CRISTOLOGIA: UM CAMINHO PARA A PAZ

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CONGRESSO ESTADUAL DE TEOLOGIA, 1., 2013, São Leopoldo. Anais do Congresso Estadual de Teologia. São Leopoldo: EST, v. 1, 2013. | p.099-109 CRISTOLOGIA: UM CAMINHO PARA A PAZ 1 Érico João Hammes 2 Mateus Boldori 3 “Um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém” (Charlie Brown Jr). RESUMO: Tratar de Cristologia significa abordar um tema que, além de extremamente importante para o “quefazer” teológico no âmbito da Teologia sistemática, abrange uma discussão bastante acalorada entre as diferentes vertentes teológicas a gestar cristologias com locus próprios. Esta é uma realidade indubitavelmente candente no cenário teológico contemporâneo. A cristologia é um tema nunca fechado. O texto não visa debater especificamente o tema das novas cristologias. O artigo não se propõe a ser um estudo cristológico pormenorizado. Com efeito, por outro lado, assumindo uma perspectiva cristológica, ele visa refletir acerca da importância de uma reflexão cristológica no que concerne à problemática da paz nos dias atuais. Para tal finalidade, dividiu-se o escrito em duas partes fundamentalmente, a saber: Qual a relevância de se tratar acerca de cristologia na atualidade? Alguns aspectos da cristologia e a questão da paz. PLAVRAS-CHAVE: Teologia. Cristologia. Paz. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ouvia-se, num Congresso de Teologia, certo jovem relatar a sua experiência de trabalho com presidiários enquanto agente da Pastoral Carcerária. A comunicação proferida pelo jovem agente de pastoral era intitulada “O Deus encarcerado”. Ao se pensar no título da apresentação, há algo nele que ressoa bastante forte. A partir dele, podem surgir questionamentos, tais como: é possível identificar Deus com alguém que foi considerado imoral pela sociedade e por isso deve pagar uma pena? Como pensar um Deus que se atreve permanecer entre aqueles que são excluídos da sociedade? Como pensar um Deus que repudia o erro, mas que por puro amor se junta àquele que erra? Como pensar um Deus que 1 O texto é fruto parcial de uma bolsa de iniciação científica financiada pela Fundação de amparo à pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). 2 Doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália). Professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 3 Estudante de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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    CRISTOLOGIA: UM CAMINHO PARA A PAZ1

    rico Joo Hammes2

    Mateus Boldori3

    Um homem quando est em paz no quer guerra com ningum (Charlie Brown Jr).

    RESUMO:

    Tratar de Cristologia significa abordar um tema que, alm de extremamente importante para o quefazer teolgico no mbito da Teologia sistemtica, abrange uma discusso bastante acalorada entre as diferentes vertentes teolgicas a gestar cristologias com locus prprios. Esta uma realidade indubitavelmente candente no cenrio teolgico contemporneo. A cristologia um tema nunca fechado. O texto no visa debater especificamente o tema das novas cristologias. O artigo no se prope a ser um estudo cristolgico pormenorizado. Com efeito, por outro lado, assumindo uma perspectiva cristolgica, ele visa refletir acerca da importncia de uma reflexo cristolgica no que concerne problemtica da paz nos dias atuais. Para tal finalidade, dividiu-se o escrito em duas partes fundamentalmente, a saber: Qual a relevncia de se tratar acerca de cristologia na atualidade? Alguns aspectos da cristologia e a questo da paz. PLAVRAS-CHAVE: Teologia. Cristologia. Paz.

    CONSIDERAES INICIAIS Ouvia-se, num Congresso de Teologia, certo jovem relatar a sua experincia

    de trabalho com presidirios enquanto agente da Pastoral Carcerria. A

    comunicao proferida pelo jovem agente de pastoral era intitulada O Deus

    encarcerado. Ao se pensar no ttulo da apresentao, h algo nele que ressoa

    bastante forte. A partir dele, podem surgir questionamentos, tais como: possvel

    identificar Deus com algum que foi considerado imoral pela sociedade e por isso

    deve pagar uma pena? Como pensar um Deus que se atreve permanecer entre

    aqueles que so excludos da sociedade? Como pensar um Deus que repudia o

    erro, mas que por puro amor se junta quele que erra? Como pensar um Deus que

    1 O texto fruto parcial de uma bolsa de iniciao cientfica financiada pela Fundao de amparo

    pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). 2 Doutor em Teologia Sistemtica pela Pontifcia Universidade Gregoriana (Itlia). Professor titular

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. 3 Estudante de Teologia na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

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    tambm desafiado pelos sofrimentos de cada tempo? Concluiu-se, a partir da fala

    do jovem, que o Cristo que habita no presdio um Deus comprometido com a dor e

    o sofrimento que paira no conjunto da sociedade.

    Diante da afirmao prvia de que Cristo se compromete com as alegrias e as

    tristezas do povo que sofre e geme de variadas formas, e de que ele se faz presente

    na realidade dolorosa das massas populares seja como personagem viva a nvel

    fundamentalmente histrico ou ainda como homem que d razo f das pessoas,

    h algumas implicaes a nvel cristolgico a serem feitas. Apontam-se aqui trs

    aspectos: em primeiro lugar, no se pode pensar uma imagem abstrata de Cristo;

    em segundo lugar, a reflexo produzida no pode ter a pretenso de ser absoluta;

    em terceiro lugar, o trabalho cristolgico deve produzir um extrato tico-social4.

    Deve-se observar, ainda, que a Cristologia, em linhas gerais, visa oferecer

    uma resposta orgnica e coerente sublime pergunta quem Jesus? Nesse

    sentido, a proposta de uma reflexo cristolgica significa, sobretudo, configurar uma

    forma de pensar desde a perspectiva do homem Jesus de Nazar que, sendo o

    Cristo, assume suprema importncia do ponto de vista da f crist. Aqui, porm,

    desponta uma questo essencial: Qual a relevncia de tratar de Jesus Cristo diante

    do pensamento contemporneo? O que esta reflexo teria a dizer para o tema da

    paz? No texto que se segue tenta-se primeiramente tecer algumas breves

    consideraes em torno destas indagaes apontando para a questo da

    hermenutica teolgica e da narrativa de Deus na contemporaneidade.

    Posteriormente, quer-se tratar de alguns breves desdobramentos para uma

    cristologia que possa contribuir para a paz.

    A TEOLOGIA COMO HERMENUTICA

    Uma investigao cientfica visa fundamentalmente cumprir a tarefa de

    produzir algo de relevante para a realidade. Desse modo, ela quer oferecer-lhe um

    caminho plausvel face a uma problema que se apresenta. Para a Teologia, como

    no poderia ser diferente, tal mxima cientfica tambm se impe. Com o intuito de

    4 Segundo Sobrino: (...) responsabilidade da cristologia apresentar seu verdadeiro rosto para que

    seja bem usado, para que J esus Cristo esteja a servio do mysterium leiberationis e contra o mysterium iniquitatis (SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador, p.16).

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    obter um lugar aprecivel, embora seja este de carter provisrio, ela necessita

    gradativamente conquistar o seu lugar ao sol no universo macro do conhecimento

    cientfico. Este espao a ser conquistado, porm, no definitivo. Pelo contrrio, h

    uma constante necessidade de reviso e de esforo da parte dos telogos na

    construo de um conhecimento que, sendo coerente com o que se prope, aposte

    no dilogo em seu processo de busca, a fim de no se tornar obsoleto.

    A realidade deve ser intrigante Teologia. Vive-se um tempo de constantes

    crises de carter tico, cultural e econmico, que apontam para uma grande crise

    civilizacional. Esta crise civilizacional interpela as cincias em geral, uma vez que, de

    um lado, fruto de certo progresso tcnico-cientfico e, de outro, condiciona este

    pseudo-progresso que, por sua vez, instrumentaliza o saber em funo dos

    grandes interesses daqueles que detm o poder. Na verdade, verifica-se uma

    relao bastante estreita entre conhecimento e interesse5 que acaba por gestar uma

    lgica de excluso que fere o progresso civilizatrio.

    A crise que se vive acompanhada pela necessidade de nova forma de

    conceber o conhecimento6. Sabe-se, nessa perspectiva, que no se pode mais

    compreender a formao como um trabalho fechado no qual prepondera uma mera

    transmisso e reproduo de informaes. Fica claro nesse momento da histria a

    falibilidade das teorias e a necessidade contnua de ressignificao das mesmas.

    Verdades dadas a priori no so mais facilmente aceitas. Este novo caminho que

    se apresenta, antes de tudo, quer valorizar o protagonismo e a conscincia crtica

    das pessoas.

    Nessa perspectiva, faz-se importante para o pensamento teolgico

    estabelecer propostas de reflexo que cheguem ao contexto social no qual ele

    irreversivelmente se insere. Cabe tambm a ele, tomar em considerao o

    protagonismo das pessoas. H que se dizer que existe um caminho hermenutico

    de produo de conhecimento a ser percorrido por aquele que produz Teologia. Este

    caminho, importante ressaltar, contempla mtodos e perspectivas prprias, no

    sendo, porm, um fim em si mesmo. Aqui, diante da radicalidade com que se

    5 O filsofo alemo Jrgen Habermas mostra esta relao em seu livro Conhecimento e Interesse.

    6 Habermas apresenta quatro grandes motivos que delineiam um rompimento com a tradio e

    caracterizam o pensamento do sculo XX e que so novos instrumentos de representao e de anlise que se empresta semntica fregeana e lgica ps-aristotlica, desenvolvida no sculo XIX. So assim descritos: pensamento ps-metafsico, guinada lingustica, modo de situar a razo e inverso do primado da teoria frente prtica, ou seja, superao do logocentrismo (Cf. HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico, pp. 37-61).

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    apresenta esse novo panorama, imediatamente pode-se pensar na importncia da

    hermenutica para a Teologia.

    Est claro que no se pode produzir uma cincia teolgica que conduza a

    uma espcie de defensiva em relao ao dinamismo progressivo que gestado pela

    liberdade e pela autonomia humana. Nesse sentido, a reflexo teolgica necessita

    ser sincera e no apontar para subterfgios da condio que acompanha a realidade

    humana. Essa situao representa uma mudana de paradigma para a Teologia.

    Claude Geffr, observando esta reviravolta, apresenta a passagem

    paradigmtica da Teologia dogmtica para a Teologia hermutica7. Segundo ele, tal

    passagem postula algumas implicaes Teologia da Revelao. Ele v

    fundamentalmente trs razes para a necessidade da hermenutica. So eles: 1)

    Tanto o Dogma quanto a Escritura so testemunhos parciais da plenitude do

    Evangelho; 2) A revelao evoca a ao de Deus na histria e a experincia de f

    do Povo de Deus, que se efetiva na demonstrao interpretativa dessa ao; 3) A f,

    no mbito cognitivo, conhecimento interpretativo a partir das condies histricas

    de uma poca e a Teologia, nesse sentido, interpretao atualizante do contedo

    da f.

    A partir destas breves consideraes, Geffr acredita que a Teologia como

    hermenutica possibilita tomar com seriedade a historicidade da verdade revelada e

    a historicidade do homem como sujeito capaz de interpretar. Segundo ele, a reflexo

    mais clara acerca da revelao nos conduz compreenso da Teologia como

    atividade hermenutica, ao menos na medida em que ela interpretao do

    significado atual do evento Cristo desde as mais variadas linguagens da f

    suscitadas por Ele, ainda que nenhuma delas venha a se tornar absolutas.

    Enfim, a hermenutica no mbito da Teologia possibilita a anlise da f em

    seu contexto histrico. O trabalho hermenutico possibilita reconhecer a estrutura

    pr-conceitual de toda a compreenso na medida em que admite o aspecto da

    historicidade como condio de possibilidade da prpria compreenso8. A prpria

    Teologia, nessa perspectiva, caracteriza-se como uma hermenutica da f9. A

    hermenutica , fundamentalmente, a arte de interpretao da qual o telogo no

    7 Cf. GEFFR, Claude. Como fazer Teologia hoje, pp. 17-18.

    8 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Reviravolta Lingustico-Pragmtica na Filosofia

    Contempornea, p. 227. 9 Cf. LIBANIO, Joo Batista. MURAD, Afonso. Introduo Teologia, p. 336.

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    pode prescindir. A tarefa hermenutica inesgotvel. A Teologia necessita estar

    dcil realidade. Nesse sentido, a problemtica da paz d o que pensar. Refletir

    sobre o tema da paz parece ser algo imediato e necessrio tambm Teologia,

    dada a violncia que assola as pessoas e a gravidade que a questo impe.

    Entende-se que uma reflexo cristolgica poder oferecer algumas contribuies

    para a reflexo em torno da necessidade de uma cultura de paz. Antes disso, porm,

    vlido tratar acerca da questo da narrativa de Deus.

    RELEVNCIA DA CRISTOLOGIA: A QUESTO DA NARRATIVA DE DEUS

    O enunciado aponta para um impasse entre possibilidade/impossibilidade da

    narrativa de Deus. Ele remete a uma situao de carter sociocultural que, do ponto

    de vista do fazer cristolgico, sugere uma reflexo cada vez mais aprimorada acerca

    da narrativa de Deus. O cenrio atual de constantes mudanas, de liquidez, de

    buscas, remonta ao conceito hegeliano de Modernidade. Hegel compreende a

    modernidade como uma grande novidade. Trata-se dos novos tempos, de um

    mundo novo, do nosso tempo, diferente do velho por abrir-se ao futuro. Essa noo

    evidente no Prefcio Fenomenologia do Esprito:

    Alis, no difcil perceber que nosso tempo um tempo de nascimento e trnsito para uma nova poca. O esprito rompeu com o mundo de seu ser-a e de seu representar, que at hoje durou; est a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega tarefa de sua transformao. Certamente, o esprito nunca est em repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente.

    10

    Porm, uma nova situao se impe diante dessa proposta moderna. De um

    lado, no h dvidas de que questes que mobilizaram o advento da modernidade,

    tais como autonomia e liberdade, mantm pertinncia na atualidade. Porm, de

    outro lado, verifica-se uma mutao no paradigma moderno que postula uma

    perspectiva distinta s reivindicaes modernas. A liberdade, por exemplo, deixa de

    ter um carter coletivo (normativo) para se tornar mais individual e imediata. A

    autonomia, tambm recebe um carter cada vez menos ligado ao dever, como

    10

    HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Esprito, 11.

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    outrora demonstrou Kant. Aqui, a modernidade acusada de ter gerado uma

    racionalidade absolutizante.

    A avaliao crtica da modernidade11 faz surgir uma espcie de rebelio de

    vtimas que no couberam nos grande relatos e uma valorizao do fragmento, do

    fludo, do descontnuo, do lquido, da interrupo12. Desse modo, a subjetividade

    deixa de ser configurada a uma razo universal para se tornar uma subjetividade do

    desejo13. O tempo atual um tempo de adeus s certezas. O determinismo

    substitudo pelo indeterminismo, as probabilidades passam a depor as leis fixas.

    Muda, portanto, o paradigma cientfico da representao fiel. Os estudos geram

    cada vez mais dvidas do que certezas.

    O desencanto14 ps-moderno aponta uma ressignificao da narrativa de

    Deus. Nietzsche trouxe tona o aspecto do niilismo. Como compreender a questo

    da morte de Deus. Como compreender esta questo? Poder-se-ia associar o

    conceito de secularizao ao conceito de niilismo? E, ento, como devem se

    organizar as coisas desde a morte de Deus? Vattimo oferece uma pista:

    somente com a morte do Deus metafsico, guardio das leis da natureza, fiador da matemtica (e dos comrcios que tambm se fazem base do clculo), que podemos nos transformar em religiosos, abrir um dilogo com Deus seja l o que ele for, alm da pura aceitao admirada da ordem do mundo. Deus a desordem do mundo, aquele que nos chama a no

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    Segundo Marilena Chau: Poder-se-ia imaginar o ps-modernismo como uma nova expresso cultural para alm do modernismo. Isso seria verdade se as condies objetivas tivessem desaparecido. Mas essas condies objetivas so as condies objetivas do sistema capitalista, que est aqui. E a minha tendncia no tem originalidade nenhuma, uma tendncia que eu compartilho com outros autores, de considerar que o ps-modernismo uma variante desencantada do modernismo e que exprime a crise atual do capitalismo. Ento, eu no vejo uma originalidade no ps-modernismo. uma posio reativa. O que ele prope a negao imediata e simples de categorias, normas e valores que foram defendidos pelo modernismo (disponvel em http: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=4176).

    12 Cadernos de Teologia Pblica. (Im)possibilidades de narrar Deus hoje: uma reflexo a partir da

    Teologia atual, p. 14. 13

    Hoje a iluso do poder no se d tanto na esfera poltica, mas sim na do mercado. A hegemonia neoliberal no mundo consolidou o mercado como fundamento e o centro das nossas sociedades. E a busca da riqueza passou a ser o mais importante objetivo na vida da maioria das pessoas, particularmente as integradas no mercado. A mercadoria tornou-se o objeto de desejo (SUNG, Jung Mo. Desejo, mercado e religio, p. 10).

    14 Max Weber em seu livro A tica protestante e o esprito do capitalismo considerou uma relao

    interna entre Modernidade e racionalismo ocidental. Observou que fora da Europa os desenvolvimentos cientfico, artstico, econmico e poltico no seguem o mesmo paradigma racional caracterstico do ocidente. Ele descreveu o racional como um movimento de desencantamento para com imagens religiosas criando-se uma cultura profana e o desenvolvimento das sociedades modernas. Na medida em que houve uma racionalizao da cultura, houve tambm uma dissoluo das formas de vida tradicionais. Cultura e sociedade se organizaram a partir da empresa capitalista e do aparelho burocrtico do Estado. A esse processo Weber denominou institucionalizao de uma ao econmica e administrativa racional com respeito a fins.

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    considerar como definitivo nada disso que j est aqui. Deus projeto, e ns o encontramos quando temos fora para projetar

    15.

    A partir da observao desse panorama, poder-se-ia tentar apontar alguns

    elementos cristolgicos guisa de apontar algumas consideraes prticas para a

    paz.

    CRISTOLOGIA E PAZ: BREVES CONSIDERAES

    Como falar de Deus depois de Auschwitz? Como falar de Deus dentro de

    Auschwitz? Estas duas interrogaes de Dom Pedro Casaldliga, somadas a de

    Bento XVI16 - Onde estava Deus naqueles dias? - em sua visita aos campos de

    concentrao de Auschwitz na Polnia, situam-se na base de uma interrogao

    bastante pertinente, e de carter cristolgico, acerca da onipotncia de Deus e da

    permisso do mal aqui concretizado pela guerra. Poder-se-ia, ainda, remeter ao

    clebre questionamento do filsofo Epicuro: Seria Deus desejoso de prevenir o mal,

    mas incapaz? Portanto no onipotente. Seria ele capaz, mas sem desejo? Ento

    malvolo. Seria ele tanto capaz quanto desejoso? Ento por que h o mal?.

    O silncio de Deus d o que pensar. Segundo Forte, a contradio do homem

    secular encontra-se no fato de que o homem secular com Deus e na presena de

    Deus, vive sem Deus exatamente por ser adulto17. Desse modo, a situao do

    homem diante de Deus parece ser a de se arranjar sem Deus. O Deus que est com

    o ser humano o mesmo Deus a o abandonar prpria sorte. A relao Deus/

    mundo d-se numa dialtica de ausncia e de presena. Como, porm, entender

    essa presena de Deus?

    O homem adulto, com as experincias traumticas do holocausto nazista e

    das bombas de Hiroshima e Nagasaki, deparou-se com a dor das consequncias da

    guerra em escala antes desconhecidas. Associam-se s dores, sofrimentos e perdas

    da guerra, a sensao de diluio do horizonte da confiana e da esperana na

    15

    Disponvel em http:// http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao128.pdf 16

    Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silncio aterrorizado, um silncio que um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? (...) Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pde tolerar este excesso de destruio, este triunfo do mal? Vm nossa mente as palavras do Salmo 44, a lamentao de Israel que sofre: ...Desperta, Senhor, por que dormes?... Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa misria e tribulao? (BENTO XVI).

    17 Cf. FORTE, Bruno. Histria de Deus e Deus da Histria, p. 12.

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    humanidade como tal. Soma-se a isso, o sofrimento de ver um horizonte sombrio

    sua frente. Como consequncia, o ser humano se debrua, ento, sobre a urgncia

    de redefinio dos prprios padres de relao e de valores na busca de uma

    convivncia pacfica para alm de todo e qualquer particularismo tico. Diante de

    uma dialtica do Esclarecimento ele redescobre a presena de Deus que no seu

    concorrente, mas que est ao seu lado e compartilha de sua dor e de seu

    sofrimento.

    Olhar para a pessoa de Jesus Cristo - observar seus atos, sua forma de

    conduzir a vida, o cuidado para com o prximo por si s j contempla um

    caminho de paz e de acolhimento ao ser humano. Certamente a paz est no centro

    da pregao de Jesus. Desta afirmao deriva que, ao se revelar no plano de amor

    do Pai, esse plano inclui a paz como promessa e dom humanidade. Com efeito,

    ao assumir nossa humanidade, o Filho de Deus no escapa s vicissitudes da

    histria dos homens, e sua vida se articula com a de seu povo.

    Nessa perspectiva, para uma sociedade que deseja a liberdade e a paz, mas

    acaba por optar pela violncia, Ele anuncia e proclama o Deus do Amor e da Paz,

    revelando, assim, a verdadeira face do Pai, ponto de partida e fundamento para o

    homem superar o erro e a violncia que, muitas vezes, tm marcado as relaes

    humanas. Para superar a violncia dos homens, da qual o prprio Jesus foi vtima,

    a lgica utilizada sempre a do amor abnegado e incondicional. Por puro amor,

    num ato de abnegao, o Pai envia seu Filho que, por sua vez, tambm por amor,

    entrega-se nas mos dos homens para ser conduzido morte. A essa

    incompreenso humana, que o conduz paixo e cruz, Jesus responde com seu

    amor, e nessa dinmica de amor que Ele conquista a paz para a humanidade,

    vencendo assim a violncia e o pecado. Em Cristo temos a manifestao plena do

    amor do Pai, o Deus de amor e de paz (2Cor 13,11).

    O amor de Cristo parece abrir veredas e conferir um caminho da paz para a

    humanidade. O amor de Cristo toma ares de radicalidade em sua entrega na cruz.

    A cruz expressa um sofrimento com o qual as pessoas passam a identificar-se. O

    Cristo sofrido e aniquilado produz um sentimento recproco. Porm, o Cristo que se

    entrega na cruz no pode produzir somente um sentimento de identificao, tal

    sentimento poderia inclusive conferir certo carter inevitvel violncia. Por outro

    lado, a f no Cristo ressuscitado deve produzir uma grande capacidade de

    resignao e busca por paz.

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    A paz, compreendida com a ausncia de violncia, mas tambm como um

    estado pessoal de equilbrio interior, designa tambm a capacidade de resignao

    numa relao frontal com a verdade que se impe de um ponto de vista espiritual

    que vai tambm para o poltico. Aqui, a no violncia tambm uma convico que

    carrega dentro de si a possibilidade de subverso em situaes difceis e irradia

    uma fora motriz capaz de dobrar, sacudir e arrastar o que no correto.

    Diante disso, parece ser uma tarefa essencial cristologia, diante da

    realidade de violncia, apresentar um Deus amoroso e ntegro. No amor18

    encontra-se um dos sentimentos mais propcios para fundamentar um extrato

    prtico da resoluo no violenta de conflitos. O amor possibilita o reconhecimento

    da alteridade. Reconhecer a alteridade num processo dialgico , antes de tudo,

    um ato tico. A paz s pode mesmo ser justificada no horizonte da justia e da

    tica como demonstra Alfaro: O amor cristo implica e radicaliza as exigncias de

    justia, dando-lhes uma nova motivao e uma fora interior19. Nesse sentido, as

    relaes humanas pautadas no amor so relaes com fora e estabilidade

    capazes de engendrar o respeito subjetividade e histria do outro. Em resumo, o

    amor raiz tica que constrange a violncia quando esta se situa no horizonte do

    desrespeito.

    CONSIDERAES FINAIS

    A cristologia, enquanto discurso sobre Jesus, convoca a no permanecer

    esttico. Ela radical do ponto de vista da prxis crist. No se pode pensar,

    contudo, que o discurso cristolgico atender a todas as demandas sociais que se

    situam na rbita da questo da paz. Inclusive, nesse sentido, deve-se admitir que

    relacionar um olhar pessoa de Jesus Cristo como centro irradiador para uma

    cultura de paz no produz um discurso que englobe a todos. Aqui, h que se

    buscar sempre um discurso que no deixe de lado o dado da mudana constante

    de paradigmas e a situao da contemporaneidade.

    18

    Martin Heidegger, em Ser e Tempo, aponta para a categoria se-no-mundo como um existencial, isto , como uma experincia fundante que constituinte de ser humano e no mero acidente. Desse modo, a estruturao axial da existncia gira em torno da afetividade, do cuidado, do eros, da paixo, da com-paixo, do desejo, da ternura, da simpatia e do amor. Esse sentimento elementar no apenas moo da psique, alm disso, uma qualidade existencial, uma forma de ser essencial, a estruturao ntica do ser humano.

    19 ALFARO, Juan. Teologia da Justia, p. 42.

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    Pode-se dizer que a Teologia deve ser hermenutica e, nesse sentido,

    tambm crtica em relao a si prpria e em relao ao contexto no qual se insere.

    Incluindo-se no paradigma racional de cada tempo, a Teologia no pode contentar-

    se com sentenas no questionadas e determinantes. Da mesma forma que os

    demais mbitos do conhecimento, o conhecimento teolgico precisa estar atento

    aos sinais dos tempos. A Teologia precisa dar sentido aos seus estatutos de forma

    dialgica, integrada e aberta. Somente desse modo poder fundamentar um

    verdadeiro agir cristo que esteja ancorado no amor ao prximo e propiciar uma

    sabedoria capaz de gerir paz.

    A paz, alis, uma aspirao de todos no contexto atual. Ela vai alm de

    grandes slogans ou belas falas. No h quem no se sinta ferido com a violncia

    que, de mltiplas formas, extermina a vida. Clama-se por iniciativas pessoais e

    pblicas que possam atender necessidade vital de mais paz nas relaes. No

    mbito da cristologia isto no diferente. Importante , para a cristologia, nesse

    contexto, o discernimento de sua especificidade e a abertura de maneira dialgica

    ao diferente, seja l qual for seu credo ou no, e produzir um olhar de paz desde a

    pessoa Jesus Cristo e da sua vida.

    REFERNCIAS

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