo foi publicado, em coautoria com o Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira, em: AZEVEDO, Heloisa Helena Duval de; OLIVEIRA, Neiva Afonso; GHIGGI, Gomercindo (Orgs.). Interfaces: temas de Educao e Filosofia. Pelotas: Editora Universitria/UFPel, 2009. p.93108. Aproveito a oportunidade para externar meu agradecimento Profa. Dra. Neiva Afonso Oliveira pela leitura da primeira verso do texto aqui exposto e pelas importantes contribuies oferecidas a ele no momento em que o escrito fora submetido apreciao para a publicao no livro acima mencionado. 6 Marli Andr (2007), em seu artigo Questes sobre os Fins e sobre os Mtodos de Pesquisa em Educao, comenta que as pesquisas qualitativas englobam um conjunto heterogneo de mtodos, de tcnicas e de anlises que vo desde os estudos antropolgicos e etnogrficos, as pesquisas participantes, os estudos de caso, at a pesquisa-ao e as anlises de discurso, de narrativas, de histrias de vida. Posso ainda nomear as conexes qualiquantitativo ou quantiqualitativo, as quais resultam da unio entre as metodologias qualitativa e quantitativa (ou vice-versa).

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descrio das estratgias investigativas empregadas , na maioria das vezes, aceita sem questionamentos como reflexo metodolgica suficiente7. Tal constatao levame a pensar em dois aspectos: 1) h uma concepo equivocada de metodologia, entendida como se fosse um simples sinnimo de tcnica, ou seja, um conjunto de procedimentos que, se utilizados em determinada ordem, levam a um tipo de conhecimento; 2) necessrio resgatar a importncia da filosofia e, por conseguinte, da metodologia filosfica nas pesquisas em educao. A partir desta perspectiva, caminho na direo de resgatar o que a filosofia e, por conseguinte, o mtodo filosfico, ressaltando sua importncia para a realidade contempornea que, indubitavelmente, reclama uma reflexo radical, rigorosa e global8 sobre o contexto educacional. Importa ainda sublinhar que, em linhas gerais, minha concepo de metodologia filosfica no se configura como uma srie de regras e/ou instrumentos, seno enquanto constante pensar, questionar e agir, num processo de permanente busca, na direo de uma outra forma do ser.

importante salientar que os autores que realizam estudos aprofundados sobre as metodologias qualitativas e quantitativas jamais renegaram o valor da teoria para o avano das pesquisas em educao. O que h por parte da grande maioria das pessoas que se sujeitaram ao praticismo alienante da atualidade uma supervalorizao da prtica e um certo desprezo pela teoria (ANDR, 2007). Neste sentido, muitos pesquisadores ingnuos acabaram acreditando que as metodologias qualitativas e quantitativas seriam as melhores maneiras de se apreender a realidade e solucionar os problemas atuais. Por certo, estas metodologias podem, sim, apreender a realidade e solucionar os problemas atuais se vieram acompanhadas de uma bem feita fundamentao terica. No artigo j citado, Andr (2007) alerta sobre a importncia da teoria nas pesquisas em educao porque esta rompe com a prtica adaptativa atual e promove uma prtica transformadora. 8 Trabalho com as categorias de radicalidade, rigorosidade e globalidade (ou de conjunto) a partir da obra Educao: do senso comum conscincia filosfica, de Dermeval Saviani, que as determina da seguinte forma: Quero dizer, em suma, que a reflexo filosfica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto. Radical: Em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais prprio e imediato. Quer dizer, preciso que se v at s razes da questo, at seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexo em profundidade. Rigorosa: Em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigncia, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo mtodos determinados, colocando-se em questo as concluses da sabedoria popular e as generalizaes apressadas que a cincia pode ensejar. De conjunto: Em terceiro lugar, o problema no pode ser examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questo com os demais aspectos do contexto em que est inserido. neste ponto que a filosofia se distingue da cincia de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrrio da cincia, a filosofia no tem objeto determinado; ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemtico; seu campo de ao o problema, esteja onde estiver. Melhor dizendo, seu campo de ao o problema enquanto no se sabe ainda onde ele est; por isso se diz que a filosofia busca. E nesse sentido tambm que se pode dizer que a filosofia abre caminho para a cincia; atravs da reflexo, ela localiza o problema tornando possvel a sua delimitao na rea de tal ou qual cincia que pode ento analis-lo e, qui, solucion-lo. Alm disso, enquanto a cincia isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a filosofia, embora dirigindo-se s vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em funo do conjunto (SAVIANI, 1996, p. 17).

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1.1 Caminhando ao encontro da Filosofia A filosofia, tomando como base a tradicional definio etimolgica de amor ao saber, o constante caminhar do homem em busca do conhecer, sem jamais prescindir das interrogaes que surgem naturalmente e das que so criadas pelos sujeitos para problematizar o contexto. A filosofia constitui um jogo de interrogaes fundadas na deciso de no aceitar como bvias e evidentes as coisas, as idias, os fatos, as situaes, os valores, os comportamentos de nossa existncia cotidiana; jamais aceit-los sem antes hav-los investigado e compreendido (CHAU, 1997, p. 12). A filosofia desacomoda, desloca ideias e conceitos pr-concebidos, justamente porque entende que no somente a verdade o ponto principal de sua ao, mas tambm o prprio caminhar e a reflexo que este favorece. Neste sentido, para que haja atitude crtica e pensamento crtico, estes devem ser constitudos pelas faces negativa e positiva da atitude filosfica. Chau (1997, p. 12) afirma:A primeira caracterstica da atitude filosfica negativa, isto , um dizer no ao senso comum, aos pr-conceitos, aos pr-juzos, aos fatos e s idias da experincia cotidiana, ao que todo mundo diz e pensa, ao estabelecido. A segunda caracterstica da atitude filosfica positiva, isto , uma interrogao sobre o que so as coisas, as idias, os fatos, as situaes, os comportamentos, os valores, ns mesmos. tambm uma interrogao sobre o porqu disso tudo e de ns, e uma interrogao sobre como tudo isso assim e no de outra maneira. O que ? Por que ? Como ? Essas so as indagaes fundamentais da atitude filosfica. A face negativa e a face positiva da atitude filosfica constituem o que chamamos de atitude crtica e pensamento crtico.

De acordo com a historiografia, o surgimento da filosofia ocorreu do final do sculo VII ao incio do sculo VI a.C. nas colnias gregas da sia Menor. Particularmente na regio da Jnia, em Mileto, Tales reconhecido como o primeiro filsofo. Para Plato (427-347 a.C.) e Aristteles (384-322 a.C.), foi o thauma, ou seja, a experincia profunda de espanto, admirao e perplexidade, que originou o pensar filosfico. a esta experincia que se refere Scrates no dilogo com Teeteto:Teeteto Pelos deuses, Scrates, causa-me grande admirao o que tudo isso possa ser, e s de consider-lo, chego a ter vertigens. Scrates Estou vendo, amigo, que Teodoro no ajuizou erradamente tua natureza, pois a admirao a verdadeira caracterstica do filsofo. No tem outra origem a filosofia. Ao que parece, no foi mau genealogista quem disse que ris era filha de Taumante (2008, edio eletrnica, p. 15-16).

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Diante da admirao (thauma), os homens do origem arte de filosofar. A filosofia, pois, comea quando algo desperta nossa admirao, espanta-nos, capta nossa ateno (que isso? por que assim? como possvel que seja assim?), interroga-nos insistentemente, exige uma explicao (IGLSIAS, 2005, p. 14-15). Com efeito, esta ao de admirar-se e interrogar-se frente aos diversos acontecimentos da vida cotidiana caracterstica do ser humano. Perseguindo a raiz do conceito philsophos, em Heidegger encontro a afirmao de que foi criado por Herclito. Para Heidegger (1999, p. 32),O adjetivo grego philsophos significa algo absolutamente diferente que os adjetivos filosfico, philosophique. Um anr philsophos aquele, hs philei t sophn; philein, que ama a sophn significa aqui, no sentido de Herclito: homologein, falar assim como o Lgos fala, quer dizer, corresponder ao Lgos. Este corresponder est em acordo com o sophn. Acordo harmona. O elemento especfico de philein do amor, pensado por Herclito, a harmonia que se revela na recproca interao de dois seres, nos laos que se unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro. O anr philsophos ama a sophn. O que esta palavra diz para Herclito difcil traduzir. Podemos, porm, elucid-lo a partir da prpria explicao de Herclito. De acordo com isto, t sophn significa: Hn Pnta Um () Tudo. Tudo quer dizer aqui: Pnta t nta, a totalidade, o todo do ente. Hn, o Um, designa: o que um, o nico, o que tudo une. Unido , entretanto, todo o ente no ser. O sophn significa: todo ente no ser. Dito mais precisamente: o ser o ente. Nesta locuo, o traz uma carga transitiva e designa algo assim como recolhe. O ser recolhe o ente pelo fato de que o ente. O ser o recolhimento Lgos. Todo ente no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quando no de modo ofensivo. Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser, ningum precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente aquilo que . Qual a outra soluo para o ente a no ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permanea recolhido no ser, que no fenmeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, e a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos o mais espantoso.

vital a elucidao feita por Heidegger para o entendimento do que a filosofia. A partir da ligao do ente no ser, a filosofia "procura o que o ente enquanto . A filosofia est a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser (HEIDEGGER, 1999, p. 33). Na mesma linha de raciocnio, Heidegger tambm traz, em sua Conferncia Que isto A filosofia?, uma discusso muito salutar em torno do espanto.[...] o espanto arkh ele perpassa qualquer passo da filosofia. O espanto pthos. Traduzimos habitualmente pthos por paixo, turbilho afetivo. Mas pthos remonta a pskhein, sofrer, aguentar, suportar, tolerar, deixarse levar por, deixar-se convocar por. ousado, como sempre em tais casos, traduzir pthos por dis-posio, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmoniza e nos con-voca por

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um apelo. Devemos, todavia, ousar esta traduo porque s ela nos impede de representarmos pthos psicologicamente no sentido da modernidade. Somente se compreendermos pthos como dis-posio (dis-position) podemos tambm caracterizar melhor o thaumzein, o espanto. No entanto detemo-nos (tre em arrt). como se retrocedssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e no de outra maneira. O espanto tambm no se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no prprio ato de retroceder e manter-se em suspenso ao mesmo tempo atrado e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto a disposio na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto a disposio em meio qual estava garantida para os filsofos gregos a correspondncia ao ser do ente (HEIDEGGER, 1999, p. 38).

Estas palavras de Heidegger, assim como as de Chau, Saviani e Plato ditas anteriormente, em torno da filosofia e do ato de espantar-se, so fundamentais para a compreenso da raiz conceitual dos termos empregados na caminhada metodolgica das pesquisas que se ancoram no Mtodo Filosfico como tambm na ao problematizadora que estas originam. Fundamentais, afirmo ainda, porque possibilitam a efetivao do ato de filosofar. Desde o sculo VI a.C. at os nossos dias, a filosofia passou por diversos perodos: Filosofia Antiga (do sculo VI a.C. ao sculo VI d.C.), Filosofia Patrstica (do sculo I ao sculo VII), Filosofia Medieval (do sculo VIII ao sculo XIV), Filosofia da Renascena (do sculo XIV ao sculo XVI), Filosofia Moderna (do sculo XVII a meados do sculo XVIII), Filosofia da Ilustrao ou Iluminismo (meados do sculo XVIII ao comeo do sculo XIX) e Filosofia Contempornea (meados do sculo XIX em diante). Esta ideia de periodizao, embora reconhecendo-se que no h unanimidade entre os historiadores quanto delimitao de cada perodo, e mesmo que aqui no seja analisado profundamente cada um deles, permite ampliar o olhar sobre o transcorrer da histria da filosofia, bem como perceber em cada perodo importantes avanos no pensar filosfico. Guardadas as especificidades de cada tempo histrico, na base de toda esta evoluo ainda que muitos no a entendam como avano esteve sempre presente o amor ao saber e o espanto diante dos fatos que se apresentaram em cada poca. Hodiernamente, em face do avano das cincias9, muitos questionam a validade do conhecimento filosfico. Ser que na atualidade a filosofia perdeu suaA partir do Renascimento, estudiosos procuraram novas formas para compreender os fenmenos naturais. Sendo assim, criaram o Mtodo Experimental (utilizado inicialmente pela Fsica e, posteriormente, pela Qumica, pela Biologia, entre outras). Desta forma, a Filosofia, assim como a Histria, a Sociologia e as demais Cincias Humanas que trabalham com outros mtodos, acabou9

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razo de existir? O ato de filosofar acabou sendo substitudo pelo praticismo dos tempos modernos? Por que a filosofia precisa ainda e sempre reafirmar sua importncia? So inmeros os questionamentos que advm acerca do pensar filosfico na contemporaneidade. Theodor Adorno, na exposio sobre A atualidade da filosofia, faz este importante alerta no que tange desvalorizao da filosofia atualmente: A liquidao da filosofia tem sido empreendida, com uma seriedade jamais vista, por parte da cincia, particularmente da lgica e da matemtica (ADORNO, 2007, p. 4). Alm desta influncia, apontada por Adorno, insisto no praticismo com que as pessoas conduzem suas vidas, como tambm um dos fatores que conduziram a filosofia para este lugar paradoxal de pouca relevncia. Tal praticismo resultante da estrutura capitalista em que vivemos. Muitos se indagam sobre as vantagens de refletir de forma crtica sobre o que est acontecendo. As pessoas passaram a agir mecanicamente. A grande maioria, seguindo os passos da Cincia Moderna, apoia-se numa prtica cega que leva a uma mecanizao da vida, como denuncia Horkheimer no texto Responsabilidad y Estudio. Esta mecanizao ganha fora e pode converter-se[...] en una ideologa para los que propiamente no querran que fuese de otro modo y que tranquilizam su conciencia pensando que no puede ser de otro modo, pues lo que impide a los hombres la distancia intelectual y la independencia no es solamente algo poderoso y enemigo suyo, sino asimismo algo cmodo que reclaman porque est ya preformado en ellos mismos (HORKHEIMER, 1966, p. 84).

Como bem afirmou Horkheimer, a mecanizao leva a um processo de acomodao que acaba legitimando-se como ideologia que promove a estagnao social. O ato de refletir criticamente sobre a realidade tornou-se desnecessrio e at perigoso, pois medida que as pessoas questionam o seu entorno, desacomodamse, inserem-se num processo de conscientizao e assim podem ser ameaas ao regime institudo. Enfim, outro ponto a ser destacado o modismo que dita padres comportamentais e acaba por alienar as pessoas ainda mais. Infelizmente, diante da atual conjuntura social, econmica, histrica e educacional, filosofar no parece estar na moda. Poderia enumerar outros fatores que levaram a filosofia ao lugar (ou seria no-lugar?) onde se encontra. Aponto estes trs aspectos (praticismo, mecanizaodesconsiderada como saber vlido. Hoje, quando algum fala de Cincia, logo surge a identificao com aquelas reas que utilizam o Mtodo Experimental.

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do pensamento e modismo) por entender que so os mais relevantes para discutir a filosofia no mbito das pesquisas educacionais. Cabe destacar, neste sentido, que os pesquisadores que conduzem suas investigaes amparados pela metodologia filosfica, experimentam cotidianamente um certo descrdito em relao a seus trabalhos em virtude destes trs entraves que se tornaram corriqueiros nas pesquisas da rea. mister, portanto, resgatar a importncia da reflexo filosfica como forma de problematizar os contextos em que se inserem as pesquisas em educao, desacomodando o praticismo ingnuo e a mecanizao do conhecimento fortemente presentes na prtica educacional contempornea. necessrio, ainda, retomar o questionamento de onde parti: Para que filosofia? Por que ainda comum a indagao acerca do porqu e do para qu da filosofia, da sua importncia, e no nos questionamos sobre a relevncia de outras reas do conhecimento? Chau (1997, p. 13) faz uma importante declarao neste sentido:Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa s tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prtica, muito visvel e de utilidade imediata. Por isso, ningum pergunta para que as cincias, pois todo mundo imagina ver a utilidade das cincias nos produtos da tcnica, isto , na aplicao cientfica realidade. [...] As cincias pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graas a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, atravs de instrumentos e objetos tcnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora, todas essas pretenses das cincias pressupem que elas acreditam na existncia da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicao prtica de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeioados. Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relao entre teoria e prtica, correo e acmulo de saberes: tudo isso no cincia, so questes filosficas. O cientista parte delas como questes j respondidas, mas a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.

Resta, portanto, evidente a presena da filosofia nos prprios fundamentos da cincia. O que importa, agora, legitimar cotidianamente esta presena nos mais diferentes contextos, principalmente no mbito das pesquisas em educao.

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1.2 A Filosofia como possibilidade de problematizao da realidade educacional: a constituio do mtodo filosfico O movimento argumentativo empreendido anteriormente buscou trazer discusso a origem, a caminhada na histria e a imagem atual da Filosofia para que, desta forma, pudesse ser mais nitidamente compreendida a Metodologia Filosfica aplicada nas pesquisas em educao. Antes, porm, de enfrentar mais detidamente esta questo, pertinente recordar a diferenciao entre mtodo de pesquisa e mtodo de exposio, conforme a abordagem de Marx no Prefcio da 2 edio de O Capital. mister, sem dvida, distinguir, formalmente, o mtodo de exposio do mtodo de pesquisa. A investigao tem de apoderar-se da matria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexo ntima que h entre elas. S depois de concludo esse trabalho que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficar espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada (MARX, 2003b, p. 28).

A partir da afirmao de Marx, possvel perceber a atividade de pesquisa como duplo movimento: o primeiro a investigao dos conceitos e, somente aps a realizao deste, ocorre o segundo movimento, que a exposio dos achados. A partir desta pista inicial, entretanto, preciso avanar para o ncleo mesmo da metodologia filosfica, ou seja, necessrio atentar para a articulao do conceito com a verdade. Cada conceito deve ser visto como fragmento de uma verdade total em que encontra o seu significado. precisamente a construo da verdade a partir desses fragmentos que a principal preocupao da filosofia (HORKHEIMER, 2003, p. 168). A no observncia deste princpio leva a um esvaziamento do conceito, enfraquecendo-o. Deste modo, a utilizao exacerbada de certos conceitos acaba por convert-los em modismos, sem o necessrio rigor e, por consequncia, sem articulao com a totalidade complexa da verdade. Um exemplo, que temos observado no presente momento histrico, o caso do conceito excluso (Cf. OLIVEIRA, 2004, p. 16 et seq.). No se trata, no entanto, de um caso isolado. Fato semelhante vem ocorrendo com o emprego de muitos conceitos nas pesquisas em educao. A Metodologia Filosfica procura, justamente, colocar-se contra este tipo de utilizao do conceito. Ela busca radical e rigorosamente sua origem, sempre

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observando-o dentro da estrutura global. Em face da anlise radical, rigorosa e de conjunto, rompe com o utilitarismo dos demais mtodos (que se embasam na forma simplista de tcnicas) e se prope a refletir criticamente acerca da realidade, problematizando-a. Folscheid e Wunenburger (1999, p. VIII) auxiliam na compreenso da questo.O mtodo obedece a uma necessidade interna e no a um capricho vindo de alguma outra parte. Seria intil, portanto, esperar dominar tcnicas se no se compreende a razo de ser que est inscrita no modo de pensar filosfico. Por isso a metodologia filosfica no tem existncia em si, autonomia em relao disciplina; ao contrrio, ela se confunde com o conjunto das exigncias tericas e especulativas do ato de filosofar, cujo objetivo dar s idias e reflexo o mais obstinado rigor e a maior perfeio possvel. A preocupao metodolgica ultrapassa assim, largamente, a ambio utilitarista, uma vez que segue o movimento pelo qual a reflexo espontnea se transforma em pensamento filosfico.

Ao observar o modo como Folscheid e Wunenburger abordam questes como necessidade, rigor e preocupao, lembro dos trs tipos de responsabilidades descritas por Andr Berten, os quais se tornam imprescindveis quando o pesquisador se apoia nesta concepo metodolgica. Berten (2004, p. 116) argumenta que a responsabilidade filosfica decorre da aproximao da responsabilidade tica e, posterior a esta responsabilidade filosfica, ocorre a aproximao da responsabilidade intelectual. Dito de outro modo, diante da reflexo filosfica a que se prope a pesquisa, que parte de um enfrentamento eticamente responsvel do pesquisador com o objeto de estudo, ele se aproxima da questo epistemolgica da discusso que pretende fazer. Tais aproximaes (tica, filosfica e epistemolgica) do pesquisador para com o seu objeto de estudo se do, primeiramente, atravs das obras produzidas pelos tericos que estudam este objeto, especialmente os chamados clssicos. H, neste sentido, um constante ler e reler as obras. talo Calvino, em seu livro Por que ler os clssicos, cita quatorze razes para a leitura/releitura dos clssicos. Destaco, entre elas, as seguintes:4. Toda leitura de um clssico uma releitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clssico na realidade uma releitura. [...] 6. Um clssico um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. [...] 7. Os clssicos so aqueles livros que chegam at ns trazendo as marcas das leituras que precederam a nossa (CALVINO, 2002, p. 11).

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As observaes de Calvino so pertinentes nesta discusso, pois a partir da leitura e releitura das obras de importantes tericos que o pesquisador ilumina sua aproximao com o objeto de estudo. Na mesma direo, Hans-Georg Gadamer retoma o conceito de clssico subestimando sua qualidade meramente temporal com a finalidade de enfatizar seu potencial normativo:[...] lo clsico es una verdadera categora histrica porque es algo ms que el concepto de una poca o el concepto histrico de un estilo, sin que por ello pretenda ser un valor suprahistrico. No designa una cualidad que se atribuya a determinados fenmenos histricos, sino un modo caracterstico del mismo ser histrico, la realizacin de una conservacin que, en una confirmacin constantemente renovada, hace posible la existencia de algo que es verdad (GADAMER, 1984, p. 356).

Este processo de ler e reler os textos clssicos uma das partes que compem a Metodologia Filosfica. As posies de Calvino e Gadamer ainda so reveladoras de um outro ponto a ser destacado dentro do exposto: a presena da Dialtica10 neste movimento. A fertilidade das teorias e a capacidade delas sempre renovarem-se no transcorrer da histria possibilitam o novo olhar para os problemas da realidade a partir dos olhos da teoria. Mesmo que esta teoria j tenha sido construda h algum tempo, a renovao sempre se d quando confrontada no mesmo ou em outro contexto, por um pesquisador que j tenha realizado suas reflexes baseadas nela e a retoma, ou ainda por aquele que a encontra pela primeira vez. Na verdade, todo reencontro um novo encontro, toda releitura uma nova leitura (ou vice-versa). Na fala de Calvino, vejo muito de Herclito de feso11 ePara fins de explicitao do conceito Dialtica tomo, a partir da matriz marxiana, a seguinte contribuio de Japiass e Marcondes (2006, p. 74): Marx faz da dialtica um mtodo. Insiste na necessidade de considerarmos a realidade socioeconmica de determinada poca como um todo articulado, atravessado por contradies especficas, entre as quais a da luta de classes. A partir dele, mas graas, sobretudo, contribuio de Engels, a dialtica se converte no mtodo do materialismo e no processo do movimento histrico que considera a Natureza: a) como um todo coerente em que os fenmenos se condicionam reciprocamente; b) como um estado de mudana e de movimento; c) como o lugar onde o processo de crescimento das mudanas quantitativas gera, por acumulao e por saltos, mutaes de ordem qualitativa; d) como a sede das contradies internas, seus fenmenos tendo um lado positivo e o outro negativo, um passado e um futuro, o que provoca a luta das tendncias contrrias que gera o progresso. Tomo tambm a contribuio de Trivios no esclarecimento e na importncia deste conceito para esta metodologia: A dialtica afirma que tudo muda, se transforma, que nada absoluto, salvo a mudana; que tudo passageiro, histrico, que tudo est em movimento. Esse movimento produzido pela dialtica. Por isso diz-se que a contradio o motor da dialtica. Aceitar esse ponto de vista significa ter uma concepo ontolgica que exige do pesquisador uma abordagem epistemolgica capaz de apreender a dinamicidade dos fenmenos que se pretende estudar (TRIVIOS, 1999, p. 22). No prximo captulo, o tema em questo ser tratado com mais profundidade. 11 Trabalho com a edio organizada por Gerd Bornheim e doravante me refiro aos fragmentos pelo nmero.10

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do constante devir. No fragmento XII, ele diz: Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas guas. Mas tambm almas so exaladas do mido. De fato, no movimento construdo pelo pesquisador com a teoria, a cada nova leitura, ele j no mais o mesmo nem a obra como anteriormente: pesquisador e teoria j so outros ou, como diria Herclito de feso, o homem e o rio mudaram. No posso concluir a exposio do que a Metodologia Filosfica sem a adequada compreenso do conceito de problema e, por conseguinte, da problematizao. Tomando o argumento desenvolvido por Saviani (1996), em obra j citada anteriormente, constato a necessidade de ultrapassar os usos correntes do termo12, para que seja possvel recuperar a problematicidade do problema (SAVIANI, 1996, p. 13). Para tanto, o autor chama especial ateno necessidade:[...] este conceito de necessidade fundamental para se entender o significado essencial da palavra problema. Trata-se, pois, de algo muito simples, embora freqentemente ignorado. A essncia do problema a necessidade. Com isto possvel agora destruir a "pseudo-concreticidade" e captar a verdadeira "concreticidade". Com isto, o fenmeno pode revelar a essncia e no apenas ocult-la. Com isto ns podemos, enfim, recuperar os usos correntes do termo "problema", superando as suas insuficincias ao referi-los nota essencial que lhes impregna de problematicidade: a necessidade. Assim, uma questo, em si, no caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta desconhecida; mas uma questo cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer; eis a um problema. Algo que eu no sei no problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, ento, diante de um problema. Da mesma forma, um obstculo que necessrio transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dvida que no pode deixar de ser dissipada so situaes que se nos configuram como verdadeiramente problemticas (SAVIANI, 1996, p. 14).

Neste processo de esclarecimento sobre o conceito de problema, Saviani declara que h um lado subjetivo e um lado objetivo na construo do mesmo e que estes se unem intimamente, numa relao dialtica. Em face disto, o autor afirma que a compreenso do conceito de problema acontece a partir da necessidade. Contudo, Saviani (1996, p. 14-15) pondera que esta necessidade[...] s pode existir se ascender ao plano consciente, ou seja, se for sentida pelo homem como tal (aspecto subjetivo); h, porm, circunstncias concretas que objetivizam a necessidade sentida, tornando possvel, de um As observaes de Saviani, diferenciando o conceito em debate dos simples termos problema ou questo, confirmam o que j expus anteriormente ao discutir a importncia da anlise radical, rigorosa e global dos conceitos utilizados nas pesquisas em educao. preciso, pois, superar o uso apressado e irrefletido dos termos e atentar criticamente para os conceitos que se quer expressar por meio destes.12

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lado, avaliar o seu carter real ou suposto (fictcio) e, de outro, prover os meios de satisfaz-la. Diramos, pois, que o conceito de problema implica tanto a conscientizao de uma situao de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situao conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo).

Por fim, Saviani (1996, p. 16) assevera que ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexo. Desta forma, a problematizao se origina e se constitui como a reflexo filosfica crtica, radical e global oriunda da necessidade subjetiva e objetiva, diante da realidade. A problematizao busca a desacomodao das situaes-problema do cotidiano a fim de coloc-las sob permanente movimento de indagao, de pergunta. Tomo ainda a contribuio de Adorno (2007, p. 5) ao comentar que:[...] a filosofia deva proceder interpretando cada vez mais com a pretenso da verdade, sem possuir nunca uma chave segura de interpretao; que nas figuras-enigma do existente e em seus admirveis entrelaamentos no lhe sejam dados mais que fugazes indcios, que se esfumam.

Com efeito, ao longo do desenvolvimento de uma pesquisa, a metodologia filosfica coloca-se sempre como um movimento de investigao e de problematizao da temtica em estudo. Assim, a partir deste pressuposto, acredito ser pertinente insistir na relevncia da metodologia filosfica para as pesquisas em educao. Um campo de estudos que visa compreender as relaes educacionais em sua complexidade histrica no pode prescindir de uma concepo epistemolgica que toma com a mxima radicalidade a reflexo crtica e indagadora. Entendo, portanto, que a metodologia filosfica constitui importante diferencial em relao a outras formas de investigao, contribuindo para as mais diversas pesquisas no campo das cincias humanas, na medida em que ultrapassa a simples exposio de tcnicas e avana para o intenso e inconcluso caminhar indagador que surge de um problema.

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2 O caminho terico escolhido: Karl Marx e Paulo Freire

Hay hombres que luchan un da y son buenos. Hay otros que luchan un ao y son mejores. Hay quienes luchan muchos aos y son muy buenos. Pero hay los que luchan toda la vida: esos son los imprescindibles. Bertolt Brecht

Partindo do movimento empreendido no captulo anterior, no qual busquei delinear como se sustentaria uma metodologia filosfica, que tivesse como fundamento balizador a problematizao, bem como discutir a importncia desta no desenvolver de toda a caminhada da pesquisa, no presente captulo busco tematizar as perspectivas terico-metodolgicas de Karl Marx e Paulo Freire. Gostaria ainda de destacar, nestas linhas iniciais, a relevncia da epgrafe acima mencionada. As palavras de Bertold Brecht cabem, perfeitamente, no contexto da apresentao deste escrito tendo em vista os autores aqui estudados. Tanto Marx quanto Freire so homens que transcenderam seus tempos. As lutas travadas ao longo de suas vidas, as quais esto impregnadas em suas obras, revelam o quanto estes dois homens so imprescindveis, como disse Brecht em seu poema. Marx e Freire so imprescindveis porque iluminam a reflexo nos mais distintos lugares onde homens e mulheres esto inseridos. Iluminam porque os tornam indignados com as situaes que fazem estes homens e estas mulheres se desviarem de sua caminhada natural em busca da humanizao. Dada a importncia de Marx e Freire, primeiramente, antes da apresentao das teorias propriamente ditas, trago as suas histrias de vida13. Mesmo correndo o risco de ser um tanto quanto desnecessria tal atitude, em virtude de que h um vasto e disponvel material que realiza essa funo, desenvolvo esse movimento, pois entendo que ao estarmos completamente inseridos nas histrias de vida daqueles que baseiam nossas pesquisas compreendemos melhor suas teorias. Isso13

A expresso histria de vida (como tambm o seu plural histrias de vida), quando utilizada neste captulo, deve ser entendida como sinnimo de biografia.

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ocorre com Marx e Freire. A contribuio que gera, para a investigao, o pesquisar suas teorias em articulao com a leitura do por eles vivido indiscutvel. So suas histrias de vida e os enfrentamentos nelas ocorridos que nos mostram o porqu da escolha de Marx pelos proletrios e da opo de Freire pelos esfarrapados do mundo. Compreendemos o motivo de suas teorias estarem sempre vinculadas transformao de um sistema opressor em um modelo justo e humano para todos, pois toda teoria do conhecimento se apia, implcita ou explicitamente, sobre uma determinada teoria da realidade e pressupe uma determinada concepo da realidade mesma (KOSIK, 1976, p. 33). E neste desvelar de suas vidas nos aproximamos cada vez mais das suas teorias. No corpo deste captulo, penso ainda ser importante trazer ao debate o motivo pelo qual tematizo a questo do mtodo (ou perspectiva tericometodolgica), em uma pesquisa sobre a escola pblica. Como j expus anteriormente, hoje temos uma leitura que compromete a questo do mtodo ou de qualquer expresso que se vincule a este ( o caso do enunciado perspectiva terico-metodolgica). Compromete pois, muitas vezes, ligamos mtodo ou perspectiva terico-metodolgica tcnica, o que um profundo equvoco. Tomo como um dos pontos importantes para a discusso nesta pesquisa a importncia dos mtodos ou das perspectivas terico-metodolgicas, que diferem obrigatoriamente de tcnicas, como bases epistemolgicas para problematizar as mais diferentes realidades, inclusive a realidade educacional-escolar. Somente mtodos que se configuram como teorias epistemolgicas so capazes de iluminar a realidade e fornecer subsdios para problematizar um outro lugar. Este o caso dos mtodos ou das perspectivas terico-metodolgicas de Marx e Freire.

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2.1 Karl Marx 2.1.1 Os caminhos percorridos por Karl Marx Karl Heinrich Marx nasceu em 5 de maio de 1818, na cidade de Trier14 que, na poca, tinha uma populao em torno de 12 mil habitantes. Marx, conforme revela Gadotti (1991, p. 12),[...] nasceu exatamente na metade do perodo compreendido entre duas datas importantes: 1789 (queda da Bastilha e marco inicial da Revoluo Francesa) e 1848 (quando houve revolues por toda Europa, sobretudo na Alemanha e na Frana, misturando ideais liberais, socialistas e de identidade nacional). Esse perodo, em que ocorreu um complexo e conflituado desenvolvimento da indstria, conhecido como a Era das Revolues.

Karl Marx era filho de Hirschel e Henriette Marx. Sua famlia era de classe mdia, sendo seus pais judeus que, posteriormente, converteram-se ao protestantismo. Hirschel Marx era um respeitado advogado em Trier e sua me, Henriette15, cuidava das tarefas do lar. De 1798 at 1814, Trier pertencia Frana. A partir de 1815, com a derrota de Napoleo, a Prssia anexou ao seu territrio a regio do Reno, onde estava localizada Trier. Tal mudana veio a modificar a vida da Famlia Marx. Neste mesmo ano, em face do novo momento poltico inaugurado naquele perodo, Hirschel Marx temendo, principalmente, represlia em decorrncia das leis antissemitas publicadas pelo rei da Prssia, Frederico Guilherme III, as quais proibiam que os cargos administrativos bem como as profisses liberais fossem exercidos por judeus, v-se forado a renegar suas origens. Assim, converteu-se ao protestantismo (OLIVEIRA, 1997, p. 18). Merece destaque que a escolha de Hirschel pelo protestantismo ocorreu, em grande parte, porque esta religio seria mais condizente com os ideais liberais tidos por ele em contrapartida das orientaes catlicas da poca. A troca

Em algumas bibliografias o nome da cidade natal de Marx aparece como Trves, a qual tambm uma nomenclatura correta sobre a denominao da localidade em questo. Neste caso, Trves representa a escrita, em francs, do nome da cidade alem Trier. 15 Uma declarao pitoresca atribuda senhora Henriette Marx diz respeito ao fato de que, anos mais tarde, quando o filsofo j havia produzido muito de suas reflexes acerca do Capital e estando a passar dificuldades financeiras, afirmou que le teria feito melhor se, ao invs de escrever o capital, tivesse se dedicado a ganh-lo (KONDER, 1968, p. 18).

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por outra religio acarretou ainda na alterao do nome do pai de Marx, o qual passou a se chamar Heinrich. Heinrich e Henriette tiveram nove filhos: Moritz-David, Sofia, Karl, Hermann, Henriette, Luza, Emlia, Carolina e Eduardo. Destes nove, cinco faleceram ainda jovens devido tuberculose. Sofia, a irm mais velha de Marx, acabou, ao longo de sua vida, sendo uma confidente do filsofo. Ao tratar sobre a infncia de Marx e sobre determinadas particularidades manifestadas na juventude e que se prolongaram por sua existncia, Oliveira (1997, p. 19) afirma que:A infncia de Karl Marx passa-se em ambiente tranqilo e relativamente abastado. Desde muito jovem j demonstra algumas caractersticas que iro acompanh-lo por toda a vida: exmio contador de estrias, o que o torna bastante apreciado, especialmente por suas irms, a quem dedica muito de seu tempo; por outro lado, de uma ironia mordaz e inteligente, o que, por vezes, o faz temido mesmo pelos amigos e colegas de escola.

Os estudos de Marx, no Liceu de Trier, vo de 1830 a 1835. No final deste perodo, merecedor de ateno um texto muito especial na histria de vida do pensador Marx: Reflexes de um jovem a propsito da escolha da profisso16. Neste texto, Marx esboou algumas das ideias que percorrem tambm toda a sua trajetria de vida pessoal e intelectual. Conforme Oliveira (1997, p. 19-20):Um dos elementos presentes nesse escrito escolar diz respeito ao que acabou sendo uma das preocupaes centrais de toda a sua produo terica, ou seja, as condies objetivas que coarctam a possibilidade de os indivduos disporem plenamente de seus destinos. A idia desenvolvida a de que h sempre barreiras e dificuldades ao longo da vida das pessoas, ocasionando que o seu desenvolvimento ocorra contando com certos elementos que elas no podem determinar. [...] Sem dvida, j se pode perceber nesse primeiro passo a preocupao com a influncia das condies sociais sobre a atividade humana. No que diz respeito ao tema especfico da escolha profissional, a composio revela que o jovem estudante no estava disposto a se deixar prender no crculo estreito dos meros interesses pessoais.

O excerto a seguir faz parte desta produo de Marx acerca da escolha profissional:

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Ttulo da proposta de redao a ser construda ao longo do exame final de lngua alem no Liceu de Trier.

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[...] o guia principal que nos deve direcionar na escolha de uma profisso a felicidade da humanidade, a nossa prpria perfeio. No se deve pensar que esses dois interesses possam lutar um contra o outro, que um teria que destruir o outro; ao contrrio, a natureza do homem constituda de tal forma que ele pode alcanar sua prpria perfeio apenas trabalhando pela perfeio, pela felicidade dos homens seus semelhantes (MARX apud OLIVEIRA, 1997, p. 20).

Diante das palavras expressas pelo jovem Marx no transcorrer de sua redao, Oliveira (1997, p. 20-21) assevera que:Assim, se a perfeio de um homem reside, especialmente, em fazer outros felizes, conseqentemente, a profisso mais adequada ser sempre aquela que propicia um trabalho pelo maior nmero possvel de pessoas, em ltima instncia, pela humanidade. E certamente aqui dispensvel ressaltar que no foi outra sua obstinao por toda a vida, seja no mbito familiar e das amizades mais prximas, seja em nvel dos temas universais que mereceram todos os seus esforos tericos e prticos.

A aproximao com Jenny von Westphalen, que era quatro ano mais velha que Marx e que viria a se tornar sua esposa anos mais tarde, deu-se em razo de que ele era amigo do irmo de Jenny, Edgar. Em virtude desta amizade, Marx acabou frequentando a casa da Famlia von Westphalen. Das visitas a esta famlia e das longas conversas com o baro Ludwig von Westphalen, pai de Jenny, Marx acabou nutrindo um profundo apreo por este. Tamanha considerao dispensada ao baro faz Marx dedicar a ele a sua tese de doutorado defendida em 1841. Se com seu pai, Heinrich, Marx aprendeu a gostar de ler as obras de Lessing, Voltaire e Rousseau, com o pai de Jenny, Ludwig, tornou-se leitor de Homero e Shakespeare. Concludos os estudos no Liceu de Trier, Marx decidiu cursar Direito na Universidade de Bonn. Dos ltimos meses de 1835 at outubro de 1836, mantm-se nesta Universidade. L tambm fez estudos, alm daqueles vinculados ao prprio Direito, na rea de Histria, Arte, Filosofia e Literatura. Outro fato tambm marcou a passagem por Bonn: os hbitos bomios. O mo Karl, confuso, querendo abarcar o mundo com as mos, ps-se a freqentar um crculo de poetas e a gastar um tanto prodigamente o dinheiro de seu pai (KONDER, 1968, p. 34). Ao voltar a Trier, antes de sua transferncia para uma outra universidade, noivou secretamente de Jenny von Westphalen.

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Ao retornar ao mundo da universidade em outubro de 1836, agora, a Universidade de Berlim17, acabou aproximando-se dos estudos sobre a filosofia hegeliana. Participou, neste perodo, ativamente do movimento dos Jovens Hegelianos, o Doktorclub. Entretanto, Marx procurou se afastar do movimento por discordar da interpretao que seus colegas faziam quanto ao potencial da filosofia hegeliana. Em 15 de abril de 1841, Marx doutorou-se, pela Universidade Iena, com a tese sobre a Diferena entre as filosofias da natureza em Demcrito e Epicuro. Infelizmente um dos objetivos que tambm levou Marx ao doutorado ocupar uma cadeira na universidade e, desta forma, resolver seus problemas de ordem econmica no foi alcanado. Buscando resolver a situao financeira desfavorvel em que se encontrava, comeou a escrever textos para jornais. Em abril de 1842, iniciou a trabalhar na Gazeta Renana, jornal editado em Bonn. Tamanho foi seu sucesso no jornal que, em 11 de outubro de 1842, Marx tornou-se diretor geral do mesmo, transferindo-se para Colnia. Contudo, em janeiro de 1843, o jornal foi fechado pelos censores do governo prussiano devido publicao de uma matria contestando o absolutismo russo. Marx, ento, emigrou para a Frana18. No ano de 1843, um fato acabou sendo marcante na vida de Marx: o casamento com Jenny, aps sete anos de noivado. Desta unio, Marx e Jenny tiveram dois filhos e quatro filhas: Jenny (mesmo nome de sua me), Laura, Eleonor, Guido, Francisca e Edgard. Destes, trs vieram a morrer ainda pequenos, durante o tempo em que o casal atravessava dificuldades financeiras. Embora passando por problemas de ordem econmica, Marx no deixava de manifestar o seu carinho por seus filhos. Ele era um pai amoroso e meigo. As filhas o apelidaram de Mouro, devido pele morena. A famlia passeava muito, a p, pelos parques de Londres, onde fazia piqueniques (GADOTTI, 1991, p. 20). Se com as filhas era um pai

De acordo com Konder (1968, p. 35): A Universidade de Berlim, por sua vez, na qual Karl se matriculou, se caracterizava por um ambiente mais srio do que o da de Bonn. Sobre ela se projetava a sombra espiritual do maior pensador que o mundo tivera nas dcadas precedentes, que ali lecionara e morrera em 1831: Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A influncia de Hegel dominava o meio berlinense. 18 A vida de Marx e de sua famlia tambm marcada pela alternncia de residncia entre alguns pases. Esta constante mudana, at 1849 quando fixa residncia em Londres, acabou sempre sendo provocada pelo mesmo motivo: a exposio de suas ideias que iam de encontro aos interesses daqueles que detinham o poder. Durante idas e vindas, Marx morou na Alemanha, na Prssia, na Frana, na Blgica e na Inglaterra.

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carinhoso, o mesmo ocorria com Jenny, uma companheira incansvel na vida do filsofo. Embora atravessando momentos muito difceis, jamais o abandonou, mantendo-se sempre firme ao seu lado e reconhecendo o grande trabalho realizado por seu marido, mesmo este no tendo o devido reconhecimento e apoio das demais pessoas. Com a Revoluo de 1848, Marx abandonou o jornalismo na Alemanha e tentou ganhar a vida na Inglaterra, j em 1849, onde iria passar o resto de sua vida com suas filhas e esposa. Uma outra pessoa que merece um destaque especial na vida de Marx Friedrich Engels, grande amigo e companheiro em sua produo terica. Talvez nem Marx como tambm Engels imaginassem que, do encontro ocorrido em novembro de 1842, na redao da Gazeta Renana, fosse surgir uma imensa amizade e uma bela parceria de trabalho. Foi Engels quem motivou o filsofo para o estudo da Economia Poltica, fornecendo-lhe todos os dados sobre a indstria na Inglaterra (GADOTTI, 1991, p. 18). Cabe destacar ainda os contedos das correspondncias que Marx e Engels trocavam. Estas explicitavam, alm das consideraes acerca da obra que estava sendo construda/analisada naquele momento, o imenso respeito e carinho que um tinha para com o outro. Ao longo de toda sua vida, Marx, contando com a parceria de Engels, teve uma produo terica extensa e densa. Concomitantemente ao rduo trabalho de estudo sobre o capital e os temas que se relacionavam a este, a sade de Marx foi sofrendo duros golpes.Em 1875 seu estado de sade era bem precrio, fruto dos anos de misria e sofrimento. Tinha dores de cabea, bronquite crnica e furnculos. Nos ltimos anos de vida, sofria de dor de garganta e de complicaes pulmonares. Marx procurou estaes de repouso, que trouxeram apenas melhoras passageiras. Mas ele manteve o ritmo de trabalho (GADOTTI, 1991, p. 22).

Com a morte de Jenny, companheira de toda uma vida, em 2 de dezembro de 1881, Marx sofreu um grande choque. Sua sade, em decorrncia disso, teve um declnio considervel. Pouco mais de um ano aps a perda de Jenny, recebeu um novo golpe: sua filha, Jenny Longuet, faleceu em 11 de janeiro de 1883. Sua sade, que j se encontrava em estado delicado, agravou-se ainda mais.

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Em Londres, no dia 14 de maro de 1883, s quatorze horas e quarenta e cinco minutos, Karl Heinrich Marx morreu, de forma serena, sentado em sua poltrona e prximo sua mesa de trabalho. Ele foi sepultado no cemitrio de Highgate, na parte destinada queles que foram expulsos pela Igreja Anglicana. No ano de 1956, sobre o tmulo de Marx foi construdo um monumento que ostenta o lema que conduziu seus atos, seu pensamento e toda a sua vida: trabalhadores de todo o mundo, uni-vos (GADOTTI, 1991, p. 23). Engels produziu uma comovente orao de despedida para o seu fraterno amigo e a leu, ao lado da sepultura de Marx, no dia do funeral. Gadotti (1991, p. 22-23), em seu livro Marx: Transformar o mundo, cita um trecho da mesma:Marx era, antes de mais nada, um revolucionrio. Sua verdadeira misso na vida era contribuir, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituies estatais por esta suscitadas, contribuir para a libertao do proletariado moderno, que ele foi o primeiro a tornar consciente de sua posio e de suas necessidades, consciente das condies de sua emancipao. A luta era seu elemento. E ele lutou com uma tenacidade e um sucesso com quem poucos puderam rivalizar. Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Governos, tanto absolutos como republicanos, deportaram-no de seus territrios. Burgueses, quer conservadores ou ultrademocrticos, porfiavam entre si ao lanar difamaes contra ele. Tudo isso ele punha de lado, como se fossem teias de aranha, no tomando conhecimento, s respondendo quando necessidade extrema o compelia a tal. E morreu amado, reverenciado e pranteado por milhes de colegas trabalhadores revolucionrios - das minas da Sibria at a Califrnia, de todas as partes da Europa e da Amrica - e atrevo-me a dizer que, muito embora possa ter muitos adversrios, no teve nenhum inimigo pessoal.

Prova de tudo isso que afirmou Engels a irrefutvel obra deixada pelo filsofo a qual comprova a sua esperana de que o modelo social capitalista pudesse ser superado. A partir deste pressuposto, a filosofia marxiana serve como uma importante arma na luta por uma sociedade justa, igual em oportunidades para todos e que, por sua vez, contribua para a felicidade da humanidade, como j sonhava Marx em sua redao ginasial. 2.1.2 Karl Marx e sua perspectiva terico-metodolgica O escrito central, dentro da produo terica de Marx, no qual ele desenvolve, com mais propriedade, a questo metodolgica se encontra publicado na obra Contribuio Crtica da Economia Poltica, mais precisamente, no texto O

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Mtodo da Economia Poltica. Conforme afirmam Oliveira, na obra Marx e a Liberdade (1997), e Yamamoto, no escrito Marx e o Mtodo (1994), a tematizao feita neste captulo configura-se como o texto principal de Marx acerca da questo do Mtodo. Oliveira (1997, p. 120) traz esclarecimentos sobre o perodo em que fora concebido o estudo:Este texto foi escrito de fins de agosto a meados de setembro de 1857. Com ele Marx inicia os apontamentos feitos ao longo dos anos de 1857-8 e que somente foram publicados em conjunto no ano de 1939. A esta publicao, os editores do Instituto Marx-Engels-Lenin, atriburam o ttulo Grundisse der Kritik der politischen konomie (Rohentwurf). O mesmo escrito aparece numa edio em lngua portuguesa, na coleo Os Economistas, da Abril Cultural, onde apresentado como introduo a Para a crtica da economia poltica (Zur Kritik der politischen konomie), obra redigida por Marx entre agosto de 1858 e janeiro de 1859.

Yamamoto (1994, p. 44), ao confirmar tambm a importncia do referido escrito, assevera que a parte mais importante da Introduo a terceira: nela Marx se detm no mtodo da economia poltica. Entretanto, antes de adentrar no captulo sobre o mtodo e aps ter analisado as relaes entre Produo, Distribuio, Troca e Consumo e declarar, ao final de sua argumentao, que estes momentos no so idnticos, mas que so antes elementos de uma totalidade, diferenciaes no interior de uma unidade (MARX, 2003a, p. 246), Marx j deixa evidente um dos fundamentos de sua perspectiva terico-metodolgica: o princpio de que tudo se relaciona reciprocamente no interior do objeto analisado. Ainda neste pargrafo, que sucede o texto principal de anlise sobre a questo do mtodo, o autor adverte que ao passar por um movimento de transformao de uma das partes que compem o universo da totalidade, esta mudana, por conseguinte, incidir na transformao das outras partes que tambm formam este todo. H reciprocidade de ao entre os diferentes momentos, o que acontece com qualquer totalidade orgnica (MARX, 2003a, p. 246). Esta ltima observao de Marx muito importante: nela possvel observar que o princpio do movimento uma outra base da sua perspectiva tericometodolgica. Destaco ainda, perante a frase em anlise, que Marx aqui fornece um relevante indcio sobre sua construo terico-metodolgica: seu mtodo no subsidia somente as pesquisas em Economia Poltica, ele se constri como uma teoria que potencializa outras discusses em diversas realidades ou, como no dizer do prprio Marx, em qualquer todo orgnico.

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Corroborada ento a relevncia desta perspectiva terico-metodolgica de Marx, passo a tecer minhas consideraes a partir do captulo trs, alvo deste exame. Logo no comeo deste, Marx (2003a, p. 246-247) busca esclarecer um equvoco existente:Quando consideramos um determinado pas do ponto de vista da economia poltica, comeamos por estudar a sua populao, a diviso desta em classes, a sua repartio pelas cidades, pelo campo e beira-mar, os diversos ramos da produo, a exportao e a importao, a produo e o consumo anuais, os preos das mercadorias, etc. Parece que o melhor mtodo ser comear pelo real e pelo concreto, que so a condio prvia e efetiva; assim, em economia poltica, por exemplo, comear-se-ia pela populao, que a base e o sujeito do ato social de produo como um todo. No entanto, numa observao atenta, apercebemo-nos de que h um erro. A populao uma abstrao se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compe. Por seu lado, essas classes so uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supem a troca, a diviso do trabalho, os preos etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preo, etc., no nada.

A fala de Marx revela uma questo interessante: ao tomar a populao como ponto de partida desconsiderando tudo aquilo que a constitui e que constitudo por ela tambm, configura-se como uma abstrao e no como concreto. Urge, neste sentido, como necessidade primeira, perceber o vasto campo de relaes que se estabelece entre a populao e as demais partes. Para Oliveira (2004, p. 102-103):Na verdade, este todo que se tem como primeira viso do real, na medida em que uma apreenso sincrtica, imediata, no pode ainda ser considerado concreto. Ou, dito de outro modo, o todo que se tem nesse primeiro momento to-somente um abstrato, carente das mediaes conceituais capazes de torn-lo compreensvel.

Esta uma outra base epistemolgica importante para construir o desenho de sua perspectiva terico-metodolgica: uma primeira leitura feita do todo no o todo em sua concreticidade, puramente abstrao. Contrapondo a ideia exposta anteriormente, Marx (2003a, p. 247) declara:Assim, se comessemos pela populao teramos uma viso catica do todo, e atravs de uma determinao mais precisa, atravs de uma anlise, chegaramos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaramos a abstraes mais simples. Partindo daqui, seria necessrio caminhar em sentido contrrio at chegar finalmente de novo populao, que no seria, desta vez, a representao catica de um todo, mas uma rica totalidade de determinaes e de relaes numerosas.

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Este caminho proposto por Marx no excerto acima anlise e, o seu movimento contrrio, sntese torna-se uma possibilidade substantiva de, neste momento, efetivar-se a posse do todo concreto. Cabe salientar que este movimento marxiano diverge daquele utilizado pelos economistas do sculo XVII, na economia poltica. Enquanto no primeiro mtodo tem-se uma falsa viso do concreto, no segundo, proposto por Marx, torna-se possvel compreender que o objeto do estudo concreto porque passa por um processo de desconstruo e reconstruo.O concreto concreto por ser a sntese de mltiplas determinaes, logo, unidade da diversidade. por isso que ele para o pensamento um processo de sntese, um resultado, e no um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observao imediata e da representao (MARX, 2003a, p. 248).

A perspectiva terico-metodolgica de Marx faz crtica ao mtodo concebido, at aquele perodo, pela economia poltica porque, naquele mtodo inicial, reduz-se a plenitude da representao a uma mera determinao abstrata (MARX, 2003a, p. 248). J a concepo marxiana assegura que as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto pela via do pensamento (MARX, 2003a, p. 248). Esta viso de Marx, interessante destacar, ope-se leitura hegeliana pelo fato de que a mesma caiu na iluso de conceber o real como resultado do pensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo ao passo que o mtodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto espiritual (MARX, 2003a, p. 248). Contudo, Marx pondera que este modo no ainda o processo de fundamento do concreto j que:Para a conscincia - e a conscincia filosfica considera que o pensamento que concebe constitui o homem real e, por conseguinte, o mundo s real quando concebido -, portanto, o movimento das categorias surge como ato de produo real que recebe um simples impulso do exterior, o que lamentado cujo resultado o mundo; e isto (mas trata-se ainda de uma tautologia) exato na medida em que a totalidade concreta enquanto totalidade-de-pensamento, enquanto concreto-de-pensamento, de fato um produto do pensamento, da atividade de conceber; ele no , pois, de forma alguma o produto do conceito que engendra a si prprio, que pensa exterior e superiormente observao imediata e representao, mas um produto da elaborao de conceitos a partir da observao imediata da representao. O todo, na forma em que aparece no esprito como todo-depensamento, um produto do crebro pensante, que se apropria do mundo do nico modo que lhe possvel, de um modo que difere da apropriao

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desse mundo pela arte, pela religio, pelo esprito prtico (MARX, 2003a, p. 248-249).

Avanando neste movimento, e compreendendo as limitaes que qualquer grfico possa trazer no sentido de ilustrar a perspectiva terico-metodolgica marxiana haja vista que pelo pensamento as relaes estabelecidas entre as partes que compem o todo acontecem de forma dialtica, como ainda sabendo qu