Crick Watson e o DNA em 90 minu - Paul Strathern.pdf

45

Transcript of Crick Watson e o DNA em 90 minu - Paul Strathern.pdf

  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

    http://lelivros.infohttp://lelivros.infohttp://lelivros.infohttp://lelivros.info/parceiros/

  • CRICK, WATSONE O DNA

    em 90 minutos

    Paul Strathern

    Traduo:Maria Luiza X. de A. Borges

    Reviso tcnica:Geraldo Renato de Paula

    Doutorando em microbiologia/UFRJ

  • CIENTISTASem 90 minutos

    . . . . . . . .

    por Paul Strathern

    Arquimedes e a alavanca em 90 minutosBohr e a teoria quntica em 90 minutosCrick, Watson e o DNA em 90 minutosCurie e a radioatividade em 90 minutos

    Darwin e a evoluo em 90 minutosEinstein e a relatividade em 90 minutosGalileu e o sistema solar em 90 minutos

    Hawking e os buracos negros em 90 minutosNewton e a gravidade em 90 minutos

    Oppenheimer e a bomba atmica em 90 minutosPitgoras e seu teorema em 90 minutosTuring e o computador em 90 minutos

  • SUMRIO. . . . . . . . . . .

    Introduo

    O caminho do DNA:uma histria da gentica

    Crick e Watson

    Posfcio

    Gentica:alguns fatos, fantasias e fiascos

    Datas na histria da cincia

    Leitura sugerida

  • INTRODUO. . . . . . . . . . .

    O mais importante avano cientfico da primeira metade do sculo XX foi a fsica nuclear. Arelatividade e a teoria quntica comearam a desvendar os segredos do tomo, descobrindo amatria primeira do universo. A fsica nuclear tornou-se a ponta de lana do conhecimentohumano.

    A descoberta da estrutura do DNA, feita em meados do sculo, criou uma cinciainteiramente nova. Tratava-se da biologia molecular, que comeou a desvendar os segredos daprpria vida. A biologia molecular veio a se tornar a fsica nuclear da segunda metade dosculo XX.

    As descobertas que esto sendo feitas nesse campo (e outras possveis, ainda por fazer)esto transformando toda a nossa concepo da vida. Como crianas, descobrimos os tijolosbsicos da vida, e estamos tambm aprendendo como eles podem ser separados. Mais umavez, a cincia deixou para trs a moralidade. Estamos adquirindo um conhecimento perigoso,sem uma idia clara de como o deveramos usar. At agora, mal comeamos a enfrentar osproblemas morais suscitados pela fsica nuclear (que pode nos destruir). A biologia molecularest nos mostrando como transformar a vida em quase nada.

    Essas apavorantes possibilidades passaram quase despercebidas queles que estavamempenhados em descobrir o segredo da vida. Para eles, aquela era uma das grandesaventuras cientficas. Essa aventura pode ter sido pura em seus objetivos, mas os que delatomaram parte no eram imunes fragilidade humana. Toda a vida humana est aqui: ambio,suprema inteligncia, leviandade, confuso entre desejo e realidade, incompetncia e purasorte (tanto boa quanto m) tudo isso desempenhou um papel. A busca do segredo da vidarevelou-se no diferente da prpria vida. E a resposta, quando finalmente descoberta, caiu namesma categoria. A estrutura do DNA diabolicamente complexa, espantosamente bela, econtm as sementes da tragdia.

  • A CAMINHO DO DNA:UMA HISTRIA DA GENTICA

    . . . . . . . . . . .

    At pouco mais de um sculo atrs, a gentica se resumia basicamente a uma conversa decomadres. As pessoas viam o que acontecia, mas no tinham idia de como ou por que aquiloacontecia.

    As referncias gentica remontam aos tempos bblicos. Segundo o Gnesis, Jac tinhaum mtodo para assegurar que suas ovelhas e cabras dessem crias manchadas e pintadas:fazia-as acasalar diante de varas com tiras de casca removida, produzindo um efeito malhadosemelhante.

    De maneira mais realista, os babilnios compreendiam que para uma tamareira dar frutos,era preciso introduzir plen da palmeira macho nos pistilos da palmeira fmea.

    Os filsofos gregos antigos foram os primeiros a olhar para o mundo de maneirareconhecivelmente cientfica. Como resultado, produziram teorias sobre quase tudo, e agentica no foi exceo. As observaes de Aristteles o levaram a concluir que macho efmea no do contribuies iguais para sua prole. As contribuies de um e outro eramqualitativamente diferentes: a fmea dava matria, o macho dava movimento.

    Segundo uma crena prevalecente nos tempos antigos, se uma fmea tivesse se acasaladouma vez e tido prognie, as caractersticas desse primeiro parceiro iriam aparecer na progniesubseqente dessa mulher com qualquer outro macho. Essa histria da carochinha chegoumesmo a ser dignificada pelos gregos com um nome pseudocientfico: telegonia (significandogerao distncia).

    Uma teoria mais interessante foi a pangnese, que sustentava que cada rgo e substnciado corpo secretava suas prprias partculas, que depois se combinavam para formar oembrio.

    Essas crenas retornam na teoria gentica ao longo dos sculos, de uma maneiracuriosamente semelhante recorrncia real dos traos genticos. (A pangnese iria reaparecerao longo de bem mais de 2.000 anos, e chegou at a ser aceita por Darwin.)

    A biologia, e com ela a gentica, transps o limiar da cincia no sculo XVII. Isso sedeveu quase inteiramente ao microscpio, que foi inventado pelo polidor de lentes efalsificador holands Zacharias Jansen no incio daquele sculo. Os microscpios levaram descoberta da clula. (Este termo foi usado pela primeira vez pelo fsico britnico RobertHooke, mas foi de fato mal aplicado aos minsculos espaos deixados por clulas mortas, queo fizeram lembrar de celas de priso.)

    A descoberta de clulas sexuais (ou clulas germinais) provocou grande alvoroo. Logomicroscopistas excessivamente entusiasmados se convenceram de que haviam observadohomnculos (formas humanas em miniatura) dentro das clulas, e teve-se a impresso deque o problema da reproduo estava resolvido. Num passo mais importante, o botnico

  • ingls Nehemiah Grew especulou que plantas e animais eram inventos da mesma sabedoria.Sugeriu que as plantas tambm tinham rgos sexuais e exibiam comportamento sexual.Quando o bilogo sueco pioneiro Carl Lineu introduziu sua classificao para espcies deplantas e animais, foi aberto o caminho para a pesquisa mais sistemtica. O estudo de hbridosdeu lugar a novas especulaes sobre a natureza do material gentico.

    Durante sculos havia sido amplamente aceito que a hereditariedade era transmitida pelosangue. (Da a origem de expresses correntes como sangue azul, consanginidade,sangue misturado e assim por diante.) Isso no era apenas vago, mas inadequado. Comopodiam os mesmos pais produzir prole diferente a partir do mesmo sangue? Alm disso, oque explicava o aparecimento de caractersticas no presentes em nenhum dos pais, masobservadas em ancestrais mortos havia muito e em parentes distantes? Por exemplo, nareproduo de cavalos de corrida puro-sangue, era sabido que manchas reapareciam depoisde um intervalo de dzias de geraes. (Este exemplo revela uma das grandes oportunidadesque a gentica perdeu. Todos os puros-sangues ingleses so descendentes das 43 guasReais importadas por Carlos II e de trs garanhes importados alguns anos antes. Os livrosde procriao retraam cada linhagem s suas origens, com notas sobre as caractersticas decada prognie. Mais de um sculo antes do nascimento da gentica, qualquer treinador deNewmarket estava de posse de material suficiente para fundar essa cincia.)

    Em meados do sculo XVIII, os cientistas haviam finalmente comeado a especular aolongo de linhas que eram bvias para qualquer criador de cavalos de corrida. A idia daevoluo comeou a circular. Um dos primeiros a desenvolv-la foi o filsofo-poetacientistado sculo XVIII Erasmus Darwin (av do famoso Charles). Erasmus Darwin estavaconvencido de que as espcies eram passveis de mudana. Qualquer criatura comconcupiscncia, fome e um desejo de segurana iria se adaptar organicamente a seu meio.Mas como?

    O naturalista francs Jean Lamarck produziu a primeira teoria coerente da evoluo.Lamarck nascera em 1744, filho de um aristocrata falido. Aos 37 anos havia se tornadobotnico do rei. Quando veio a Revoluo, Lus XVI foi executado junto com quem mais desangue azul se pudera encontrar. Mas Lamarck forjou rapidamente um disfarce socialadequado e ressurgiu como professor de zoologia em Paris. luz dessa experincia, no desurpreender que ele acreditasse no efeito do ambiente sobre a evoluo.

    Segundo Lamarck, caractersticas adquiridas so hereditrias. Em outras palavras, umhomem que aprendeu a se tornar um exmio esgrimista vai transmitir essa qualidade para ofilho. Isso soa bastante plausvel especialmente quando consideramos a famlia Bach. Comfreqncia um filho exibe de fato certas caractersticas adquiridas pelo pai. Mas no pelarazo de Lamarck. O filho do esgrimista pode ter herdado o atletismo e a prontido dereflexos do pai, mas no sua habilidade real. A falha da teoria das caractersticasadquiridas demonstrada por um exemplo mais extremo: mesmo aps serem cegados aonascer durante geraes para trabalhar em minas de carvo, pneis de mina continuavam nonascendo cegos. No entanto, no muito depois da morte de Lamarck, a idia da evoluo foi setornando gradualmente mais difundida. (At hoje, h uma esttua de Lamarck nos Jardins doLuxemburgo em Paris, com a inscrio o descobridor da evoluo.)

  • O pai da evoluo recebeu pouco reconhecimento em vida, mas o pai da gentica norecebeu nenhum. Gregor Mendel nasceu em 1822 na Silsia, que era ento parte do Imprioustro-Hngaro. Seus pais eram camponeses e ele foi obrigado a abandonar a universidadeporque no tinha dinheiro. Para continuar seus estudos, entrou para o mosteiro, onde aprendeucincia por conta prpria, embora tenha sido reprovado em simples exames para professor.Alega-se que isso aconteceu porque sofria de amnsia em exames, embora o fato de ter tidoas notas mais baixas em biologia sugira uma resistncia mais profunda ao conhecimentosistematizado.

    Apesar disso, foi em sistematizao que Mendel revelou sua genialidade. Ele acabou indoparar num mosteiro vizinho a Brno, no que hoje Repblica Tcheca. Encarregado de cuidardo jardim do mosteiro, iniciou uma longa e sistemtica srie de experimentos, cruzandoervilhas comestveis (pisum). Estudou sete diferentes caracteres das plantas, como a cor daflor, a altura, a forma da semente e assim por diante. Descobriu, por exemplo, que se plantasaltas eram cruzadas com plantas baixas, o resultado eram plantas altas. Mas quando esseshbridos de primeira gerao eram cruzados entre si, produziam 75% de plantas altas e 25%de baixas.

    Mendel concluiu que cada caracterstica era determinada por dois fatores, cada umfornecido por uma das plantas genitoras. Por exemplo, a caracterstica estatura eradeterminada por um fator de altura e um fator de pequenez. O fator de altura e o depequenez permaneciam ambos nas plantas. Eles no se misturavam, conservavam suasidentidades distintas mas um era dominante. Naquele caso, o fator altura era dominante.Isso explicava por que, quando as plantas eram cruzadas pela primeira vez, sua prole hbridaera toda alta. Mas quando os hbridos eram cruzados, os fatores altura e pequenez seseparavam e se corrigiam.

    Cada um dos genitores fornece um fator para cada descendente, produzindo quatrocombinaes possveis (ver figura na pgina seguinte).

    Isto explicava a distribuio 75% : 25% de plantas altas e plantas baixas aps o segundocruzamento.

    Os fatores de Mendel eram basicamente o que chamamos de genes. Ao que parecia, osgenes eram a chave para a hereditariedade. Aps realizar mais de 20 mil experimentos,Mendel chegou a novas concluses. Em primeiro lugar, as plantas herdavam uma igualquantidade de fatores (ou genes) de cada um dos pais. Alm disso, pares de genes distintossempre voltavam a se emparelhar de novo independentemente um do outro. Ele sugeriutambm que os genes eram transmitidos pelas clulas germinais.

  • PRIMEIRO CRUZAMENTO

    SEGUNDO CRUZAMENTO

    Mendel havia indicado por que certas caractersticas observveis (como manchas numcavalo) podiam saltar geraes, e tambm por que filhos dos mesmos pais no exibem asmesmas caractersticas (porque o emparelhamento independente dos genes produz umavariedade de combinaes).

    Em 1866 Mendel concluiu um artigo sobre seu trabalho, intitulado Experimentos complantas hbridas (Veruche ber Pflanzenhybriden), e o publicou na revista da Sociedade deCincia Natural de Brno. O artigo resume os experimentos de Mendel e as brilhantes deduesestatsticas que o levaram s suas revolucionrias concluses. Estas hoje conhecidas comoleis de Mendel iriam ser o fundamento da gentica contempornea.

    Mas isso aconteceria num futuro distante. Como seria de esperar, poucos cientistaspreeminentes estudavam as pginas da revista da Sociedade de Cincia Natural de Brno.Naquele momento, ningum se mostrou interessado nas concluses revolucionrias de Mendel;diante disso ele enviou seu artigo para von Naegeli, o mais eminente botnico alemo, na

  • Universidade de Munique. Lamentavelmente, Naegeli se aferrava crena da geraoespontnea. Em sua concepo, os elementos biolgicos eram criados espontaneamente pelanatureza no nvel celular, combinando-se depois para produzir espcies puras. A criao deespcies ocorria, portanto, sem qualquer razo aparente, ao sabor do puro capricho danatureza. Segundo essa teoria, hbridos no passavam de anomalias e conseqentemente asprovas experimentais de Mendel eram irrelevantes.

    Apesar dos anos de laboriosa pesquisa de Mendel, Naegeli lhe disse que, se quisesseconvencer algum de suas concluses, precisava efetuar outros experimentos ainda. Sugeriuque, dessa vez, utilizasse a pilosela (Hieracium). Infelizmente, a pilosela era um casoexcepcional, e os resultados obtidos por Mendel no coincidiram com suas conclusesanteriores. O monge ficou um tanto desiludido e, mais ou menos na mesma poca, foiescolhido para abade de seu mosteiro. No lhe sobrava mais muito tempo para outrosexperimentos na exaustiva escala anterior, e ele morreu sem reconhecimento em 1884.

    O trabalho de Mendel no viria luz at 1900. Somente ento, 34 anos depois dapublicao de seu artigo original, ele recebeu a aclamao universal que merecia. Mas umrenome to amplo pode ter um preo. Em 1936 as descobertas de Mendel foram esmiuadaspelo cientista britnico Sir Ronald Fisher, pioneiro da estatstica contempornea, quedescobriu que o monge cometera um pecado cientfico imperdovel: em algumas ocasies,havia ajustado seus nmeros para fazer sua estatstica se ajustar sua tese. Felizmente, nessapoca a cincia da gentica estava muito solidamente encaminhada, no correndo o risco deser derrubada por esse torpedo pedaggico. (A gentica atual no est sozinha nessa situao.Margaret Mead, a me da antropologia contempornea, imps-se como expresso mximamundial no seu campo em 1928, com a publicao de Coming of Age in Samoa. S muitosanos mais tarde, quando a antropologia j havia erguido uma slida estrutura sobre essefundamento, descobriu-se que muitos dos achados pitorescos e otimistas relatados nessetrabalho eram pura fantasia. Mas a antropologia, como a gentica, estava bem estabelecidademais para ser arruinada por meros fatos.)

    Mendel havia refutado conclusivamente a teoria da hereditariedade pelo sangue queimplicava que as caractersticas dos pais se misturam na prole. Mas como seu trabalhopermanecia desconhecido, essa teoria continuou a florescer. At Charles Darwin acreditavaque a hereditariedade era transmitida dessa maneira. Ele aceitava tambm a telegonia, tendotestemunhado um caso em que uma gua, que havia cruzado anteriormente com uma zebra, deu luz um potro com listras aps se acasalar com um garanho rabe. E, diferentemente deMead ou de Mendel, Darwin tinha um respeito escrupuloso pelos fatos. S podemos presumirque ele foi ludibriado pelo esperto dono de uma zebra, ou que um dos cavalos tinha umancestral listrado.

    Felizmente, o trabalho de Darwin no campo anlogo da evoluo ia se provar maisduradouro. A publicao de seu A origem das espcies em 1859 introduziu a idia dasobrevivncia dos mais aptos. As espcies evoluam por seleo natural. Toda a histria davida na Terra parecia ficar explicada.

    Apesar disso, os lamarckistas franceses continuavam a acreditar na transmisso decaractersticas adquiridas. Segundo eles, a girafa desenvolvera seu pescoo comprido em

  • conseqncia do esforo de esticar o pescoo para alcanar folhas altas feito continuamenteao longo de geraes. Essa teoria iria ser definitivamente refutada na dcada de 1890 peloimpiedoso bilogo alemo August Weismann, que certamente ficara profundamenteimpressionado com as cantigas de ninar que ouvira na infncia. Evocando cenas da canoOs trs camundongos cegos, ele conduziu experimentos em que amputou as caudas decamundongos por vrias geraes. Apesar dessa prtica sinistra, as caudas dos camundongosnunca desapareceram nem encurtaram. Weismann extraiu uma importante concluso: a heranahereditria transmitida por clulas germinais (clulas sexuais), e no influenciada pelo queocorre com o organismo.

    Aquele outro mito persistente, a teoria do sangue, foi finalmente sepultado pelo primo deDarwin, Francis Galton. Numa outra srie de experimentos impiedosos mas claramentedecisivos, Galton fez transfuso do sangue de coelhos brancos para coelhos pretos. Talvez oscoelhos tenham tido a impresso de que estavam ficando verdes, mas de fato a transfuso noproduziu efeito algum. Quando os coelhos pretos estavam bem o suficiente para retomar suasatividades normais, descobriu-se que nenhum animal de sua numerosa prognie tinha plobranco. Certamente a hereditariedade no era transmitida pelo sangue.

    Darwin pode ter explicado o que acontecia com caractersticas hereditrias, mas amaneira como estas eram realmente transmitidas de gerao para gerao continuava sendo ummistrio. Weismann e Galton haviam demonstrado conclusivamente que isso ocorria no nvelcelular. E, o que era ainda mais importante, Mendel havia mostrado que a informao eratransmitida por fatores (genes) mas esta informao continuava a dormir num nmeroantigo da revista da Sociedade de Cincia Natural de Brno.

    Nesse meio tempo, houvera avanos num campo que, naquela poca, parecia ter poucarelevncia para a gentica. Em 1869 o bioqumico suo Friedrich Miescher, de 25 anos,estava investigando a composio dos glbulos brancos do sangue, em Tbingen. Comomaterial, usava bandagens recolhidas no anfiteatro de operaes de um hospital local umarica fonte de pus, cujo principal ingrediente so glbulos brancos. Acrescentando uma soluode cido clordrico, conseguia obter ncleos puros. Depois desnudava esses ncleos aindamais, acrescentando lcali, em seguida cido. Ao cabo desse processo, obtinha umprecipitado cinza completamente diferente de qualquer substncia orgnica previamenteconhecida. Deu a ele o nome de nuclena j que era parte do ncleo. Era o que hojeconhecemos como DNA.

    Dez anos depois, o pioneiro alemo da pesquisa da estrutura da clula, Walther Flemming,comeou a usar os recm-descobertos corantes de anilina para corar ncleos de clulas.Descobriu que aqueles corantes davam cor a uma estrutura em forma de bandas dentro doncleo. Chamou isso de cromatina (a partir do grego chroma, que significa cor). Cerca dedois anos mais tarde descobriu-se que a nuclena e a cromatina reagiam precisamente damesma maneira: pareciam conter a mesma substncia. A cromatina consiste no que hojechamamos pela palavra derivada cromossomos, que por sua vez contm nuclena, ou DNA. Eo DNA o que compe os genes descobertos por Mendel. Todas as peas desencontradasestavam comeando a se encaixar.

    No entanto, s podemos ver isso em retrospecto. Na poca, esses desenvolvimentos

  • estavam inteiramente dissociados. As pessoas envolvidas no sabiam para onde seu trabalhoas estava levando mesmo que tivessem de fato objetivos imediatos (como descobrir aestrutura da clula ou compreender os padres da hereditariedade). O quadro mais amplo siria emergir quando a conexo entre esses desenvolvimentos fosse estabelecida.

    Desde a dcada de 1870, o bilogo alemo Oskar Hertwig havia feito uma importantedescoberta enquanto estudava ourios-do-mar sob o recm-desenvolvido microscpioiluminado. Durante a fertilizao, o esperma penetrava o vulo, e os ncleos do esperma sefundiam com os do vulo. A importncia da cromatina (cromossomos) nesse processoevidenciou-se rapidamente quando o embriologista belga Edouard van Beneden comeou aestudar um verme nematide intestinal encontrado em cavalos, chamado Ascarismegalocephala. Esse parasita de cabea grande tinha poucos e grandes cromossomos, o quefacilitava a observao. Beneden descobriu que tanto o vulo quanto o esperma forneciam omesmo nmero de cromossomos no processo de fertilizao. Descobriu tambm que h umnmero constante de cromossomos por clula, o qual varia segundo a espcie. (Ascarismegalocephala, por exemplo, tem apenas quatro cromossomos por clula, ao passo que aclula humana contm 46.)

    Mas se os ncleos do esperma e os ncleos do vulo continham ambos igual quantidade decromossomo, e ambos forneciam igual quantidade deles, a quantidade de cromossomos deviaduplicar durante a fertilizao. Beneden verificou que isso no acontecia. De fato, o nmerode cromossomos permanecia constante, mantendo-se o nmero caracterstico da espcie.Benden deu a esse processo, pelo qual o nmero de cromossomos se reduz metade nasclulas germinais (formadas pelo vulo e o esperma), o nome de meiose, da palavra gregapara diminuio. A meiose foi finalmente explicada por Flemming, o descobridor originalda cromatina. Ele verificou que, em vez de se fundir diretamente, os grupos de cromossomosse partiam ao comprido em duas metades iguais. Estas se espalhavam pela clula, e depois sefundiam umas com as outras. Aqui, no nvel celular, ocorria um processo que apresentavaextraordinria semelhana com a diviso de fatores descrita por Mendel.

    Durante os primeiros anos do sculo XX, o experimentador americano Thomas HuntMorgan deu-se conta dessa semelhana; mas ele no estava convencido dos achados deMendel. Morgan, um bisneto do homem que compusera o hino nacional dos Estados Unidos,empreendeu uma exaustiva srie de experimentos em que cruzava moscas-das-frutas(Drosophila). Tendo um ciclo de vida de apenas 14 dias, essas moscas permitem um rpidotrabalho estatstico. Apesar de encontrar discrepncias com as descobertas de Mendel (queno tinham nenhuma relao com a ocasional manipulao dos dados por Mendel), Morganacabou por se convencer de que o monge estivera na pista certa.

    Ampliando o trabalho de Mendel sobre fatores (genes), Morgan mostrou que aDrosophila tinha quatro grupos de genes vinculados. O fato de alguns genes permaneceremfreqentemente unidos de gerao para gerao sugeria um mecanismo de ligao. Morganconcluiu que eles s poderiam estar ligados em cromossomos. Como havia quatro grupos degenes, inferiu que a Drosophila tinha quatro cromossomos.

    Um trabalho estatstico adicional mostrou que o arranjo dos caracteres da Drosophila noseguia as leis de Mendel. Ele podia ser explicado pela diviso e recombinao dos

  • cromossomos que Flemming j havia observado. A diviso permitia que alguns genes nomesmo cromossomo se redistribussem enquanto outros permaneciam ligados. Isso significavaque genes separados um do outro por uma distncia maior no cromossomo estavam maissujeitos a formar novas parcerias. E quanto maior fosse a freqncia de rearranjos, maisdistantes entre si estariam os genes. Morgan compreendeu que era possvel mapear genes.

    Em 1911 Morgan produziu o primeiro mapa dos cromossomos, indicando a localizaorelativa de cinco genes ligados ao sexo. Apenas uma dcada depois, havia ampliado essemapa para incluir as posies relativas de mais de dois mil genes nos quatro cromossomos daDrosophila. As coisas estavam caminhando depressa.

    Comearam a caminhar ainda mais depressa quando um dos alunos de Morgan descobriuum mtodo para aumentar a taxa de mutao da Drosophila. Hermann Mller descobriu que,quando eram irradiadas com raios X, as moscas produziam mutaes numa taxa 150 vezesmaior que a normal. Os raios X produziam tambm mutaes que no ocorriam na natureza.Estranhos hbridos com asas deformadas e rgos sexuais malformados comearam aaparecer. Isso levou Mller a concluir que os raios X causavam uma reao entre assubstncias qumicas nos genes. Essencialmente, uma mutao parecia ser o resultado de umareao qumica.

    A alegria de Mller com essa descoberta vital foi temperada por uma percepo soturna: acincia estava avanando de maneira descontrolada. A lenda de Frankenstein, a produzirmonstros em seu laboratrio, estava se tornando verdade. Raios X podiam ser usados tambmpara produzir seres humanos mutantes.

    A gentica estava ganhando conscincia de seus perigos inerentes. Descobertas nessecampo eram descobertas sobre os segredos da prpria vida. Revelavam como a vida passavade gerao para gerao, e como mudava. O que era conhecido podia tambm ser usado.

    Nessa altura a possibilidade de isolar o gene continuava remota. Tudo que os cientistaspodiam observar, mesmo atravs do mais potente microscpio, era a dbil sombra docromossomo. No que dizia respeito aos genes, a cincia ainda estava procurando seu caminhos apalpadelas. Mas a demonstrao feita por Mller de como se podia aumentar a mutaosignificava que as propriedades do gene podiam agora ser amplamente analisadas. Talvez nofosse possvel ver o gene, mas era possvel descobrir o que havia nele.

    O experimentos de Mller com raios X o tornaram famoso e, em 1932, ele assumiu umcargo em Berlim. Um ano depois, uma perigosa mutao humana (no decorrente, at ondesabemos, de irradiao por raios X) assumiu as rdeas polticas na Alemanha. Nem a estruturados genes de Hitler, nem as idias dele sobre gentica atraam Mller, e ele deixou o pas.Pena que tenha meramente trocado o fogo pela caldeirinha: mudou-se para a Rssia stalinista.

    Por coincidncia, Mller encontrou ali a segunda discusso extracientfica que a genticado sculo XX seria obrigada a enfrentar. O comunismo estava criando o mundo do futuro; aengenharia social era considerada cincia e vice-versa. Mas as coisas no eram to fceisassim.

    Em ltima anlise, a direo que a cincia assume ser sempre uma questo de escolhahumana. (Descobrimos uma maneira de deixar o planeta, em vez de uma maneira de limpar abaderna em que o transformamos.) A cincia pode acompanhar os desejos humanos, mas no

  • se conforma a eles. Na Rssia comunista, esperava-se que ela fizesse isso pelo menos noque dizia respeito gentica.

    Logo depois que Mller l chegou, destacados geneticistas russos comearam adesaparecer porque no subscreviam a teoria prevalecente. Esta fora disseminada por umcharlato astuto e ambicioso chamado Trofim Lysenko, que afirmava acreditar nolamarckismo. A idia de que a hereditariedade de organismos (incluindo seres humanos)podia ser influenciada pelo ambiente (como a sociedade) exercia bvia atrao sobrepensadores cientficos do calibre de Stalin. Caractersticas adquiridas (como crenascomunistas) podiam ser herdadas, e um tipo completamente novo de ser humano iria emergirna utopia vindoura.

    As idias de Lysenko iriam transformar a biologia russa em motivo de riso durante 30anos (1934-64). Durante esse perodo, esperava-se, na URSS, que cientistas sriosacreditassem que milho criado sob condies adequadas podia produzir semente de centeio, ehistrias absurdas desse gnero. (Por deduo lgica, bichanos domsticos forados a viverna natureza iriam produzir tigres o que deve ter infundido nos cidados soviticos certoreceio de gatos perdidos.) Mller argumentou que esse tipo de despautrio era completamenterefutado pela irradiao de raios X. Moscas sujeitas a ela tambm produziam mutaesnaturais o que provava que estas eram o resultado de mudanas qumicas internas, quenada tinham a ver com sociedades de insetos. Mller acabou retornando para os EstadosUnidos, onde se tornou ativo na campanha contra o uso abusivo da cincia, bem como contraos abusos cometidos pela prpria cincia.

    A hereditariedade era transferida por reao qumica, mas como isso funcionava? Quandoanalisado, o cromossomo portador dos genes revelava conter algumas diferentes protenas ecidos nuclicos. Uma das duas coisas, ou uma combinao delas, era evidentemente aportadora da informao gentica. As protenas eram a escolha bvia, j que tinham umaestrutura mais diversificada, parecendo por isso capazes de transportar mais informao.

    Essa conjetura foi refutada em decorrncia de experimentos realizados por doisbacteriologistas que trabalhavam cada um de um lado do Atlntico. Ainda na dcada de 1920,em Londres, Fred Griffiths havia realizado experimentos com pneumococos, as bactrias quecausam pneumonia. Ao microscpio, a superfcie de uma colnia de clulas de pneumococosparecia reluzente e lisa quando elas eram infecciosas; quando no eram, porm, a superfcieda colnia parecia rugosa. Se os pneumococos infecciosos lisos fossem aquecidos elesmorriam, tornando-se rugosos e no-infecciosos.

    Quando Griffiths injetava tanto clulas rugosas no-infecciosas quanto clulas lisas mortaspelo calor em camundongos, eles naturalmente continuavam no-infectados. Mas se injetavaclulas speras vivas e clulas lisas mortas pelo calor, os camundongos eram infectados.Examinando esses camundongos, verificou que eles continham clulas lisas infecciosas. Estashaviam sido evidentemente reconstitudas a partir de uma mistura dos dois tipos de clulainjetados. Alguma coisa nas clulas mortas havia causado essa transformao nas vivas. Umconstituinte no-vivo das clulas lisas era evidentemente capaz de se combinar com umelemento das clulas rugosas. Investigaes adicionais mostraram que essa mudana erapermanente. Era herdada pela gerao seguinte de clulas. Alguma substncia qumica no-

  • viva havia se transferido e alterado o gene vivo.O bacteriologista americano Oswald Avery, que trabalhava no Rockefeller Institute em

    Nova York, props-se a isolar esse princpio transformador, como o chamou. Em 1944,havia demonstrado que se tratava de um cido nuclico. Mais especificamente, era cidodesoxirribonucleico (conhecido como DNA).

    Nessa altura, havia sido feito considervel progresso na anlise do DNA, embora sem secompreender sua importncia. Muito pelo contrrio. Essa viso negativa do DNA devia-se emgrande parte ao qumico de origem russa P.A.T. Levene, que tambm trabalhava noRockefeller Institute. A anlise havia mostrado que o DNA continha quatro bases: adenina,guanina, citosina e timina. Estas eram arranjadas em ordem variada ao longo de uma estruturade ligao:

    Pensava-se que a informao gentica seria provavelmente transportada por quantidadesdiferentes de cada base. Mas a anlise do mais elevado nvel tcnico realizada por Leveneindicou que o DNA sempre continha quantidades iguais das quatro bases. Ele concluiu que oDNA era uma substncia de estrutura enfadonha e de pouca relevncia. As protenas noscromossomos eram os portadores da informao gentica, exatamente como a maioriasuspeitava.

    Essa concepo deveria ter sido detonada pelos achados de seu colega Avery, queidentificou o DNA como o princpio transformador. Mas Levene e Avery no se davam. Emmatria de temperamento, eram a tartaruga e a lebre. Levene tinha uma aparnciaimpressionante, um tanto perturbadora: sob o cabelo emaranhado os olhos eram mascaradospor culos de lentes coloridas. Um workaholic obstinado, iria publicar o espantoso nmero de700 artigos durante sua vida cientfica e se considerava o gnio residente do instituto.Avery, por outro lado, filho de um clrigo ingls de inclinaes msticas, era tmido portemperamento. Trabalhava com laboriosa exatido, e era avesso a fazer estardalhao em tornodas suas descobertas. A conseqncia que elas eram desprezadas pelo inflamado Levene.Para este, o acanhamento de Avery sugeria que ele continuava inseguro dos resultados queobtinha.

    No entanto, anlises adicionais levadas a cabo por Levene revelaram que os cidosnuclicos tinham uma estrutura muito mais complexa do que originalmente se pensara. O DNAtinha uma coluna vertebral que consistia de molculas de acar (desoxirribose), ligadaspor um elo (de fosfodister). A cada molcula de acar estava presa uma das quatro bases.

  • Tratava-se de uma molcula muito grande, evidentemente capaz de transportar informaogentica. Era preciso aceitar os achados de Avery, mesmo que a contragosto. A tartarugatambm tinha um papel a desempenhar.

    Perto dali, na Universidade de Columbia, tambm em Nova York, o qumico ErwinChargaff imediatamente se lanou num estudo mais aprofundado do DNA. Usando anlisequantitativa, descobriu que as diferentes espcies pareciam ter cada uma seu DNAcaracterstico. Usando as mais recentes tcnicas de purificao, conseguiu isolar as quatrobases nitrogenadas: adenina, timina, guanina e citosina. No incio da dcada de 1950, elehavia descoberto que, ao contrrio do que at ento se pensava, essas quatro bases no eramde fato precisamente iguais. Representando as bases como A, T, C e G, ele descobriu que:

    A + G = C + T, e tambm que A = T e G = CAs regras de Chargaff, como passariam a ser conhecidas, iriam obviamente ser

    essenciais na anlise futura do DNA.Mas a questo fundamental sobre o DNA ainda continuava sem resposta. Como aquele

    princpio transformador efetivamente transformava? Em outras palavras, como a informaogentica era transportada, e como era transmitida? Esse era o segredo contido no DNA: osegredo da prpria vida, e do modo como ela passava de uma gerao para a seguinte. Paracompreender isso, seria necessrio desvendar a estrutura do DNA. Essa foi a situao queCrick e Watson encontraram ao entrar em cena.

  • CRICK E WATSON. . . . . . . . . . .

    Desde a escola Francis Crick tivera uma atitude prpria em relao aprendizagem. Era umaluno promissor em matemtica, mas estava muito mais interessado nas respostas que nosmeios de chegar a elas. Essa atitude iria distorcer toda a abordagem de Crick doconhecimento. Com ele, sempre se podia contar com respostas uma profuso delas,propostas com entusiasmo e convico, mesmo quando se contradiziam entre si.

    Francis Crick nasceu em Northampton em 1916, filho de um fabricante de sapatos local.Ganhou uma bolsa de estudos para Mill Hill, um pequeno colgio particular nos subrbios deLondres, e depois estudou no University College, tambm em Londres. Ali aprendeu sobre osgrandes avanos cientficos que haviam ocorrido na virada do sculo. Lamentavelmente,estava inteirado de que desde ento outros avanos haviam sido feitos, tornando muitosdaqueles redundantes. Crick se formou com um diploma de segunda classe em fsica e umproblema de atitude. Nos dias de hoje esses atributos, conjugados, iriam desqualific-lo paratrabalhos de pesquisa posteriores mas Crick no se deixava desencorajar to facilmente.

    Cheio de confiana na prpria capacidade, inscreveu-se para fazer pesquisa e foirapidamente contemplado com uma tarefa condizente com seu carter e suas habilidades. Oprofessor me deu o mais entediante problema imaginvel: construir um recipiente esfricode cobre (para testar a viscosidade da gua). Sem se deixar abater, como sempre, Cricklembra: Na verdade, gostei de fazer o aparelho, por mais aborrecido que fosse do ponto devista cientfico, porque era um alvio estar fazendo alguma coisa depois de anos saprendendo. Crick tinha uma mente independente, e estava decidido a fazer alguma coisa comela.

    Foi salvo da perspectiva de encher o mundo de bias pela deflagrao da guerra.Recrutado pelo Almirantado, foi encarregado de projetar minas. Em 1940, casou-se.

    Depois da guerra Crick se preparou para retornar sua pesquisa. Em 1946 assistiu a umaconferncia do americano Linus Pauling, reconhecido como o mais notvel qumico do sculo.Isso o despertou para as possibilidades da pesquisa qumica. Foi tambm por volta da mesmapoca que leu O que a vida?, do fsico austraco Erwin Schrdinger, um dos fundadores damecnica quntica. Esse livro sugeria como a fsica, sobretudo a mecnica quntica, podia seraplicada gentica. Embora muitas das brilhantes sugestes desse texto tenham sidomodificadas mais tarde, at seus erros iriam se provar inspiradores entre a geraovindoura de cientistas do ps-guerra.

    Molculas orgnicas, qumica da gentica, mecnica quntica esse embriagantecoquetel de possibilidades de pesquisa logo tomou o lugar das velhas bias. Em 1947 Crickse divorciou e se inscreveu como pesquisador em Cambridge. Ali comeou a se inteirar doaspecto biolgico da fsica biolgica. Dois anos depois foi contratado pelo CambridgeMedical Research Council Unit para trabalhar no mundialmente famoso LaboratrioCavendish de fsica. Assim, na idade um tanto madura de 33 anos, Crick deu incio a seu

  • primeiro trabalho real de pesquisa.Sem se deixar desencorajar pelo fato de ter uma bagagem de apenas dois anos em

    biologia, Crick logo ficou famoso em todo o laboratrio por sua capacidade de produzir umatorrente de teorias inovadoras em geral relacionadas com as pesquisas de outras pessoas.Ele havia encontrado sua vocao, e nada o poderia deter. Logo ficou evidente que uma menteexcepcional estava se desenvolvendo para no falar de sua voz excepcionalmente alta e deseu riso tonitruante. Alguns achavam sua companhia agradvel, em pequenas doses; paraoutros, sua mera presena dava dor de cabea. Entre estes ltimos estava o diretor doCavendish, o idoso Sir Lawrence Bragg, que havia sido o mais jovem ganhador do PrmioNobel, aos 25 anos. Aproximadamente dois anos mais tarde um jovem americano chamadoJames Watson chegou ao Cavendish.

    James Dewey Watson nascera em Chicago em 1928. Menino prodgio, havia sidodescoberto por um produtor local de televiso, que o levou para o Chicago Quiz Kid Show.Aos 15 anos estava matriculado na Universidade de Chicago para estudar zoologia. No tinhagrande entusiasmo por essa matria (seu interesse real era ornitologia) e, segundo um de seusprofessores, permanecia completamente indiferente a tudo que acontecia em classe; nuncatomava nota de nada, e no entanto no final do curso tirou o primeiro lugar.

    Com 19 anos Watson se formou e foi para a Universidade de Indiana, em Bloomingdale.Ali foi afetado por dois eventos decisivos. Tambm leu O que a vida? de Schrdinger esofreu um profundo impacto. O gnio havia descoberto o gene, e Watson soube imediatamenteque aquele era o seu assunto. Estava muito pouco qualificado, porm, para desenvolverpesquisa nessa rea. Como ele admite: Na Universidade de Chicago eu estava interessadoprincipalmente em aves e consegui escapar dos cursos de qumica ou fsica que pareciamapresentar pelo menos uma dificuldade mdia. Com a alegre despreocupao da juventude(que afeta igualmente gnios e idiotas), alimentou a esperana de que fosse possvel resolvero problema do gene sem que eu tivesse de aprender nada de qumica.

    O segundo acontecimento decisivo na vida de Watson nessa poca foi estudar com omicrobiologista Salvador Luria, que havia fugido da Itlia de Mussolini para os EstadosUnidos. Luria era um dos fundadores do Grupo Fago, composto por geneticistas de primeiralinha que estavam investigando a auto-replicao no nvel viral. Os vrus eram consideradosuma espcie de gene nu, e os vrus mais simples so os bacterifagos tambm conhecidossimplesmente como fagos. Luria estava fazendo importantes avanos nesse campo, usandoirradiao de raios X.

    Schrdinger havia mostrado a direo a Watson, Luria lhe mostrou como rumar para ela.Watson lanou-se numa tese de doutorado sobre fagos, tendo Luria como orientador. De incioLuria no se aborreceu com a ignorncia de Watson em qumica. Na verdade, segundoWatson, ele detestava expressamente a maioria dos qumicos, especialmente a variedadecompetitiva que florescia na selva da cidade de Nova York. Assim Watson comeou aescrever uma tese sobre fagos. No entanto, a essa altura Luria estava comeando a suspeitarque a real natureza dos fagos (e portanto tambm dos genes) s iria ser elucidada quando aestrutura qumica deles fosse compreendida. Assim, sugeriu a Watson que pelo menos tentasseaprender um pouco de qumica.

  • Watson seguiu o conselho de seu mentor com entusiasmo e se ps a estudar qumica porsua prpria conta. Os resultados foram espetaculares, embora no exatamente como seusresultados acadmicos costumavam ser. Depois de uma tentativa de aquecer um pouco debenzina voltil diretamente sobre uma chama, nunca mais foi bem-vindo aos laboratrios. Daliem diante, seu conhecimento de qumica permaneceu em grande parte terico.

    Em 1950 Watson ganhou uma bolsa da Fundao Merck para estudar o metabolismobacteriano em Copenhague, sob a superviso do bioqumico Herman Kalckar. Uma escolhacuriosa, considerando-se a averso do seu orientador. Mas Watson evidentemente pensava deoutra maneira: Uma viagem para o exterior pareceu de incio a soluo perfeita para acompleta ausncia de fatos qumicos na minha cabea. S quando descobriu que o ingls deKalckar era completamente incompreensvel foi que ele comeou a ter dvidas sobre seuempreendimento. Estas se aprofundaram quando, certo dia, Kalckar anunciou que sua mulher odeixara e que no estava mais interessado em pensar sobre sistemas metablicos de bactrias.

    Kalckar resolveu se recuperar dos embates que sofrera passando uns dois meses naEstao Zoolgica de Npoles. Perguntou a Watson se gostaria de ir com ele. Dessa vezparece que Watson no teve nenhuma dificuldade em entender o ingls do chefe. Escreveuimediatamente para a Fundao Merck pedindo 200 dlares para despesas de viagem.

    Num glido dia de primavera em Copenhague, o bioqumico emocionalmente perturbado eseu assistente no-qumico partiram para o ensolarado Mediterrneo. Essa temporada beira-mar custa da Fundao Merck iria se provar a mais frutfera inspirao da vida cientfica deWatson.

    Durante a estada de Watson em Npoles, a cidade hospedou um congresso cientficointernacional com um pequeno nmero de convidados que no compreendia italiano e umgrande nmero de italianos, nenhum dos quais entendia ingls, a nica lngua comum aosvisitantes, se falado rapidamente. Ali Watson conheceu o neozelands Maurice Wilkins, de 33anos, que estava baseado no Kings College, em Londres.

    Wilkins tinha sido um fsico ambicioso e durante a guerra havia trabalhado na Califrniano Projeto Manhattan, que criou a primeira bomba atmica. O resultado o havia deixadodesiludido com a fsica, e depois da guerra ele se interessou por biologia molecular. Aoretornar para a Gr-Bretanha, ingressara na unidade de biofsica do Medical ResearchCouncil do Kings College. Ali havia comeado a obter imagens do DNA com difrao deraios X. Tinha at levado uma delas consigo para Npoles, e mostrou-a a Watson.

    A foto de Wilkins mostrava um padro geomtrico um tanto borrado, e Watson precisouque seu significado lhe fosse mostrado. Num abrir e fechar de olhos, decidiu que era aquiloque vinha procurando. O caminho para descobrir a estrutura qumica do DNA era aquele.

    Apesar de saber ainda menos sobre difrao de raios X do que sobre qumica, Watsonescreveu para a Fundao Merck pedindo sua transferncia para o Laboratrio Cavendish, emCambridge. Ali o Medical Research Council tinha uma outra unidade de difrao de raios X,que lhe fora recomendada por Wilkins.

    Copenhague, Npoles, Cambridge tudo isso no espao de um ano. O menino prodgiode 22 anos certamente no esquentava lugar. Mas andava perambulando em torno de qu? AFundao Merck cortou-lhe a bolsa em um tero, reduzindo-a para dois mil dlares,

  • informando-lhe que ela terminaria seis meses mais cedo, em maio de 1952 (pouco antes doincio de nova temporada de turismo de vero na Europa).

    Dessa vez a fundao havia resolvido que Watson devia sossegar. Eles no tinham por quetemer. Com a viso megalomanaca da juventude, o rapaz agora vira precisamente o quequeria fazer. Iria desvendar o segredo da vida, nada menos. Iria descobrir a estrutura do DNAe ficar famoso no mundo inteiro. Isso era pura e simples ambio. Alguns dias depois decompletar 23 anos, o quieto e aparentemente tmido Watson entrou no Laboratrio Cavendish,em Cambridge.

    No custou muito a ficar conhecendo o dono da famosa gargalhada. Seu entendimento comCrick, ento com 35 anos, foi instantneo. No demorou e Watson estava descrevendo Crickcomo sem dvida a pessoa mais brilhante com quem jamais trabalhei e o que est maisprximo de Pauling [o grande qumico] que j vi Nunca pra de falar ou de pensar. Crickparecia igualmente impressionado por Watson: Foi a primeira pessoa que conheci quepensava sobre biologia do mesmo modo que eu [tinha] exatamente as mesmas idias queeu, mas no consigo me lembrar exatamente quais eram. Isso no de surpreender. Na poca,Crick vinha estudando biologia havia apenas dois anos, ao passo que o jovem Watson j tinhaum doutorado na matria.

    O desengonado e ingnuo jovem americano e o insolente e altissonante ingls talvezparecessem diferentes sob muitos aspectos, mas possuam inegavelmente uma coisa emcomum: uma autoconfiana sem limites. A unidade de difrao de raios X no Cavendish estavaestudando a estrutura da protena; mas Crick e Watson rapidamente resolveram que essa noera a questo central. O que eles estavam interessados em descobrir era a estrutura do DNA.

    Juntos, Crick e Watson reuniam uma considervel amplitude de ignorncia para aquelatarefa. Crick tinha s dois anos de biologia; Watson no sabia nada de qumica e no tinhanenhuma experincia com difrao de raios X. Era pouco provvel que fossem estorvados emsuas discusses por algum excesso de bagagem intelectual.

    Essas discusses logo comearam a ocorrer com regularidade. Comeavam de manh,enquanto tomavam um caf, na sala que partilhavam. Continuavam enquanto almoavam noEagle, um pub popular entre alunos de graduao, onde Crick introduziu Watson s alegrias daquente e sensaborona cerveja inglesa. E muitas vezes chegavam a continuar durante o jantar nominsculo apartamento em que Crick vivia com sua nova mulher meio-francesa, Odile. Essasconversas no ficavam restritas a Crick e Watson: freqentemente envolviam qualquer de seuscolegas do Cavendish que estivesse disposto a escutar.

    O Cavendish em Cambridge, juntamente com o Kings College em Londres, era o centromais avanado em difrao de raios X. O Cavendish j tinha transformado a cara da cinciauma vez. Vrias dcadas antes, Rutherford e seus colegas haviam fundado a fsica nuclear,desenvolvendo essa cincia com uma miraculosa exploso de criatividade no Cavendishdurante a dcada de 1930. Agora era a vez da biologia molecular. E isso iria se dever emgrande parte cristalografia por raios X.

    O diretor do Cavendish, Sir Lawrence Bragg, havia desempenhado um papel proeminentena criao da cristalografia por raios X, ao lado de seu pai, Sir William Bragg. Essa era atcnica que havia permitido viso humana estender-se alm do alcance da luz. Por mais

  • potente que um microscpio seja, ele s pode ver objetos maiores que o comprimento de ondada luz. Os raios X so uma forma de radiao eletromagntica que tem um comprimento deonda de 5.000 a 10.000 vezes mais curto que o da luz (que ele prprio de 1/10.000 ou 10-4centmetros). Isso torna o comprimento de onda dos raios X semelhante em tamanho distncia entre os tomos num cristal.

    Quando um fino feixe de raios X passado atravs de um cristal, ele difratado pelostomos do cristal e emerge na forma de um padro complexo. Se esse padro registradonuma chapa fotogrfica, possvel tentar deduzir dele a estrutura do cristal. Esse processopode parecer relativamente simples, mas envolve de fato um grande nmero de tcnicasterrivelmente laboriosas e sofisticadas. Entre elas esto tarefas como posicionar, refinar eisolar os cristais individuais, bem como tentar a deduo de estruturas molecularesextremamente complexas a partir de padres confusos.

    A unidade de cristalografia por raios X no Cavendish era comandada por Max Perutz,bilogo nascido em Viena que havia abandonado a ustria em 1936. Durante vrios anos, asformidveis habilidades experimentais de Perutz, secundadas pelos talentos tericosigualmente formidveis de Bragg, haviam sido devotadas a determinar da estrutura dahemoglobina (a protena dos glbulos vermelhos do sangue). Em 1951 eles estavam finalmenteconseguindo alcanar algum sucesso.

    Mas Perutz e sua equipe no eram os nicos interessados nesse tpico. O mestre LinusPauling, de 50 anos, tambm estava tentando descobrir a estrutura de biomolculas complexas.Trabalhando a partir de sua base no Caltech (o California Institute of Technology), ele jhavia deduzido uma estrutura modelar para protenas envolvendo uma hlice uma espiralde molculas muito semelhante a um saca-rolha. Ele sugeriu que aquela poderia ser a forma demuitas molculas biolgicas complexas, entre as quais o DNA. E em 1951, trabalhando comchapas de difrao por raios X de antes da guerra, Pauling chegou a sugerir numa publicaouma estrutura do DNA que envolvia trs hlices enroscadas.

    No Cavendish, Crick e Watson estudaram a sugesto de Pauling, mas no se convenceram.Pauling simplesmente no havia introduzido detalhes suficientes. Na verdade sua idia nopassava de um brilhante palpite.

    Nesse meio tempo, as coisas estavam avanando tambm na unidade de cristalografia porraios X do Kings College, em Londres. Era aqui, e no pelos nossos dois espritos livres noCavendish, que o trabalho efetivo sobre o DNA deveria estar sendo feito. (Havia um acordode cavalheiros entre o Kings e o Cavendish: Perutz ficava com as protenas e Wilkins com oDNA. Mas a essa altura Crick e Watson estavam interessados demais no DNA para sepreocupar com cavalheirismo.)

    Nesse estgio, Wilkins ganhara a colaborao de Rosalind Franklin, de 29 anos, queacabara de completar um trabalho de quatro anos com difrao de raios X em Paris e era umadas maiores especialistas nesse novo campo. A chegada de Franklin tinha sido um golpe desorte para Wilkins. Ela era ao mesmo tempo extremamente inteligente e atraente, ainda quepreferisse dispensar maquiagem e se vestir displicentemente. Mas aquilo era a Gr-Bretanhada dcada de 1950, que tinha muito de uma Idade da Pedra no tocante s relaes entre ossexos. Muito simplesmente, Wilkins no tinha a menor idia de como lidar com uma mulher

  • em seu laboratrio. E Rosy Franklin no era uma mulher comum. Filha insubordinada deuma famlia culta de banqueiros judeus, tinha suas prprias idias sobre como as coisasdeviam ser administradas. Desde o primeiro instante houve qumica entre o solteiro Wilkinse a no-casada Franklin. Lamentavelmente, foi qumica negativa. E para piorar as coisas,Franklin chegou convencida de que estava assumindo o controle do trabalho de difrao deraios X com o DNA. Wilkins, por outro lado, pensava que ela estava sendo admitida como suaassistente. Wilkins e Franklin comearam a trabalhar numa parceria difcil.

    Como se tudo isso no fosse o bastante, o DNA estava se provando uma aplicaoparticularmente espinhosa para a difrao de raios X. Tratava-se de uma macromolcula, quetinha de ser estudada intacta, j que de outra forma muitas de suas qualidades mais importantesse perdiam. Wilkins tinha recebido uma amostra particularmente pura de DNA de Berna. Essaamostra parecia melado. Como Wilkins explicou, quando um basto de vidro era erguida desua superfcie uma fibra quase invisvel de DNA era puxada como o filamento de uma teia dearanha. Nessa fibra individual estavam alinhadas molculas e, embora o DNA no fosseestritamente cristalino, isso parecia no ter importncia. Quando boa parte da gua eraretirada do DNA, sua estrutura exibia qualidades quase-cristalinas ordenadas, repetitivas, quese provavam tratveis por cristalografia por raios X. Essa forma com reduo de gua eraconhecida como forma A, e foi o tipo inicialmente usado no Kings.

    Em novembro de 1951, Franklin j havia feito significativo progresso. Haviadesenvolvido um novo mtodo para reintroduzir gua no DNA de forma A. Depois dareidratao, a estrutura do DNA era transformada. As diferenas se revelavam em padres dedifrao de raios X. Franklin havia conseguido obter algumas das melhores imagens captadasat ento. Mesmo assim, elas continuavam borradas, semelhantes a um filme de uma hlice dequatro ps girando.

    Depois de medir os ngulos e os padres que podiam ser deduzidos das chapasfotogrficas, Franklin iniciou uma anlise matemtica dos resultados. Logo chegou a algumasconcluses importantes sobre a estrutura global do DNA.

    Franklin resolveu divulgar suas concluses num seminrio no Kings. Wilkins convidouWatson, sabendo desde o encontro dos dois em Npoles que ele estava interessado no DNA.(Embora, ao que tudo indica, Wilkins no tivesse a mais plida idia do quanto Watson

  • estava interessado no DNA no desconfiava que Watson e Crick estavam planejando lhepassar a perna.)

    Para poder compreender sobre o que Franklin iria falar, Watson tratou rapidamente deaprender alguma coisa sobre cristalografia (que era o que supostamente deveria estar fazendono Cavendish, para incio de conversa). Partiu ento para Londres para assistir ao seminrio.

    Ali ficou sabendo que os resultados obtidos por Franklin pareciam confirmar que o DNAera helicoidal. Na concepo dela, ele consistia em algo entre duas e quadro cadeiashelicoidais entrelaadas. Cada hlice tinha uma coluna vertebral de fosfato-acar, com basesligadas a ela (adenina, guanina, timina, citosina), aproximando-se muito do que Levene haviasugerido (ver p. 33). Mas, o que era importante, parecia que as bases estavam presas aointerior da hlice, possivelmente formando ligaes entre as cadeias helicoidais.

    Depois do seminrio, Wilkins e Watson foram comer juntos num restaurante chins noSoho. Ali Wilkins chorou suas mgoas sobre a vida difcil que tinha com Franklin nolaboratrio. Aquilo era muito parecido com um casamento ingls padro da dcada de 1950.Wilkins aparentemente se fechava numa concha de polidez distante, enquanto Franklin adotavauma atitude fria e inflexvel. No havia praticamente nenhum intercmbio entre os dois. ParaWatson, aquilo no parecia ser a equipe que ia produzir o beb.

    Watson voltou para Cambridge no trem noturno num estado de nimo muito inspirado.Franklin no parecia interessada em tentar fazer um modelo do DNA. Tudo que pareciadecidida a fazer eram penosas mensuraes das chapas de difrao, para tentar estabeleceruma correspondncia entre elas e comprimentos de ligao conhecidos entre molculas. Omtodo dela se baseava em fatos.

    Esse estava longe de ser o modo de trabalhar de Watson. Seguindo as pegadas de seugrande compatriota Pauling, Watson acreditava em construir modelos. Sem dvida, esse podiaser um processo um tanto aleatrio. Depois que se montava o quebra-cabea, as imagens dadifrao muitas vezes no encaixavam. Isso significava dar uma mexidinha nas ligaesqumicas at que elas se encaixassem. Nesse caso a bblia de Watson era A natureza daligao qumica, de Pauling, o maior compndio de qumica j escrito. Ele continha umprojeto para estrutura de molculas biolgicas complexas no nvel das ligaes.

    Crick era outro que no acreditava em perder tempo com pesquisa desnecessria. Afinalde contas, seu forte era a especulao terica. (Como todo o mundo sabia muito bem noCavendish: Crick estava sempre metendo o bedelho nos experimentos dos outros, e saindo-secom teorias instantneas. O mais irritante era que suas teorias geralmente eram brilhantes es vezes at corretas.)

    Infelizmente, o trabalho de montagem de modelos de Crick e Watson logo esbarrou emalgumas dificuldades locais. Para comear, ele dependia imensamente do duvidoso domniode Watson sobre a cristalografia por raios X. Em particular, do que ele entendera do queFranklin falara em seu seminrio. Sem mais complicaes, Watson e Crick se jogaram namontagem de um modelo com trs hlices interligadas. (Afinal, as chances aqui eram de trspara um.) Mas quando se tratou de decidir se as bases deviam ser presas ao interior ou aoexterior das cadeias helicoidais, apostaram claramente no cavalo errado. Puseram as bases dolado de fora presumivelmente porque Watson havia esquecido, ou entendido mal, o que

  • Franklin dissera.O problema era que Franklin estava lidando com fatos e seria insensato ignor-los,

    quando se queria descobrir a resposta certa. Watson evidentemente no via as coisas dessamesma maneira. Mas Crick via. Tinha plena conscincia da devoo de Franklin aos fatos mas tinha sua prpria maneira oblqua de encarar essa questo. Suspeitava que Franklin nosabia o que estava fazendo. Em sua opinio, todos os dados necessrios para a determinaoda estrutura do DNA j estavam muito possivelmente disponveis residiam entre asfotografias de difrao de Franklin.

    Crick e Watson eram o Gordo e o Magro. Apesar da diferena de idade de 12 anos,formavam uma parceria entre iguais. Ambos eram brilhantes no seu campo de escolha (sobre oqual o outro no sabia praticamente nada). Assim nenhum dos dois se sentia em dvida paracom o outro. Sugestes ignorantes, mas originais, podiam ser feitas, livres at dos enganosadquiridos a partir de um conhecimento incompleto. E essas sugestes podiam ser descartadaspelo outro, sem ningum ficar melindrado. Na verdade, havia momentos em que essassugestes equivocadas podiam inspirar uma linha de pensamento especializado at ento noconsiderada. O resultado era que, quando Crick e Watson eram bons, eles eram muito bons e quando eram ruins, eram cmicos.

    Mas eles tinham conscincia disso (em grande parte, suspeita-se, porque essa era umasituao permanente para Crick.) Isso era uma sorte, porque o modelo que eles produziramoriginalmente tinha pouqussimo a ver com a realidade.

    Sem saber disso, Crick e Watson convidaram orgulhosamente Wilkins e Franklin parapassar um dia em Cambridge. Queriam que a equipe do Kings examinasse o brilhante novomodelo do DNA que tinham feito. Este foi rapidamente denunciado por Franklin como umapiada embora ela prpria no estivesse achando graa nenhuma naquela perda de tempo.Ficando mais irritada a cada minuto que passava, disparava uma pergunta aps a outra, cadauma das quais parecia expor uma nova falha. O modelo simplesmente no correspondia aosdados dos raios X. De maneira alguma. Ento ficou claro que Watson tinha entendido mal algode ainda mais fundamental no seminrio de Franklin em Londres. O DNA de forma A queFranklin usava era desidratado. Para montar a verdadeira estrutura do DNA, tinha-se deprever uma maior quantidade de gua. Muito bem, Watson tinha feito isso. Mas ele captara onmero errado deploravelmente errado. O modelo deles tinha um dcimo da gua quedevia ter.

    O almoo que se seguiu no Eagle foi uma situao espinhosa. Franklin desfechava raios atorto e a direito; seu parceiro a contragosto, Wilkins, s queria no estar ali; Crick ensaiou umdiscurso enquanto tomava sua cerveja; e Watson ficou ali sentado, morto de vergonha, com seucopo de xerez seco.

    Quando voltaram para o laboratrio, Crick voltou a se sentir mais parecido consigomesmo. Numa disposio de nimo incrvel, recusou-se a entregar os pontos sem lutar.Bravamente, Watson lhe deu uma aprovao dbil, bastante desajeitada, enquanto os outrosficaram em silncio. Ento Wilkins sugeriu que ele e Franklin ainda poderiam pegar oprximo trem de volta para Londres se andassem depressa. O dia terminara.

    Como era inevitvel, as notcias desse fiasco logo chegaram a Bragg. O chefe do

  • Cavendish tambm no achou graa. Bragg j tinha averso por Crick, cuja simples presenacontinuava a lhe dar dor de cabea. Crick foi rapidamente visto como o vilo da pea, tendodesviado o jovem estudante de pesquisa americano do bom caminho. (Quando talvez tivesseacontecido o contrrio.)

    Bragg pediu para ver Crick em seu escritrio e lhe passou uma carraspana. Crick haviano s rompido o acordo de cavalheiros entre o Cavendish e o Kings, como tinha posto emrisco novos subsdios governamentais por meio do Medical Research Council, que financiavaas duas unidades. Os tempos continuavam duros na Gr-Bretanha do ps-guerra, e muitospensavam que o Medical Research Council era um desperdcio de dinheiro. Qual era o sentidode o governo financiar projetos cientficos puramente tericos, como a pesquisa da estruturada protena e do gene, quando o pas mal acabara de se ver livre do racionamento de comida?

    Bragg comeou fazendo a Crick algumas perguntas pertinentes. Que diabo ele pensava queiria acontecer caso vazasse a informao de que o Kings e o Cavendish estavam de fatoduplicando o trabalho um do outro, numa competio desnecessria para saber quem iavencer? Ora, eles iriam todos para o olho da rua. E no que dependesse de Bragg, Crick lficaria para sempre. Com a recomendao que tendia a receber de Bragg, teria sorte seacabasse pesquisando as propriedades qumicas da aspirina.

    Bragg terminou proibindo Crick terminantemente de fazer qualquer outro trabalho com oDNA. De agora em diante, o assunto seria domnio exclusivo do Kings. Crick recebeu ordemde voltar para seu trabalho sobre protenas, o trabalho pelo qual estava sendo pago. Watson,por sua vez, foi encorajado a retornar para seu prprio campo, os fagos. Ele optou portrabalhar com a estrutura do vrus do mosaico do tabaco (TMV).

    E a histria terminou por a. Pouco antes do Natal de 1951, a corrida de Crick e Watsonpelo trofu do DNA estancou por completo. Ou pelo menos era o que parecia. Mas ningumhavia contado com a ambio sem limites de Crick e Watson, e os esforos que estavamdispostos a fazer para saci-la.

    Em retrospecto, considera-se que Watson tinha uma atitude americana em relao ambio. Por outro lado, Crick estava em rebelio contra a rigidez da classe mdia inglesa (odiscreto solo em que vicejava aquela espcie agora extinta do cavalheiro). Atitudes dessetipo teriam hoje ampla acolhida, mas na poca eram vistas como inescrupulosas. E comalguma razo, como veremos.

    O projeto de Watson para o estudo do TMV era, em suas prprias palavras, a fachadaperfeita para disfarar meu persistente interesse no DNA. Um dos principais componentes doTMV era o cido nuclico. Na verdade, seu contedo de cido nuclico era uma variante doDNA, chamada RNA, mas Watson tinha certeza de que aquilo poderia fornecer uma pistavital para o DNA. A atitude de Crick era tipicamente direta. Ele podia ter sido proibido detrabalhar com o DNA, mas ningum na face da Terra poderia proibi-lo de pensar sobre ele.

    Crick resolveu tentar uma nova estratgia. Em vez dos quatro tipos diferentes de basesficarem presos ao exterior das colunas vertebrais de hlices enroscadas (como no modeloanterior), deviam na verdade ficar dentro. Mas como poderia haver espao para isso?Felizmente todos os quatro diferentes tipos de bases consistiam de molculas planas. Crickconcluiu (mais uma vez sem base em qualquer indcio) que as bases deviam se encaixar umas

  • nas outras, como dois baralhos entremeados. Em outras palavras, elas estavam empilhadasumas sobre as outras dentro das colunas enroscadas. E se de algum modo elas se atrassemumas s outras, isso ajudaria a manter coesas as fitas excessivamente longas e finas de hlicesenroscadas (as colunas vertebrais). Especulao em cima de especulao, como num castelode cartas.

    Como parte desse novo regime de pensamento sobre o DNA (no de trabalho com ele),Crick comeou a especular alto com alguns colegas cientistas enquanto tomava umas cervejasno Eagle. Acabou se envolvendo profundamente numa conversa com John Griffiths, um jovemdoutorando de matemtica. Griffiths vinha a ser sobrinho de Fred Griffiths, cujos experimentoscom pneumococos rugosos e lisos, na dcada de 1920, tinham inspirado Avery a provar que oDNA era o transmissor gentico. Esse vnculo no era mera coincidncia. John Griffiths tinhao palpite de que certos problemas do DNA podiam ser mais bem resolvidos por matemtica, ej tinha feito alguns clculos preliminares usando dados conhecidos sobre as quatro bases.

    Como sempre, Crick logo estava discutindo os problemas fundamentais. Qualquerestrutura para o DNA tinha de explicar (ou pelo admitir) a replicao o processo pelo qualele transmitia sua informao gentica. Crick sabia que isso devia envolver de algum modo aseqncia codificada das quatro bases, que agora pareciam estar empilhadas no interior dashlices entrelaadas.

    Griffiths entregou a Crick alguns clculos que tinha feito com relao s quatro bases adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C). Havia conseguido descobrir quais das baseseram atradas uma pela outra. Segundo ele, G atraa C e A atraa T.

    Num lampejo de suprema inspirao, Crick viu que aquilo podia ser a chave para areplicao do DNA. Se as fitas helicoidais se dividissem, poderiam ento se tornar osgabaritos para a formao de fitas complementares precisamente similares queles de quetinham se separado.

    Aquele foi realmente um salto gigantesco de imaginao por parte de Crick porque ele notinha entendido que o prprio Griffiths havia imaginado um modelo muito diferente. Griffithsbaseara seus clculos na idia de que as bases estavam dispostas lado a lado, borda comborda, e unidas por ligaes de hidrognio.

    MODELO DE CRICK

  • MODELO DE GRIFFITHS

    Uma outra vantagem da combinao da atrao das bases de Griffiths era que ela atendiaimediatamente s regras de Chargaff (que decretavam que as bases sempre ocorriam nasquantidades A = T e G = C). Infelizmente Crick continuava na ignorncia deste fato decisivo pela espantosa razo de que nunca tinha ouvido falar das regras de Chargaff! (Em defesa deCrick, sugeriu-se que Watson devia ter certamente mencionado essas regras em algummomento, talvez vrias vezes mas Crick, evidentemente, no estava ouvindo. Se este oargumento da defesa)

    Tudo isto revela no s a assombrosa ignorncia de Crick sobre o assunto com que estavalidando, mas tambm seus igualmente assombrosos poderes de imaginao ao ser capaz delidar com ele nessas circunstncias. (Para no dizer nada da fanfarronada envolvida.) Somenteum gnio do alto de seus poderes podia alimentar a esperana de se sair da enrascada com taldescaramento.

    Havia razes, claro, para esse trabalho feito to s pressas. Crick e Watson sabiam queoutros estavam na pista do DNA. Tinham certeza de que estariam sempre frente da oposiono Kings (porque Wilkins continuava tendo a imprudncia de mant-los informados do seuprogresso). Mas Linus Pauling era uma outra histria. Ele j havia proposto uma estruturabastante provisria do DNA. Era apenas uma questo de tempo antes que chegasse realmentel.

    Em seguida Watson ficou sabendo que Pauling era esperado em Londres para umaconferncia. Inevitavelmente, iria querer ver o que estava acontecendo no Kings. At entoPauling s utilizara chapas de difrao de raios X de antes da guerra mas assim que visseas ltimas chapas nada seria capaz de det-lo.

    Crick e Watson podiam apenas ranger os dentes, e continuar fingindo que estavam

  • trabalhando em seus projetos independentes. A essa altura o trimestre de vero haviacomeado. Watson comeou a jogar tnis e a se interessar por garotas. Para se diferenciar dosoutros americanos de cabelo escovinha de Cambridge, comeou a dar um toque britnico aseu sotaque de Chicago e deixou o cabelo crescer. Cabelo comprido era raro na dcada de1950, mas no caso de Watson os resultados eram ainda mais raros. Sua basta cabeleira insistiaem continuar de p, dando-lhe uma aparncia eletrizantemente chocante. S Crick parecia nonotar, sobretudo porque estava ocupado demais rindo das prprias tiradas enquanto tomavacerveja.

    Mas a sorte estava sorrindo para Crick e Watson. Em maio chegaram notcias de quePauling no iria mais Inglaterra. O maior qumico do mundo fora impedido de embarcar noavio no Aeroporto Idle-wild de Nova York. No ltimo instante, o Departamento de Estadoamericano havia confiscado seu passaporte sob a alegao de que ele poderia desertar para aRssia stalinista. Pauling era um franco defensor de uma Conferncia Mundial da Paz, e issoera equivalente a ser um espio comunista na era do macarthismo nos Estados Unidos.

    Mas nem tudo eram boas notcias. No Kings, Franklin havia feito alguns avanosespetaculares na tcnica de difrao de raios X. Com eles, estava convencida agora de que, nofim, o DNA no era uma estrutura helicoidal. At Wilkins parecia concordar com sua idia,ainda que com relutncia. (Como mais tarde veio tona, Franklin no havia realmente deixadoWilkins ver suas provas nesse estgio. Presume-se portanto que deve ter sido a pura fora deseus argumentos, ou talvez a fora com que ela os apresentou, que levou a melhor.)

    Nessa altura Watson havia terminado seu trabalho sobre o TMV. Segundo ele, as chapasde difrao de raios X mostravam que se tratava de uma estrutura helicoidal. De fato, seusindcios eram baseados em resultados que Franklin (que, afinal, era a especialista) haviaagora concludo no indicarem um hlice.

    Apesar da surpresa anunciada por Franklin, Watson continuou insistindo em que o DNAtinha de ser helicoidal. Era encorajado nisso por Crick, que no sabia sobre o que estavafalando. Agora Franklin havia permitido a Wilkins estudar suas imagens, e este as haviamostrado para Crick e Watson numa visita que lhe fizeram em Londres. Num relance, Crickhavia concludo que a teoria no-helicoidal de Franklin se fundava num erro de interpretao.Embora as imagens no mostrassem a simetria radial necessria para hlices, em sua opinioaquilo se devia a padres de cristal superpostos. A conjetura de Crick era brilhante e ousada tendo a vantagem adicional de concordar com o que ele achava que acontecia. Assim,Crick e Watson no se deixaram convencer pela maior autoridade em cristalografia do DNApor raios X do mundo.

    Outras opinies no eram descartadas to facilmente. Em julho de 1952 o prprio Chargaffchegou a Cambridge. Crick e Watson atormentaram John Kendrew, o brilhante assistente dePerutz, at que ele lhes arranjou um encontro com o grande homem.

    De incio, Chargaff ficou com o p atrs. Quem eram aqueles intrometidos, que afirmavamsaber tanto sobre o DNA? Ele era um dos maiores especialistas do mundo no assunto, e nuncasequer ouvira falar deles. Quando Chargaff foi informado de que o rapaz com cabelo de HarpoMarx e sotaque britnico postio era de fato americano, concluiu, compreensivelmente, queestava na presena de um maluco. (No relato franco e aberto que faz desse perodo, Watson

  • no tem medo de assumir o papel do bobo. Vale a pena ter em mente, contudo, que esse rapazde 24 anos que fazia o bobo estava tambm desempenhando um papel de igual destaque numadas maiores revolues cientficas de todos os tempos.)

    No incio, Chargaff no ficou assim to certo com relao a Crick. Mas Crick logo lheforneceu dados suficientes para que avaliasse seu calibre. Podemos s imaginar a reao deChargaff quando Crick deixou escapar por distrao que no tinha ouvido falar das regras deChargaff. Para no desperdiar mais tempo, Chargaff comeou a fazer algumas perguntasbsicas a Crick. Nas palavras de Watson, ele levou Francis a admitir que no se lembravadas diferenas qumicas entre as quatro bases. Imperturbvel como sempre, Crick explicouque sempre poderia verificar isso no livro.

    Vrios anos mais tarde, Chargaff iria escrever com amargura: Pares mitolgicos ouhistricos Castor e Plux Romeu e Julieta devem ter parecido muito diferentes antes edepois de seus feitos. De todo modo, pareo ter perdido o arrepio do reconhecimento de ummomento histrico: uma mudana no ritmo cardaco da biologia. At onde pude entender, elesqueriam, sem o estorvo de qualquer conhecimento da qumica envolvida, encaixar o DNAnuma hlice.

    Crick e Watson haviam aprontado mais uma. Mas havia evidentemente algo de cativantenaquele par de comediantes. Mesmo que seu entusiasmo pudesse parecer equivocado paramuitos, era sem dvida contagiante.

    No outono de 1952 Watson fez amizade com Peter, filho de Linus Pauling, que haviachegado ao Cavendish para fazer pesquisa como ps-doutorando. Peter Pauling foi convidadoa partilhar da sala de Watson e Crick e logo estava participando entusiasticamente dasconversas dos dois.

    Certo dia Peter Pauling contou a Crick e Watson que havia recebido uma carta do pai.Hirtos, ouviram Peter Pauling lhes contar que o pai havia voltado novamente sua ateno parao DNA. Estava elaborando um artigo em que delineava sua estrutura e havia prometidomandar uma cpia para Peter antes da publicao.

    Pronto. Por menos que quisessem, Crick e Watson sabiam que no podiam competir comLinus Pauling. No nas atuais circunstncias. Qualquer tentativa sria da parte deles de chegar estrutura global enormemente complexa do DNA dependia de construo de modelo, e agoraisso estava fora de cogitao. (Os termos da proibio de Bragg tinham sido particularmenteexplcitos no tocante a essa questo.) Tudo que podiam fazer era especular sobre o quePauling poderia apresentar e isso logo se provou irritante demais para ser expresso. Daliem diante, as conversas no escritrio ficaram basicamente limitadas a Watson e Peter Pauling que partilhavam do mesmo entusiasmo pelas mocinhas dinamarquesas.

    Como anunciado, Peter Pauling recebeu uma cpia do artigo do pai. Aps l-lo, passou-opara Crick e Watson. Eles leram que Pauling pai havia proposto uma estrutura que continhatrs cadeias helicoidalmente entrelaadas com a coluna vertebral de acar e fosfato fora daespiral. Isso era assombrosamente parecido com a estrutura que Crick e Watson haviammostrado para Franklin e Wilkins no desastroso dia que estes tinham passado em Cambridge a no ser pelo fato de Pauling ter dado um pouco mais de ateno elaborao dosdetalhes e feito a correspondncia entre eles e os indcios obtidos por raio X (para no

  • mencionar que cuidara de incluir a quantidade certa de gua).Desesperanado, Watson imaginou se j teramos podido ter o crdito e a glria de uma

    grande descoberta se Bragg no nos tivesse segurado. Mesmo no desespero, Watsoncontinuava sendo capaz de atos excepcionais de otimismo. Mas isso foi s o comeo. DepoisWatson se convenceu de que talvez o maior qumico do mundo tivesse cometido um erro. E seele tivesse manipulado uma das suas somas, ou feito um erro nas ligaes qumicas?

    Com a obstinao da juventude, Watson se concentrou na verificao dos detalhesprecisos da estrutura de Linus Pauling as ligaes qumicas, os nmeros, a localizao dostomos-chave. Imediatamente senti que havia alguma coisa de errado. E dessa vez eleestava certo. Inacreditavelmente, Pauling havia deixado de dar aos grupos fosfatos, queformavam os elos em cada cadeia, qualquer ionizao. Isso significava que no havia cargaeltrica para manter as longas e finas cadeias coesas. Sem isso elas iriam simplesmente sedesemaranhar e se desintegrar. Pior ainda, sem essa ionizao o modelo que Pauling haviaproposto para aquele cido nuclico no era nem sequer um cido.

    O maior qumico do mundo havia cometido uma asneira de menino de escola. (Superavaat os esforos de Crick e Watson nesse campo a ausncia de molculas de gua, aignorncia das regras de Chargaff etc.)

    Obviamente era apenas uma questo de tempo antes que Pauling se desse conta dessedisparate. Crick e Watson calcularam que tinham apenas seis semanas para produzir suaprpria resposta.

    Watson, com seus 24 anos, no conseguia se segurar com relao gafe de Pauling.Depois de cont-la para todo o mundo que quisesse ouvir em Cambridge, pegou o trem paraLondres para poder cont-la tambm para o pessoal do Kings. Como Wilkins estava ocupadoquando ele chegou, foi interromper Franklin em seu laboratrio (em geral um templo ondepoucos ousavam se aventurar). Mostrou-lhe imediatamente o artigo de Pauling, assinalando oerro que tinha percebido. Infelizmente, sentiu tambm necessidade de ressaltar a espantosasemelhana que havia entre a estrutura de trs hlices do DNA do grande qumico e aquelaque 15 meses antes ele e Crick haviam proposto (e qual ela tanto se opusera).

    Foi um movimento imprudente. Franklin no era receptiva a crticas maliciosas,especialmente de gente como Watson (que, compreensivelmente, via como um rapazpresunoso cujas pretenses s eram igualadas por sua incompetncia). Glida, contendo afria, Franklin lembrou a Watson que no havia o mais ligeiro indcio para amparar umaestrutura helicoidal para o DNA. Tolamente, Watson comeou a contradiz-la, citandoindcios que obtivera em seu prprio trabalho sobre o vrus do mosaico do tabaco (TMV).Isso acabou exasperando Franklin a tal ponto que ela saiu de trs de sua bancada delaboratrio aparentemente disposta a investir contra ele. Quando ela cruzava o laboratrio,a porta se abriu. Wilkins havia chegado, na hora H. Watson fugiu porta afora e sumiu pelocorredor. (Discusses sobre a chave da vida so evidentemente to perigosas num laboratrioquanto num pub.)

    Mais tarde Wilkins confortou o abalado Watson o melhor que pde. Chegou at a lhemostrar alguns dos ltimos trabalhos de Franklin com raios X. Eram realmente espantosos.Franklin havia conseguido obter imagens por difrao de raios X de uma forma inteiramente

  • nova de DNA. Essa forma B, como se tornou conhecida, ocorria quando as molculas de DNAestavam cercadas por grandes quantidades de gua. Isso produzia padres por difrao deraios X de impressionante clareza e simplicidade.

    No instante em que vi a imagem minha boca abriu e meu pulso disparou, Watsonlembrou. Era inacreditvel que Franklin continuasse se aferrando sua teoria no-helicoidal.Certamente a imagem do DNA de forma A era ambgua; mas aquela nova forma B no deixavasombra de dvida (na opinio de Watson). Aquelas imagens mostravam que o DNA tinha umaforma inconfundivelmente helicoidal. E sua espantosa nitidez apontava para concluses aindamais empolgantes. Depois de alguns minutos de clculos, deveria ser possvel at descobrirquantas cadeias helicoidais havia.

    Sentado no enregelante vago de trem na viagem de volta para Cambridge, Watson, no seuentusiasmo, comeou a fazer alguns esboos e clculos nas margens do seu jornal. Quando foipara a cama aquela noite havia concludo que o DNA consistia de duas fitas helicoidaisentrelaadas.

    Na manh seguinte estava eufrico. A partir do momento em que ps o p no Cavendishningum ficou livre de suas ltimas idias sobre o DNA. Quando Bragg, inadvertidamente,pisou fora de sua sala, at ele foi metralhado com o assunto. Em vez de se enfurecer diantedessa contraveno direta de sua ordem, Bragg mostrou-se surpreendentemente simptico. Demaneira totalmente inesperada, deu at permisso a Watson para construir um novo modelo doDNA no Cavendish. A seu ver, no havia mais nenhum acordo de cavalheiros com o Kings o principal concorrente agora era Pauling. (Alm disso, Watson havia passado matreiramentea impresso de que agora estava trabalhando sozinho. Bragg ainda no sabia que estavaacabando de sancionar outro acesso de Crick com todos os seus decibis).

    A oficina mecnica l em baixo no Cavendish foi imediatamente posta para produzirchapas metlicas, em forma e tamanho em escala correspondentes s quatro bases. Numinstante Crick e Watson comearam a construir um modelo em escala, montando a intricadaestrutura de duas cadeias de molculas helicoidais e entrelaadas. Se seu palpite sobrePauling estivesse correto, sobravam-lhes agora trs semanas para chegar a uma resposta.

    Tudo tinha que ser montado a partir dos tijolos clssicos dos contedos qumicosconhecidos da complexa molcula do DNA. O tamanho de cada uma das molculasindividuais que se combinavam para formar essa molcula complexa e os comprimentos engulos das ligaes qumicas entre todas elas tinham de ser todos levados em conta.

    Podemos ter uma idia da esmagadora complexidade dessa tarefa a partir da seguinteanalogia. Imagine um par de pentes, ambos com dois metros de comprimento, com dentes detamanho desigual projetando-se em ngulos irregulares. Esses pentes devem ser ambostorcidos como saca-rolhas e depois entrelaados, de modo que cada dente de um pente seencontre com o dente complementar do outro. Antes mesmo de comear, no entanto, precisocalcular o comprimento exato, a posio e o ngulo de cada dente individual de cada pente.

    Uma idia da escala envolvida dada pelo fato de que a largura combinada dos doispentes enroscados de menos de dois nanmetros. (Um nanmetro 10-9 metros, em outraspalavras, um bilionsimo de metro.)

  • Como vimos, Crick e Watson j haviam refletido muito sobre essas questes. Mas outrascaractersticas tinham de ser consideradas tambm. Um fator importante era a toro precisade cada cadeia helicoidal de molculas saber se era enroscada estreitamente, como umamola, ou de maneira mais aberta, como uma escada em espiral. A partir das imagens de DNAde forma B obtidas por Franklin mediante difrao de raios X, Watson havia inferido que aestrutura era uma hlice dupla, mas os dados dela forneciam tambm algumas pistas aindamais essenciais. Por exemplo, pelos padres nas chapas de raio X era possvel avaliar odimetro exato de cada molcula (em torno de 1,6 nanmetro). O ngulo das roscasascendentes das hlices e a distncia que subiam num circuito completo tambm podiam sercalculados com um grau de certeza muito maior.

    Os dados mais claros que Franklin obtivera recentemente significavam tambm que Cricke Watson se viam numa situao inusitada. Tratava-se de fatos precisos, que tinham de serlevados em conta. Caso seu modelo no correspondesse a eles, quem estava errado eram eles,no Franklin. E por mais que torcessem os dados no conseguiriam mudar isso.

    Como no de surpreender, comearam fazendo alguns erros. E como tambm no desurpreender, dados os participantes, foram por vezes erros crassos.

    Contrariando sua prpria convico anterior, Crick e Watson tenderam de incio a seguir asugesto de Pauling de que as bases ficavam do lado de fora das cadeias helicoidaisentrelaadas. Por sorte, ambos possuam autoconfiana suficiente para logo abandonar essa

  • hiptese. Eles estavam certos; e o maior qumico da histria estava errado mais uma vez. Asbases tinham de estar no interior.

    Griffiths havia sugerido que essas bases se atraam umas s outras, A a T e G a C. Masno seria melhor, e muito mais simples, se as bases semelhantes se atrassem? Isso permitiriauma formao muito mais fcil de novas molculas quando as cadeias se dividissem para sereplicar. Parecia a soluo ideal.

    Depois Watson descobriu que as diferentes combinaes entre bases semelhantes (C+C,G+G etc.) eram todas de tamanhos diferentes. Essas combinaes simplesmente no cabiamdentro das cadeias enroscadas de duas hlices regulares. Aps mais alguns clculos, fez umadescoberta ainda pior. Isso parecia se aplicar a qualquer combinao de bases. Nenhumadelas se encaixava dentro das cadeias enroscadas. Parecia que Pauling estava certo: a idiadas bases dentro simplesmente no funcionava. Nessa altura o modelo penosamenteconstrudo dos dois estava pela metade, mas iriam ter de abandon-lo e comear tudo de novo.O problema era que, agora, simplesmente no tinham tempo para construir mais um modelo.

    Crick se recusou a desistir. Era simplesmente absurdo pr as bases do lado de fora.Continuou mexendo com o modelo hora aps hora, medindo os comprimentos das ligaesvezes sem conta, tentando organiz-los de tal modo que se encaixassem dentro das cadeias.Como sabemos, Watson tampouco era de entregar os pontos mas sua reao crise foi umpouco diferente. A temporada de tnis comeara; e havia tambm uma nova leva de mocinhasescandinavas aparecendo nas festas.

    Crick foi ficando cada vez mais irritado enquanto Watson entrava e saa rapidamente dolaboratrio, mostrando por que as sugestes inspiradas de Crick no iriam funcionar, antesde desaparecer em busca de arranjos de ligaes mais agradveis. Mas Watson tambm estavaseguindo suas prprias linhas de pensamento, ainda que em bases mais espordicas. E nocurso delas fez uma descoberta importante. Talvez ele e Crick estivessem fazendo seusclculos a partir da forma isomrica errada das bases. No se tratava de um erro to crassoquanto podia parecer. Cada base tinha um frmula molecular que permitia duas estruturasmoleculares diferentes a forma enol e a forma ceto. Todos os indcios tinham apontadopara a forma enol seria possvel que isso estivesse errado?

    Watson mergulhou em alguns clculos-relmpago, mas foi intil. Mesmo na forma ceto,

  • quando os pares de bases semelhantes se ligavam entre si continuavam no se encaixando nacadeia. Depois descobriram que quando os pares de base na forma ceto reuniam A-T e C-G,exatamente como Griffiths havia sugerido, eles se encaixavam, sim, dentro da cadeia. Maisainda, quando unidos dessa maneira, os dois diferentes pares de bases eram idnticos emforma e tamanho. Isso significava que qualquer um dos dois pares podia ocorrer em qualquerlugar da cadeia, permitindo assim uma vasta permutao de pares. Tinham conseguido!Finalmente tinham descoberto a chave da estrutura do DNA.

    Aps uma srie de reajustes frenticos, e uma pequena calibragem final, o modelo estavaconcludo. No dia 7 de maro de 1953, exatamente cinco semanas depois que tinhamcomeado a constru-lo, Crick e Watson exibiram orgulhosamente seu modelo para os colegasdo Cavendish. A notcia logo comeou a se espalhar por Cambridge. Dentro de poucos dias orumor havia se infiltrado pelo mundo acadmico em geral. Uns pesquisadores de Cambridgehaviam descoberto o segredo da vida.

  • No dia 25 de abril de 1953, Crick e Watson publicaram um artigo na Nature, com o ttulopouco sensacionalista de Estrutura molecular dos cidos nuclicos. Dizia tudo que erapreciso em apenas 900 palavras e um diagrama simples.

    Wilkins mostrou-se tipicamente altrusta na derrota, escrevendo elegantemente para Cricke Watson: Acho que vocs so um uma dupla de belos patifes Outros foram menoscaridosos com relao ao uso inescrupuloso que Crick e Watson tinham feito do material daunidade de difrao de raios X do Kings. No seu modo de ver, Crick e Watson no tinhamnenhum direito de reivindicar para si o crdito por aquela momentosa descoberta.

    Essas opinies foram levadas em conta pelo comit do Nobel. Em 1962 o Prmio Nobelde Medicina foi conferido conjuntamente a Crick, Watson e Wilkins. Lamentavelmente,Rosalind Franklin havia morrido de cncer em 1958, aos 37 anos. Para enfatizar a naturezaconjunta da descoberta do DNA, e o auxlio dado a Crick e Watson por colegas do Cavendish,o Prmio Nobel de qumica do mesmo ano foi dado ao diretor da unidade de difrao de raiosX do Cavendish, Max Perutz, e seu colega John Kendrew. Apesar disso, so os nomes deCrick e Watson que ficaro para sempre associados descoberta da estrutura do DNA.

  • POSFCIO. . . . . . . . . . .

    De certo modo, a estreita relao entre Crick e Watson comeou a naufragar assim que asacusaes pblicas comearam a ser disparadas. Watson logo voltou para os Estados Unidos,enquanto Crick continuou a trabalhar em Cambridge. Ele iria continuar ali, intermitentemente,durante 20 anos, tornando-se uma fora propulsora no campo recm-aberto da biologiamolecular. Seus principais trabalhos trataram da replicao do DNA e do modo como osgenes transportam informao. Fez muitos trabalhos pioneiros sobre a decifrao do cdigodas bases do DNA.

    Em 1977, aos 61 anos, Crick mudou-se para a Califrnia, onde trabalhou no Salk Institute,em San Diego. Conseguiu tambm conservar um fluxo estvel de idias tipicamentebrilhantes. Em 1981 publicou um livro chamado A vida em si, em que afirmou que a vida naTerra teve origem no espao csmico. Sua teoria to mirabolante quanto parece. (Fogueteno-tripulado chega dos confins da galxia, transportando esporos primitivos de umasupercivilizao que evoluiu bilhes de anos atrs. O resto, s lendo o livro)

    Nesse meio tempo, de volta ao planeta Terra, Crick tambm desenvolveu idias sagazessobre a questo cada vez mais central da conscincia (Que ela? Como funciona? Animais eplantas a possuem? etc.). Crick continua muito vivo e rindo.

    Quanto a Watson, sua carreira ps-descoberta foi uma montanha-russa semelhante. Devolta aos Estados Unidos, logo assumiu um prestigioso cargo em Harvard, onde continuou afazer pesquisas com o DNA (em particular sobre seu papel na sntese das protenas). Em 1965publicou Biologia molecular do gene, que amplamente considerado o melhor compndio dotipo.

    Trs anos depois publicou A hlice dupla, seu relato pessoal da descoberta do DNA.Muitos viram nisso uma tentativa de atrair de novo a luz dos refletores. Isso ele sem dvidaconseguiu. O modo como falou de Rosalind Franklin nessa obra no podia deixar de gerar umacontrovrsia pblica. No entanto, o livro provou-se tambm um clssico: a mais brilhanteautobiografia de uma descoberta cientfica j escrita.

    Em 1988 Watson foi para Cold Spring Harbor, em Long Island. Ali, dirigiu o ProjetoGenoma Humano, cujo objetivo era mapear todos os cem mil genes humanos (hlices duplasde DNA que, contm ao todo cerca de trs bilhes de pares de bases). Embora tenha seprovado um brilhante administrador, Watson se afastou desse projeto com certa acrimnia em1993. Se saltou fora ou foi empurrado questo sobre a qual as fontes divergem. Segundo averso oficial, ele se demitiu por uma questo de princpio porque se opunha idia de oprojeto patentear inform