Criolo

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75, 74 , PERFIL UM CIDADÃO COMUM POR BRUNO MATEUS FOTOS BRUNO SENNA A fala é serena, doce. O olhar, de um verde que salta às retinas, diz muito. As repostas são pausadas, bem pensadas, mas passam longe de serem previsíveis — carregam a sin- ceridade de quem viu muita injustiça e miséria, mas também enxergou poesia, arte e esperança no horizonte. E expõem, por inteiro, sem disfarces, um artista em busca de abrir o diálogo, de descortinar as contradições de um país como o Brasil e de fazer música por uma necessidade interna. Criolo canta por estar desesperado. Talvez, essa dor o acompanhe desde moleque. Junto aos seus quatro irmãos, o rapper sempre morou na periferia da capital paulista. Foi lá que ele teve o primeiro e definitivo encontro com o rap, expressão musical que lhe deu consciência, amor, voz para gritar e, de certa forma, aliviar suas angústias. Kleber Cavalcante Gomes já foi Criolo Doido, fundou a Ri- nha de MC’s, em São Paulo, e tem uma trajetória importante no hip hop. Engana-se quem pensa que só agora é que ele está mostrando a que veio. O sonho de Criolo nunca foi ser jogador de futebol, talvez por ser, como ele confessa, um zero à esquer- da dentro das quatro linhas — apesar do amor que sente por esportes. Mas, sobretudo, seu caminho não deu nos gramados porque aquele moleque de 11 anos ficou maravilhado quando descobriu na música uma maneira de se ex- pressar. Dali para frente, nunca mais largaria o rap. Quer dizer, o rap é que não o abandonaria. Filho de cearenses, o rapper se emociona ao falar de seus pais, dos tempos em que ia à escola com o uniforme pintado à mão pela mãe, pois não tinham grana para comprar um novo na lojinha, de quando via Seu Cleon so- frer preconceito por ser negro e quando ia ao estádio com ele ver o Corinthians jogar. Com as lembranças, boas ou ruins, fica fácil perceber o orgulho que sente por ter sido criado num ambiente de arte, inspiração e de afirmação da beleza de suas raízes. Criolo foi o artista mais comentado de 2011 — o álbum Nó na orelha foi eleito o me- lhor do ano pela lista da revista Rolling Stone, e Não existe amor em SP, a melhor música. No VMB, premiação da MTV, ele levou para casa os troféus de melhor disco, música do ano e artista revelação. Impossível passar desperce- bido à sua poesia, que sangra, que chama à luta, que sabe que tem muita coisa errada por aí. E, para Criolo, impossível é cerrar os olhos para tudo isso.

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Revista Ragga - Março 2012

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PERFIL

UM CIDADÃO COMUM

POR BRUnO MAtEUs FOTOS BRUnO sEnnA

A fala é serena, doce. O olhar, de um verde que salta às retinas, diz muito. As repostas são pausadas, bem pensadas, mas passam longe de serem previsíveis — carregam a sin-ceridade de quem viu muita injustiça e miséria, mas também enxergou poesia, arte e esperança no horizonte. E expõem, por inteiro, sem disfarces, um artista em busca de abrir o diálogo, de descortinar as contradições de um país como o Brasil e de fazer música por uma necessidade interna.

Criolo canta por estar desesperado. Talvez, essa dor o acompanhe desde moleque. Junto aos seus quatro irmãos, o rapper sempre morou na periferia da capital paulista. Foi lá que ele teve o primeiro e definitivo encontro com o rap, expressão musical que lhe deu consciência, amor, voz para gritar e, de certa forma, aliviar suas angústias.

Kleber Cavalcante Gomes já foi Criolo Doido, fundou a Ri-nha de MC’s, em São Paulo, e tem uma trajetória importante no hip hop. Engana-se quem pensa que só agora é que ele está mostrando a que veio. O sonho de Criolo nunca foi ser jogador de futebol, talvez por ser, como ele confessa, um zero à esquer-da dentro das quatro linhas — apesar do amor que sente por esportes. Mas, sobretudo, seu caminho não deu nos gramados porque aquele moleque de 11 anos ficou maravilhado quando

descobriu na música uma maneira de se ex-pressar. Dali para frente, nunca mais largaria o rap. Quer dizer, o rap é que não o abandonaria.

Filho de cearenses, o rapper se emociona ao falar de seus pais, dos tempos em que ia à escola com o uniforme pintado à mão pela mãe, pois não tinham grana para comprar um novo na lojinha, de quando via Seu Cleon so-frer preconceito por ser negro e quando ia ao estádio com ele ver o Corinthians jogar. Com as lembranças, boas ou ruins, fica fácil perceber o orgulho que sente por ter sido criado num ambiente de arte, inspiração e de afirmação da beleza de suas raízes.

Criolo foi o artista mais comentado de 2011 — o álbum Nó na orelha foi eleito o me-lhor do ano pela lista da revista Rolling Stone, e Não existe amor em SP, a melhor música. No VMB, premiação da MTV, ele levou para casa os troféus de melhor disco, música do ano e artista revelação. Impossível passar desperce-bido à sua poesia, que sangra, que chama à luta, que sabe que tem muita coisa errada por aí. E, para Criolo, impossível é cerrar os olhos para tudo isso.

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VOCÊ TEM UMA HISTÓRIA DE MAIS DE 20 ANOS NO HIP HOP. NA LISTA DOS MELHORES DE 2011, DA REVISTA ROLLING STONE, SEU ÁLBUM NÓ NA ORELHA FICOU EM PRIMEIRO LUGAR. NA ELEIÇÃO DE MELHOR MÚSICA, NÃO EXISTE AMOR EM SP TAMBÉM LEVOU. É ESTRANHO TER ESSE RECONHECIMENTO TODO AGORA, TUDO DE UMA VEZ? TALVEZ NESSE MOMENTO DA VIDA, eu tenha tido uma opor-tunidade de ter um grupo de pessoas que me deram força para que minha poesia aparecesse. Acredito que a força desse coletivo, desde o primeiro momento que a pessoa me esten-deu a mão para eu ir a um estúdio, desaguou nisso, junto com toda uma história, mas em especial nesse recorte do tempo. Me sinto muito surpreso ainda com tudo o que está aconte-cendo, então nem sei mensurar e como lhe responder isso. Não posso lhe responder que causa estranheza, pois poderia soar como eu estar diminuindo meu trabalho ou a outra ponta — estar sendo um pouco arrogante. Quantos não estão aí há mais de 20, 30, 40 anos fazendo sua música com amor no coração? Mas é tudo muito inusitado, porque não só o meu jeito de enxergar a música, mas as pessoas que se cercaram de mim fazem música por necessidade, uma necessidade in-terior e não por questões outras. O que nos move são algumas coisas que ainda nos indignam, que fazem com que a gen-te queira minimamente dividir o que a gente está pensando. É uma grande surpresa tudo isso que está acontecendo.

DE REPENTE, VOCÊ SE VÊ CANTANDO COM CAETANO, VÊ O CHICO BUARQUE CANTAR A SUA VERSÃO DE CÁLICE.ACREDITO QUE, sobretudo esses dois nomes que você citou, são pessoas de muita sensibilidade, mas também são pesso-as que se posicionam enquanto cidadãos, pessoas simples. Lógico que foi um grande gesto de generosidade eles falarem um pouco de mim, me convidarem para alguma coisa, mas, sobretudo, enxergar que somos cidadãos comuns e que nossa poesia, de uma certa forma, fez com que nossos caminhos se cruzassem, então seria natural, nesse sentido. Mas, quan-do você diz Caetano Veloso e Chico Buarque, lógico que são pessoas que realmente têm uma contribuição com a literatu-ra mundial, então agradeço esses gestos de generosidade e acredito que nesses meus 23 anos de caminhada talvez eu tenha iniciado um processo de construção de texto que valha pelo menos a troca.

E POR QUE SÓ AGORA UM DISCO COM CANÇÕES?POIS SÓ AGORA tive essa oportunidade. Tenho a escrita em outros segmentos há mais de 10 anos, são coisas que nin-guém sabia. Quando completei 20 anos de carreira e 15 junto com o DJ Dandan, conversando com ele eu disse: “A gente já viu algumas coisas nesses anos e acredito que podemos contribuir de outras formas, então vou começar a me preparar a não protagonizar os palcos” – não deixar de cantar, não dei-xar de escrever, mas enxergar que existem outros caminhos de contribuir. Então, alguns amigos, ao perceberem esse meu movimento, dentre eles um cara chamado Ricardo, que faz parte da Matinê Cultural, disse: “Olha, gostaria muito que você

VOCÊ PASSOU A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NO GRAJAÚ, ONDE VIVE ATÉ HOJE.NASCI na Santa Casa de Misericórdia, em Santo Amaro. Morei os primeiros anos da minha vida no Jardim Reimberg, num porão. Depois atravessamos a Avenida Teotônio Vilela e fo-mos morar na favela, e por lá fiquei seis anos da minha vida num barraco de madeira, até o teto era de madeira e o chão de barro batido, tem que socar bastante para que ele não se dissolva com água de chuva e a umidade do ambiente. Em 1982, fomos morar no Grajaú.

E MESMO COM TODAS AS ADVERSIDADES, VOCÊ CRESCEU NUM MEIO DE MUITA EXPRESSÃO CULTURAL. DE QUE FORMA ISSO CONTRIBUIU PARA O SEU DESENVOLVIMENTO ARTÍSTICO?MINHA MÃE nunca mediu esforços para nos deixar em conta-to com poesia, com música. Meu pai, do jeito dele, também. Ele é metalúrgico, foi metalúrgico a vida toda. Minha mãe sempre foi dona de casa. Quando ela inteirou os 45 anos de idade, fomos estudar juntos o colegial, mas ela sempre foi uma amante das letras, é uma pessoa que ama ler. E por mo-rar em favela, tinha em cada lado da minha casa uma pessoa de um lugar diferente do Brasil. Nos primeiros anos de minha

fosse ao estúdio registrar suas canções, seus raps, o que você quiser, mas, sobretudo, as coisas que pouquíssimas pessoas sabem que você faz”. O que ia ser um registro para a família, no meio do caminho acabou se transformando numa outra coisa. Há 15 anos componho com outras formas de me ex-pressar musicalmente, mas pouquíssimas pessoas sabem.

O ASSUNTO POLÍTICA É MUITO IMPORTANTE NO SEU DIA A DIA? VOCÊ LÊ SOBRE, ACOMPANHA?SOU IGNORANTE, não sou um estudioso. Quando uma pessoa me explica minimamente que se eu cortar uma árvore não vai ter troca de CO2, entendo que em algum momento você está contribuindo [ao não cortar uma árvore]. Se for esperar eu me formar, vou esperar seis anos. Essa fala minha como leigo pode vir a somar também com esse estudioso, porque ambos estamos querendo, em algum momento a gente se encontra, porque queremos o bem de algum forma, seja em qual seg-mento for. Sou um brasileiro nascido e criado em favela. Vejo, tenho um nervo óptico e tenho sentimentos. Então, sempre fico muito contente ao encontrar com amigos que estudam o assunto, que leem livros, que estão sempre pesquisando, por-que me complemento, me encho de informação, mas também sei que, se andarmos um pouquinho em cada esquina, tem alguém pedindo um prato de comida. Desde colônia, essas questões sempre estiveram na porta de nossa casa, senão dentro de nossa sala. Volto a lhe dizer, sou um ignorante no assunto, mas sou um cidadão com um nervo óptico, já passei por algumas coisas na vida e a gente consegue enxergar fisio-logicamente se sua barriga está doendo de fome.

VOCÊ DISSE EM UMA ENTREVISTA QUE TODO MUNDO TEM FOME DE ALGUMA COISA, SEJA DE UM PRATO DE ARROZ E FEIJÃO, SEJA DE AMOR. ACREDITO QUE SIM, porque senão a gente não estaria nessa eterna busca de sei lá o que, indo para não sei onde.

E VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?DE PELO MENOS viver a ilusão de que se abra o diálogo. Can-tar é um problema meu, se é que é problema. Cantar é uma necessidade minha de dividir o que passa pela minha cabeça, mas essa ação não significa que é abrir diálogo. E por muitas vezes existe esse diálogo, mas de mil outras formas, quando você começa a perceber o retorno de algumas situações. Estou engatinhando e, como eu lhe disse, sou um cidadão comum.

existência, escutei música do Brasil todo. O rap na minha vida foi uma expressão de arte tão maravilhosa, sem preconceitos, e eu escutava aquelas músicas, pessoas que moravam tão longe de mim, mas que cantavam aquela mesma realidade que eu vivia, então foi imediato. Não diria amor à primeira vista, mas foi uma expressão de arte que me deu muito amor no sentido de me dar voz, de me dar esse diálogo que eu tanto procurava. Você imagina ser favelado, ver seu pai sofrer pre-conceito porque é negro, ver sua mãe sofrer preconceito sim-plesmente porque é de outro lugar do país, ver todo mundo ir para a escola com uniforme comprado na lojinha e sua mãe fazendo o seu pintado à mão. Devo muito [ao rap], não sei se devo porque ele nunca me cobrou nada. O hip hop não te cobra nada, o hip hop é muito generoso, me ajudou na minha formação de cidadão, musical.

SENDO MORADOR DA PERIFERIA, FILHO DE NORDESTINOS, FILHO DE NEGRO, VOCÊ JÁ DEVE TER SENTIDO O PRECONCEITO NA PELE.CLARO, mas estou acima dele. As riquezas vão do ponto de vista de cada um. Nunca me deixaram faltar o pão do conhe-cimento, do bom gosto, no sentido de valorizar o meu gosto. Não se deixe moldar por ninguém.

MAS NÃO É TODO MUNDO QUE TEM ESSA SEGURANÇA QUE VOCÊ TEM.EU AGORA TENHO 36 ANOS, quem disse que já não chorei muito, que sofri muito? Até Genghis Khan [imperador mongol do século 12] sofreu derrotas, não vou me colocar na condi-ção de quem eu não sou. Sou um cidadão comum em forma-ção e repleto de defeitos, uma pessoa que tem muita coisa para aprender.

COMO FOI SER COLEGA DE CLASSE DE SUA MÃE?FOI UMA COISA ESPETACULAR.

É UMA HISTÓRIA BONITA. VOCÊ TINHA 14 ANOS, NÉ?É. Minha mãe já foi lavadeira, empregada doméstica.. . Cara, fez de tudo para não passar fome, criando os filhos. Aquele estereótipo, né? Daquela senhorinha que vai ser a vovó, aque-le cabelinho, roupinha humilde. Fez os três anos de faculdade comigo e pude me apaixonar por mil mulheres, porque você não enxerga só o personagem mãe, e ela pôde me conhecer bastante também, as minhas outras faces. E depois ela não parou mais, foi fazer filosofia, depois fez história, psicologia, pós-graduada em língua, literatura e semiótica. Hoje ela tem o Café Filosófico, no Grajaú, que já está indo para o segun-do ano. Ela sempre tratou com naturalidade, falou: “Pô, então dependendo do CEP a gente não pensa, não tem o gosto?”. Bom gosto é você ter o seu gosto, e a partir daí dialogar com o mundo, senão você está sendo preconceituoso de novo. O que é bom gosto? Eu gosto de bolacha salgada, você gosta de bolacha doce, e daí?

VOCÊ NÃO TEM PRECONCEITO MUSICAL?PRECONCEITO, não, tenho o meu gosto. Porque o que não é bom para mim, não quero ouvir, pode ser que você curta

NÃO SOU UM BOM CANTOR, NÃO SEI NEM TOCAR UM

INSTRUMENTO, MAS CANTO COM A MINHA VERDADE, COM A MINHA EMOÇÃO

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pra caramba. Sobretudo eu, que faço minha música, tenho que respeitar o cara que está fazendo a música dele.

O QUE VOCÊ QUER FAZER REFLETIR COM SUA MÚSICA, SUA ESCRITA, SUA ARTE?NÃO TENHO A PRETENSÃO de achar que vá fazer isso ou aquilo, só peço energia para uma força maior para continuar fazendo o que faço: minha música com o coração, com a minha verdade, que não é melhor que a verdade do outro. Tenho vontade de continuar fazendo o que faço há 23 anos. Só quero continuar sen-do a pessoa que sou. Se alguém em algum momento tiver curiosidade, um pouquinho de tempo, se quiser se encontrar com alguma canção minha, vai entender qual é a minha.

VOCÊ É RELIGIOSO?ACREDITO QUE EXISTA UMA FORÇA que rege essa natureza toda, acredito muito na energia das pessoas, um bom pensamento, que nós somos pessoas que têm uma energia, sim.

DEUS?CADA UM chama de um nome, acredito numa força maior que nos rege, ou pode ser tudo isso uma grande ilusão, mas existe a neces-sidade de se criar nomes, sobretudo em que época isso foi pensado, a importância disso e qual o interesse de quem estava difundindo tudo isso. Mas, para mim, colocando todas essas coisas de lado, acredito que exista uma energia maior e cada um chama de um nome.

VOCÊ CHEGOU A CURSAR PEDAGOGIA E TEVE UMA EXPERIÊNCIA COMO EDUCADOR. COMO FOI ISSO?FORAM 12 ANOS com crianças e adolescen-tes em escolas. Foi um momento de perceber aquilo que eu já acreditava, mas não enxer-gava a grandiosidade: a importância de cada pequeno ato para a melhoria de um ser hu-mano. Seja com música, seja aquela pessoa que está no dia a dia com aquela criança, na situação que for. Foram 12 anos, e vi o quão há de gente na escola pública com vocação — uma coisa é ter talento, outra é ter voca-ção. E quando você tem uma mistura disso, acontece a mágica, e acontece todos os dias em salas de aula precárias, os professores são jogados em uma situação desumana, os outros funcionários também.

O CURRÍCULO DAS ESCOLAS, EM MINHA OPINIÃO, ESTÁ ERRADO.É, e talvez exista um porquê de ser dessa for-ma. Nós sabemos que a escola se tornou pú-blica com o advento da Revolução Industrial, quando precisávamos de uma mão de obra um pouquinho melhorada para apertar o bo-tão. Quando você tem esse pensamento, se a escola pública nasce com esse pensamento, nasce completamente errada. Mas enxergo pessoas com atos de amor, e esses são os verdadeiros heróis, os verdadeiros artistas. E eu pude enxergar, estar ali na situação.

NO NÓ NA ORELHA VOCÊ PASSEIA POR OUTROS RITMOS QUE NÃO O RAP. PODE-SE DIZER QUE É E NÃO É UM DISCO DE RAP?NUNCA em minha história o rap foi tão exal-tado, tão presente. Consegui imprimir a atitu-de rap num leque de cinco, 10, mil formas de se cantar. Não digo nem que é tentativa, por-que foi natural. Mas, nesse momento, mostrar para as pessoas qual é a do rap, esse querer de mudança, de valorização, essa vontade lou-ca de contribuir, de abrir diálogo e de fazer o que é possível. O rap está presente em tudo o que eu vá fazer na minha vida. Ele está lá, está vivo e pulsando. Ele me fez chegar onde estou chegando. Ele ajudou na minha construção de cidadão. Cresci escutando rap que dizia: “Cara,

O RAP ESTÁ PRESENTE EM TUDO O QUE EU VÁ FAZER

NA MINHA VIDA. ELE ESTÁ LÁ, ESTÁ VIVO E PULSANDO.

ELE ME FEZ CHEGAR ONDE ESTOU

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tem um monte de coisa errada acontecendo, as pessoas es-tão morrendo. Cara, você é bonito, não importa se você é índio, negro, amarelo, se você tem dinheiro ou não”. Posso fazer um xaxado, um bolero, um forró... O rap me deu a condição de me enxergar um homem com possibilidades.

VOCÊ NUNCA LARGOU O RAP.A VERDADE É A SEGUINTE: ele nunca me largou. Quem sou eu para segurar o rap? Eu não fiz o rap, ele que me fez.

SENDO FILHO DE METALÚRGICO, QUANDO O LULA, UM EX-METALÚRGICO, FOI ELEITO, ISSO TEVE ALGUM SIGNIFICADO ESPECIAL?SOU FILHO DE NORDESTINO, filho de metalúrgico, alguma sen-sação a gente sente, pelo menos a simbologia do que chega, o emblema de determinada situação. Mas aí você vai se des-dobrando e vê que são, no mínimo, 500 pessoas que definem tudo, e no máximo cinco que mandam no mundo. E você já encaminha o assunto para outras coisas, mas é lógico que foi emblemático, um momento histórico. Outro dia estava falando com o pessoal da ESPN sobre Copa do Mundo e Olimpíadas. Eu disse a ele [ao repórter] que, inegavelmente, enxergo a im-portância de eventos tão grandiosos como esses em qualquer lugar do mundo. O esporte é tão importante para a criança, a criança já nasce nadando. Esporte é arte, vida, cultura. Mas as outras coisas que vêm ao redor, o que cerca isso, é um outro papo. Copa do Mundo e Olimpíadas são [eventos] muito boni-tos, mas o Brasil precisa de um prato de comida.

ESSES EVENTOS VÃO GERAR AVANÇOS PARA O PAÍS?SE VOCÊ ACHAR que construir ponte, hotéis e prédios é avanço, é sim avanço, para determinada situação. Agora, é impossível imaginar e não questionar outra coisa que é: como [os gover-nantes] não conseguem enxergar que o país vai economizar tanto dinheiro se todo mundo tiver saneamento básico, porque não vão gastar com remédio? Mas aí já esbarra no dono da fá-brica de remédio. Se o cara está bem alimentado, se a comida dele é forte, não precisa fazer uma montanha de comida. Se você for pensar em livros, livros gostosos de se ler e acessíveis, você esbarra, você está tirando o olhar do jovem para determi-nado canal de televisão em determinado horário.

NO ANO PASSADO VOCÊ FEZ UM SHOW EM BELO HORIZONTE, NA PRAÇA DO PAPA, E SUA POSTURA NO PALCO FOI MUITO COMENTADA. MUITA GENTE FALOU QUE FOI UM SHOW FORTE, QUE VOCÊ PARECIA UM PROFETA NUM CULTO, UMA COISA MÍSTICA, UMA EXPERIÊNCIA FORTE E ESTRANHA. VOCÊ TEM CONSCIÊNCIA DISSO?NÃO, às vezes me questiono se posso melhorar ou se tenho que me podar, mas quando dá aquele minuto antes de subir no palco, cara, subo no palco com muito respeito a quem está para ver, é o povo que faz o show, a mágica. Subo no palco com muito respeito a todos os músicos que tocam comigo, cada um deles tem uma história maravilhosa e tocam com tanto carinho. Já subo sabendo que sou uma pecinha. Sinto vontade de fazer o meu melhor possível naquele momento. Não sou um

bom cantor, não sei nem tocar um instrumento, mas canto com a minha verdade, com a minha emoção. Quando vou, vou de verdade, estou lá mesmo, não estou a passeio. Não sou aquele cara “tenho que fazer show rapidinho porque quero passear”.

VOCÊ SE ENTREGA.É O MÍNIMO que posso fazer. Subo no pal-co muito emocionado, mesmo. Cada dia é de um jeito, tem dia que entro pulando, tem dia que estou mais quieto; tem dia que converso mais entre uma música e outra, tem dia que não falo nada. Sou um cidadão comum, não tenho roteirinho. ESTE ANO O CORINTHIANS BELISCA A TÃO SONHADA LIBERTADORES? ISSO É IMPORTANTE, VOCÊ TEM UMA RELAÇÃO COM FUTEBOL?MINHA FAMÍLIA TODA É CORINTIANA, sempre que possível vamos ao estádio. Tenho boas recordações de meu pai me levando quan-do criança, eu e meu irmão. Falam que é o ópio do povo, que não sei o que, mas tenho recordações de meu pai, que trabalhava 14 horas por dia, e quando tinha um tempinho me levava, então tenho essa recordação de carinho paterno. Pô, que legal, tem esse outro lado também.

O OSCAR WILDE DIZIA QUE TODA ARTE É INÚTIL. É POR AÍ?A QUESTÃO É: quem criou utilidade para ela? Se você enxergar que respirar, amanhecer o dia e seus braços estão atendendo às suas sinapses, isso é a maior arte que pode existir na sua vida. De que arte ele estava falando? Às vezes até querendo proteger uma expres-são maior de uma banalização.

PERCEBO NO SEU JEITO DE CANTAR UMA CERTA MELANCOLIA, UMA COISA DE QUEM DIZ: “O CAMINHO É ESCURO MESMO E NÃO SEI SE TEM UMA SOLUÇÃO”. É MAIS OU MENOS ISSO OU ESTOU FICANDO LOUCO?OLHA, deixa eu te falar... É muito difícil falar de dor sorrindo e mesmo assim nosso povo consegue. Isso é traduzido em poesia. Como falar de um duplo assassinato sem apontar o dedo na cara de ninguém, sem apontar culpa-do, mas querer exaltar que pelo menos alguém do seu bairro que é mais velho pode te dar um conselho que pode te tirar de uma furada. Por-que, quando a coisa melhorar, o que nós todos queremos é cantar para celebrar.

SOU UM CIDADÃO COM UM NERVO

ÓPTICO, JÁ PASSEI POR ALGUMAS COISAS

NA VIDA E A GENTE CONSEGUE ENXERGAR

FISIOLOGICAMENTE SE SUA BARRIGA ESTÁ

DOENDO DE FOME

DEPOIS DE PASSAR PELA CAPITAL MINEIRA EM SETEMBRO DO ANO PASSADO, FAZENDO UM SHOW MARCANTE NA PRAÇA DO PAPA, O RAPPER VOLTA A SE APRESENTAR EM SOLO BELO-HORIZONTINO. ELE TOCA, DIA 23 DESTE MÊS, NO MUSIC HALL (AV. CONTORNO, 3239 – SANTA EFIGÊNIA), MOSTRANDO AS MÚSICAS DO ELOGIADO ÁLBUM NÓ NA ORELHA.

INFORMAÇÕES: (31) 9344 5472 (31) 9690 4977

Criolo em BH

Criolo (da direita), aos 4 anos, na Vila Reimberg, onde morou até os 6

Com a mãe e companheira de classe, Dona Vilani

Em Belo Horizonte, na turnê de Chico, em novembro do ano passado. Na ocasião, o cantor homenageou Criolo cantando sua versão de Cálice FO

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