Crimes Contra a Pessoa _ Contra a Vida

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CRIMES CONTRA A PESSOA. CRIMES CONTRA A VIDA. HOMICDIO

Heleno Cludio Fragoso

Introduo O Ttulo I da Parte Especial trata dos crimes contra a pessoa, realizando-se aqui a tutela penal da vida, da integridade corporal, da honra e da liberdade, pressupostos e atributos da personalidade humana. Abrange, assim, esse ttulo, os bens relativos pessoa humana em sua complexa realidade fsica e moral. O sistema da lei vigente provm do Cdigo italiano de 1930, sendo desconhecido de nossa legislao anterior. Nosso Cdigo de 1890 previa em ttulos distintos os crimes contra a segurana da pessoa e da vida e os crimes contra a honra e boa fama, incluindo as infraes penais contra a liberdade pessoal no ttulo referente aos crimes contra o livre gozo e exerccio dos direitos individuais, critrio defeituoso que remontava ao nosso cdigo de 1830. A honra e a liberdade so bens morais que constituem atributos da personalidade humana. Justifica-se, em conseqncia, a incluso dos crimes contra a honra e a liberdade no ttulo unitrio relativo a todos os fatos punveis atravs dos quais se realiza a tutela jurdico-penal da pessoa. Esse critrio vai prevalecendo nas codificaes modernas e nos estudos sistemticos da Parte Especial, inclusive os que se referem aos cdigo que o desconhecem.1 O novo Cdigo Penal incluiu o genocdio entre os crimes contra a pessoa, destacando-o no captulo II do Ttulo I. orientao defeituosa, oriunda do anteprojeto HUNGRIA. Desde que a expresso genocdio foi inventada, com grande sucesso, por LEMKIM, serviu para designar vrios atos dirigidos intencionalmente 1

Vejam-se, por exemplo, os tratados de QUINTANO RIPOLLS e MAURACH, referentes aos velhos Cdigos Penais da Espanha e da Alemanha.

destruio de um grupo humano. Isso est dito no prprio art. 2 da Conveno de 9 de dezembro de 1948. O que caracteriza o genocdio exatamente sua projeo no campo internacional e sua transcendncia ao simples quadro do homicdio, como crime contra a pessoa. Nesse sentido unnime a opinio dos autores2. Dentro de um Cdigo Penal, a nica possvel classificao desses crimes seria num ttulo especial, semelhana do que faz o Cdigo iugoslavo, que os inclui sob a rubrica aes punveis contra a humanidade e o direito das gentes (art. 124). O projeto alemo de 1962 seguiu tambm esse critrio, classificando o genocdio num ttulo especial: fatos punveis contra a comunidade dos povos. Essa seria a nica possvel soluo tcnica.3 Em sentido jurdico, pessoa todo sujeito de direitos. Ao definir os crimes contra a pessoa, no entanto, o Cdigo Penal considera pessoa todo ser humano, protegendo os direitos da personalidade, sejam os que se referem personalidade fsica, sejam os que dizem com a personalidade moral. Isso no significa que alguns crimes previstos neste ttulo no possam ser praticados contra pessoas jurdicas. o caso da invaso de domiclio (art. 150), da violao de correspondncia (art. 151), do desvio, sonegao ou supresso de correspondncia comercial (art. 152). Os crimes contra a pessoa podem ser classificados em trs grandes categorias: crimes contra a vida e a integridade corporal; crimes contra a honra; crimes contra a liberdade. Entre os crimes contra a vida, previstos no Captulo I, inclui-se tambm o aborto, antecipando-se assim a tutela da vida humana ao momento da concepo. Impedir a formao e o surgimento do ser humano atentar contra a sua vida. A integridade corporal tutelada atravs da incriminao das leses corporais,Cf., como simples exemplo, FRANCISCO P. LAPLAZA, El delito de genocdio o genticdio, 1953, pg . 71; EDUARDO L. GREGORINI CLUSELLAS, Genocdio, su prevencin y represin, 1961, pg. 46, bem como a publicao da ONU, The crime of genocide: a U.N. Convention aimed at preventing destruction of groups and punishing those responsible, 1956, pg. 32. 3 No Cdigo Penal alemo em vigor foi introduzido em 1954 o 220, inserindo o genocdio entre os crimes contra a vida. Tal critrio censurado sem discrepncia por todos os autores, que afirmam tratar-se basicamente de um delito contra a humanidade. Cf. Exposio de Motivos do projeto alemo de 1962 (Entwurf eines Strafgesetzbuches E 1962, pg. 671), onde se diz que o genocdio constitui corpo estranho entre os crimes contra a vida. 22

designao que abrange as ofensas sade. A vida e a integridade corporal so protegidas tambm contra a exposio a perigo atravs da incriminao de vrias aes previstas no captulo III (Da periclitao da vida e da sade). A vida e a incolumidade pessoal so aqui penalmente tuteladas com referncia a pessoa determinada. A exposio a perigo de um nmero indeterminado de pessoas configura os crimes contra a incolumidade pblica. Os crimes contra a honra atingem, em substncia, a pretenso ao respeito e estima, como atributos morais da personalidade. Pune-se aqui a calnia, a difamao e a injria, que se dirigem contra a reputao, a dignidade e o decoro da pessoa humana. Os crimes contra a liberdade esto distribudos em quatro sees, atentando-se aos distintos aspectos em que pode aquele bem jurdico ser considerado. Aqui esto previstos os crimes contra a liberdade individual, a violao de domiclio, a violao de correspondncia e dos segredos.

Crimes contra a vida Protege a lei penal a vida humana desde a concepo, incriminando no s sua destruio na pessoa, como tambm o aborto, que vem a ser a destruio da vida antes do nascimento. So quatro as figuras de delito contra a vida: homicdio (artigo 121), infanticdio (art. 123), auxlio, instigao ou induzimento ao suicdio (art. 122) e aborto (arts. 124 e 126). O infanticdio apenas forma privilegiada de homicdio. HOMICDIO

Antecedentes histricos antiqussima a incriminao do homicdio. A punio, desde as mais remotas legislaes, era, invariavelmente, a morte. Desde os tempos de Numa Pomplio, rei que sucedeu a Rmulo, fundador de Roma (no ano 753 ou 754 A.C.), o homicdio era3

considerado crime pblico, com o nome de parricidium. No significava, originalmente, esta palavra a morte do pai ou de ascendente (patris occidium), mas, sim, a morte de um cidado sui juris (paris coedes ou paris excidium). Somente ao fim da Repblica esta palavra empregada apenas para designar a morte dada a parente prximo (MOMMSEN, II, 325). Sobre o homicdio dispunha a Lei das XII Tbuas (ano 450/451 A.C.): si quis hominem liberum dolo sciens morti duit parricida esto. Desde esse tempo, e mesmo anteriormente, j havia juzes para o processo do homicdio, os quais se chamavam quaestores parricidii. O escravo no podia ser sujeito passivo do crime de homicdio, porque no era pessoa, e sim coisa (res) e como tal objeto do crime de dano. A fonte por excelncia da incriminao do homicdio em Roma, era a Lei Cornlia (lex Cornelia de sicariis et veneficiis), promulgada ao tempo de Sila (81 A.C.). A pena, dependendo da condio do ru e das circunstncias do fato, era a deportatio (exlio), a confiscatio (confisco) ou a decapitatio (decapitao), para os honestiores, e a condenao aos animais ferozes (ad bestias) ou a vivicrematio, para os humiliores. J se previa, como formas mais graves do homicdio, o parricdio, o envenenamento e o latrocnio. Com a legislao de JUSTINIANO (535 D.C.) a pena de morte aplicada indistintamente a todos os homicidas. No direito germnico, o homicdio era crime privado, que sujeitava o agente vingana da famlia do morto ou composio. Mais tarde, com o ressurgimento do direito romano e a influncia do direito cannico, o homicdio voltou a ser considerado crime pblico. Foi em torno ao crime de homicdio que os praxistas desenvolveram a doutrina de inmeros institutos da parte geral (tentativa, participao, concurso, etc.). Consideravam os prticos, em geral, qualificado, o homicdio nos casos de parricdio (morte dada a parente), emboscada, latrocnio, assassnio (morte mediante paga) e envenenamento. A morte continuou sendo a pena usual.

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Com o movimento humanista do sec. XVIII algumas legislaes substituiram a pena de morte pela de priso celular e pelo trabalho forado, reservando-a apenas para os casos de homicdio qualificado. Nossas Ordenaes Filipinas cuidavam do homicdio voluntrio simples, do venefcio, do assassnio e do homicdio culposo, no Livro V, Tt. 35. Afora este ltimo, punido com pena extraordinria, os demais eram punidos com a morte, sendo, em algumas formas, cortadas as mos do criminoso e confiscados os seus bens. O parricdio est previsto no Livro V, tt. 41 1. O cdigo de 1830 ocupou-se do homicdio na parte III, ttulo II, cap. I, considerando-o qualificado se ocorriam o emprego de veneno ou fraude, emboscada, ou se fosse cometido mediante pagamento ou por mais de uma pessoa. As penas variavam desde a morte e gals perptuas at priso com trabalho. O cdigo imperial no cuidava do homicdio culposo, sendo esta uma de suas grandes falhas, corrigida, alis, pela Lei n 2.033, de 20 de setembro de 1871. O cdigo de 1890 contemplava o homicdio no art. 294, qualificando-o em numerosas circnstncias. As penas eram a de priso celular, de 12 a 30 anos (nas formas qualificadas) e de 6 a 24 anos (para o homicdio simples).4 Ao lado das duas espcies tradicionais de homicdio (simples e qualificado), que em muitas legislaes aparecem com designao distinta (meutre e assassinat; Totschlag e Mord; manslaughter e murder), nosso cdigo vigente previu, igualmente, o homicdio privilegiado (art. 121 1), que o praticado em circunstncias razoavelmente justificadas.

Objetividade jurdica Homicdio a destruio da vida humana alheia. famosa a definio de CARMIGNANI (hominis caedes ab homine injuste patrata), que inclui indevidamente o elemento da antijuridicidade, que implcito em toda definio de crime. O objeto da4

Sobre a histria do crime de homicdio, cf. JOO MESTIERI, Curso de Direito Criminal, 1970, pg. 36 ss. 5

tutela penal o interesse na preservao da vida humana, sendo esta evidentemente o bem jurdico tutelado. manifesta a altssima relevncia de tal bem, que indisponvel, sendo, assim, de nenhum efeito, o consentimento da vtima.

Sujeito ativo e sujeito passivo No se exige qualquer especfica qualificao do sujeito ativo do crime. O sujeito passivo, por igual, pode ser qualquer pessoa, ou seja, qualquer ser vivo, nascido de mulher. Antes do nascimento no h homicdio, mas, sim, aborto. Todavia, a morte do feto a termo ou vivel durante o parto, configura o crime de homicdio, a menos que seja praticada pela prpria me, sob a influncia do estado puerperal, caso em que o crime a identificar-se ser o de infanticdio (artigo 123 CP). A definio legal do crime de infanticdio, que forma privilegiada de homicdio, faz certo que a morte durante o parto homicdio, e no aborto. H, portanto, homicdio, desde que se inicie o parto. Este vem a ser o conjunto de processos tendentes a expulsar o feto do tero materno, terminado o ciclo fisiolgico da gravidez (salvo a hiptese de parto prematuro). O parto se inicia com o feto no tero materno, como bvio, no sendo necessrio, portanto, para que haja homicdio, que ocorra expulso, parcial ou total, e muito menos que haja vida autnoma. As dores que antecedem o parto no podem, por si ss, indicar com preciso o seu incio, pois h dores tambm antes do incio do parto. Comea o parto com o rompimento do saco amnitico. Alguns autores exigem que o feto tenha sido expulso, pelo menos em parte, do tero materno (BINDING, I, 38), mas a maioria se contenta com o incio do parto, referindo-o s dores que, a curtos intervalos conduzem ao desprendimento do feto (SCHNKE-SCHRDER, 919). suficiente que o sujeito passivo esteja vivo, sendo indiferente o seu grau de vitalidade ou capacidade de viver: tanto o recm-nascido sem possibilidade de sobrevivncia (mesmo disforme ou monstruoso), como o moribundo, podem ser sujeito passivo do crime de homicdio.

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A vida manifesta-se com a respirao. Pode haver vida sem respirao, no caso de recm-nascido apnico. Pode ela tambm revelar-se por outros sinais, como o movimento circulatrio e as pulsaes do corao. A vida biolgica, entretanto, tambm objeto de proteo penal, j que a morte do feto durante o parto homicdio e no aborto ou feticdio. Se j cessou a vida, no possvel haver homicdio. Ser impossvel o crime por impropriedade absoluta do objeto (art. 14 CP).

Conduta punvel A definio legal do crime de homicdio extremamente simples: mater algum. A ao incriminada , pois, a de matar, podendo o crime ser cometido por ao ou por omisso e por qualquer meio (direto ou indireto, fsico ou moral), desde que idneo, isto , capaz de causar morte. A idoneidade do meio deve ser avaliada ex post, pois mesmo o meio objetivamente inidneo pode revelar-se idneo no caso concreto (ex.: acar propinado a um diabtico). este crime material, que se consuma com o evento morte. E porque se trata de fato que deixa vestgio, ser sempre indispensvel o exame de corpo de delito, direto ou indireto, no podendo supri-lo a confisso do acusado (art. 158 CPP). o homicdio praticado por ao, quando h conduta positiva do agente (disparo de um tiro, propinao de veneno); e por omisso, quando h absteno de atividade devida (ex. a me que deixa de alimentar o filho, que morre de inanio). O homicdio por omisso exige que tenha o agente dever jurdico de impedir o evento. Tal dever pode surgir de uma norma jurdica (ex.: dever de mtua assistncia entre os cnjuges e de sustento e guarda dos filhos art. 231 CC), ou ainda, o fato de assumir a responsabilidade de impedir o resultado (particularmente atravs de contrato ou de negcio jurdico). No basta, porm, qualquer dever jurdico. O dever jurdico que decorre dos crimes omissos puros (ex.: art. 135 CP), no basta para equiparar a omisso conduta tpica comissiva (SCHNKE-SCHRDER, 46; MAURACH, AT, 474). Impe-se aqui um dever jurdico de impedir o resultado, seo o qual a omisso7

no antijurdica. Tal dever pode surgir tambm de uma anterior atividade prpria do agente, como no caso de um incndio culposamente causado. Quem, atravs da prpria atividade voluntria, cria o perigo da supervenincia de dano punvel, tem o dever jurdico de impedi-lo. Veja-se o art. 13 2 CP de 1969.5 No que concerne aos meios, chamam-se diretos aqueles de que o prprio agente se serve para atingir a vtima (tiro, esganadura, etc.), e, indiretos, aqueles que propiciam a morte, causada, efetivamente, por fator independente do criminoso (ex.: o agente atrai a vtima a lugar onde atacada e morta por uma fera ou por descarga de corrente eltrica). O erro quanto pessoa atingida acidental, e, portanto, irrelevante. Consideram-se, nesse caso, as condies e qualidades da pessoa contra a qual o agente queria praticar o crime (art. 17 3 CP). O erro na execuo (aberratio ictus) , igualmente, irrelevante (art. 53 CP), respondendo o agente como se tivesse atingido a pessoa visada, se efetivamente matou algum. Se o agente, julgando ter matado a vtima, pratica outra ao que vem a produzir a morte, responde por um s delito consumado. (Ex.: Tcio, supondo erroneamente que matou seu inimigo Caio com o golpe que desferiu, lana-o de um precipcio, causandolhe ento a morte). a hiptese do chamado dolus generalis, que conduziu no passado a infrutfero debate. perfeitamente admissvel a tentativa, que se verifica quando, iniciada a execuo do homicdio, no sobrevm a morte por circunstncias alheias vontade do agente. H incio de execuo quando o agente comea a matar algum, ou seja, quando surge o ataque ao bem jurdico que a lei penal tutela ou quando se inicia a violao da norma, com a realizao da conduta tpica. Como bem exemplifica NLSON HUNGRIA, V, 67, so atos meramente preparatrios: a aquisio da arma ou do veneno, a procura do local propcio, o ajuste de auxiliares, o encalo do adversrio, a emboscada, o fazer pontaria com arma de fogo, o sacar o punhal. So atos5

Cf. sobre o assunto, extensamente, HELENO FRAGOSO, Conduta Punvel, 1961, pg. 55 e seguintes. Veja-se tambm a deciso do TA da Guanabara na AC n 2.085 apreciada em largo comentrio publicado na RDP, 3/96. 8

executivos: o disparo do tiro, o deitar o veneno no alimento destinado vtima iludida, o brandir o punhal para atingir o adversrio, etc. Afastando-se de nosso direito anterior, nenhuma relevncia atribui o cdigo vigente s concausas, salvo se supervenientes e relativamente independentes (art. 11 pargrafo nico CP). Nosso cdigo imperial atenuava consideravelmente a pena do crime de homicdio, quando a morte se verificasse, no porque o mal causado fosse mortal, mas porque o ofendido no aplicasse toda a necessria diligncia para removlo (art. 194). E o cdigo de 1890, igualmente, concedida privilgio ao homicdio no caso em que a morte resultasse, no da natureza e sede da leso, e sim das condies personalssimas do ofendido, e, ainda mais, no caso em que resultasse, no por ter sido mortal a leso, e, sim, por ter o ofendido deixado de observar o regime mdicohiginico reclamado pelo seu estado (art. 295 1 e 2). Nossos cdigos anteriores beneficiavam injustificadamente o homicida pois desde que o agente tenha pretendido matar (ou desde que tenha assumido o risco de causar esse resultado), inteiramente irrelevante, do ponto de vista da criminosidade de sua ao, que tenha conseguido seu objetivo pela supervenincia ou preexistncia de circunstncia estranha e no prevista, que no afeta o nexo causal. De conformidade com o princpio adotado pelo nosso cdigo, somente se rompe a cadeia causal na hiptese de concausa superveniente (no concomitante ou preexistente), que por si s tenha dado causa do resultado, como no seguinte exemplo: Mvio fere mortalmente Tcio. Este, porm, socorrido prontamente e vem a morrer de grave desastre ocorrido com a ambulncia que o transportava. Tal desastre concausa relativamente independente, pois no teria ocorrido sem a agresso praticada, mas interrompe o nexo causal, em face do art. 11 pargrafo nico CP. Responde Mvio apenas por homicdio tentado. Exemplo de concausa preexistente irrelevante: Mvio dispara um tiro visando seu inimigo Caio para mat-lo, no o atingindo, porm. Sendo a vtima portadora de grave leso cardaca, vem, todavia, a morrer, em conseqncia do cheque emocional. Responde Mvio por homicdio consumado. Exemplo de concausa superveniente irrelevante: Mvio atinge necandi animo seu inimigo Semprnio, causando-lhe grave leso, no letal. Ocorre, todavia, a morte da vtima, em virtude da supervenincia de gangrena, em face da insuficincia ou ausncia de tratamento. Responde o agente por homicdio consumado, pois em tal caso no houve interrupo da cadeia causal: o9

condicionamento do evento morte (gangrena), situava-se na linha de desdobramento causal da ao praticada e, como diz NLSON HUNGRIA, sem ultrapassar a rbita do perigo criado por esta.6

Culpabilidade O crime imputvel a ttulo do dolo, que consiste no vontade livre e consciente de causar a morte de uma pessoa. o chamado animus necandi. O propsito homicida ser, em regra, revelado pelas circunstncias em que a ao praticada, podendo ser indcios valiosos, a ndole do acusado, suas precedentes manfiestaes de nimo, a causa de seu comportamento delituoso, a natureza dos meios empregados, o local e a quantidade dos golpes desferidos, quando sua direo foi dependente da vontade (CARRARA, 1.104).7 O dolo pode ser direto ou eventual. direto quando o agente quer a morte da vtima, e eventual, quando assume o risco de produzi-la (art. 15 CP). O dolo eventual muito se aproxima da culpa consciente. Nesta, como naquele, h previso do resultado. Na culpa, porm, o agente confia honestamente em que ele no ocorrer, ao passo que no dolo eventual o resultado lhe indiferent. Se o agente previsse o resultado como certo, abster-se-ia de praticar a ao que lhe d causa, no caso de culpa consciente. No caso de dolo eventual, nem assim deixaria de agir. A distino entre o dolo eventual e a culpa consciente perfeitamente clara na doutrina, mas, praticamente , por vezes, muito difcil. A dvida ser sempre resolvida em favor do ru, com a afirmao da culpa consciente. A tentativa de homicdio com dano corporal corresponde objetivamente ao crime de leso corporal consumado. A tentativa do crime mais grave depende, como bvio, da certeza quanto ao propsito homicida, ou seja, o dolo correspondente ao homicdio. A dvida conduz necessariamente ao reconhecimento do crime menos grave de leso corporal.6 7

Sobre este difcil problema, cf. HELENO FRAGOSO, Conduta Punvel, pg. 106 e seguintes. Cf. sobre o assunto, M. FINZI, Lintenzione di uccidere considerata in relazione al mezzo lesivo adoperato, in Scritti Giuridici in Onore di Vincenzo Manzini, Pdua, CEDAM, 1954, pg. 179. 10

Se o homicdio foi praticado por inconformismo ou faccionismo poltico-social, o crime ser o do art. 32 DL 898/69, desde que a vtima seja pessoa que exera autoridade ou estrangeiro que se encontra no Brasil a convite do governo brasileiro, a servio de seu pas ou em misso de estudo. A pena, em tal caso, a morte, equiparando-se de recluso por 30 anos, para efeito de tentativa (art. 50). No h homicdio por inconformismo ou faccionismo poltico-social no caso em que o agente acusado ou condenado por atividades subversivas atingiu a autoridade policial ao tentar impedir sua priso. (RTJ, 58/3).

O evento morte como condio de maior punibilidade O evento morte constitui condio de maior punibilidade de uma srie de crimes, que so qualificados pelo resultado (art. 127 in fine; 129 3; 133 2; 134 2; 135 pargrafo nico, in fine; 137 pargrafo nico; 159 3; 223 pargrafo nico; 232, 256; 263; 264 pargrafo nico e 285). So os chamados crimes preterintencionais ou preterdolosos. Nestes casos no h dolo (direto ou eventual) em relao morte da vtima, que causada culposamente, j que no h responsabilidade objetiva em tais casos.

Pena A pena cominada ao homicdio simples de 6 a 20 anos de recluso. HOMICDIO PRIVILEGIADO Nossos cdigos anteriores no cogitavam de homicdio privilegio (salvo a hiptese de infanticdio). Na legislao estrangeira encontram-se vrios cdigos que prevem essa espcie de homicdio, que em geral configuram nos casos de ira ou emoo violenta e provocao da vtima. Nosso cdigo vigente estabeleceu com preciso os contornos do homicdio privilegiado, dispondo no 1 do art. 121 que a pena pode ser reduzida de um sexto a um tero, se o agente comete o crime impelido

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por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domnio de violenta emoo, logo em seguida a injusta provocao da vtima. A redao da lei parece no deixar dvida de que a reduo de pena facultativa, no constituindo obrigao para o juiz. Essa interpretao, que se encontra na Exposio de Motivos (n 20), no pacfica, pois h os que entendem ser imperativa a reduo da pena. Assim se pronunciou a Conferncia dos Desembargadores, reunida em 1943, no Rio de Janeiro, sendo esta tambm a opinio de E. CUSTDIO DA SILVEIRA (Direito Penal, 1959, p. 68). Afirma-se que, sendo este crime da competncia do Tribunal do Jri, haveria violao da soberania dos veredictos se o juiz deixasse de atenuar a pena, reconhecendo o tribunal popular ter sido o crime praticado na hiptese do art. 121 1 do CP. O argumento no impressiona, pois a funo jurisdicional do jri deve exercer-se obrigatoriamente nos limites da lei, que na hiptese lhe confere poderes para afirmar ou negar a existncia da circunstncia atenuante especial, dando, porm, ao juiz a faculdade de consider-la, ou no, na fixao da pena. Esta a lio de NLSON HUNGRIA V, 139. Nesse sentido orienta-se tambm a jurisprudncia.8 Destacam-se aqui circunstncias j previstas no cdigo como atenuamentes genricas (art. 48, IV, letras a e c in fine) e que, em relao ao homicdio, so especialmente contempladas para configurar uma forma privilegiada do crime. Duas so as hipteses de homicdio privilegiado: 1. ou 2. da vtima. Os motivos que determinam o agente a delinqir so de especial importncia na apreciao da fealdade moral de sua atividade criminosa, e tambm de seu maior ou8

Ter sido o crime cometido por motivo de relevante valor social ou moral; sob o domnio de violenta emoo, logo em seguida a injusta provocao

HC n 48.618, 2 Turma, rel. Min. ADALCIO NOGUEIRA (DJ, 14-5-71, pg. 2128); AC n 48.946, TJ da guanabara, 2 CC, rel. Des. ROBERTO MEDEIROS (RJ, 18/369); RDP, 1/160; 2/123. 12

menor desajuste e de sua periculosidade. Porisso, os motivos devem ser cuidadosamente considerados pelo juiz na aplicao da pena (art. 42 CP), pois constituem o melhor ndice da perversidade da ao. O motivo de valor social aquele que atende aos interesses ou fins da vida coletiva. O valor moral do motivo se afere segundo os princpios ticos dominantes. So aqueles motivos aprovados pela moralidade mdia, considerados nobres e altrutas. Como ensina MANZINI, II, 212, o valor moral do motivo extrai-se dos princpios ticos prprios da sociedade presente. Aquilo que a moral mdia reputa nobre e merecedor de indulgncia o que deve ser acolhido pelo juiz, ainda que a moral superior possa ensinar diversamente. Prevalecem aqui os critrios da chamada moral prtica. O valor social ou moral do motivo que deve ser sempre considerado objetivamente segundo a mdia existente na sociedade, e no segundo a opinio do agente deve ser relevante, isto , considervel, importante. A morte dada a um traidor da ptria, a um bandido; o homicdio piedoso (eutansia) ou praticado em certos casos de honra, so exemplos de relevante valor social ou moral. A circunstncia de ter agido por motivo de especial valor social ou moral, tem carter subjetivo, e, assim, no se comunica ao co-autor, que no age impelido pelas mesmas razes. Subsiste o homicdio privilegiado mesmo quando o motivo erroneamente suposto pelo agente. A segunda hiptese de homicdio privilegiado prevista pelo cdigo tradicionalmente conhecida como mpeto de ira ou justa dor e historicamente considerada nos casos de provocao da vtima, flagrante adultrio e morte dada a ladro. No direito romano, era a pena atenuada para o homicdio em flagrante adultrio, pela existncia de dolor iustus (Cod. 9, i, 4), ou pela ao praticada impetu tractus doloris (difficilimum iustum dolorem temperare) (D. 48, 5, 38 8). Era, alis, atenuante genrica do dolo, na graduao romana, o mpeto de ira (regula enim juris est quod delictum ira commissum mitius punitur).

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Entre os praxistas foi regra geral a atenuao e mesmo a excluso da pena nos casos de provocao injusta e ira violenta (mxima iracundia) por motivo legtimo. A injustia da provocao era considerada elmento essencial (simplex iracundiae calor non excusat, nisi iusta causa praecedat). Como excusante especial nos crimes de sangue, acolheu o cdigo penal francs, de 1810 (art. 321), a provocao, sendo este exemplo seguido por vrios outros estatutos do sculo passado. A razo de ser da atenuante fundava-se na diminuio da intensidade do dolo ou da responsabilidade do agente, em face da provocao injusta, e, ainda, no menor alarma social causado pelo crime praticado em tais circunstncias. O cdigo vigente no atendeu apenas provocao injusta nesta segunda forma de homicdio privilegiado, sendo necessrio que da provocao resulte violenta emoo e que a ao seja praticado logo em seguida, ou seja, imediatamente aps o fato. So, pois, trs as condies aqui exigidas pela lei para conferir privilgio ao homicdio: 1. 2. 3. Provocao injusta da vtima; emoo violenta do agente ; reao deste logo em seguida.

A provocao no se constitui apenas por golpes e violncias graves, como estabelecia o cdigo napolenico, os quais podem, inclusive, dar lugar a situao de legtima defesa. Pode ela consistir em qualquer fato voluntrio (ao ou omisso) que expresse um desafio ou uma ofensa sensibilidade moral do agente. No s vias de fato e ameaas, como ofensas honra, zombarias, reticncias, insinuaes, perseguies, expresses de desprezo, atos de emulao, etc. No indispensvel a inteno de provocar. A provocao sempre uma excusa pessoal, que deve atingir a pessoa que reage. No se exclui, porm, que haja provocao, no sentido do dispositivo legal que examinamos, no caso em que a pessoa por ela visada seja diversa da que reage, desde que a esta ligada, de forma a ser atingida tambm, indiretamente. Tais hipteses exigem, todavia, do julgador, a mxima cautela. A existncia de provocao ou seja, a potencialidade causal do fato para constituir uma provocao, deve ser considerada com critrios relativos. O que para14

uns ser provocao, para outros, no. Deve ter-se em conta a personalidade das pessoas, seu grau de cultura e educao, bem como a natureza do fato e suas circunstncias. Devero considerar-se, porm, os padres do homem normal, e no os dos hiper-sensveis. Como ensina SOLER, III, 70, a lei atenua o fato quando este constitui a reao explicvel, compreensvel excusvel e externamente motivada, de uma conscincia normal. Deve, ademais, a provocao, ser injusta, isto , antijurdica e sem motivo razovel, de modo a causar justa indignao. A injustia da provocao, deve ser sempre apreciada objetivamente, e no de acordo com o entendimento do agente. No haver provocao injusta sem sujeito consciente, excluindo-se, assim, a ao de crianas e loucos, desde que a condio destes seja notria. No se pode deixar de atribuir relevncia provocao erroneamente suposta, desde que o erro seja excusvel (CARRARA, 1.289). No basta, porm, a provocao, por mais grave e veemente que seja. de mister que dela haja resultado violenta emoo. O homicdio praticado friamente no ser privilegiado, no obstante a ocorrncia de provocao. A simples existncia de emoo por parte do agente, por outro lado, igualmente no basta, pois no se trata de outorgar privilgio aos irascveis ou s pessoas que facilmente se deixam dominar pela clera. Cabe indagar do estado emocional aps a constatao dos fatos, isto , da existncia de provocao injusta da vtima, que o tenha causado. A emoo, que no exclui a responsabilidade penal (artigo 24, n. I CP), aqui excepcionalmente relevante, desde que violenta. Evidentemente, contemplam-se aqui as emoes fisiolgicas, que integram a psicologia do homem normal; as emoes patolgicas excluiriam a responsabilidade do agente. Emoo um estado afetivo que produz momentnea e violenta perturbao da personalidade do indivduo. Afeta o equilbrio psquico, ou seja, o processo ideativo, acarretando alteraes somticas, com fenmenos neuro-vegetativos (respiratrios, vasomotores, secretores, etc.) e motores (expresses e mmicas). A lei exige que a emoo seja violenta, o que significa que deve tratar-se da sria perturbao da afetividade, de modo a destruir a capacidade de reflexo e os freios inibitrios. Por essa razo, a violenta emoo incompatvel com o15

emprego de certos meios que demonstram planejamento e fria premeditao, pois em geral consiste numa reao desordenada. A paixo por si s no pode dar lugar ao homicdio privilegiado, pois ela representa um processo afetivo duradouro, ou, como diz DE SANCTIS, um estado emotivo que se protri, representando na ordem afetiva o que a idia fixa na ordem intelectual. A paixo a emoo-sentimento, ao passo que aqui somente se considera a emoo-choque, ou seja, a subitnea reao afetiva, menos suscetvel de autocontrole. A emoo, porm, pode surgir de um estado de paixo, em face de um motivo que a faa eclodir, pois, como ensina SOLER, III, 66, um certo estado de tenso psquica anterior costuma ser circunstncia que precede quase sempre os estados emocionais. No se considerar em tal caso, o sentido tico da paixo, mas, to somente, a injustia da provocao que fez surgir a emoo violenta. O terceiro requisito legal diz respeito ao intervalo de tempo, exigindo-se que o crime seja praticado sine intervallo, ou seja, logo em seguida injusta provocao da vtima, enquanto durar o estado emocional por ela provocado. A razo do privilgio outorgado ao homicdio cometido nessas circunstncias reside no fato de verificao comum, do descontrole emocional sobre os freios inibitrios, em conseqncia da provocao injusta e deve, portanto, excluir-se nos casos em que o decurso do tempo possibilita a reflexo e o auto-controle. No desaparece o homicdio privilegiado em face de erro na execuo (aberratio ictus). Resta saber se as circunstncias que tornam o homicdio privilegiado aplicam-se somente ao homicdio simples ou tambm ao homicdio qualificado. As disposies da nossa lei, situando o homicdio privilegiado no 1 e o homicdio qualificado no 2 do art. 121 CP, fariam crer que somente ao homicdio simples poderiam aplicar-se as hipteses de privil~egio. Como se resolveriam, ento, os casos de concurso de circunstncias, como o do crime cometido por motivo de relevante valor social ou moral por meio de veneno ou asfixia? O fato apresenta ao mesmo tempo circunstncia que atenuam e circunstncias que qualificam.16

No exemplo mencionado devem prevalecer as circunstncias preponderantes (art. 49 CP), que so as que dizem respeito aos motivos determinantes, devendo, assim, reconhecer-se o homicdio privilegiado. No ser possvel considerar-se a hiptese de concurso em relao s circunstncias subjetivas de qualificao do homicdio, ou seja, quando o crime praticado mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; por motivo ftil ou para assegurar a execuo, a ocultao, a impunibidade ou vantagem de outro crime. Todavia, em relao s circunstncias objetivas, que dizem como os meios ou modos de execuo (art. 121 2 nmeros III e IV), pode haver concurso com a circunstncias que autorizam a diminuio de pena (art. 121 1), as quais devero prevalecer, pois so preponderantes.9 No pargrafo 2 do artigo 121 esto previstos os casos de homicdio qualificado. Aqui tmbm vrias agravantes genricas (art. 44, II, letras a, b, c, d e e) passam a ser elementos constitutivos do homicdio qualificado e no apenas circunstncias (accidentalia delicti). Nosso cdigo, na configurao do homicdio qualificado, atendeu a certos motivos determinantes (paga ou promessa de recompensa; motivos torpe ou ftil); a certos modos ou meios de execuo (emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou qualquer outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; traio, de emboscada, ou mediante dissimulao ou outro recurso que dificulte ou torne impossvel a defesa da vtima); ou, ainda, a certos fins visados pelo agente (para assegurar a execuo, a ocultao, a impunidade ou vantagem de outro crime). A premeditao era por CARMIGNANI (Elementa 903) definida como occidendi propositum frigido pacatoque animo susceptum, et moram habens. Exigia, assim, o nimo frio e um intervalo de tempo entre a deliberao e a execuo do delito. Ainda hoje a premeditao considerada causa de qualificao do homicdio em vrais legislaes (italiana, francesa, etc.). Em nosso cdigo, porm, nem sequer foi prevista como agravante genrica. Entendeu-se que a premeditao nem sempre revela maior9

Em sentido contrrio pronunciou-se a 1 Conferncia de Desembargadores (Anais, pg. 258). 17

frieza ou peerversidade, podendo, ao contrrio, indicar hesitao ou resistncia em relao empresa criminosa. Premeditadamente pode ser cometido um homicdio por motivo de relevante valor social ou moral, e pode tambm o crime ser praticado ex improviso, por motivo ftil, revelando excepcional insensibilidade moral por parte do agente. Na qualificao do homicdio no foi tambm considerado o parricdio, que era previsto por nossos cdigos anteriores e que classicamente objeto de severa punio. No direito romano aplicava-se ao parricida a pena do culeum, que consistia em encerrar o criminoso num saco de couro cosido, juntamente com um co, um galo, uma vbora e um macaco, lanando-o ao mar ou ao rio, conforme a situao do lugar, para que assim se misturasse no contubrnio das serpentes (inter eas ferales angustias comprehensus serpentium contuberniis misceatur) (Cdigo 9,17). Nossas Ordenaes Filipinas (Livro 5, ttulo 41) dispunham: E o filho ou filha, que ferir seu pai, ou me, com teno de os matar, posto que no morram das tais feridas, morra morte natural. O cdigo vigente, dando mais valor aos motivos determinantes, como outros cdigos modernos, fez da circunstncia de ser o crime praticado contra ascendente ou descendente, apenas uma gravante genrica (art. 44, n II, letra f). O homicdio perante nossa lei qualificado, primeiramente pelo motivo torpe, com especial referncia ao homicdio mercenrio, isto , cometido mediante paga ou promessa de recompensa. a modalidade que classicamente se denominou assassnio. Implica sempre na participao de duas pessoas, sendo o homicdio qualificado para ambas (tanto a que executa o crime mediante paga ou promessa de recompensa, como a que manda que o crime seja executado nessas circunstncias). A qualificao do homicdio mercenrio justifica-se pela ausncia de razes pessoais por parte do executor (indcio de insensibilidade moral) e pelo motivo torpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurana, servindo-se de um terceiro. No necessrio que o pagamento efetivamente se faa ou que a promessa se cumpra. Basta que tenha sido este o motivo que determinou a execuo do delito. A recompensa dada ou prometida pode ser de qualquer natureza. Como bem assinala OLAVO OLIVEIRA (Delito de Matar, 1959, p. 56), enquadra-se no preo do sangue18

qualquer retribuio, mesmo sem valor patrimonial, representativa da contraprestao a que corresponde a prestao da atividade criminosa. No se exclui, assim, o benefcio puramente moral ou material, inclusive a satisfao de desejos. O motivo torpe quando ofende gravemente a moralidade mdia ou os princpios ticos dominantes em determinado meio social. O CP de 1969 qualifica tambm o homicdio quando o crime for praticado por cupidez (cobia), para excitar ou saciar desejos sexuais (art. 121 2, II). Prev o cdigo, em seguida, a qualificao do homicdio pelo motivo ftil. O motivo ftil quando evidentemente no basta para levar prtica do crime. Deve ser apreciado sempre objetivamente e no de acordo com a opinio do ru. Nos incisos III e IV do 2 do artigo 121 esto enunciados os casos em que a qualificao do homiclio se d pelos meios ou pelos modos de execuo empregados pelo agente: com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; traio, de emboscada, ou mediante dissimulao ou outro recurso que dificulte ou torne impossvel a defesa da vtima. O envenenamente uma das formas clssicas do crime de homicdio, que foi particularmente temida no passado, tanto pela forma insidiosa com que era e ainda praticado, como pela dificuldade de prova e punio do agente. Nossas Ordenaes do Reino previam especificamente a hiptese de envenamento: E toda a pessoa, que a outra der peonha para a matar, ou lha mandar dar, posto que de tomar a peonha se no siga morte, morra morte natural. (Liv. V, tt. 35 2). Punia, assim, a tentativa como crime consumado. O cdigo francs, de 1.810 (art. 301), pune tambm com a morte o simples atentado vida por meio de veneno (par leffect de subtances qui peuvent doner la mort plus ou moins promptement), qualquer que seja o resultado. O conceito de veneno relativo. Vrias substncias podem ser remdio ou veneno, dependendo da quantidade ou do modo porque so propinadas. Entende-se por19

veneno qualquer substncia mineral, vegetal ou animal que, introduzida no organismo, seja capaz de atingir a vida ou a sade, atravs da ao qumica ou bio-qumica. S haver homicdio qualificado pelo envenenamento, caso o veneno seja ministrado vtima de maneira insidiosa ou subreptcia, sem o seu conhecimento. O envenenamento violento no constitui homicdio qualificado, devendo ressalvar-se a possibilidade de que constitua meio cruel. O homicdio cometido por meio de fogo ou explosivo, sobre revelar maior crueldade, pode acarretar uma situao de perigo para maior nmero de pessoas. A asfixia resulta de obstculo passagem do ar atravs das vias respiratrias ou dos pulmes. A morte ocasionada pela falta de oxignio no sangue (anoxemia). forma cruel de praticar o homicdio. A asfixia pode ser mecnica (enforcamento, imprensamento, estrangulamento, afogamento) ou txica (produzida por gases txicos). A tortura consiste na inflio suplcios ou tormentos, como atos de pura crueldade. A enumerao legal exemplificativa, e, assim, o homicdio pode ser qualificado pelo emprego de qualquer outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum. Insidioso o meio dissimulado, supreptcio. Meio cruel todo aquele que acarreta padecimento desnecessrio para a vtima, ou, como se diz na Exposio de Motivos, o meio que aumenta inutilmente o sofrimento, ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade. Perigo comum aquele que atinge a indeterminado nmero de pessoas. O meio capaz de produzir perigo comum ser, em regra, o fogo ou explosivo, isto , elementos cuja capacidade destruidora no pode ser controlada pelo agente. H vrios crimes de perigo comum, definidos no captulo I do ttulo VII da parte especial (art. 258 a 285 CP), crimes esses que podem ser qualificados pelo evento morte. A morte, em tais casos, todavia, no querida, nem mesmo eventualmente, pelo criminoso: apenas condio de maior punibilidade, imputada ao ru a ttulo de culpa. No homicdio20

qualificado pelo meio de que possa resultar perigo comum, a morte da vtima precisamente o fim visado pelo agente (salvo a hiptese de dolo eventual). Os modos de execuo que qualificam o homicdio so os indicados no inciso IV do 2 do art. 121. a traio o clssico homicidium proditorium, que o praticado quando a vtima de nada suspeita. A emboscada ocorre quando o agente aguarda a vtima, oculto no lugar em que a mesma deve passar. A dissimulao consiste na ocultao do verdadeiro propsito por parte do agente, que assim, surpreende a vtima, dificultando-lhe a defesa. A enumerao legal, aqui tambm, exemplificativa, no se excluindo, portanto, qualquer outro modo que dificulte ou torne impossvel a defesa da vtima. A ltima hiptese de qualificao do homicdio est prevista no inciso V: para assegurar a execuo, a ocultao, a impunidade ou vantagem de outro crime. irrelevante que o crime-fim seja consumado ou tentado. Basta que o agente tenha praticado o homicdio com o fim de assegurar a execuo ou o proveito de outro crime. Se o crime-fim for cometido, haver concurso material de crimes, aplicando-se cumulativamente as penas art. 51 CP. irrelegante igulamente que o homicdio seja praticado antes ou depois do outro crime, bem como a desistncia do agente em relao a este. A pena prevista para o homicdio qualificado de 12 a 30 anos de recluso. HOMICDIO CULPOSO Pela lei das XII Tbuas impunha-se ao homicdio involuntrio to somente uma expiao religiosa. Posteriormente, sob o imprio da lei Aquilia (287 AC), surgem reparaes pecunirias. Na poca clssica, porm, aplicava-se aos honestiores a pena de relegao e outras penas mais graves aos humiliores. Eram tais penas extraordinrias, ou seja, aplicadas extra ordinem e em caso por caso, arbitrariamente. Durante a Idade Mdia punia-se o homicdio culposo com a multa, o exlio local e outras penas igualmente leves. Nossas Ordenaes Filipinas dispunham: Se a morte21

for por algum caso, sem malcia ou vontade de matar, ser (o agente) punido ou relevado, segundo sua culpa ou inocncia que no caso tiver (Livro 5, tt. 35). Como sabido, nosso cdigo imperial no tratava do homicdio culposo, sendo tal falha suprida pela Lei n 2.033, de 20 de setembro de 1871, que em seu art. 19 punia como homicdio involuntrio, o praticado por imprudncia, impercia ou falta de observao de algum regulamento. Previa esta forma de homicdio, igualmente, nosso cdigo anterior (art. 297), reconhecendo tambm a culpa na inobservncia de alguma disposio regulamentar, frmula que foi abandonada pelo cdigo vigente e que, no dizer de COSTA E SILVA, constituia repugnante presuno. Diz-se o homicdio culposo quando o agente mata algum involuntariamente, por negligncia, imprudncia ou impercia. A culpa consiste na omisso das cautelas e diligncias impostas pela vida social, cuja observncia se impe para eivtar dano ou leso aos componentes do grupo. Segundo a precisa definio de GRAF ZU DOHNA (Aufbau der Verbrechenslehle, 1950, p. 53), age culposamente quem omite o cuidado que tinha o dever e a capacidade de observar em face das circunstncias e de sua situao pessoal, no prevendo a possibilidade de causar um fato punvel, ou, conquanto considerando possvel caus-lo, confiando em que no acontea (culpa consciente). , em sntese, a conduta negligente, em regra voluntria, que causa um resultado antijurdico no querido, mas previsvel, a excepcionalmente previsto, que poderia, com a devida ateno, ser evitado. A culpa est em funo da reprovabilidade da falta de observncia, por parte do agente, do cuidado exigvel, ou seja da diligncia ordinria ou especial a que estava obrigado. Cf. Exposio de Motivos (CP 1969, n 10). A culpa pode ser consciente (com previso) ou inconsciente (sem previso). Exige-se, em qualquer caso, que o evento seja previsvel (a previsibilidade o limite da culpa). Na culpa consciente o agente prev o resultado, mas age confiando honestamente em que ele no ocorrer. A culpa inconsciente quando o agente no previu o resultado que causou, embora pudesse prev-lo. No homicdio culposo, o agente no quer a morte da vtima (e isto o distingue fundamentalmente do homicdio doloso). O que o agente quer a conduta voluntria22

(ao ou omisso), no o evento morte, que resulta de negligncia, imprudncia ou impercia. O crime se consuma com a morte da vtima. A tentativa no possvel em crime culposo, no qual no h vontade dirigida ao fim antijurdico. A culpa do agente no se compensa com a da vtima. A compensao de culpas prpria do direito privado. Os problemas da concorrncia de culpas resolvem-se sempre com os critrios da causalidade material (art. 11 e seu nico). A pena cominada ao homicdio culposo de deteno, de um a trs anos. O CP de 1969 passou a cominar a pena de um a quatro anos de deteno. O novo CP previu expressamente a hiptese de pluralidade de vtimas no caso de homicdio culposo (art. 121 5): Se, em conseqncia de uma s ao ou omisso culposa, ocorre morte de mais de uma pessoa ou tambm leses corporais em outras pessoas, a pena aumentada de um sexto at metade. Tal regra desnecessria em face do CP de 1940, em vigor, pois constitui aplicao da norma relativa ao concurso formal (art. 51 1), que o novo cdigo regula diversamente, em dispositivo, alis, defeituoso (art. 65).

Aumento de pena Estabelece o 4 do art. 121 casos especiais de aumento de pena do homicdio culposo: No homicdio culposo, a pena a aumentada de um tero, se o crime resulta de inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro vtima, no procura diminuir as conseqncias de seu ato, ou foge para evitar a priso em flagrante. Quatro so as situaes que aqui devem ser consideradas: (a) Morte devida a ao culposa resultante da inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio; (b) Omisso de socorro imediato vtima;23

(c) ausncia de iniciativa para diminuir as conseqnicas do crime; (d) Fuga para evitar a priso em flagrante.

O CP de 1969 (art. 121 4) limitou-se as agravantes inobservncia de regra tcnica e omisso de socorro. Como se diz na Exposio de Motivos do CP vigente as agravantes em causa relacionam-se com a circulao de veculos, alarmante fonte de acidentes graves, fixando deveres especiais para os motoristas. Aplicam-se, no obstante, a toda espcie de homicdios culposos. A agravao surge atravs de um plus de culpabilidade e jamais poderia ser reconhecida em elementos que integram a conduta tpica ou a definio do delito em sua hiptese fundamental. Como assinala BURNS (Strafzumessungsrecht, 1967, p. 96 e 335), um dos primeiros erros jurdicos descobertos pela teoria da aplicao da pena foi o da inadmissvel dupla valorao de caractersticas do tipo, considerados de novo pelo juiz na identificao de certas agravantes. No crime de homicdio culposo e no de leses corporais culposas, a pena agravada se o fato foi praticado com inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio. Tal dispositivo s se aplica quando se trata de um profissional, pois somente em tal caso se acresce a medida do dever de cuidado e a reprovabilidade da falta de ateno, diligncia ou cautela exigveis. Se no se trata de um profissional, o componente da culpabilidade no excede o que regularmente se requer para a configurao do crime culposo em sua hiptese tpica bsica, de modo que o reconhecimento da agravante significaria uma dupla valorao inadmissvel.

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Se algum constri um muro divisrio de seu terreno e se tal muro vem a ruir causando a morte, por ter sido edificado com inobservncia de regras tcnicas, parece evidente que uma culpa agravada s poderia ter um tcnico na construo de muros. Quem, no sendo tcnico, se lanasse construo de um muro, seria apenas culpado da imprudncia elementar ao crime culposo. A maior responsabilidade surge somente pelos acrescidos deveres que tem o profissional. Se o muro for construido por um profissional, com inobservncia dos deveres de seu ofcio, a censurabilidade ser bem maior, porque o profissional est adstrito a mais graves responsabilidades. Como ensina o nosso excelente ANIBAL BRUNO, no a impercia do agente que se torna agravante na primeira hiptese, mas a inconsiderao com que age, desprezando as regras do seu ofcio, e por esse desinteresse, provocando o fato punvel. A omisso de socorro pode constituir crime autnomo (art. 135 CP). Aqui, porm, mera agravante do homicdio culposo que somente se aplicar se no houver morte instantnea, ou seja, se for possvel o socorro. A inexistncia de anterior ao culposa exclui, evidentemente, a aplicao da agravante, que a pressupe. Pode, no entanto, em tal caso configurar-se o crime de omisso de socorro. Finalmente, com a ltima agravante visa a lei manter o agente no local do crime, particularmente para assegurar a apurao da responsabilidade. A priso em flagrante embora tornasse certa a autoria, no teria conseqncias muito graves, pois o homicdio culposo afianvel. DELITOS DE CIRCULAO Os crimes culposos praticados com a circulao de veculos constituem impressionante fenmeno em todos os grandes centros urbanos. pesado o tributo que o homem moderno paga a ao desenvolvimento da tcnica, com a criao de riscos socialmente aceitveis, no uso do automvel. O assunto tem merecido a ateno dos25

estudiosos e dos legisladores, na formulao de novas disposies legais, buscando diminuir o ndice alarmante de acidentes10. Nossa vigente lei penal limita-se a prever agravante para os crimes de homicdio culposo e leses corporais culposas, alm de punir como contraveno penal, o fato de conduzir veculos sem habilitao (art. 32 LCP) e a direo perigosa (art. 34). A pena acessria, de incapacidade temporria para conduzir automveis, prevista para os que cometem crimes com abuso da profisso ou da atividade de motorista ou com infrao de dever a ela inerente (art. 69, IV e seu nico, IV, CP).11 A agravante da inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio somente se aplica aos motoristas profissionais, pelas razes que j deixamos mencionadas12. Em caso algum pode a infrao de regra tcnica funcionar como agravante quando por si s o elemento constitutivo da culpa13. Se o motorista d causa ao acidente sem culpa, e omite socorro vtima que dele necessitava, pratica o crime de omisso de socorro14. Por outro lado, no haver priso em flagrante nem se exigir fiana se o condutor do veculo causador do acidente prestar pronto e integral socorro vtima (art. 123 Cd. Nac. Trnsito, L. nmero 5.108, 21.9.66). Em tal caso, a autoridade policial que, na via pblica ou em estabelecimento hospitalar, primeiro tiver cincia do acidente, anotar a identidade do condutor e o convidar a comparecer a repartio policial competente nas 24 horas10

Cf. HELENO C. FRAGOSO, Crimes do automvel, Rev. Bras. Crim. Dir. Penal, n 1 (1963), pg. 83 e a literatura ali citada. Cf. tambm, JOS FREDERICO MARQUES, IV, pg. 239; QUINTANO RIPOLLS, IV, pg. 450; WELZEL, Culpa e Delitos de Circulao, RDP, 3/13; JOO MESTIERI, Curso de Direito Criminal, 1970, pg. 77. Na perspectiva criminolgica, cf. J. PINATEL, La Criminologie devant la criminalit routire dimprudence, Revue de Sc. Crim. Droit Pnal Compar, 1969, pg. 699; T. C. WILLETT, Criminal ou the road: a study of serious motoring offense and those who commit them, Londres, 1964; G. LEGGERI, Aspetti antropologici dellautomobilista, Quaderni di Crim. Clinica, Abr./Jun., 1964, pg. 183. 11 Os tribunais tm entendido que essa pena no obrigatria (cf. FRAGOSO, Jur. Crim., n 29 e RDP, 2/115), nem incompatvel com o sursis (RTJ, 37/350). O CP de 1969 previu a interdio como medida de segurana, em dispositivo bem formulado (art. 97). 12 Em contrrio decidiu o STF no HC n 48.375 (RTJ, 56/695). No sentido em que nos pronunciamos decidiu o TA da Guanabara, na Reviso Criminal n 61. Veja-se sobre o assunto a extensa nota publicada na RDP, 3/101. 13 O TA da Guanabara, por sua 1 Cmara Criminal, no julgamento da AC n 1.448, relator o ilustre Juiz (hoje Desembargador) BANDEIRA STAMPA, fixou bem o ponto a que acima aludimos. Tratava-se de ultrapassagem imprudente, dando lugar coliso de veculos. Havia no fato o elemento constitutivo da culpa, que no poderia ser novamente considerado para aumentar a pena. Como se diz no exatssimo acrdo, dar incio a ultrapassagem, sem antes verificar o elemento de fato que constitui, por si, a culpa, no de ser, tambm, configurador da exasperante de inobservncia de regra tcnica de profisso. Deciso unnime (Arquivos do Tribunal de Alada, Ano II, n 4, pg. 248). 14 RJ, 13/411; RJ, 16/365; RDP, 2/133. 26

imediatamente seguintes. Procura a lei, em tal caso, favorecer a prestao do socorro. Em contrapartida, a fuga para evitar priso em flagrante, constitui circunstncia que agravar a pena. O CP de 1969 previu novas figuras de delito relacionadas com a circulao de veculos, seguindo a tendncia geral da legislao nesta matria: a embriaguez ao volante (art. 289), o perigo resultante de violao de regra de trnsito (art. 290) e a fuga do local do acidente, com abandono da vtima (art. 291). O CNT fixa regras gerais para a circulao destinadas a regular o trnsito e que constituem o resultado de vasta previso de possveis perigos, repousando sobre a experincia e a reflexo (art. 13): a circulao far-se- sempre pelo lado direito da via; a ultrapassagem de outro veculo em movimento dever ser feita pela esquerda; para entrar numa esquina esquerda, o veculo deve primeiramente atingir a zona central do cruzamento, salvo quando uma ou ambas as vias tiverem sentido nico de trnsito; no cruzamento em local no sinalizado, tem preferncia o veculo que vier da direita; os veculos em movimento devem ocupar a faixa mais direita da pista, quando no houver faixa especial a eles destinada15; quando uma pista de rolamento comportar vrias faixas de trnsito no mesmo sentido, ficam as da esquerda destinadas ultrapassagem e ao deslocamento dos veculos de maior velocidade; os veculos que transportarem passageiros tero prioridade de trnsito sobre os de carga, respeitadas as demais regras da circulao. Via preferencial aquela pela qual os veculos devam ter prioridade de trnsito, desde que devidamente sinalizada (art. 16 2 CNT). A regra fundamental da circulao de veculos, no que tange aos cruzamentos, a que estabelece a preferncia de passagem ao que vier da direita. o que consigna o Cdigo Nacional de Trnsito no seu art. 13, inciso IV, ao afirmar as regras gerais para a circulao. A via preferencial posta claramente pelo Cdigo como exceo ao princpio da precedncia da direita, pois inexiste como uma das regras gerais de circulao. A via preferencial tem de ser

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Os condutores de motocicletas ou similares devem conduzir seus veculos pela direita da pista, junto guia da calada ou acostamento, mantendo-se em fila nica (art. 87, b, CNT). 27

necessariamente assinalada como tal atravs de sinalizao adequada (RT, 190/192, 338/285, 350/347). H certa tendncia injustificvel dos tribunais em conferir valor absoluto prioridade devida ao trensito pela via preferencial. Ora, tratando-se de coliso em cruzamento, no basta a circunstncia de vir um dos motoristas na via preferencial para atribuir culpa ao outro (RF, 135/249). O direito de preferncia sofre limitaes importantes, impostas pelo dever de cuidado, particularmente a proibio de velocidade excessiva ou imprpria (RT, 348/263 e RF, 166/67) e a reduo da velocidade nos cruzamentos (RF, 137/208 e 206/337). H por igual, limitaes que surgem da conveninica em assegurar o escoamento regular do trnsito, com a precedncia de fato nos casos em que h uma distncia razovel, que permite a precedncia do veculo que provem de via secundria, e quando este, tendo j penetrado na via preferencial, j no disputa a preferncia por estar j findando o cruzamento. A circulao de veculos pressupe um certo princpio de solidariedade e confiana, segundo o qual o usurio da via deve ter presente tambm a convenincia dos demais, deles esperando, ao mesmo tempo, observncia das regras do trfego16. O trnsito se paralizaria se o motorista que trafega por via secundria tivesse que aguardar a passagem do veculo que se desloca por via preferencial a distncia e velocidade que permitem o cruzamento com segurana. H deerminadas premissas de tempo e espao que regulam o direito precedncia e que s podem ser fixadas numa considerao complexiva do fato concreto, com uma reconstruo cinemtica das fases antecedentes17.

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Cf. WELZEL, Culpa e delitos de circulao, cit., pg. 25; MAURACH, AT, 478. RDP, 1/117. Cf. o excelente trabalho de EUGENIO BONVICINI, Liter dellincidente stradale, 1957, pg. 174. A preferncia de passagem no absoluta. Assim se o veculo que trafegava por via secundria atingir o cruzamento com a preferencial com tempo suficiente para transp-lo normalmente, no ser obrigado a aguardar a passagem do que se aproximar pela preferencial. A regra , realmente, no sentido da preferncia aos veculos que trafegam pela ltima mas as circunstncias do momento que ditaro ao motorista prudente a oportunidade de ingressar no cruzamento. (RT, 362/307). 28

Por outro lado, a disputa da preferencial desaparece diante da precedncia de fato que denota a coliso havida ao fim do cruzamento18. A derrapagem geralmente decorre de culpa do motorista, pois no constitui em regra fato imprevisvel, podendo ser evitada se o motorista adotasse a cautela e ateno exigveis.19 Nisso se concentra o fulcro da culpa e porisso mesmo a velocidade excessiva, como indcio de imprudncia, no pode ser aferida apenas em funo dos mximos regulamentares, mas sim das circunstncias do trfego num momento determinado, em que passa a ser decisiva a velocidade imprpria20. A culpa reside na discrepncia entre a ao e certos padres de comportamento exigvel nas circunstncias, com a observncia de cautela e ateno. A circulao de veculos cria larga margem de riscos permitidos e aceitveis, mas estes no se confiam na simples observncia das prescries dos regulamentos. O sinal aberto no licena para matar (RDP, 2/109). A concorrncia de culpas nos delitos de circulao comum. Seja em relao aos pedestres, seja em relao a outros veculos. ela, como sempre, irrelevante, devendo ser considerada to somente na medida da pena (RDP, 2/109). O motorista amador ou profissional no pode dirigir motociclos. A carteira nacional de habilitao confere o direito de dirigir veculos na sua categoria, ou seja, na categoria para a qual foi concedida (artigo 66 CNT e arts. 129/131 do Regulamento, Dec. n 62.127, 16-1-68). Cf. RDP, 1/116; RF, 205/308 e 206/291.

(*) Publicado na Revista de Direito Penal n. 05.O TA da Guanabara, por sua 2 Cmara Criminal decidiu na AC n 3.699, relator o excelente juiz FONSECA PASSOS, que no havia culpa do motorista que provinha de via secundria e que j havia transposto dois teros da via principal no momento da coliso. Cf. RDP, 1/113 onde se faz ampla anlise da matria. Veja-se tambm RF, 120/238. 19 Amplamente sobre a matria, cf. RDP, 1/118. Cf. tambm no sentido de que a derrapagem por si s no exclui a culpa, RF, 69/607, 96/165, 173/269; RJ, 14/292. FREDERICO MARQUES, II, 210. 20 Caracterizando a ocorrncia de culpa na velocidade inadequada para uma pista em que transitavam crianas e em velocidade imprpria para uma pisa enlameada, em dia de chuva, vejam-se as decises dos tribunais da Guanabara em RDP, 2/124. Veja-se tambm a punio do trfego perigoso, junto ao meio-fio, em local onde havia criana aguardando a travessia, em deciso do TA da Guanabara (RDP, 2/110). 2918