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CRIMES DA DITADURA MILITAR E O “CASO ARAGUAIA”: APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS PELOS JUÍZES E TRIBUNAIS BRASILEIROS Luiz Flávio Gomes Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG Valerio de Oliveira Mazzuoli Pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS e mestre em Direito Internacional pela Unesp 1. INTRODUÇÃO Um dos maiores desafios do Direito Penal no século XXI, sem sombra de dúvida, será conciliar sua clássica formatação legalista, vinculada à soberania de cada país, com as novas ondas (terceira e quarta ondas) do internacionalismo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na sua sentença de 24 de novembro de 2010, declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira, que acobertava os crimes cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura (1964-1985). Isso significa a obrigação do Brasil de apurar, processar e, se for o caso, punir todos esses delitos. O STF, em abril de 2010, havia declarado a validade da Lei de Anistia. Ocorre que sua decisão ARTIGOS ACADÊMICOS 156

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CRIMES DA DITADURA MILITAR E O “CASO ARAGUAIA”: APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS PELOS JUÍZES E TRIBUNAIS BRASILEIROS

Luiz Flávio GomesDoutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito

Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG

Valerio de Oliveira MazzuoliPós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum

laude em Direito Internacional pela UFRGS e mestre em Direito Internacional pela Unesp

1. INTRODUÇÃO

Um dos maiores desafios do Direito Penal no século XXI, sem sombra de dúvida, será conciliar

sua clássica formatação legalista, vinculada à soberania de cada país, com as novas ondas

(terceira e quarta ondas) do internacionalismo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na

sua sentença de 24 de novembro de 2010, declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira, que

acobertava os crimes cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura (1964-1985). Isso

significa a obrigação do Brasil de apurar, processar e, se for o caso, punir todos esses delitos.

O STF, em abril de 2010, havia declarado a validade da Lei de Anistia. Ocorre que sua decisão

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não entrou no tema da inconvencionalidade da lei citada1. A Justiça internacional está mandando

o Brasil investigar tais crimes. Para o STF, isso não seria possível. Como resolver todos esses

conflitos típicos da pós-modernidade? A Justiça internacional vale mais do que o STF? Como fica

a soberania do Brasil? Os juízes brasileiros são obrigados a respeitar a jurisprudência da Corte

Interamericana?

Este ensaio pretende responder todas essas questões intrincadas, assim como demonstrar qual

a eficácia das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, em especial

após a condenação do País no “Caso Araguaia”, em que a Corte da OEA anulou a Lei de Anistia

brasileira, abrindo a possibilidade de revisão (pelo Judiciário brasileiro) dos crimes de tortura,

morte e desaparecimento cometidos no Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985)2.

Nas linhas abaixo, procuraremos demonstrar qual a eficácia das decisões dos tribunais

internacionais (de direitos humanos) no Direito brasileiro, bem como o dever do Judiciário

nacional de cumprir tais decisões em prazo razoável3.

2. O JULGAMENTO RELATIVO AO “CASO ARAGUAIA” E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL

Logo que anunciada a sentença de 24 de novembro de 2010 da Corte Interamericana de Direitos

Humanos sobre o “Caso Araguaia” (desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar

brasileira), todos constatamos vários focos de rejeição à referida sentença, alguns partindo

inclusive de ministros do STF. Essa refutação (de certa forma contundente) naturalmente nos

conduz a refletir sobre a aceitação e obrigatoriedade de aplicação do Direito Internacional dos

Direitos Humanos pelos juízes e tribunais brasileiros.

1 Para mais detalhes, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 160-165.

2 Sobre o dever de tutela judicial dos Estados que fazem parte do sistema interamericano de direitos humanos, v. Sabsay, Daniel A. El amparo como garantia para el aceso a la jurisdicción en defensa de los derechos humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales. Buenos Aires: CELS, 2004. p. 229 e ss. Ainda: Kawabata, J. Alejandro. Reparación de las violaciones de derechos humanos en el marco de la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 351 e ss. Especificamente sobre o “Caso Araguaia”, v. Santos, Roberto Lima. Crimes da ditadura militar: responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violação aos direitos humanos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010.

3 Albanese, Susana. El plazo razonable em los procesos a la luz de los órganos internacionales. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 247 e ss.

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Comecemos pelas declarações do ministro

Cezar Peluso, que é o atual presidente do

STF: “A decisão da Corte só gera efeitos no

campo da Convenção Americana de Direitos

Humanos (…); caso as pessoas anistiadas

sejam processadas, é só recorrer ao STF. O

Supremo vai conceder habeas corpus na hora”.

Disse ainda que a decisão da Corte “só vale no

campo da convencionalidade”4.

Para o ministro Marco Aurélio, “o governo

está submetido ao julgamento do STF e não

pode afrontá-lo para seguir a Corte da OEA.

É uma decisão que pode surtir efeito ao leigo

no campo moral, mas não implica cassação

da decisão do STF. Quando não prevalecer a

decisão do Supremo, estaremos muito mal. É

uma decisão tomada no âmbito internacional, não no interno. Na prática [a decisão da Corte] não

terá efeito nenhum”5.

Para o ministro Jobim (ex-ministro do STF e atual ministro da Defesa), a decisão da Corte

Interamericana “é meramente política e sem efeito jurídico. O processo de transição no Brasil é

pacífico, com histórico de superação de regimes, não de conflito”6.

Como veremos ao longo deste ensaio, são totalmente equivocadas (do ponto de vista jurídico)

tais declarações. No caso dos crimes da ditadura, como temos enfatizado, o melhor caminho foi

seguido pelos ministros Lewandowski e Ayres Britto (que foram votos vencidos na decisão do

STF sobre a validade da Lei de Anistia).

Frise-se de antemão que o STF, no dia 3 de dezembro de 2008, decidiu (historicamente)

que os tratados internacionais de direitos humanos valem mais do que a lei e menos que a

Constituição, estando no nível supralegal no País (cf. RE 466.343/SP)7. Ainda que não tenha a

Suprema Corte atribuído nível constitucional aos tratados de direitos humanos (por um voto

4 V. Jornal O Estado de S. Paulo, de 16.12.2010, p. A12; e Jornal Folha de S. Paulo, de 16.12.2010, p. A15.

5 Idem.

6 V. Jornal O Globo, de 16.12.2010, p. 18.

7 Nossa posição (o leitor verá melhor abaixo) sempre foi a de que os tratados de direitos humanos guardam nível constitucional no Direito brasileiro.

A Lei de Anistia brasileira viola vários tratados internacionais (especialmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969) e não possui nenhum valor jurídico, sobretudo o efeito de acobertar os abusos cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura militar

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faltante apenas), o certo é que trilhou o STF o caminho juridicamente correto (de respeito ao

Direito Internacional dos Direitos Humanos, tal como vem sendo construído e seguido por

todos os países civilizados).

A Lei de Anistia brasileira viola vários tratados internacionais (especialmente a Convenção

Americana sobre Direitos Humanos de 1969) e não possui nenhum valor jurídico, sobretudo o

efeito de acobertar os abusos cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura militar8.

Como observação preliminar, vale sublinhar o seguinte: as declarações citadas dos ministros

do STF partem da premissa de um ordenamento jurídico dualista (o Direito interno não teria

nenhuma relação com a ordem internacional; cada qual teria sua autonomia e eficácia). Isso já

vem sendo desconsiderado (no âmbito da doutrina internacional atualizada) há muitas e muitas

décadas. Sobretudo agora que entrou em vigor no Brasil a Convenção de Viena sobre o Direito

dos Tratados, de 1969, que adota nitidamente o sistema monista (o Direito é uno e indivisível).

A sentença da Corte Interamericana valeria (de acordo com as mencionadas declarações)

“só no plano moral”, “só no plano internacional”, “só no campo da convencionalidade”, “só no

plano político” etc. Racharam o Direito brasileiro ao meio (como se isso fosse, hoje, possível):

Direito nacional de um lado (em que o STF reina de forma absoluta) e o Direito Internacional de

outro (aparentemente alheio à nossa brasilidade…). Este último seria um ordenamento jurídico

alegórico, retrato de uma simples carta de esperança, um conjunto de regras somente políticas

ou somente morais, sem a força coativa do Direito. Nada mais equivocado, de acordo com a

decisão da CIDH (que detalharemos mais adiante).

A premissa (e preocupação) primeira de todos os tratados de direitos humanos é a seguinte:

todas as violações de direitos das vítimas, quando não amparadas pelo Judiciário local, nacional,

podem e devem ser apreciadas pelo sistema interamericano de direitos humanos9.

As declarações retrorreferidas se explicam em razão (muito provavelmente) da tradicional

conivência de setores do Judiciário brasileiro com a chamada “legalidade autoritária”, conforme

denunciam Paulo Sérgio Pinheiro e Anthony Pereira no livro Ditadura e repressão10.

8 Cf. sentença de 24.11.2010 da CIDH, parágrafo 147 e ss.

9 Para uma análise mais profunda, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. The Inter-American human rights protection system: structure, functioning and effectiveness in Brazilian law. Anuario Mexicano de Derecho Internacional. México: UNAM, 2011. vol. XI, p. 331-367.

10 Pereira, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010 (prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro). 159

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O Ministério das Relações Exteriores, em nota11, prontamente disse que vai cumprir a decisão da

CIDH. A decisão obriga o governo brasileiro (logo, também o STF). Não se trata de pretender ou

não cumprir a sentença. O que está em jogo é que o país (a República brasileira) tem a obrigação

de cumprir a decisão internacional. Os ministros do STF não têm responsabilidade internacional;

falam, portanto, em defesa dos seus pontos de vista. Suas declarações, no entanto, em termos

internacionais, não possuem qualquer valor jurídico.

Aliás, como bem enfatizou a sentença de 24.11.2010 da Corte Interamericana, nem sequer a

decisão do STF, que validou a Lei de Anistia em abril de 2010, possui qualquer tipo de relevância

(ou obrigatoriedade/eficácia) no plano jurídico internacional. A Corte não revogou a decisão do

STF, porque não é essa a sua função. Ela simplesmente analisou a decisão do STF no plano

do controle de convencionalidade12. E concluiu que o STF não levou em conta os tratados

internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (em especial a Convenção Americana

sobre direitos Humanos de 1969) na sua decisão. Daí certamente a fonte do seu equívoco.

A Corte, no momento em que obriga a República brasileira, também obriga o STF (que dela

faz parte).

E se o STF não acatar a decisão da Corte, dando habeas corpus para os torturadores da ditadura?

Nova violação à Convenção Americana de Direitos Humanos passa a ocorrer. E nova condenação

da mesma Corte contra o Brasil pode existir (podendo até mesmo haver a exclusão do País da

OEA). Mais problemas internacionais para o Brasil.

O bonde da história do Direito está navegando e o Judiciário brasileiro, ao que parece neste

primeiro momento, não está percebendo suas evoluções. O certo é que o Brasil não pode destoar

dos seus vizinhos (Argentina, Chile etc.13), que já cumprem, há vários anos, rigorosamente, as

decisões da Corte Interamericana. Todo o Continente Americano (com exceção dos Estados

Unidos) vem afinando sua jurisprudência com a da Corte da OEA.

Como se demonstrará em seguida, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não pode deixar

de ser aplicado pelos juízes e tribunais brasileiros.

11 Disponível em: <www.folha.com>, de 15.12.2010.

12 V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional... cit., p. 160-165.

13 Sobre o cumprimento dos tratados internacionais pelos países latino-americanos: Dulitzky, Ariel. La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales: un estúdio comparado. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 33 e ss. No que diz respeito especificamente à Argentina: Bidart Campos, Germán J. El artículo 75, inciso 22, de La Constitución Nacional. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 77 e ss. 160

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3. A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Tendo em conta a evolução histórica do Direito Internacional e do nosso próprio ordenamento

jurídico, o tema da aplicação (e respeito) do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelos juízes

e tribunais brasileiros pode ser organizado e analisado em quatro etapas: (a) internacionalização

dos direitos humanos; (b) adesão formal do Brasil ao Direito Internacional dos Direitos Humanos;

(c) reconhecimento da força normativa (hierarquia superior) do Direito Internacional dos Direitos

Humanos; (d) respeito e internalização (aplicação) do Direito Internacional dos Direitos Humanos

pelos juízes e tribunais locais. Vamos cuidar, desde logo, do primeiro aspecto da questão.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos nasceu com toda intensidade após o fim da Segunda

Guerra Mundial (1939-1945). As atrocidades da primeira metade do século XX (lamentavelmente

os fascismos e nazismos continuaram, em alguns pontos do planeta, na segunda metade

daquele século) levaram incontáveis nações soberanas a, juntas, darem autonomia a esse ramo

do Direito chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, hoje tido como ramo autônomo

das Ciências Jurídicas14.

O internacionalismo (internacionalização do Direito) tem sua certidão de nascimento original na

famosa Carta da ONU de 1945. A perspectiva definitória dos direitos humanos (e fundamentais)

se materializou posteriormente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (que

constitui o documento fundante do universalismo) e ganhou corpo operacional com o Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais (ambos adotados pelas Nações Unidas em 1966). Depois disso, vieram outros

incontáveis tratados internacionais.

Relevo sintetizador e definidor, nesse período histórico, no entanto, tem mesmo a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948,

marcando vez por todas a era internacional dos direitos e a asserção do tema “direitos humanos”

à ordem internacional do dia15.

A partir da Declaração Universal, a sociedade internacional passou a contar com inúmeros tratados

e convenções sobre direitos humanos, pertencentes tanto ao sistema global (da ONU) quanto

aos sistemas regionais de direitos humanos (o Brasil, como veremos, aderiu formalmente a

14 V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 803.

15 Abregú, Martín. La aplicación del derecho internacional de los derechos humanos por los tribunales locales: una introducción. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 3 e ss. 161

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praticamente todos os tratados internacionais nessa área). Adicionalmente, foram sendo criadas

as jurisdições internacionais, com o escopo de fazer valer o corpus juris dedicado aos direitos

humanos.

3.1 COMPLEMENTARIDADE DA TUTELA INTERNACIONAL

A responsabilidade pela aplicação de todo esse “novo” ramo do Direito, no entanto, não é

exclusiva dos tribunais internacionais. A bem da verdade, a obrigação primeira de fazer valer os

seus termos é de cada Estado, que está compelido a dar respostas efetivas sempre que não

tenha evitado as agressões contra os direitos humanos. No contexto regional interamericano,

a Convenção Americana sobre Direitos Humanos é clara ao reconhecer, nos considerandos

iniciais, que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de

determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana,

razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou

complementar da que oferece o Direito interno dos Estados Americanos”.

Na sentença do caso Araguaia (sentença de 24.11.2010, parágrafo 140), a Corte Interamericana,

a propósito, sublinhou que:

(...) a obrigação, conforme o Direito Internacional, de processar e, caso se

determine sua responsabilidade penal, punir os autores de violações de direitos

humanos decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção

Americana. Essa obrigação implica o dever dos Estados-Partes de organizar todo

o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se

manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de

assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como

consequência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda

violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o

restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação

dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. Se o aparato estatal

age de modo que essa violação fique impune e não se restabelece, na medida

das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que se

descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno

exercício de seus direitos.

A tutela internacional é, nesse contexto, coadjuvante ou complementar às jurisdições nacionais.

Ou seja, primeiro e antes de tudo, a obrigação de fazer valer todo o ordenamento jurídico 162

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específico dos direitos humanos é dos Estados (e de todos os seus poderes) que fazem parte

dos tratados.

A mesma Corte, na citada sentença, no parágrafo 31, afirmou:

Isto é, em conformidade com o preâmbulo da Convenção Americana, a proteção

internacional de natureza convencional é coadjuvante ou complementar da que

oferece o direito interno dos Estados americanos.

No seguinte parágrafo (32), enfatizou que:

A proteção exercida pelos órgãos internacionais tem caráter subsidiário, e o propósito

de uma instância internacional não é revisar ou reformar a sentença interna, mas

constatar se a referida sentença está em conformidade com as normas internacionais.

Não agindo o Estado, deve então processar-se a queixa ou reclamação perante a Corte

Interamericana, cujo poder decisório (por autorização do próprio Estado que ratificou o tratado

respectivo) está acima do das jurisdições nacionais.

3.2 INTERDEPENDÊNCIA ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO

Não existe, destarte, uma relação de independência (absoluta) entre a jurisdição internacional

e a nacional (local). Melhor dito, a relação é de interdependência, visto que o escopo das duas

esferas normativas e jurisdicionais (internacional e interna) conflui para um denominador comum:

dar vida e força a todas as disposições relacionadas com a proteção dos direitos humanos,

harmonizando as internas com as internacionais, a jurisprudência local com a jurisprudência dos

tribunais não locais.

Pode-se também dizer que, na pós-modernidade jurídica, as relações entre o Direito Internacional

e o Direito interno são relações dialógicas, em que um ordenamento “dialoga” com o outro a

fim de escolherem (juntos) qual norma (internacional ou interna) será aplicada no caso concreto

quando presente uma violação de direitos humanos16.

16 Sobre o tema, v. o estudo de Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010. Sobre o Direito na pós-modernidade, v. Bittar, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade e reflexões frankfurtianas. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 541p.; Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Características ge-rais do direito (especialmente do direito internacional) na pós-modernidade. Revista Forense, ano 106, vol. 412, Rio de Janeiro, p. 467-485, nov.-dez. 2010. 163

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3.3 DO PRINCÍPIO DO DOMESTIC AFFAIR AO DO INTERNATIONAL CONCERN

Como já sublinhamos anteriormente, importa observar que nessa fase internacionalista do

Estado, do Direito e da Justiça, o princípio do domestic affair (ou da não ingerência), que limitava

o Direito Internacional às relações entre Estados no contexto de uma sociedade internacional

formal, evoluiu para o do international concern, que significa que o gozo efetivo, pelos cidadãos

de todos os Estados, dos direitos e liberdades fundamentais passa a ser verdadeira questão de

Direito Internacional17.

Na prática, tal significa que agora temos também juízes internacionais para tutelar nossos

direitos violados, e não mais apenas juízes internos a exercer esse tipo de proteção. Estes

últimos já não têm mais a última palavra quando se trata de amparar um direito humano ou

fundamental.

Antigamente, a proteção dos direitos humanos fundamentais era uma questão puramente

doméstica (interna), de cada país. O Direito Internacional não interferia nas questões internas.

Agora não, pelo seguinte: a proteção dos direitos humanos fundamentais é a finalidade precípua

de todos os sistemas jurídicos locais e internacionais. A tutela dos direitos humanos fundamentais

é, portanto, também uma questão internacional.

Quem sofre a violação de um desses direitos e não é atendido internamente pode sê-lo

internacionalmente (no nosso caso, pelo sistema interamericano de proteção dos direitos

humanos). Os juízes internos, no modelo constitucionalista, passaram a ser os “fiscais” da

constitucionalidade – assim como da convencionalidade – das leis e da observância dos direitos

humanos fundamentais.

Uma observação importante: a Corte Interamericana não revisa as decisões dos tribunais

locais diretamente. Indiretamente isso acaba acontecendo, em razão da sua preocupação de

verificar se esses tribunais decidiram a questão em consonância com as obrigações assumidas

pelo Brasil por meio dos tratados internacionais. Na sentença do caso Araguaia, parágrafo 176,

a Corte proclamou:

Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as

autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão

17 V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito... cit., p. 818-819; Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supra-constitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 79; Andrade, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 19-20.164

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obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto,

quando um Estado é parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana,

todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o

que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se

vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade,

e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido,

está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade”

ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no

marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais

correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente

o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana,

intérprete última da Convenção Americana.

É importante a obrigação que coloca a Corte Interamericana de os juízes e tribunais internos

controlarem a convencionalidade das leis no país, verificando se tais leis estão ou não de acordo

com os tratados de direitos humanos aqui em vigor. Caso alguma lei (ou norma de Direito interno)

esteja em desacordo com o estabelecido por tais tratados (em especial, a Convenção Americana

sobre Direitos Humanos), deve operar-se de imediato sua invalidade jurídica (ainda que continue

vigente no Estado)18.

Foi exatamente isso que ocorreu com a Lei de Anistia brasileira: ela não passou no teste (no

exame) de compatibilidade (vertical) com a Convenção Americana, sendo, portanto, totalmente

inválida na ordem jurídica brasileira (ainda que esteja, formalmente, vigente)19.

3.4 ESTADO DE DIREITO CONSTITUCIONAL E ESTADO DE DIREITO INTERNACIONAL

Importante sublinhar, de outro lado, que o surgimento do Estado de Direito internacional (ou seja:

internacionalização dos direitos humanos) não significou o fim do Estado de Direito constitucional

e legal. As duas primeiras ondas evolutivas do Direito (legalismo e constitucionalismo) não

desapareceram com o irrompimento da terceira onda (do internacionalismo) e muito menos com

a quarta onda (do universalismo)20.

18 V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional... cit., p. 95-116.

19 Leis vigentes não se confundem com leis válidas. Enquanto a vigência pressupõe a regularidade formal da lei em determinada ordem jurídica, a validade pressupõe sua conformidade material com as normas constitucional e dos tratados de direitos humanos em vigor no país. V., por tudo: Ferrajoli, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999. p. 20-22; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais... cit., p. 186-194.

20 Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional… cit., p. 77 e ss. 165

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Todas essas ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça contribuíram (e contribuem) para

deixar claro o papel do Estado no que tange à proteção dos direitos humanos, notadamente sob

a ótica do Direito Internacional Público pós-moderno, que não admite o esquecimento dos piores

e mais bárbaros crimes já cometidos (como tortura, sequestros, mortes ilegais etc.).

3.5 ESTRUTURA NORMATIVA DO ESTADO DE DIREITO INTERNACIONAL

Há o sistema global (universal) de proteção dos direitos humanos (regido pela ONU, além de

suas agências especializadas) e existem também os sistemas regionais (que atualmente são

três: o interamericano, o europeu e o africano) de proteção desses mesmos direitos.

Cada um desses sistemas possui estrutura jurídica própria. Essa nova conformação jurídica do

Direito forma o que se pode chamar de constitucionalismo mundial, que nada mais é do que a

soma do constitucionalismo mais a internacionalização e universalização do Direito.

No Estado de Direito internacional possuem relevância ímpar não apenas as leis e a Constituição

de cada Estado, senão também o Direito Internacional dos Direitos Humanos (e todos os seus

instrumentos de proteção)21.

O Estado de Direito internacional é constituído, portanto, de normas infraconstitucionais,

constitucionais e, sobretudo, internacionais. Sete são as fontes normativas do Direito na

atualidade: (1) leis e códigos (plano da legalidade) e seus princípios; (2) constituição e seus

princípios; (3) jurisprudência constitucionalizada; (4) tratados internacionais, destacando-se entre

eles os tratados internacionais de direitos humanos (TIDH) e seus princípios; (5) jurisprudência

do SIDH (Comissão e Corte Interamericanas); (6) Direito universal (especialmente o jus cogens)

e seus princípios; e (7) jurisprudência internacional dos órgãos universais.

3.6 A NOVA CONSTRUÇÃO DE UM “DIREITO DIALÓGICO”

A consequência da evolução do Direito (pelas ondas evolutivas acima estudadas) é o surgimento

de um “Direito dialógico”, em vez do velho e conhecido “Direito dialético”. Nesse sentido, se faz

necessário um “diálogo das fontes”22, de forma que “a Constituição não exclui a aplicação dos

tratados, e nem estes excluem a aplicação dela, mas ambas as normas (Constituição e tratados) se

21 Gomes, Luiz Flávio; Vigo, Rodolfo Luis. Do Estado de Direito constitucional e transnacional: riscos e precauções (navegando pelas ondas evolutivas do Estado, do direito e da justiça). São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 46-93.

22 V. Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, vol. 251 (1995), p. 259.166

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unem para servir de obstáculo à produção

normativa doméstica infraconstitucional

que viole os preceitos da Constituição ou

dos tratados de direitos humanos em que

a República Federativa do Brasil é parte23”.

O Direito dialógico, então, é a “articulação

da legislação nacional com a internacional24”,

que agora caracteriza o Estado de Direito

internacional, à medida que, em vez de

excluir uma fonte em detrimento da outra, esse novo tipo de Estado (pós-moderno por natureza)

aceita o “diálogo” entre essas mesmas fontes25.

A primeira e principal característica do Estado e do Direito, depois da internacionalização dos

direitos humanos, reside na pluralidade de fontes normativas, heterogêneas e hierarquicamente

distintas. Essa proliferação de normas (sem contar as de soft law e as de direito “vago” ou fuzzy)

parece ocorrer de forma anárquica, necessitando de um ponto de equilíbrio26. Esse ponto de

equilíbrio reside justamente na incidência do chamado princípio pro homine, que manda aplicar

sempre a norma mais favorável ao ser humano sujeito de direitos27.

Por esse motivo é que, hoje, somente a complexa (e correta) articulação (diálogo) de todas as

suas distintas fontes normativas (normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais) é

que possibilita (a) aproximar a uma justa solução para os conflitos, sobretudo os que envolvem os

direitos humanos; e (b) redimensionar o verdadeiro conteúdo do devido processo legal.

O operador jurídico, assim como o juiz de Direito em especial, não pode desconhecer nesse novo

modelo de Estado, os três conjuntos normativos mencionados: internacional, constitucional e

infraconstitucional. Tampouco podem desconhecer a jurisprudência interna e a internacional.

De outro lado, não se pode ignorar, dentro do Direito Internacional, o caráter sui generis do

Direito Internacional dos Direitos Humanos, que goza de prestígio diferenciado (conforme

veremos mais abaixo).

23 Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais... cit., p. 214.

24 Gordillo, Agustín (et al.). Derechos humanos. 5. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2005. p. 5, Cap. II.

25 Jayme, Erik. Op. cit., p. 259.

26 Delmas-Marty, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 73-74.

27 Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional… cit., p. 110 e ss. Ainda sobre o princípio pro homine: Pinto, Mônica. El princípio pro homine: critérios de hermenêutica y pautas para la regulación de los derechos humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 163 e ss.

A primeira e principal característica do Estado e do Direito, depois da internacionalização dos direitos humanos, reside na pluralidade de fontes normativas, heterogêneas e hierarquicamente distintas

167

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4. ADESÃO FORMAL DO BRASIL AO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Parece não haver dúvida que é bastante significativo o avanço do Estado brasileiro (nas últimas

décadas) no que se refere à adesão ao movimento (e ao Direito) internacional dos direitos

humanos, que ganhou singular impulso (como já sublinhamos) depois da Segunda Guerra

Mundial (1939-1945).

A internacionalização dos direitos humanos e o fato da sua singularidade (cuida-se de um

conjunto normativo sui generis), ao lado da falência do positivismo legalista (contratualista),

constituem provavelmente a transformação jurídica mais destacada do século XX. A Declaração

Universal de 1948 foi, nesse campo, um marco político e jurídico de importância indiscutível.

Do ponto de vista normativo (plano em que se desenvolve a democracia formal), o cenário

brasileiro, especialmente depois da Constituição de 1988, é claramente distinto do precedente

(quando nosso país era governado pelo regime militar)28.

Recorde-se que o Brasil é signatário de praticamente todos os documentos internacionais sobre

direitos humanos, tanto do sistema global como do sistema regional interamericano29. Na sua

quase totalidade, os tratados e convenções de direitos humanos foram ratificados e se acham

em vigor em nosso país. Restava para o Brasil dar vigência à Convenção de Viena sobre o Direito

dos Tratados, de 1969, que conquanto não seja um tratado de direitos humanos é o “tratado dos

tratados”, e também esse mister foi cumprido30.

28 Sobre as dimensões formal e material da democracia, v. Ferrajoli, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Trad. Alexandre Salim (et al.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 108-113.

29 No sistema global são eles: Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948); Convenção Relativa ao Es-tatuto dos Refugiados (1951); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979); Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999); Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); e ainda o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998). No sistema regional interamericano são eles: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988); Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990); Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994); Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999).

30 Tal Convenção foi ratificada pelo Brasil em 25.09.2009, tendo sido promulgada internamente (com reservas aos arts. 25 e 66) pelo Decreto 7.030, de 14.12.2009.168

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De qualquer forma, estar integrado internacional e normativamente ao movimento global de tutela

dos direitos humanos fundamentais não significa automaticamente que esses direitos estejam

sendo satisfatoriamente respeitados no nosso território ou que o Brasil já tenha alcançado níveis

mínimos de tutela desses mesmos direitos.

O acesso ao Judiciário brasileiro, v.g., ainda é muito precário. A impunidade, sobretudo quando

tem origem em “operações ou cruzadas militares”, ainda é enorme. Os direitos sociais são

precariamente atendidos etc. Em outras palavras, o Brasil é, sem sombra de dúvida, sujeito

ativo de muitas violações de direitos humanos, ou seja, é autor de muitos ilícitos internacionais

em matéria de direitos humanos (crimes jus-humanitários)31. Seja em razão de violência dos

seus próprios agentes, seja por força de sua omissão, certo é que o Estado brasileiro já

começou a responder por esses ilícitos perante os órgãos internacionais de proteção dos

direitos humanos.

Já desde as primeiras denúncias contra o Brasil junto à Comissão Interamericana de Direitos

Humanos (casos do presídio Urso Branco em Rondônia, assassinatos de crianças e adolescentes

no Rio de Janeiro etc.) ficava patente o quanto a tutela interna dos direitos humanos ainda está

defasada em nosso país. O Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos

Humanos em 1998, e sua primeira condenação por ela ocorreu no “Caso Damião Ximenes32”. O

governo Lula (neste caso citado) acatou imediatamente a decisão da Corte e pagou às vítimas

a indenização arbitrada. No “Caso Araguaia”, espera-se que o governo (e também o Judiciário)

cumpra da mesma forma a sentença.

5. RECONHECIMENTO DA FORÇA NORMATIVA (HIERARQUIA SUPERIOR) DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Existe hierarquia entre tais normas (legais, constitucionais e internacionais) no Direito brasileiro?

O Direito Internacional dos Direitos Humanos conta com natureza sui generis?

31 Sobre a configuração desses ilícitos: Zaffaroni, Eugenio R. En torno de la cuestión penal. Montevideo: Editorial B de F, 2005. p. 124 e ss.

32 Por força do Decreto 6.185, de 13.08.2007, o presidente da República autorizou a Secretaria Especial dos Direitos Humanos a dar cumprimento à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou o pagamento de indenização aos familiares da vítima. 169

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Não existe nenhuma dúvida que o Direito Internacional dos Direitos Humanos possui status

diferenciado no plano do Direito interno dos Estados. Em praticamente todos (senão todos) os

ordenamentos jurídicos é assim. No Brasil não poderia ser diferente. Com efeito:

a) os direitos e garantias previstos na Constituição (art. 5.º, § 2.º) “não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais

em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Esse dispositivo constitucional

sempre nos permitiu subscrever a tese da constitucionalidade do Direito Internacional dos

Direitos Humanos na ordem jurídica brasileira (tese esta que, sustentada pelo ministro

Celso de Mello no STF, ficou minoritária, como veremos infra);

b) a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) autoriza que os tratados de direitos humanos

tenham “equivalência” de Emenda Constitucional, desde que seguido o procedimento

contemplado no § 3.º do art. 5.º da Constituição (votação de três quintos, em dois turnos

em cada Casa Legislativa);

Constitui exemplo disso hoje a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, e

promulgados pelo Decreto 6.949, de 25.08.2009 (que entraram no Brasil com valor de Emenda

Constitucional, por terem sido aprovados pelo Congresso com quorum qualificado – Decreto

Legislativo 186, de 09.07.2008).

c) depois de décadas de atraso em matéria de Direito Internacional, finalmente a Corte

Suprema brasileira reconheceu (em 03.12.2008) o valor (no mínimo) supralegal dos

tratados internacionais de direitos humanos (RE 466.343-1/SP e HC 87.585/TO); foi

vencedora (por ora) a tese do ministro Gilmar Mendes (por cinco votos a quatro), não

a tese do valor constitucional (defendida no STF pelo ministro Celso de Mello, e que

sempre entendemos seja a melhor solução);

d) em matéria de direitos humanos já se pode falar no Brasil (finalmente) numa (emblemática)

“nova e superior instância” (de Justiça), que é composta, fundamentalmente, por dois

órgãos: 1. a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e 2. Corte Interamericana de

Direitos Humanos (sediadas, respectivamente, em Washington e em San José da Costa

Rica). Ambas fazem parte do nosso sistema (regional) interamericano de proteção dos

direitos humanos33.

33 V., especialmente: Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2010.170

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De muitas maneiras pode ser explicada a presença dessa “superior instância” (na verdade,

instância extraordinária e complementar de proteção dos direitos humanos) na vida do brasileiro.

Mas talvez a mais contundente esteja no fato de a Corte Interamericana (e a Comissão) estar

começando a condenar o Brasil nas suas violações aos direitos humanos (v.g., os casos Ximenes

Lopes e Araguaia são paradigmáticos: em todos eles a Corte determinou sanções contra o Brasil).

Até 2008 nosso Direito produzido pelo constituinte e pelo legislador ordinário só reconhecia

hierarquia superior para as normas constitucionais. Depois de 2008 apresentou-se no Direito

brasileiro uma nova (e totalmente renovada) pirâmide jurídica, em que na base continuam as

leis ordinárias, mas que acima dessa base encontram-se os tratados internacionais de direitos

humanos ratificados pelo Estado e em vigor no país34.

Velha jurisprudência do STF (com origem nos anos 70 do século XX, no RE 80.004/SE) dizia que

os tratados internacionais (aí inclusos os de direitos humanos) valiam tanto quanto a lei ordinária,

no que se consagrava o chamado sistema paritário entre as normas internacionais e de Direito

interno. Ou seja, leis ordinárias e tratados (inclusive os de direitos humanos) ocupavam o mesmo

patamar jurídico no que concernia à hierarquia das normas. Normas superiores eram apenas as

constitucionais, mais nenhuma outra (seguindo a velha alegoria da “pirâmide” kelseniana).

Essa tradicional e provecta estrutura ou pirâmide jurídica (ou seja, essa forma de compreender o

Direito sob a ótica legalista positivista) está absolutamente esgotada na pós-modernidade.

A antiga pirâmide kelseniana foi definitivamente sepultada pelo STF, no seu julgamento histórico

do dia 3 de dezembro de 200835. Nesse julgamento, o STF admitiu o valor (no mínimo) supralegal

dos tratados de direitos humanos (ratificados pelo Brasil e incorporados no Direito interno).

De que maneira o Direito Internacional dos Direitos Humanos pode ser incorporado em cada país?

O Direito Internacional dos Direitos Humanos (teoricamente) pode ser incorporado ao

ordenamento jurídico interno como:

a) Emenda Constitucional (esse é o caso da nossa CF, art. 5.º, § 3.º – esse dispositivo vale

para todos os tratados de direitos humanos aprovados com quorum especial, tal como

se deu com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e

seu Protocolo Facultativo – v. supra);

34 V., por tudo: Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Características gerais do direito... cit., p. 467-485.

35 V. RE 466.343-1/SP e HC 87.585/TO. 171

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b) como Direito supralegal (voto do ministro Gilmar Mendes);

c) como Direito constitucional (posição do ministro Celso de Mello – HC 87.585/TO – e de

grande parte da doutrina fundada no art. 5.º, § 2.º, da CF); ou

d) como Direito supraconstitucional (como, v.g., o Tribunal Penal Internacional, que tem

jurisdição supranacional).

São múltiplas as técnicas legislativas de incorporação do Direito Internacional dos Direitos

Humanos ao Direito interno.

Observação preliminar: a antiga jurisprudência do STF (RE 80.004) no sentido de que o Direito

Internacional dos Direitos Humanos valeria apenas como Direito ordinário foi (sabiamente)

abandonada.

Primeira corrente: a primeira possibilidade de incorporação do Direito Internacional dos Direitos

Humanos no Direito interno (incorporação como Emenda Constitucional) vem disciplinada

no § 3.º do art. 5.º da Carta, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: “Os tratados

e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão

equivalentes às emendas constitucionais”.

Segunda corrente: a segunda possibilidade (Direito supralegal) foi sustentada no voto supracitado

do ministro Gilmar Mendes (RE 466.343-1/SP), que foi reiterado tanto no HC 90.172/SP, 2.ª Turma,

votação unânime, j. 05.06.2007, como no HC 87.585/TO.

No HC 90.172/SP decidiu-se o seguinte: “A Turma deferiu habeas corpus (…). Em seguida, asseverou-

se que o tema da legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do

devedor de alimentos, encontra-se em discussão no Plenário (RE 466.343-1/SP, v. Informativos 449 e

450) e conta com sete votos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do

alienante fiduciário e do depositário infiel. Tendo isso em conta, entendeu-se presente a plausibilidade

da tese da impetração. Reiterou-se, ainda, o que afirmado no mencionado RE 466.343-1/SP no

sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status

normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes,

seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer

reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre

Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), não há mais base legal para a prisão

civil do depositário infiel. HC 90172/SP, rel. ministro Gilmar Mendes, 05.06.2007.”172

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O Direito Constitucional, depois de 1988, conta com relações diferenciadas perante o Direito

Internacional dos Direitos Humanos. A visão da supralegalidade deste último encontra amparo

em vários dispositivos constitucionais (CF, arts. 4.º e 5.º, §§ 2.º, 3.º e 4.º)36.

Terceira corrente: a terceira corrente acima referida (nível de Direito Constitucional) emana de um

consolidado entendimento doutrinário37, que já conta com várias décadas de existência no nosso

país38. Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF

(RE 82.424, rel. ministro Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi majoritária na nossa

Suprema Corte de Justiça. Somente agora é que ela ganhou reforço com a posição do ministro

Celso de Mello (HC 87.585/TO).

O STF (em tempos passados) já havia reconhecido o valor constitucional dos tratados de

direitos humanos, não se entendendo o por quê de ter mudado posteriormente de posição.

O seu novo posicionamento pode ser assim expresso: “Com efeito, esta Suprema Corte, ao

interpretar o texto constitucional, atribuiu, em determinado momento (décadas de 1940 e de

1950), superioridade às convenções internacionais em face da legislação interna do Brasil (ApCiv

7.872/RS, rel. ministro Laudo de Camargo; ApCiv 9.587/DF, rel. ministro Lafayette de Andrada),

muito embora, em sensível mudança de sua jurisprudência, viesse a reconhecer, em momento

posterior (a partir da década de 1970), relação de paridade normativa entre as espécies derivadas

dessas mesmas fontes jurídicas (RTJ 58/70; RTJ 83/809; RTJ 179/493-496, v.g.)”.

Quarta corrente: o valor supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, que nunca

teve repercussão jurisprudencial entre nós (mas agora, depois do advento do Tribunal Penal

Internacional, esse tema irá requerer nova atenção dos juristas).

Posição do STF (decisão histórica): na histórica decisão do STF de 03.12.2008 (RE 466.343/

SP), dois foram os votos marcantes (de Gilmar Mendes e Celso de Mello): são divergentes na

intensidade (gradualidade), mas convergentes na adoção de um novo modelo de Estado (de

Direito e de Justiça).

36 Mendes, Gilmar Ferreira (et al.). Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 663.

37 Cançado Trindade, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos, A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. 2. ed. San José, Costa Rica/Brasília: IIDH, 1996. p. 210 e ss; e Silva, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 195-196; para quem os tratados de direitos humanos “ingressam na ordem jurídica nacional no nível das normas constitucionais e, diretamente, criam situações jurídicas subjetivas em favor dos brasileiros e estrangeiros residentes no país”.

38 Para detalhes, v. especialmente: Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito... cit., p. 817-847; e Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O novo § 3.º do art. 5.º da Constituição e sua eficácia. Revista Forense, vol. 378, ano 101, Rio de Janeiro, mar.-abr. 2005, p. 89-109. 173

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Pelo valor histórico que possuem, vejamos a síntese dos dois (revolucionários) votos citados:

1.º Voto do ministro Gilmar Mendes. De acordo com Gilmar Mendes (voto proferido no RE 466.343-

1/SP), os tratados de direitos humanos, precedentes ou posteriores à EC 45/2004, desde que não

aprovados por quorum qualificado, nos termos do art. 5.º, § 3.º, da CF, possuem valor supralegal (e

infraconstitucional). A pirâmide jurídica (tridimensional) defendida por ele é a seguinte:

a) no topo acha-se a Constituição (assim como os tratados de direitos humanos aprovados

de acordo com o procedimento do art. 5.º, § 3.º, da CF);

b) abaixo dela, mas acima da lei ordinária, estão os tratados internacionais de direitos

humanos não aprovados pelo quorum qualificado, pouco importando se o tratado é

anterior ou posterior à EC 45/2004; e

c) no patamar inferior está a legislação ordinária (assim como os tratados que não versam

sobre direitos humanos).

Pausa excursiva (síntese do voto do ministro Gilmar Mendes proferido no RE 466.343-1/SP):

“Em seguida, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus

fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem

status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles

conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil,

sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção

Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), não há mais base

legal para a prisão civil do depositário infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor fiduciante

viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais

executórios postos à disposição do credor fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão

de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção jurídica ao

equiparar o devedor fiduciante ao depositário, em ofensa ao princípio da reserva legal proporcional.

Após os votos dos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e

Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o ministro Celso

de Mello. RE 466343/SP, rel. ministro Cezar Peluso, 22.11.2006. O Tribunal retomou julgamento de

recuso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos

casos de alienação fiduciária em garantia – v. Informativo 304. O ministro Gilmar Mendes, em voto

vista, acompanhou o voto do relator para negar provimento ao recurso, adotando os fundamentos

expendidos no caso acima relatado. No mesmo sentido votaram os ministros Cármen Lúcia, Ricardo

Lewandowski e Marco Aurélio. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do

ministro Celso de Mello. RE 349703/RS, rel. ministro Ilmar Galvão, 22.11.2006 (RE 349.703).174

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2.º Voto do ministro Celso de Mello. Para o ministro Celso de Mello (voto proferido no HC 87.585/

TO e no RE 466.343-1/SP), a nova pirâmide jurídica (bidimensional) teria outra configuração,

porque os tratados internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil antes da EC 45/2004

foram recepcionados ou amparados pelo art. 5º, § 2º, portanto, teriam valor constitucional. No

topo dessa pirâmide (bidimensional) estão a Constituição e os tratados internacionais de direitos

humanos (mesmo que firmados e vigentes no Brasil antes da EC 45/2004) e, na base, está a

legislação ordinária39. Tratados de direitos humanos posteriores à EC 45/2004, pouco importando o

cumprimento ou não do § 3.º do art. 5.º, também contam com valor materialmente constitucional

(em razão do citado art. 5.º, § 2.º).

A nova pirâmide normativa formal concebida a partir de algumas decisões do STF (HC 87.585/TO,

RE 466.343-1/SP, HC 90.172/SP, HC 88.420/PR) é bem distinta daquela que, normalmente, sob os

auspícios de Hans Kelsen, ainda continua sendo ensinada nas faculdades de Direito brasileiras.

Espera-se que essa verdadeira revolução seja bem compreendida por todos os estudantes e

operadores jurídicos no Brasil.

A emblemática alteração estrutural (e formal) do Direito reside no valor hierárquico qualificado

que o STF está (agora) a emprestar ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Evidente

que, por questão de coerência, deve seguir nesse caminho quando diante de outras questões

jurídicas a envolver a aplicação dos tratados de direitos humanos, como aquela que ora nos

ocupa neste ensaio (a Lei de Anistia brasileira).

6. RESPEITO E APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS PELOS JUÍZES E TRIBUNAIS LOCAIS

Por tudo o que já se falou até agora parece ter ficado claro tratar-se de obrigação dos juízes

e tribunais locais (como longa manus do Estado que são) bem respeitar e aplicar o Direito

Internacional dos Direitos Humanos40.

39 Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito... cit., p. 817-847.

40 V. Soares, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2002. vol. 1, p. 225-239. 175

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Uma exuberante prova dessa aceitação (e aplicação)

das normas de proteção aos direitos humanos

em nosso país deu-se no âmbito da prisão civil do

depositário infiel. Na sessão Plenária do dia 16 de

dezembro de 2009, o STF chegou a editar a Súmula

Vinculante 25: “É ilícita a prisão civil de depositário

infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito41”.

O que se defendia há anos foi finalmente sumulado

pela Suprema Corte, com caráter vinculante à

Administração Pública e ao Judiciário.

Com a decisão proferida no RE 466.343/SP (03.12.2008),

que foi ratificada com a Súmula Vinculante 25, o Brasil

ingressou, definitivamente, na “terceira onda” evolutiva

do Estado, do Direito e da Justiça, que é a onda do

internacionalismo (ou da internacionalização dos direitos

humanos).

No Estado de Direito da legalidade caberia prisão civil do depositário infiel (muitas leis a

preveem). No Estado de Direito (puramente) constitucional também (porque a Constituição

brasileira possibilita a prisão civil do depositário infiel – CF, art. 5.º, LXVII). Já no Estado de Direito

internacional, a impossibilidade de se coagir mediante prisão um devedor é manifesta (em virtude

da vedação da Convenção Americana, art. 7.7).

A Constituição brasileira prevê duas hipóteses de prisão civil: do alimentante inadimplente e do

depositário infiel (CF, art. 5.º, LXVII). A legislação ordinária brasileira regulamentou (com base na

CF) várias situações de prisão civil, ampliando bastante a locução “prisão do depositário infiel”.

Essa ampliação excessiva sempre foi objeto de muitas críticas42.

Incontáveis acórdãos do STJ reiteradamente negaram validade para a prisão do depositário no

caso da alienação fiduciária (REsp 7.943/RS; REsp 2.320/RS etc.). No STF, alguns votos vencidos

(de Marco Aurélio, Rezek, Velloso, Pertence) não discrepavam do entendimento preponderante

no STJ. Mas o pensamento majoritário tradicional (legalista e positivista) no STF sempre foi no

sentido da sua admissibilidade (baseando-se na sua jurisprudência clássica da paridade entre a

lei ordinária e o tratado de direitos humanos – HC 80.004).

41 V. DOU de 23.12.2009, p. 1.

42 V., por tudo: Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica: especial enfoque para os con-tratos de alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

Em síntese, a nova postura jurisprudencial do STF finca suas raízes em novos tempos, em novos horizontes, em que a era da internacionalização dos direitos humanos já não pode ser (antiquadamente) ignorada.

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Um novo horizonte foi descortinado no dia 03.12.2008 com o RE 466.343-1/SP: os nove votos

proferidos reconheceram o fim dessa prisão civil (do depositário infiel), pouco importando a

natureza do depósito (judicial ou não judicial). Seu relator (ministro Cezar Peluso) negou validade

para a prisão do depositário infiel no caso da alienação fiduciária (porque a legislação respectiva

conflita com a Constituição Federal). O ministro Gilmar Mendes agregou outros dois fundamentos:

considerando-se que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos só prevê a prisão civil por

alimentos (art. 7.º, 7), é certo que nossa legislação ordinária relacionada com o depositário infiel

conflita com o teor normativo desse texto humanitário internacional. O conflito de uma norma

ordinária (que está em posição inferior) com a Convenção Americana resolve-se pela invalidade

da primeira. É o que ficou espelhado no voto do ministro Gilmar Mendes, que ainda mencionou o

princípio da proporcionalidade como ulterior fundamento para não admitir a prisão de depositário

infiel. No HC 90.172 (com votação unânime da 2.ª Turma), o ministro Gilmar Mendes reiterou sua

posição anterior.

Cumpre destacar que, em antológico voto proferido

em 03.12.2008, o ministro Celso de Mello (no Pleno

do STF) já reconhecia não a supralegalidade, mas, sim,

o valor constitucional dos tratados internacionais de

direitos humanos.

Em síntese, a nova postura jurisprudencial do STF finca

suas raízes em novos tempos, em novos horizontes,

em que a era da internacionalização dos direitos

humanos já não pode ser (antiquadamente) ignorada.

O passo extraordinário que o STF deu em relação à prisão civil do depositário infiel deve, agora,

na linha do que estão fazendo os nossos países vizinhos (Argentina, Chile, Uruguai etc.)43, ser

seguido no que consiste no cumprimento da decisão da Corte Interamericana proferida no

“Caso Araguaia44”. Por mais que existam declarações em sentido contrário, a obrigatoriedade de

internalização (da jurisprudência da Corte Interamericana) pelos juízes e tribunais brasileiros faz

parte de um movimento universal absolutamente incontestável45.

43 Sobre a incidência do Direito Internacional no âmbito do Direito interno da Argentina: moncayo, Guillermo R. Critérios para ja apli-cación de las normas internacionales que resguardan los derechos humanos en el derecho argentino. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 89 e ss. V. ainda, Vanossi, Jorge R. Los tratados internacionales ante la reforma de 1994. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 105 e ss.; Schiffrin, Leopoldo. La primacía del derecho internacional sobre el derecho argentino. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op.cit., p. 115 e ss.; Travieso, Juan A. Los nuevos paradigmas. Enfoque con nuevas consideraciones meto-dológicas. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 127 e ss.; Fappiano, Oscar L. La ejecucion de las decisiones de tribunales internacionales por parte de los órganos locales. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 147 e ss.

44 Sobre a margem de apreciação da Justiça local: Valiña, Liliana. El margen de apreciacion de los Estados en la aplicación del derecho internacional de los derechos humanos en el ambito interno. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 173 e ss.

45 Gordillo, Agustín. Los amparos de los artículos 43 y 75, inciso 22, de la Constitucion Nacional. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian

É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade

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Frise-se ter participado do mesmo julgamento, na qualidade de juiz ad hoc brasileiro, o Sr. Roberto

de Figueiredo Caldas, que em seu voto em apartado, e na mesma linha da sentença, assim

sublinhou:

“4. Continuando na breve incursão sobre temas pontuais relevantes, se aos tribunais

supremos ou aos constitucionais nacionais incumbe o controle de constitucionalidade

e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à Corte Interamericana de

Direitos Humanos cabe o controle de convencionalidade e a última palavra quando o

tema encerre debate sobre direitos humanos. É o que decorre do reconhecimento formal

da competência jurisdicional da Corte por um Estado, como o fez o Brasil.

5. Para todos os Estados do continente americano que livremente a adotaram, a

Convenção 13 equivale a uma Constituição supranacional atinente a Direitos Humanos.

Todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as respectivas legislações

federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes, estão obrigados a

respeitá-la e a ela se adequar.

6. Mesmo as Constituições nacionais hão de ser interpretadas ou, se necessário, até

emendadas para manter harmonia com a Convenção e com a jurisprudência da Corte

Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com o artigo 2º da Convenção, os Estados

comprometem-se a adotar medidas para eliminar normas legais e práticas de quaisquer

espécies que signifiquem violação a ela e, também ao contrário, comprometem-se a

editar legislação e desenvolver ações que conduzam ao respeito mais amplo e efetivo da

Convenção.

(...)

29. O exame de conceito da esfera do Direito Penal Internacional não deve melindrar

a Corte ou instâncias judiciárias nacionais, dada a evidente confluência de várias

circunscrições do Direito Internacional, o que vem sendo propalado pela doutrina e pela

jurisprudência não é de hoje. Assim o é porque são largas as fronteiras entre os sub-

ramos como os Direitos Humanos, o Direito Humanitário e o Direito Penal Internacional.

Suas normas e suas fontes são necessariamente complementares, senão correr-se-ia

o grave risco de divergência entre as interpretações desses nichos jurídicos que jamais

seriam uniformizadas, com lamentável insegurança jurídica para a humanidade.

(org.). Op. cit., p. 201 e ss.

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30. Finalmente é prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina

internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de Direito interno, tais como

as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de

punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os

crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo

agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas transmissões por

gerações de toda a humanidade.

31. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um

novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo

de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na

punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a

imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis

e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo

serão punidas”.

Em suma, todas as manifestações da Corte (na sentença e no voto em separado do juiz ad

hoc brasileiro) fielmente demonstram que o Judiciário brasileiro deve ingressar (de facto, e não

apenas de jure) na onda internacionalista do Estado, do Direito e da Justiça, e aceitar em definitivo

os comandos que vêm de cima (do Direito Internacional Público) e, mais ainda, de órgão (tribunal)

especializado em matéria de proteção aos direitos humanos.

7. CONCLUSÃO

Ao cabo desta exposição teórica, cabe sumariamente concluir o seguinte:

1 - Que a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontestável que

marca a era da pós-modernidade, caracterizada pela globalização (inclusive da dignidade

humana).

2 - Que esse corpus juris específico – chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos

– goza de absoluta primazia sobre a legislação doméstica naquilo que é mais benéfico

ao ser humano sujeito de direitos (princípio internacional pro homine). Ou seja, esse

conjunto normativo internacional de proteção possui caráter sui generis. Suas normas

possuem hierarquia diferenciada no plano doméstico (estão acima de todas as leis) e

com este não podem ser confundidas.

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3 - Toda a produção legislativa ordinária (de qualquer Estado) que faça parte do sistema

interamericano de direitos humanos está sujeita, doravante, a dois principais tipos de

controle: (a) o de constitucionalidade e (b) o de convencionalidade.

4 - Constitui obrigação impostergável de todos os juízes e tribunais locais (nacionais)

fazer desses dois tipos de controle uma realidade. Os juízes e tribunais locais estão,

inclusive, obrigados a exercer ex officio tais controles, segundo o entendimento da Corte

Interamericana de Direitos Humanos.

5 - Para a proteção, no nosso entorno regional, dos direitos humanos previstos nos

tratados internacionais, qualquer ser humano lesado pode acionar o sistema regional

interamericano de direitos humanos, visto que essa tutela já não está regida pelo princípio

do domestic affair, mas sim do international concern. A proteção dos direitos humanos

convencionados conta com o amparo complementar do Direito Internacional.

6 - O Brasil tem a obrigação de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos de 24 de novembro de 2010, proferida no “Caso Araguaia”. O nosso país foi

declarado responsável pelo desaparecimento de dezenas de pessoas e, agora, por força

da sentença da Corte citada, tem o dever de investigar e, se for o caso, processar os

responsáveis pelos referidos delitos contra a humanidade, não tendo nenhum valor

jurídico a Lei de Anistia brasileira (embora validada pelo STF em abril de 2010).

7 - No Estado de Direito Internacional (defendido, entre outros, por Luigi Ferrajoli), é preciso

respeitar a pluralidade de fontes normativas e promover, entre elas, o devido “diálogo”

(Erik Jayme) capaz de fazer prevalecer a norma mais favorável à tutela dos direitos

humanos (princípio pro homine).

8 - A jurisprudência brasileira já deu (exuberante) demonstração da força normativa do Direito

Internacional dos Direitos Humanos ao cuidar do tema da prisão civil do depositário infiel.

A nossa Suprema Corte (no RE 466.343/SP) não só reconheceu a hierarquia superior

desse ramo do Direito como acabou editando a Súmula Vinculante 25, para proibir

definitivamente a prisão civil de depositário infiel no país, qualquer que seja a modalidade

do depósito.

9 - Na esteira desse precedente pós-moderno do STF, espera-se, agora, que seja cumprida

sem resistência e dentro de prazo razoável a decisão da Corte Interamericana no “Caso

Araguaia”.

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LUIZ FLÁVIO GOMESDoutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito

Penal pela USP. Diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e cocoordenador dos cursos

de pós-graduação transmitidos por ela. Professor convidado em diversas universidades

brasileiras e estrangeiras. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a

1998) e advogado (1999 a 2001).

VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLIPós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum

laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito Internacional pela Unesp.

Pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Professor adjunto de Direito Internacional Público

e Direitos Humanos da UFMT. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UFMT.

Professor da Rede de Ensino LFG. Professor convidado nos cursos de pós-graduação da

UFRGS, PUC-SP e da UEL. Membro efetivo da Associação Brasileira de Constitucionalistas

Democratas – ABCD.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O julgamento relativo ao “Caso Araguaia” e suas repercussões

no Brasil – 3. A internacionalização dos direitos humanos: 3.1 Complementaridade da

tutela internacional; 3.2 Interdependência entre o Direito Internacional e o Direito interno;

3.3 Do princípio do domestic affair ao do international concern; 3.4 Estado de Direito

constitucional e Estado de Direito internacional; 3.5 Estrutura normativa do Estado de

Direito internacional; 3.6 A nova construção de um “Direito dialógico” – 4. Adesão formal

do Brasil ao Direito Internacional dos Direitos Humanos – 5. Reconhecimento da força

normativa (hierarquia superior) do Direito Internacional dos Direitos Humanos – 6. Respeito

e internalização (aplicação) do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelos juízes e

tribunais locais – 7. Conclusão.

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