Crise sistema educativo em Portugal

6
fogo EDUCAÇÃO Viam-se a si próprios até há pouco tem- po como uma corporação de bombeiros, que se dedicava nas escolas a apagar incêndios:os decorrentes das incongruên- cias das sucessivas políticas para a edu- cação. ¬ Agora são eles que estão de- baixo de fogo,num processo incendiário criado,acusam,para transformar a ac- tividade docente numa competição agreste e a escola numa linha de mon- tagem de alunos medíocres. ¬ Mas a escola pública, lembram, tem de poder ser mais do que uma estatística favorá- vel à imagem de Portugal na Europa. debaixo de professores TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Pedro Azevedo Paulo Guinote é o responsável pelo blog que congrega as preocupações dos professores.

description

Reportagem com testemunhos de professores portugueses sobre a crise do sistema de ensino em Portugal

Transcript of Crise sistema educativo em Portugal

Page 1: Crise sistema educativo em Portugal

fogoEDUCAÇÃO

Viam-se a si próprios até há pouco tem-po como uma corporação de bombeiros,que se dedicava nas escolas a apagarincêndios:os decorrentes das incongruên-cias das sucessivas políticas para a edu-cação.¬Agora são eles que estão de-baixo de fogo,num processo incendiáriocriado,acusam,para transformar a ac-tividade docente numa competiçãoagreste e a escola numa linha de mon-tagem de alunos medíocres.¬ Mas aescola pública,lembram,tem de poderser mais do que uma estatística favorá-vel à imagem de Portugal na Europa.

debaixo deprofessores

TEXTOSarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIAPedro Azevedo

Paulo Guinote é o responsável pelo blog que congrega as preocupações dos professores.

Page 2: Crise sistema educativo em Portugal

46»noticiasmagazine 16.MAR.2008

Andam absolutamenterevoltados com o quelhes está a acontecer ul-timamente. Queixam-

-se de que há, entre eles e o Ministério daEducação, um muro que se ergue, cada vezmais intransponível: de um lado a realidadecomplexa das escolas, do outro as urgênciasde um governo a braços com um pacote dereformas, destinado antes de mais, acusam, aresolver os problemas estatísticos que enver-gonham os portugueses na Europa. Um pa-cote que consideram excessivo, e irrealista,sobretudo porque posto em prática a meiode um ciclo lectivo, lançando o caos na gene-ralidade das escolas. Um pacote regulamen-tador que visa transformar um sistema deensino, intervindo simultaneamente em do-mínios tão diferentes como a avaliação dosprofessores, o estatuto dos alunos ou o mode-lo de gestão das escolas. Um pacote cujo últi-mo grande objectivo, dizem, é acabar com aexclusão escolar, sim, porém de maneira in-sensata. Doa a quem doer. E até mesmo aosvisados pelo benéfico pacote normativo, osalunos – sendo certo para os professores queobrigar os meninos a ir à escola não chega pa-ra acabar com os alarmantes níveis de ilitera-cia no país. Pelo meio fica por fazer o queconsideram o mais importante: a reformacurricular passível de inflectir o nível cultu-ral dos portugueses. Pedem diálogo, queremser ouvidos, ser considerados numa reformaque pretende mudar a vida nas escolas. Que-rem tempo, que os novos modelos possamser testados, que haja debate entre a classe econtribuições passíveis de tornar exequíveisas novas regras preconizadas pelo governo.

Blog mobiliza professoresNas últimas semanas, as visitas ao seu blogquadruplicaram. E a média do volume de co-mentários deixados por quem passa impres-siona. Tratou-se, de início, de uma platafor-ma criada por Paulo Guinote, 42 anos, profes-sor de Português e História do segundo ciclo,para colocar textos seus resultando da sua ac-tividade como historiador investigador econferencista, mas a verdade é que o blogEdu-cação do Meu Umbigo (http://educar.word-press.com/) passou no final de Maio de 2006(altura em que se inicia o debate sobre o Esta-tuto da Carreira Docente) a servir a causa dos

professores, com um texto eloquentementeintitulado «O Estatuto da escravidão docen-te». Diz que é «um bocadinho compulsivo aescrever», e que rapidamente passou a assi-nar cinco postspor dia. Compulsão que resul-ta também da disponibilidade mental quecriou para se manter informado e actualiza-do sobre os decretos que começaram a inun-dar de preocupação as escolas, fatalmenteperturbadas no seu dia-a-dia pela burocraciaentretanto gerada pelos ofícios do ministério.Incansável afã que tem exemplarmente ser-vido para colmatar as falhas de uma impren-sa tradicionalmente alheada das questões daeducação, área em que quase não há especia-listas, e escassa reflexão crítica.

Reacções corporativas ao rubro«Quando começaram a surgir assuntos maissensíveis, começaram a aparecer reacçõescorporativas», e cada vez mais gente a seguir

as discussões. «Quando algumas pessoas li-gadas aos movimentos que apareceram emvários pontos do país me contactaram paradivulgar as posições delas, porque conhe-ciam a audiência do blog, a coisa entrou emefeito bola-de-neve», conta Paulo Guinote.«Quando os Prós&Contraspegaram no temados professores, as visitas dispararam paranúmeros que me deixam perfeitamente es-pantado. 21 mil entradas, é muita gente...»Paulo conta que ainda assim recebeu algunsataques pessoais de anónimos, na sequênciapor exemplo da publicação de um recenteprotocolo entre o Ministério da Educação ea CONFAP [Confederação Nacional das As-sociações de Pais] e das críticas de Paulo Gui-note à falta de independência do organismoque representa os pais. «Começaram a apa-recer pessoas que questionavam a minha in-dependência, sugerindo que eu tinha umaorganização por trás, ou a dizer que se eu es-crevia assim tanto era porque não dava au-las.» Comentários rasteiros que não impe-dem que o A Educação do Meu Umbigo tenhasido em 2007 considerado o melhor blog so-bre educação.

Desacreditados e amedrontadosGuinote diz que o blogé um canal para todosaqueles que sentem que a sua voz não é ou-vida, e que se revêem no que é ali dito. Umespaço de liberdade para aqueles que habi-tualmente são vistos como funcionários

que usurpam a escola aos alunos. «Isso foiempurrando os professores para um esta-tuto que a sociedade se empenha em rebai-xar, quando por exemplo sugere que se tor-naram professores porque não consegui-ram ser advogados ou engenheiros, e aspessoas começaram a ficar ressentidas»,explica Guinote. Sobre os testemunhosanónimos que se seguem, Paulo pensa queé compreensível que não se tenham dispos-to a dar a cara, e o nome, pelas suas convic-ções. Diz que é porque desconhecem os me-canismos que podem eventualmente atin-gi-los nas suas vidas pessoais e profissionais.Uma corporação de gente que se sente afi-nal isolada, à mercê das divisões sindicaisque a criação de uma ordem porventura ini-biria. Guinote acusa o ministério de estar apressionar os professores de maneiras pou-co sérias, não os deixando falar, perseguin-do quem o faz, obrigando-os a retractar-se.«Quando se percebe que há aqui uma guer-ra, há quem não se importe de fazer partedo exército, mas não para dar a cara por to-dos os outros. Parece-me sensato. Porqueninguém tem o lugar garantido. As pessoasnão sabem o que vai acontecer quando hou-ver um novo concurso. Mas sabem que coma nova classificação há itens de relaciona-mento com a comunidade e com a comuni-

dade escolar em que esse tipo de atitudespode ser motivo de penalização.»

Farinha vem do leite e porcos do céuTalvez pareça um lugar-comum dizer-seque o nível de conhecimentos dos alunosbaixou preocupantemente. Mas a verdadeé que há meninos que com 11 anos pensamque a farinha vem do leite e os porcos docéu. Ou que não sabem fazer uma subtrac-ção sem usar a calculadora. «Se eu não mequiser chatear, dou positiva a toda a gente»,diz Paulo Guinote. Mas um professor não éisso. Antes alguém que os alunos respei-tam, precisamente pela sua exigência eperseverança. «Há uma ética profissional.Nós preocupamo-nos com aquilo que an-damos a fazer. Sim, acredito que a genera-lidade da classe tem essa consciência ética.Mas há um grau de saturação a partir doqual as pessoas cedem. Para darmos umaclassificação negativa a um aluno temos defazer três ou quatro relatórios, se tivermosseis ou sete turmas, com duzentos alunos,está a ver a papelada que é preciso produ-zir. Nós dispomo-nos a isso, mas agora, sequisermos, deixamos de fazer e então pas-sa toda a gente.» Acontece que apesar de seter baixado e muito o nível de exigência

desde meados dos anos noventa, o insuces-so escolar não baixou como se estava à es-pera. Porque os miúdos começaram a tirarpartido das fragilidades do sistema. Estadode coisas para o qual poderá contribuir ne-gativamente o novo estatuto do aluno, en-tretanto suspenso até novas ordens.

Avaliação públicaGuinote defende um sistema de avaliaçãopúblico. «Não é uma ideia muito popular»,explica, «porque remete para as provas pú-blicas de acesso à profissão durante o EstadoNovo. Mas talvez fosse uma hipótese a con-siderar. Para mudar de escalão, um professorsubmeter-se-ia, como se faz na universida-de, a uma prova pública: daria uma aula,apresentaria um pequeno relatório crítico dasua actividade, perante um júri. Em vez deestarmos de dois em dois anos a fazer trintagrelhas, ou a dar aulas para coordenadoresimpreparados avaliarem.» Guinote defendeque se teste o novo sistema, antes de o aplicarna escuridão à generalidade das escolas. E jáagora que se reveja o recém-nomeado Con-selho Científico, onde alguns nomes foramcatrapiscados num programa de televisão (oPrós&Contras), e as associações de professo-res de Português e de Matemática não estãorepresentadas.

Estatuto «A sociedade rebai-xa-nos,diz que fomos para professoresporque não conseguimos ser advogadosou engenheiros...»

Page 3: Crise sistema educativo em Portugal

48»noticiasmagazine 16.MAR.2008 49»noticiasmagazine 16.MAR.2008

Este trabalho encontrou vários obstáculos. Entre professores negando-se a dar a cara e o nome pe-la sua indignação, interesses, convicções, professores a aceitar colaborar, mas logo reconsideran-do, e voltando atrás na sua intenção, ou simplesmente indisponibilizando-se no último momento (sen-ti a pressão que os cerca diariamente nas escolas, a insegurança, o stress), ficou a sensação amargade estar em vão a pretender elucidar os leitores da nm sobre questões que, dada a conjuntura, ex-cedem em muito os âmbitos da educação.

D e que têm afinal medo os professo-res? «A minha éa geração mais palpi-tante do 25 de Abril, e este medo faz-

-nos muita impressão, embora seja genera-lizado, não é só na classe dos professores.Sinto isso na escola. Tem havido muitas mu-danças em termos legais, e os ConselhosExecutivos [CE] começaram a distanciar-sedos professores. É certo que há atitudes queeles têm de tomar que não são do agrado detodos.» Tem de poder haver, parece-lhe evi-dente, um compromisso de razoabilidadeentre os objectivos do Ministério e a realida-de das escolas. Mas admite: «A escola não es-tava bem, era preciso mudar, e nós estáva-mos muito acomodados. Uma parte da resis-tência vem daí, da oposição à mudança.»

Urgência normativa a meio de um cicloO programa de avaliação do desempenhodos professores entrou em vigor em Janei-ro, ou seja, a meio de um ciclo lectivo, lan-çando o caos nas escolas. «Sempre achá-mos a outra avaliação muito injusta, por-que bastava fazer um relatório e toda agente transitava. Mas a avaliação que foicomeçada agora acaba também por dife-

renciar pouco o trabalho dos professores.Por outro lado, a nossa profissão tornou-semuito burocrática, há uma avalancha depapéis, as escolas estão muito mais cinzen-tas e muito mais tolhidas, e o ambiente é degrande desânimo. Nunca vi as escolas as-sim tão em baixo.» Paula lamenta porexemplo que quase não haja hoje visitas deestudo, «porque estão em contra-horário»com tudo o que ultimamente lhes é pedidopela actual ministra da Educação [ME],Maria de Lurdes Rodrigues.

Avaliação dos professoresSegundo as novas regras, os professores se-rão punidos na avaliação feita pelos paresse faltarem. Mesmo que seja porque têmum filho doente ou por qualquer outra ra-zão humana. «Sim, sentimo-nos muitocondicionados. Mas sabemos que durantemuitos anos havia professores que falta-vam muito, e alguns tinham carreiras pa-ralelas. A maioria não são esses, mas lá es-tá, levamos todos pela mesma tabela. Ou-tra coisa é aquele tempo que agora somosobrigados a estar na escola, e que eu consi-dero completamente inútil, que me faz fal-ta para fazer outras coisas mais produtivas

para a escola. Penso também que a compe-tição vai aumentar, e não forçosamente pa-ra melhorar o desempenho dos professo-res. A Educação Visual [EV] é uma áreacriativa, que requer uma certa liberdade, eonde os resultados não são imediatos. Al-guém que vá assistir a duas ou três aulasminhas, poderá dizer que eu sou boa ou máprofessora? Eu não acredito nisso. Estaavaliação está condenada, porque não écom três aulas que podemos avaliar um tra-balho que dura meses e que é, ao contráriodos decretos, um processo lento.»

Massificação do ensino públicoDesde os tempos em que quem ia (e se man-tinha) à escola eram as elites cultivadas, a es-cola mudou muito. Paula não tem dúvidas deque «as classes médias com mais recursospõem os seus filhos nas escolas particulares,

porque a escola pública se transformou numdepósito de meninos cheios de problemasde toda a ordem. Muitas vezes é difícil sepa-rar o nosso papel de professores do nossopapel de psicólogos ou de amigos.» Diz quehá escolas muito complicadas, onde a per-centagem de alunos oriundos de famílias ca-renciadas (são dois milhões) é elevadíssima.«Parecem doutro país», como se de um paísdiferente do dela, diz referindo-se à ilitera-cia, à falta de horizontes, aos «meninos quesó conhecem o bairro deles», o centro co-mercial deles, que vão para as aulas de EVsem um lápis (!), «que não sabem pedir ascoisas por favor».

Escola e família de costas viradasPaula pensa que é um clássico português, enão uma coisa nova. Diz que a família e a es-cola sempre estiveram de costas viradas, e

que sempre se arremessaram responsabili-dades. Estado de coisas para o qual conside-ra que contribui o facto de as escolas não va-lorizarem os bons comportamentos. «Quemé que é chamado às escolas? São os pais dosmeninos que estão com problemas escola-res, e quase só esses. Mas quando há activi-dades dentro da escola os pais aparecem, es-sa é que é a verdade. Por outro lado, há mui-tos pais que se cansaram de ouvir falar maldos filhos, e por vezes mal deles próprios. É preciso valorizar as boas atitudes. Os pro-fessores deviam poder telefonar aos pais acontar as coisas boas. Mas a escola tem estatradição de chamar os pais pela negativa. Pa-ra os mortificar por causa dos trabalhos decasa, que maioritariamente só são feitos pe-los alunos que têm apoio em casa. É precisover que há pais que não têm capacidades in-telectuais para acompanhar os filhos nos

trabalhos de casa. Para além de todos os ou-tros, que não têm tempo. Isto dos TPC cavaainda mais a diferença entre os bons e osmaus alunos, e acumula as acusações entreos professores e os pais.»

Vocação cumpridaHá, ninguém duvida, percursos equivoca-dos, pessoas tornadas professores pelas ra-zões erradas. Não é o caso dela. «Eu gostomuito de ser professora. Toda a minha for-mação e o meu estar são os de uma professo-ra. Gosto de estar numa sala de aula, apesardos momentos desgastantes. Porque há ou-tros que são muito gratificantes, por exem-plo quando trabalhamos com miúdos com-plicados e conseguimos chegar a eles. Te-nho vivido situações relacionadas comabandono escolar, e também com disciplina,e sei que a escola pode fazer a diferença.»

Insegurançapressão,stress

PAULA Professora de Educação Visual e Tecnológica dos 2.º e 3.º ciclos (6.º, 7.º e 8.º anos)Com pouco mais de cinquenta anos, passou, aolongo de mais de 25, por dezena e meia de es-colas, algumas em Lisboa. Gosta de «saltitar» eacha que demasiado tempo passado numa es-cola é um mau princípio. Contra o pensamentodominante, defende o enriquecimento profis-sional também pela mobilidade – uma mobilida-de compatível com a vida familiar e pessoal, ouseja, que ponha os professores a circular entre

escolas vizinhas ou dentro de um raio quilomé-trico que não inviabilize o resto da vida. Na suaopinião, e apesar de as coisas estarem muitodifíceis nas escolas, os professores têm algu-mas conquistas pela frente, novos projectosescolares para erguer, passíveis de lhes devol-ver o prazer de ensinar. Mas para isso têm de irà luta, nunca deixando de fora o superior inte-resse os alunos.

MENSAGEM PARA A MINISTRA DA EDUCAÇÃO:

«Que vá passar um mês a uma escola difícil,a 2+3 dos Olivais,por exemplo,ou a 2 de Telheiras.Pode ser que a torne um bocadinho mais dialogante.»

Page 4: Crise sistema educativo em Portugal

50»noticiasmagazine 16.MAR.2008 51»noticiasmagazine 16.MAR.2008

MARIANA Assessora técnico-pedagógica do 2.º ciclo (5.º e 6.º anos)Técnica com aptidão pedagógica, trabalha porexemplo com os agora designados «percur-sos curriculares alternativos», destinados aalunos até aos 15 anos, em risco de abandonoescolar, com problemas disciplinares ou difi-culdade em acompanhar as aprendizagens. A chegar aos quarenta anos, com 15 de ensi-no, acredita que os alunos não vão este anosair prejudicados pela confusão normativa quereina nas escolas. Porque, explica perfeitamen-te positiva, «os professores têm uma natural

capacidade para se reinventarem, recomeçan-do das cinzas diariamente, encarando cadaaula como uma nova oportunidade para che-gar aos alunos.» Apesar de ser louvável o op-timismo que denota, muitos pais e observado-res temem as consequências decorrentesprecisamente do processo legal em curso, quepôs a carreira docente no centro das preocu-pações da escola, ignorando ainda as conse-quências disso ao nível do aproveitamento dosalunos.

MENSAGEM PARA A MINISTRA DA EDUCAÇÃO:

«Que exerça a profissão dela com o mesmo amor com que nós exercemos a nossa.»

Quando abordei este trabalho, penseique seria evidentemente bom que osprofessores pudessem dar a cara, e o

nome, pelo que pensam e contam. Percebidepois que essa exposição os impediria de serverdadeiros. Mariana pensa que «no contex-to actual, esse medo surge na sequência dasnotícias que têm vindo a lume em relação apessoas que se manifestaram, que deram en-trevistas e que de alguma forma se expuse-ram. Mas julgo que os professores que têmmedo são essencialmente os contratados,porque têm uma situação precária. Por outrolado, a forma como tem estado a ser imple-mentada esta política leva a que as pessoas te-nham medo. O medo surge das nossas inse-guranças e incertezas, e a verdade é que nin-guém percebe bem o que é que se pretende,para onde vamos, e porquê este caminho.»

Percursos curriculares alternativosEnquadrados nas mais recentes medidas decombate ao insucesso escolar, os currículosalternativos pretendem dar uma resposta in-dividualizada aos alunos que apresentam di-ficuldades em cumprir um percurso regular.«As turmas podem ser feitas de acordo com aavaliação psicológica e com a avaliação doconselho de turma de anos anteriores, ou se-ja, de acordo com as características dos alu-

nos. Tendo por base o currículo regular, fa-zem-se pequenas alterações, personalizadas,de acordo com um determinado grupo dealunos. Os currículos alternativos já existempelo menos desde 1995, mas destinavam-se aalunos com mais de 15 anos. Agora é ao con-trário, quando os alunos atingem os 15 anos,passam para um CEF [Curso de Educação eFormação].»

Da educação como um processoEntre as mexidas na carreira, a avaliação dosprofessores, o novo estatuto do aluno, o novomodelo de gestão das escolas, fica pouco es-paço para respirar, por forma a conseguiratingir o alcance de todas estas reformas. «Aspessoas nas escolas estão muito angustiadasporque lhes têm sido pedidas muitas coisas aomesmo tempo – num dia sai um ofício circu-lar, no dia seguinte sai outro que remete paraa autonomia das escolas, ou para uma leituraposterior, ou para uma futura aplicação da lei.Ou seja, que não revoga totalmente o primei-ro ofício...» Ou seja, que torna o dia-a-dia nasescolas uma realidade muito agreste, sempreà espera de ver o que trará no correio o dia se-guinte. «É preciso ver que na educação é tudomuito lento, e é uma ilusão pensar-se que numgoverno ou num mandato se consegue resol-ver tudo. Na educação não se vêem resultadosao fim de dois ou três anos.»

Pânico nas escolas«O que acontece com a avaliação de professo-res é que nós temos de criar os instrumentospara as grelhas de avaliação, mas ninguém temindicações, e tudo é remetido para a autono-mia. Por isso há escolas que entraram em pâ-nico, e que estão em reuniões desde Janeiro,completamente em stress, com datas insensa-tas que não eram exequíveis, porque no espa-ço físico e temporal que temos é impossível fa-zer o que foi preconizado. As pessoas sentem--se defraudadas e pouco valorizadas. Vai haverassimetrias, porque um professor que dá aulasno Colégio São João de Brito [ensino privado]não tem as mesmas condições de um professorde uma escola da rede pública. A isso o minis-

tério responde que cada escola deve criar osseus instrumentos. Mas um professor do inte-rior não tem as mesmas condições de um pro-fessor do litoral ou de um que trabalha numagrande cidade. É comparar o incomparável.»

Bons professores penalizados«Eu acho que os professores devem ser avalia-dos. Em todas as profissões há bons e mausprofissionais. É claro que no caso das profis-sões liberais há uma selecção natural que sefaz, e se a pessoa não é boa acaba por não vin-gar, até porque o mercado é muito agressivo.No caso dos professores, gostaria de pensarque quem é bom deve ser valorizado, e deve terhipóteses de progredir. Mas não é só quem é

bom no papel, e é esse o problema: quem formuito certinho, e não falhar com nenhum pa-pel no decurso da avaliação, arrisca-se a serconsiderado um melhor professor do quequem, sendo um excelente professor, não temvocação para a burocracia. Há professores quenão têm jeito nenhum com os papéis, mas quetêm uma relação fantástica com os miúdos,sendo quem efectivamente faz a diferença nu-ma escola e na vida de muitos alunos. Essesprofessores, com este sistema de avaliação,vão ser penalizados.»

Alunos assíduos penalizadosConfessando-se preocupada com o desalen-to que sente entre os colegas, Mariana pensa

que esse desalento não tem só a ver com aavaliação dos professores, mas também como Novo Estatuto do Aluno, «porque se elesperceberem que as faltas não contam, dei-xam de ir à escola, os professores perdem au-toridade, e isso transforma-se num dramapara os pais. Acontece que à medida que osalunos vão atingindo o limite de faltas a umadeterminada disciplina, terão de fazer umaprova a essa disciplina, e isso ir-se-á repetin-do vezes sem conta. Como é que os professo-res podem dar matéria se passarem os dias afazer testes? Numa semana há um que chum-ba. Na semana seguinte, há outro, e isso me-xe no quotidiano dos professores e tambémno dos alunos que não faltam.»

Medo «Surge das nossasinseguranças e incertezas,a verdade éque ninguém percebe o que se pretende,para onde vamos e porquê.»

Page 5: Crise sistema educativo em Portugal

52»noticiasmagazine 16.MAR.2008

NUNO Professor de Ciências do 3.º ciclo (7.º, 8.º e 9.º anos)Muitos são os que acusam o sistema de ensino,tal como está a ser redesenhado por este gover-no, de ter por único grande objectivo a reduçãoda taxa portuguesa do insucesso escolar. O queleva, na opinião de Nuno, 42 anos, professor deCiências, à falsa ilusão de estarmos a resgatar ageneralidade da população portuguesa à ilitera-cia. Trata-se claramente para Nuno de uma nova

perspectiva, acabada de ser inventada, e semdemoras posta em prática. Porque se tivesse si-do longamente reflectida, não estaria a provocara imparável onda de protestos. Uma perspectivapara o ensino cujo grande objectivo é não excluirninguém da escola. Com penalização para os alu-nos assíduos e interessados, tornados irrelevan-tes pela lógica das novas grelhas de inclusão.

MENSAGEM PARA A MINISTRA DA EDUCAÇÃO:

«Que se pronuncie sobre os currículos,se estão adaptados ou não.Que diga qualquer coisa sobre os conteúdos da educação.»

o nível de exigência baixou. Não podiahaver, do ponto de vista do programapúblico para a educação da nação,

pior notícia. A escola dispõe-se a recuperarpara o sistema os maus alunos, numa pers-pectiva que visa o sucesso escolar a qualquercusto. «Toda a gente vai ter o 9.º ano», diz Nu-no. «Acabou-se a vergonha de ter de assumirque se tem apenas três anos de escola. Como?Através de uma espécie de diarreia normati-va, umas coisas em cima das outras, com es-paços de tempo muito curtos. No primeiroperíodo trabalhámos no seguimento do anoanterior, fizeram-se planos de recuperaçãopara os menos bons, falou-se com os pais. Nosegundo período saiu o novo Estatuto doAluno, e a seguir começou o processo de ava-liação dos professores.»

Avaliação condenada?Marcelo Rebelo de Sousa, numa das últimasEscolhas de Marcelo [domingos, RTP 1], acu-sou o processo de avaliação dos professoresem curso de ser pouco sério, por estar inequi-vocamente a servir a campanha eleitoral já

iniciada pelo actual governo. Um processocarregado de papéis, burocracia, metas paracumprir rapidamente, professores titulares(apenas por serem mais velhos e terem maistempo de serviço) a serem obrigados a avaliaros outros (apesar da falta de formação para oefeito). «A questão central é que esses profes-sores vão supervisionar um processo de ava-liação para o qual não estão preparados. Nempedagógica nem tecnologicamente. Muitosdesses professores titulares não estão, porexemplo, aptos a usar as novas tecnologias»,diz Nuno, desgostoso. «É claro que há excep-ções, mas muitos estão neste momento aabrir a sua primeira caixa de correio electró-nico. Têm mais experiência de escola, é cer-to.» Será que isso chega para fazerem uma su-pervisão técnica e pedagógica cabal? E seráque a avaliação pelos pares é um método pos-sível em Portugal, onde a generalidade nãoenfrenta ninguém, onde a frontalidade nãofaz parte da cultura corporativa? Nuno pensaque «se calhar, em termos de avaliação de es-cola, os resultados não vão ser assim tão dife-rentes dos anteriores».

Na escola à forçaNuno é professor há mais de 15 anos. Traba-lhou em várias escolas. Gosta de ser profes-sor, de conviver com os miúdos, não teme asrealidades sociais mais complexas. «Tenho acerteza de estar muito bem a fazer este traba-lho. Mas gostava de não ter a sensação de es-tar a viver à custa da ignorância do cliente, di-gamos assim. Um professor é alguém quequer que os seus alunos saibam um dia maisdo que ele. Tenho uma vida boa, a escola nãofica demasiado longe, tenho tempo para fa-zer outras coisas, o dinheiro que ganho che-ga para comprar revistas, discos, ir a concer-tos – mas gostava que a escola fosse melhorpara os miúdos. Eles têm de andar na escola,é evidente, e a escola tem de reunir as condi-ções para que assim aconteça. Mas não dequalquer maneira. Dantes os meus alunos es-tavam na escola porque queriam ou alguémqueria que estivessem. Agora tenho alunosque não querem estar (os pais também não,aliás) mas são obrigados . Ninguém quer, ex-cepto o Estado e as comissões de protecçãode jovens em risco...»

Nuno conta que «a maioria dos alunos nãosabem pesquisar na net, compram os livrosque no supermercado estão virados em pro-moção. Não procuram, não alargam as possi-bilidades, isso dá trabalho. O nível dos meni-nos em Ciências? Não sei bem. O ensino ex-perimental, uma das bases de sustentação doensino das Ciências, está ser posto de lado.Havia uma disciplina de Técnicas de Labora-tório e de Biologia Química, que pelo menosgarantia que um miúdo chegasse à faculdadetendo já visto um microscópio. As Ciênciasocupam apenas 45 minutos duas vezes porsemana. É pouco.» Nuno diz que que «hámiúdos que vão para Ciências levados pelospais, porque as ciências têm mais saídas pro-fissionais. Mas a muitos miúdos, a escola pas-sa-lhes ao lado, têm imensas dificuldades deleitura, nenhum sentido crítico».

Escola como linha de montagemSobre as aulas de substituição, Nuno diz que«não servem para nada, a não ser para manteras salas com alunos lá dentro.» Sobre os mausprofessores, que o ministério parece quererperseguir a qualquer custo, Nuno defende quehá uma selecção natural. «Quem anda aí a ar-rastar-se não o fará durante muito mais tem-po, a escola é exigente . Os professores exce-lentes são-no em qualquer parte.» E conclui:«É preciso entender que na escola cada um éum. É preciso dar espaço a isso. Não ajuizar,acabar com juízes e rankings.Orientar as pes-soas para o melhor, e não só para o sucesso es-colar, que nos põe a dar 3 a um miúdo que me-rece 1. A avaliação não funciona assim», dizindignado com o que as novas metas revelam:desrespeito por todos, incluindo pelos pro-fessores, que se sentem, enquanto signatáriosde folhas de avaliação dos alunos, violentadosna sua consciência ética e profissional.

Page 6: Crise sistema educativo em Portugal

JÚLIO Professor de Educação Visual e Tecnológica 2.º ciclo (5.º e 6.º anos)Com sessenta mil professores no desemprego,pensa que há sempre alguém disposto a ocuparo lugar dos que actualmente se sujeitam a umprocesso de avaliação comprovadamente polé-mico. Diz que há um desinvestimento claro no en-sino, a começar na parcela que lhe é destinadano Orçamento do Estado, e a culminar no novo

Estatuto do Aluno, concebido para inverter as es-tatísticas que envergonham os portugueses naEuropa. Com pouco mais de trinta anos, 11 comoprofessor em várias escolas e cidades, diz gos-tar verdadeiramente da profissão. Embora ulti-mamente se sinta desmotivado, indagando re-correntemente sobre o sentido da sua escolha.

MENSAGEM PARA A MINISTRA DA EDUCAÇÃO:

«Que vá dar aulas e se faça substituir por um professor.»

A falta de formação dos professoresque vão avaliar os outros é uma daspreocupações de quem contesta o

processo de avaliação em curso. «Os profes-sores vão sujeitar-se a um avaliador sem for-mação para avaliar», diz Júlio. «O meu gru-po, por exemplo, é composto por EducaçãoTecnológica, Educação Visual, Artes Plásti-cas e Educação Musical. Significa que um ti-tular de uma destas áreas vai avaliar os res-tantes relativamente a questões pedagógi-cas, científicas, etc. Se a avaliação for enca-rada como é habitualmente pelos professo-res em relação aos seus alunos, é evidente-mente um processo que não é simples. Querequer tempo e, claro, formação por parte

das pessoas. Vamos em muitos casos ser ava-liados por professores cujo mérito foi terembeneficiado de uma progressão automáticana carreira», diz, indignado.

Júlio olha com consternação para o futu-ro da maioria dos seus alunos. Diz que os vê«um bocado enganados. Porque eles não têmde fazer nada para passar, e agora nem se-quer têm de ir à escola. Os comentários dosoutros alunos, dos que trabalham, revelam asgrandes injustiças. Os bons alunos sentem-se injustiçados. Porque, embora não faltem eestudem diariamente, no final vão ter osmesmos resultados dos outros que não vãoàs aulas nem estudam». Parece-lhe que o ob-jectivo desta política é a manutenção da tra-

dicional diferença de oportunidades entre asclasses. «Quem era excluído vai continuar asê-lo. Porque o avô já era analfabeto e bêbe-do, a mãe também, e o miúdo sê-lo-á tam-bém. É preciso ver que são aos milhares aspessoas que em Portugal não conseguem sergentis, não sabem ser amáveis, polidas, nãoconseguem falar baixo, cospem para o chão.O futuro para eles vai ser o rendimento míni-mo. No caso das raparigas, o futuro será en-gravidar, porque isso as faz crescer social-mente no seu bairro, dá-lhes um outro esta-tuto, e os incentivos à natalidade.»

Pensamento divergente sem lugarSobre as virtudes da educação pelas artes, Jú-lio diz que «num bairro social é das poucascoisas que interessam os alunos, porque elestêm essencialmente dois grandes interessesna escola: o desporto e a tecnologia. Infeliz-mente, como se tem visto, o ensino artísticonão interessa este governo. O horário da com-ponente artística foi substancialmente redu-zido nos 7.º, 8.º e 9.º anos. Antigamente, osmiúdos tinham dois blocos de noventa minu-tos por semana, agora têm dois blocos de 45.Entre os meus alunos a proporção que che-gará por exemplo a uma faculdade de Belas-Artes? Um em vinte. Quando a carga horáriaera o dobro, tinha mais alunos interessadosno ensino tecnológico e artístico. E esse ensi-no, há uns anos, era melhor – mais incisivo,mais específico, menos generalista, feito comcoisas concretas, madeira, metais, têxteis, erauma coisa mais próxima da matéria, com au-las práticas. Hoje em dia as coisas são maisteóricas e ensinadas por alto. É pena, as artesajudam a criar um pensamento por um ladoestético e, por outro, divergente, que foge doestereótipo». Júlio conta que se pedir aos seusalunos para desenharem um pássaro, eles fa-zem todos o mesmo pássaro. «As coisas co-meçam muito cedo a formatar-se. Os traba-lhos de turmas diferentes aparecem todosiguais, eles nem sequer se preocupam em seroriginais. Para quê?»

Ranking não mentePara o professor de Educação Visual e Tecno-lógica, o esforço de tentar ser original é ingló-rio. Porque a generalidade dos alunos das es-colas públicas «não tem quaisquer hipóteses.Se olharmos para o rankingvemos que as posi-ções cimeiras são sempre ocupadas pelos co-légios privados, o São João de Brito, as Doro-teias, Santa Cecília, os Salesianos. E porquê?Porque nessas escolas pratica-se o ensino deantigamente, anda tudo na linha, toda a genteé obrigada a estudar, ninguém falta às aulas, eos miúdos saem de lá a saber – e são depois osprimeiros a entrar nas universidades, e maistarde a ocupar os cargos de topo. Perante isto,o que faz a escola pública? Nada. Há tanta tec-nologia, tanto choque tecnológico, mas ain-da não há internet wireless nas escolas. Às ve-zes nem sequer há um computador».«