Crianças más

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Crianças más Abri a janela. Silêncio morno. O Sol inundava um lado da rua estreita de casas esguias e cinzentas, projetando no passeio fronteiriço as sombras disfarçadas das mais afortunadas. Na casa da esquina, uma gaiola pintada de verde fazia prisioneiro o mais taciturno dos melros apanhados pelo rapazio do bairro, na última Primavera. À porta da taberna duas mulheres gordas e anafadas, possivelmente cheirando a peixe fresco, discutiam com grandes gestos o preço do último lote. Zaragateiras. Espalhafatozas. Rudes como penedos. Que a vida é dura... Que o mar é rico mas cruel... Um gato esquelético, de focinho delgado e olhar melancólico, roçava-se lentamente no lampião da direita. Toda a rua tresandava a peixe frito, a vinho entornado. Por cima dos telhados, onde a erva crescia pela graça de Deus, o céu era transparente. E extenso. Como um lago de seda rendilhada. Nem retângulo de azul, lá para os lados da praça, erguia-se uma antena de televisão pintada a oiro e prata. Vida quotidiana. Calor e poeira. Lassidão. Rotina. Casas estreitas e sujas. Peixe frito e vinho entornado. E aquela antena de televisão a gritar ao bairro todo os moldes dourados de novo rico... Debaixo da minha janela, o Manel havia-se sentado, de pernas estendidas para o Sol... O Manel é louco, sabem? Sim, louco. E mau... às vezes. Quando lhe puxam pela língua... As mulheres do peixe desataram-se e sumiram-se na cangosta lateral, uma atrás da outra, dando às ancas e arrastando os socos na calçada incerta. O dono da gaiola retirou-a, do prego... O sol subiu mais alto, para os lados do mar, mas o Manel, indiferente, ficou de pernas estendidas a contar as pedras da rua... - Um...dois...três... Um... dois... três... Na janela defronte surgiu um rosto de homem. - Oh ! Manéle ! - !!! - Eh ! Manéle ! ... - ??? - Eh ! Manéle !...

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Crianças más Abri a janela. Silêncio morno. O Sol inundava um lado da rua estreita de casas esguias e cinzentas, projetando no passeio fronteiriço as sombras disfarçadas das mais afortunadas. Na casa da esquina, uma gaiola pintada de verde fazia prisioneiro o mais taciturno dos melros apanhados pelo rapazio do bairro, na última Primavera. À porta da taberna duas mulheres gordas e anafadas, possivelmente cheirando a peixe fresco, discutiam com grandes gestos o preço do último lote. Zaragateiras. Espalhafatozas. Rudes como penedos. Que a vida é dura... Que o mar é rico mas cruel... Um gato esquelético, de focinho delgado e olhar melancólico, roçava-se lentamente no lampião da direita. Toda a rua tresandava a peixe frito, a vinho entornado. Por cima dos telhados, onde a erva crescia pela graça de Deus, o céu era transparente. E extenso. Como um lago de seda rendilhada. Nem retângulo de azul, lá para os lados da praça, erguia-se uma antena de televisão pintada a oiro e prata. Vida quotidiana. Calor e poeira. Lassidão. Rotina. Casas estreitas e sujas. Peixe frito e vinho entornado. E aquela antena de televisão a gritar ao bairro todo os moldes dourados de novo rico... Debaixo da minha janela, o Manel havia-se sentado, de pernas estendidas para o Sol... O Manel é louco, sabem? Sim, louco. E mau... às vezes. Quando lhe puxam pela língua... As mulheres do peixe desataram-se e sumiram-se na cangosta lateral, uma atrás da outra, dando às ancas e arrastando os socos na calçada incerta. O dono da gaiola retirou-a, do prego... O sol subiu mais alto, para os lados do mar, mas o Manel, indiferente, ficou de pernas estendidas a contar as pedras da rua... - Um...dois...três... Um... dois... três... Na janela defronte surgiu um rosto de homem. - Oh ! Manéle ! - !!! - Eh ! Manéle ! ... - ??? - Eh ! Manéle !...

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- Qu'é quéris ? - Nada... - Então ... (uma praga). Uma gargalhada enorme e chistosa e a janela fechou-se novamente com ruído... Encolhi-me toda. O Manel voltou de novo à conta: - Um... dois... três... Uma criada veio sacudir o tapete mesmo por cima dele. - Sai Manéle ! - Siri, não... - Sai Manéle ! - Bai... (outra praga). A rapariga riu, retribui-lhe a saudação e voltou a sacudir o tapete com mais entusiasmo... Olhou a rua, de cima a baixo, dirigiu-me o mais untuoso dos sorrisos e recolheu-se anafada. O homem da taberna encostou-se à vitrina... - Queres um copo, Manéle ! - Como, sim. E voltou à conta: Um... dois... três... - Três, não Manéle ! - Bai... (outra praga). Aquilo mexeu comigo. Voltei a encolher-me. O Manéle deixou de contar e caiu num mutismo patético. O homem da taberna desistiu da troça e desapareceu por trás do balcão. Desenhou-se na nesga de sol da rua lateral o vulto dum rapaz. Depois surgiu assobiando, vestido de ganga parda. Deu com o tolo e parou olhando: - Olá Manéle ! - Olá... - Istá sóle, Manéle ! - Instá... - Quéris uma pêra ? - Quereri, quéro... - Pega lá... Atirou-lhe o fruto. Grande e acastanhado. Manel segurou-o no ar com ambas as mãos... - É bom, Manéle ! - Bom...

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E os dentes trincavam raivosamente a pera suculenta... O rapaz ria. E só quando o ouvi rir alto e mirei bem de frente é que o reconheci. Foi como se uma onda de emoção me saltasse por cima e me deixasse submersa. Pequeno... Delgado.... Claro de cabeça e rosto... Era ele, o Alberto ! Quinze anos, talvez. É que... O Alberto foi meu aluno... Como se fosse possível esquecer o 1º ano que lecionei !... Pensava tão mal dele ! É que... pensava realmente que, quando ele saísse da Escola, seria como os outros grandalhões que correm atrás do Manel proferindo tolices... Quantas vezes o avistei de calças arregaçadas entre o lodo, fisgando as gaivotas! Quantas vezes o adivinhei trepando às árvores para roubar os ninhos ! E tinha pena, muita pena. Que as crianças constroem o Mundo... E o Mundo precisa de Amor e crianças boas... De crianças boas, transformadas más nestes bairros de vinho entornado e peixe frito... A criada e o tapete... O homem da taberna... O rosto da janela fronteiriça... E sobretudo isso que me feria e me fez encolher perplexa e irritada, no vão da janela, aquela pera oferecida ao Manel pelo Alberto, um gesto de carícia disfarçada, entrou-me na alma como o repicar dum sino de cristal... - É bom, Manéle ? - Bom ! - Como se dizes ? - Bom ! ô... ô... ôbrigado ! - Intão, adeus ! - Adeus ! O rapazote voltou a desaparecer na ruela estreita. O Manel ergueu-se, arrastou-se até ao fim da rua a cantarolar em surdina... O homem da taberna abriu a telefonia no máximo, para ouvir o relato do futebol... O sol desapareceu por cima dos telhados... A rua tornou-se em penumbra... A antena da televisão deixou de brilhar pintada de oiro e prata... -Gu...ô...Lo de... ! ! ! O cheiro a peixe frito acentuou-se. Procurei por cima das casas cinzentas um telhado de azul, onde pudesse mergulhar os olhos e encher-me de Infinito. Aos meus olhos como num filme vivo: - É bom Manéle ? - Bom...

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Oh! Que ser-se professora de crianças más (não há crianças más, Deus Meu!) é maravilhoso ! E descobrir que elas não são realmente más é divino ! É que... Eu vi o Alberto dar a pera ao «Manéle». E... Toda eu sorri para o Azul! Como podem nascer lírios nesta lama quotidiana ? Fechei a janela.

Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue - 10 de abril de 2012. http://mariahelenaamaro.blogspot.com/