Crise Do Capitalismo Tardio e Os Processos de Formação Do Sujeito

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CRISE DO CAPITALISMO TARDIO E OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO DO SUJEITO Por meio da formulação de um "modelo descritivo", fundamentado nas mais importantes estruturas do capitalismo organizado, Habermas (2002) aponta as novas condições da sociedade onde se dá a formação do sujeito. Para o autor, o capitalismo liberal, analisado por Marx (1978), deu lugar a um estágio avançado do processo de acumulação, que se caracteriza, do ponto de vista econômico, por processos de concentração econômica, pela organização dos mercados para bens, capitais e trabalho e pela intervenção do Estado no mercado, substituindo-o sempre que se torna necessário criar e melhorar as condições para a realização do capital. Do ponto de vista político, este estágio do capitalismo caracteriza-se pela necessidade do aparelho de Estado ser legitimado através de um sistema de democracia formal, que difunde a lealdade das massas, mas que evita a sua participação. Parte-se do pressuposto de que a genuína participação dos cidadãos, nos processos de formação da vontade política - a democracia substantiva -, levaria à conscientização da contradição entre a produção socializada administrativamente e a contínua apropriação privada, e o uso privado da mais-valia. Por isso, é envolvido num sistema administrativo suficientemente independente da formação da vontade legitimante, que evita

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CRISE DO CAPITALISMO TARDIO E OS PROCESSOS DE FORMAO DO SUJEITO

Por meio da formulao de um "modelo descritivo", fundamentado nas mais importantes estruturas do capitalismo organizado, Habermas (2002) aponta as novas condies da sociedade onde se d a formao do sujeito. Para o autor, o capitalismo liberal, analisado por Marx (1978), deu lugar a um estgio avanado do processo de acumulao, que se caracteriza, do ponto de vista econmico, por processos de concentrao econmica, pela organizao dos mercados para bens, capitais e trabalho e pela interveno do Estado no mercado, substituindo-o sempre que se torna necessrio criar e melhorar as condies para a realizao do capital. Do ponto de vista poltico, este estgio do capitalismo caracteriza-se pela necessidade do aparelho de Estado ser legitimado atravs de um sistema de democracia formal, que difunde a lealdade das massas, mas que evita a sua participao. Parte-se do pressuposto de que a genuna participao dos cidados, nos processos de formao da vontade poltica - a democracia substantiva -, levaria conscientizao da contradio entre a produo socializada administrativamente e a contnua apropriao privada, e o uso privado da mais-valia. Por isso, envolvido num sistema administrativo suficientemente independente da formao da vontade legitimante, que evita a politizao dos cidados e a consequente discusso sobre aquela contradio fundamental. No capitalismo avanado, as instituies e os processos polticos s so, para Habermas (2002), democrticos na forma, enquanto a cidadania desempenha papel de cidados passivos, apenas com direito de embargar a aclamao. As decises privadas autnomas de investimento tm, assim, sua necessria complementao no privatismo cvico, abstinncia poltica combinada com orientao para a carreira, o lazer e o consumo, que promove a expectativa de recompensas dentro do sistema: dinheiro, lazer, segurana. A estrutura de classes, analisada no capitalismo liberal por Marx, se modificou, segundo Habermas (2002), na medida em que a produo e a apropriao da mais-valia so limitadas e modificadas pelas relaes do poder poltico, em vez de depender apenas do mecanismo de mercado. Segundo Habermas (2002), as estruturas do capitalismo avanado podem ser compreendidas como formaes de reao a crises, enfocando todas as foras da integrao social no ponto de conflito estruturalmente mais provvel, a fim de mant-las, o mais possvel, latentes. Um exemplo deste mecanismo a estrutura salarial quase poltica, que expressa um acordo salarial entre as empresas dos setores monopolsticos e os sindicatos, mitigando, atravs do sistema de "salrios polticos", a oposio entre trabalho assalariado e capital, efetivando-se um parcial acordo de classes. O acordo de classes que se d nos setores organizados do mercado, e que se tornou parte da estrutura do capitalismo organizado - capitalismo regulado pelo Estado - ocasiona o rompimento da identidade social das classes e a fragmentao da conscincia de classes, ao minimizar as oposies entre capital x trabalho, criando disparidades salariais no seio dos trabalhadores e, ao redistribuir desigualmente a renda, prejudica aos trabalhadores desorganizados e a outros grupos marginais. A meta declarada da atividade governamental, de conduzir o sistema no sentido de evitar as crises, parte da premissa de que a estrutura de classes precisa ser mantida em lutas em torno da distribuio administrativamente mediada pelos incrementos do produto social e, sob essas condies, os processos econmicos no podem mais ser concebidos enquanto movimentos de um sistema econmico auto-regulativo. Habermas (2002) no exclui a possibilidade de que as crises econmicas do capitalismo atual possam ser permanentemente evitadas, e que a contnua tendncia ao distrbio do crescimento capitalista possa ser processada administrativamente e transferida, por estgios, ao sistema poltico e sociocultural. Para o autor, a contradio da produo socializada, para fins particulares, assume diretamente uma forma de nova poltica, mas no a da luta de classes - como aponta Marx - pois, em polticas do capitalismo avanado ocorrem crises processadas e reprimidas em constantes disputas, que podem alterar os termos do acordo de classes. Depende da atual considerao de poder, em que a extenso estrutura de classes ser suavizada e de como ser afetada a contradio baseada no princpio capitalista de organizao. Para Habermas (2002):

[...] as condies histricas do capitalismo atual se diferenciam das analisadas por Marx, no existindo mais um grupo social ou classe que possa ser tomado como representante de um interesse geral reprimido, revelando-se, assim, a perda do destinatrio emprico da teoria marxista - o proletariado - e a perda da autoconfiana revolucionria. Para o filsofo, a teoria do materialismo histrico, na qual Marx interpreta a histria como uma sequncia de modos de produo, cuja lgica de desenvolvimento permite o reconhecimento da direo da evoluo social - insuficiente para explicar a dinmica e a complexidade das sociedades contemporneas (HABERMAS, 2002, p.72).

A dialtica entre foras produtivas e relaes de produo que, segundo Marx (1978), constituiria a dinmica que impulsionaria o processo da mudana social, conduzindo o capitalismo crise econmica, com desdobramentos polticos e sua consequente superao pelo socialismo, questionada por Habermas, que aponta a tendncia para a administrao poltica das crises como uma forma de sobrevida do prprio capitalismo. Para Habermas, a crise do capitalismo, hoje, extrapola o sistema econmico tornando-se abrangente: a crise da esfera pblica burguesa, que sofre mudana em sua estrutura; a crise da sociedade do trabalho, decorrente do ocaso da ideologia do trabalho e da subsequente instaurao da ideologia da cincia e da tcnica; e a crise do Estado de Bem-Estar Social, cujo projeto tornou-se problemtico, no momento em que os meios burocrticos, administrativos e econmicos, com os quais ele procurou domar o capitalismo, a crise transforma-se em ameaa esfera do mundo vital (SIEBENEICHLER, 1990). Diante da nova realidade do capitalismo tardio, torna-se necessrio, para Habermas, reconstruir o materialismo histrico, isto , retornar ao ponto de partida, s categorias analticas de Marx, revisando-as, mas acreditando, entretanto, que "seu potencial de estmulo no chegou ainda a se esgotar" (HABERMAS, 1990, p.11). As categorias reconstrudas tentam articular as estruturas normativas do desenvolvimento do "eu" e a lgica de desenvolvimento das sociedades, buscando homologias entre modelos de conformao histrica das identidades coletivas. Para Habermas (1990), o processo evolutivo da sociedade no se apoia, como indicava Marx, na contradio dialtica entre foras produtivas e relaes de produo e na luta de classes, mas as foras produtivas desenvolvem-se e as formas de integrao social (relaes de produo) amadurecem de acordo com a capacidade dos sujeitos da espcie humana em duas dimenses: no nvel do saber e do agir tcnico-estratgico (do trabalho) e no do saber e do agir prtico, moral e comunicativo (da interao). O processo evolutivo da sociedade depende, pois, do desenvolvimento das capacidades e competncias dos indivduos que a ela pertencem. Habermas (1990) abandona, portanto, a filosofia da histria, na perspectiva marxista, em direo teoria da evoluo social, entendida como uma anlise reconstrutiva da lgica prpria do desenvolvimento da aprendizagem humana. O processo de emancipao do sujeito, que Marx havia ancorado na crtica da economia poltica, lhe fornecendo critrios historicamente determinados, os quais tornavam possvel a diferenciao entre interesses legitimamente humanos e os interesses que impediam a desalienao, passa a ser entendido por Habermas como um processo de comunicao. A comunicao lingustica e o dilogo sem coaes externas constituem, portanto, a sada para a alienao, para a perda da individualidade do sujeito e para a recuperao da autonomia da sociedade. Habermas abandona, assim, o "paradigma da filosofia da conscincia", que enfatiza o conhecimento dos objetos pelo sujeito e o poder que resulta deste conhecimento, baseado na prxis produtiva e na classe social, substituindo-o pelo "paradigma da comunicao", que enfatiza o entendimento intersubjetivo, entre sujeitos capazes de falar e agir, buscando potenciais de emancipao na esfera da interao: no mundo vivido, no mundo cultural. (SIEBENEICHLER, 1990) Para desenvolver essa nova perspectiva, Habermas recupera a contribuio de Hegel (HABERMAS, 1987) nas Lies de Iena, onde o filsofo alemo aponta o processo formativo do sujeito como uma unidade dialtica entre a linguagem, o trabalho e a interao. Para Habermas, a relao recproca entre trabalho e interao torna-se fundamental, pois as regras tcnicas, embora se formem sob as condies da comunicao lingustica, nada tm em comum com as regras comunicativas da interao, no sendo possvel, pois, a reduo da interao ao trabalho ou a derivao do trabalho a partir da interao. Argumentando que Marx teria enfatizado a construo do sujeito a partir do trabalho, das foras produtivas, minimizando o desenvolvimento do "eu", Habermas prope que a institucionalizao da identidade do sujeito, a autoconscincia - o processo de formao do esprito e da espcie -, seja concebida como resultante de ambos os processos: do trabalho e da luta pelo reconhecimento (interao) (HABERMAS, 1987). Habermas (1987) destaca o potencial emancipatrio da esfera cultural, onde se do os processos de interao, em detrimento da esfera do trabalho - regido pelas regras da racionalidade instrumental - e aponta para a formao do sujeito, da identidade do "eu", como um processo de aquisio da competncia interativa, que consistiria na capacidade de participar de sistemas de ao cada vez mais complexos, onde se poderia questionar as "pretenses de validade" embutidas na linguagem institucionalizada, atravs da argumentao, e poderia buscar-se o entendimento (consenso) sobre a validade das normas sociais. A direo do desenvolvimento, no processo de formao, marcada pela crescente autonomia em termos da independncia com que o "eu" resolve os problemas. O "eu" autnomo e competente aquele que reage coero da sociedade, opondo-se heteronomia[footnoteRef:1] imposta pelo social. Para Habermas (1987), o "eu" socialmente competente refere-se ao sujeito que atingiu, cognitivamente, o estgio do pensamento hipottico-dedutivo, na acepo de Piaget; linguisticamente, o estgio da fala argumentativa; moralmente, o estgio ps-convencional[footnoteRef:2], de acordo com Khlberg; e interativamente, a habilidade de assumir a perspectiva dos outros, examinando sua prpria ao, promovendo a interao luz da reciprocidade de direitos e deveres. [1: Segundo Kant (1724-1804), sujeio da vontade humana a impulsos passionais, inclinaes afetivas ou quaisquer outras determinaes que no pertenam ao mbito da legislao estabelecida pela conscincia moral de maneira livre e autnoma (HOUASSIS, 2011)] [2: Neste estgio o indivduo se orienta no sentido de princpios ticos universais. "O que justo definido pela deciso tomada pela conscincia, de acordo com princpios ticos autonomamente escolhidos, os quais apelam a compreensividade lgica, universalidade e consistncia [...] Em substncia, so princpios universais de justia, e de respeito pela dignidade dos seres humanos como pessoas individuais" (Habermas, 1990, p. 61).]

Os sujeitos dotados de competncia interativa (tanto cognitiva, como lingustica; moral e motivacional) seriam capazes de reconstruir as leis que regem o mundo natural atravs da busca argumentativa e processual da verdade; de questionar o sistema de normas que vigora na sociedade; de buscar novos princpios normativos para a ao individual e coletiva, base do melhor argumento e, consequentemente, de reorganizar sua sociedade em bases justas e igualitrias (FREITAG, 1991). Depois de questionar os potenciais emancipatrios do proletariado - concebido como sujeito da histria -; de abandonar o modelo da alienao e da reapropriao das foras produtivas; de indagar sobre a validade e as possibilidades de alteraes revolucionrias nas condies atuais do capitalismo tardio[footnoteRef:3], Habermas (1992) prope, como contedo poltico da formao do sujeito, no a formao da conscincia de classe - na medida em que esta, no sentido marxista, para ele j no existe - mas a formao de "eus" competentes, que atuam em espaos institucionalizados do Estado de direito democrtico, onde a comunicao possibilita a sua individualizao como sujeitos membros da sociedade. [3: Ao questionar a validade e a possibilidade de alterar revolucionariamente as condies sociais capitalistas, Habermas sinaliza para o papel central que passa a ser desempenhado pelas condies de comunicao, sob as quais se pode estabelecer unia confiana legitimada nas instituies que tm como funo estabelecer uma auto-organizao racional numa sociedade de cidados livres e iguais. A ideia de transformao social no sentido do socialismo no e mais compreendida como a supresso da propriedade privada ou da emancipao da alienao do trabalho capitalista, irias como a inteno de obrigar a novas divises do poder, limitando o poder expansivo do mercado, da produo de mercadorias e do poder administrativo, para, desta forma, criar espaos para a vida cotidiana, determinada por regras inteiramente diferentes. HABERMAS, Jrgen. A revoluo e a necessidade de reviso na esquerda. O que significa o socialismo hoje? In: BLACKBURN, Robin (Org.). Depois da queda. o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.]

Habermas (1992) sugere que estruturas de reconhecimento mtuo se transportem - atravs de processos de formao de vontade e opinio radicalmente democrticos e generalizadores de interesse - para as relaes sociais intermediadas pelo dinheiro e poder, exercendo influncia sobre as limitaes e as trocas entre Mundo da Vida e o sistema tcnico-instrumental, de modo a obrigar a novas divises do poder, domesticando social e ecologicamente a economia de mercado capitalista. Essa , para o filsofo, a nova face da luta poltica: a influncia indireta, exercida pelo mundo cultural (o mundo da interao) e seus valores de solidariedade, sobre os mecanismos auto-reguladores do sistema, cuja persistncia no pode ser infringida atravs de uma ao direta.

1. AUTONOMIA E EMANCIPAO NA AO EDUCATIVA O autor central da presente fundamentao terica salienta que quanto mais a conscincia moral se orienta por valores universalistas, tanto maiores se tornam as discrepncias entre exigncias morais inquestionveis e as coeres organizatrias, que constituem obstculos s transformaes (HABERMAS, 1987b, 152). No que concerne a esta tese, em relao ao mdico e paciente, a argumentao habermasiana nos indica que a anlise dos diversos tipos de atividades, realizadas pelos professores e alunos em uma escola, enquanto instituio educacional tem como objetivo identificar elementos indicadores da existncia de aes educativas, ou seja, na instituio educacional so desenvolvidas aes cujo carter se aproxima do agir comunicativo, ou seja, do agir orientado pelo entendimento com vistas obteno do consenso. A imagem organizacional da escola, como democrtica e livre (COSTA, 1996), representa algo desejvel, mas diante da racionalidade transcendental e no crtica no consegue ultrapassar o autoritarismo ou alcanar o agir instrumental manipulador. Portanto, a escola carrega junto de si uma dupla caracterstica, ao mesmo tempo em que transformadora da realidade, medida que educa as novas geraes, para buscarem no Mundo da Vida novas formas coletivas de vivncia, de experincias e de realizaes pessoais, por outro, coercitiva, pois, enquanto instituio social, muitas vezes a escola adota uma gesto organizada e estruturada com o objetivo de ser um espao para realizao de aes estratgicas tpicas do mundo sistmico. Por isso, necessrio o trabalho da razo para interpretar essa ambivalncia e dar-lhe sentido. Sobre essa questo, dando razo ao pragmatismo, Habermas diz que:

[...] os problemas reais tm sempre algo de objetivo; somos confrontados com problemas que vm ter conosco. Estes tm por si, uma capacidade de definio da situao e envolvem, por assim dizer, o nosso esprito na sua prpria lgica. Contudo, se cada problema seguisse apenas a sua prpria lgica e esta no tivesse nada a ver com a lgica do problema seguinte, cada novo tipo de problema daria uma nova orientao ao nosso esprito. Uma razo prtica, que apenas encontrasse a sua unidade na marcha cega duma faculdade do juzo reativa deste tipo, seria sempre uma construo opaca e unicamente explicvel em termos fenomenolgicos (HABERMAS, 1987b, p. 117).

Estabelecer a relao entre o modelo terico-social, a teoria do agir comunicativo de Habermas e o espao institucional permitem compreender os aspectos da vida social e as condies em que essa se produz e se mantm, ou seja, a teoria da sociedade. Neste estudo, utilizaremos o conceito da teoria do agir comunicativo no intuito de interpretar a instituio escolar como um subsistema, colonizado pelo sistema e, como uma instituio social, gerada pelo Mundo da Vida. No desenvolvimento das aprendizagens necessrias para que, primeiro como indivduo, e depois, como grupo social, o ser humano possa atuar com um nvel maior de racionalidade, a instituio escolar tem um importante papel. A tica do discurso, segundo Habermas, apia-se em outras cincias reconstrutivas, mesmo que exclusivamente hipotticas, para as quais necessrio buscar no futuro confirmaes plausveis. Uma dessas cincias reconstrutivas a teoria do desenvolvimento da conscincia moral, de L. Koklberg. (HABERMAS, 1989). Para Habermas e de acordo com essa teoria:

[...] o desenvolvimento da capacidade de julgar moral efetua-se da infncia at a idade adulta passando pela adolescncia, segundo um modelo invariante; o ponto de referncia normativo da via evolutiva analisada empiricamente constitudo por uma moral guiada por princpios: nela a tica do discurso pode se reconhecer sem seus traos essenciais (HABERMAS, 1989a, p.143-144).

1.1 O Iderio Educacional Emancipatrio na Modernidade Tardia

Conforme GOMES (2005), existe um extremo descrdito no que se refere capacidade de emancipao, em funo das amarras da razo, da liberdade asujeitada pelo estabelecimento de regras cartesianas e acrticas, da dependncia na utilizao do maquinrio ideolgico neoliberal e voltado para o tecnicismo, evidentemente expresso pelas tendncias pedaggicas contemporneas neopragmticas e ps-modernas. [footnoteRef:4] Na viso de tais tendncias, a educao tambm fez parte dos projetos iluministas frustrados. [4: As tendncias pedaggicas neopragmticas e ps-modernas podem ser melhor compreendidas a partir de duas correntes filosficas contemporneas: o neopragmatismo, fortemente marcado pelas tendncias do positivismo, do empirismo e do prprio pragmatismo e a ps-modernidade , que se caracteriza fundamentalmente pela tese do fim das metanarrativas, a ruptura com as estruturas e pela afirmao de uma realidade contingente. O que tais tendncias apresentam em comum o descrdito em relao ao poder emancipatrio da razo, o que faz que a educao seja concebida de forma relativista e etnocntrica ( HABERMAS, 2000).]

Entretanto, para Habermas tornou-se fundamental que fosse feita a repaginao crtica dos pressupostos que compem as concepes iluministas, neopragmtica e ps-moderna, a fim de que se obtenham, dentro de condies epistemolgicas adequadas, os critrios para o enfrentamento do problema da legitimao da modernidade e das condies de reflexibilidade da racionalidade, permitindo, assim, a composio de bases de um projeto de emancipao. Ao discutir a reorganizao na modernidade, no que diz respeito famlia e escola, Gomes (2011) assinala que:

[...] As mudanas implementadas na famlia e na escola geram a instaurao de um poder sobre o sujeito que passa a ser constitudo antropologicamente. A emancipao e a autonomia passam a depender exclusivamente, como diria Kant[footnoteRef:5], da coragem do homem em utilizar a razo. No entanto, uma outra perspectiva comea a surgir no momento em que a modernidade cria um sujeito normatizado e modelado pelas ideologias que vo se tornando hegemnicas. Isso significa como entendem os tericos crticos-produtivistas, que foram atribudos escola um papel e um perfil decididamente ideolgico, ou seja, ela se torna agente da reproduo social e, em particular, da ideologia dominante, quando esta se constitui como um aparelho ideolgico do Estado[footnoteRef:6] (GOMES, 2011, p. 105). [5: Aufklrung a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. O homem o prprio culpado dessa menoridade se a causa dela no se encontra na falta de entendimento, mas na falta de deciso e coragem de servir-se de si mesmo sem a direo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento.. Cf. KANT, I Resposta Pergunta: Que Esclarecimento? in: Textos Seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes: Vozes, 1974, p. 100.] [6: Cf. ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideolgicos de estado: nota sobre os aparelhos ideolgicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.]

Habermas interpreta o processo de modernizao como um processo de racionalizao que eclode na esfera do Mundo da Vida e que libera a ao comunicativa das prescries normativas da tradio, gerando, assim, uma atitude crtica a tudo o que recebido pela vida humana. exatamente esta atitude reflexiva em relao tradio que vai emergncia de novos mecanismos gestadores de sociabilidade. Assim, no h mais normas como no passado, mas valores instrumentais, o dinheiro e o poder, que possibilitam a diferenciao e o desengate do Mundo da Vida, eticamente orientado, dos dois subsistemas, que vo constituir os pilares da sociedade moderna a economia e a administrao. Ao trazer as relaes dialgicas para o contexto atual, surgem as precrias democracias latino-americanas, que so colocadas em xeque devido s enormes desigualdades sociais e econmicas entre a populao, ao alto nvel de corrupo na classe poltica e empresarial e ao desmantelamento dos estados nacionais, entendidos como estados de bem-estar social[footnoteRef:7] que deram lugar ao imprio de vorazes poderes econmicos regulados unicamente por sua capacidade de lucro e acumulao. A sensao geral de descrena e insegurana, em relao s instituies e poltica, parece ser, por ora, uma situao sem retorno. [7: Tem-se clareza de que o estado de bem estar social no vigorou em qualquer governo brasileiro, confirmado sistematicamente por ndices de desigualdades de classes, educao, culturais, polticos e econmicos. ]

A modernidade mecanicista e racional traou os projetos educacionais em consonncia com um projeto scio-poltico. Em geral, o papel da educao se caracterizava por sua positividade na consecuo de um futuro mais humano, civilizado, racional, democrtico e ilustrado. A tarefa educacional na contemporaneidade essencial para a sociedade, seja como instncia capaz de integrar solidria e harmonicamente seus membros, seja como mecanismo privilegiado dos sujeitos na verificao crtica do presente. Nesta perspectiva, os projetos educacionais, com foco na tendncia crtica e libertadora, so os que herdaram com maior fidelidade a necessidade ntima da educao como veculo para uma sociedade transformadora.Como descreve Habermas, a filosofia contempornea no deixou de perguntar-se criticamente sobre o presente ante impossibilidade dos postulados da razo. Talvez esta mesma razo seja o que obriga os sujeitos a repensar os fundamentos dessa vinculao entre pensamentos crticos de modo mais exaustivo. O intuito de revisar quaisquer que sejam os pressupostos da pedagogia dialgica permite percorrer essa trajetria, a fim de reconstruir a dimenso tico-poltica da educao, como prope Habermas

A passagem da filosofia da conscincia para a filosofia da linguagem traz vantagens objetivas, alm de metdicas. Ela nos tira o circulo aportico onde o pensamento metafsico se choca com o antimetafsico, isto onde o idealismo contraposto ao materialismo, oferecendo ainda a possibilidade de podermos atacar um problema que insolvel em termos metafsicos: o da individualidade (HABERMAS, 1990, p.53).

Entende-se que, nessas condies, impossvel estabelecer uma ao comunicacional, pois a desigualdade presente entre o educador e o educando cria obstculos para o dilogo. Por outra parte, quando o objeto do conhecimento que medeia a relao entre docente e discente essencialmente o conhecimento cientfico, um dos dois interlocutores - o aprendente - no tem elementos para contribuir. A lgica da educao bancria (FREIRE, 2004) reduz o problema da constituio do mundo a um problema de transmisso de conhecimento cientifico legitimado. 2. CONCLUSO Sendo assim, diante da fundamentao terica e analise do pensamento habermasiano constata-se que a construo do mundo do aluno a reproduo do mundo realizado antes pelos docentes. Ambos, docentes e discentes, so mediados por um objeto que deve ser aprendido, pois esse objeto surgiu e legitimado pela razo monolgica. H um nico saber vlido e verdadeiro a elevar-se at ele, segundo as tendncias pedaggicas tradicionais, no crticas - trata-se do primeiro e mais importante propsito da educao escolarizada. Toda a tradio positivista na Amrica Latina fundou, desta maneira, sua pretenso civilizatria, estabelecendo um forte desnvel na relao baseada nas desigualdades entre colonizador e colonizado, como principio de opresso e controle. Para Habermas (1983), se a relao do conhecimento fosse colocada no Mundo da Vida, na continuidade de cada sujeito, no para permanecer nela, mas para, a partir dela, voltar criticamente ao objeto, ento a assimetria, isto , a desigualdade entre os interlocutores desaparecia, porque ambos tomam como ponto de partida um universo de vivncias crenas, valores e normas morais que constituem um Mundo da Vida compartilhado. Dever-se-ia recolocar o problema da educao, e especialmente da instituio escolar, como um espao de ao comunicacional, por meio da relao dialgica, conforme uma nova subjetividade e ao mesmo tempo geradora de uma reflexo crtica sobre a realidade, visando transform-la. Por isso, deve-se percorrer o caminho da valorizao das relaes, face a face com o espao, onde a razo do outro possa expressar-se como o espao no-colonizado, de modo que realize um encontro pessoal de proximidade, em que a dignidade do outro est na origem e constitui a prpria possibilidade de entabular uma relao argumentativa e, portanto, racional.Sendo assim, pode-se afirmar que na Amrica Latina e nas atuais circunstncias, no fcil abstrair-se da presena dos outros, dos pobres, dos marginalizados, dos oprimidos. Neste sentido, devem ser propostas aes educacionais claras que visem atenuar as diferenas sociais em contextos scio-polticos cada vez mais diferenciadores. Sabe-se que no fcil reivindicar a democratizao da educao em modelos neoconservadores, cujas consequncias so funestas para o Brasil e para a Amrica Latina.