Crítica à Razão Dualista - O Ornitorrinco

143
CRÍTICA À RAZÃO DUALISTA O ORNITORRINCO

Transcript of Crítica à Razão Dualista - O Ornitorrinco

  • CRTICA RAZO DUALISTA

    O ORNITORRINCO

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:303

  • NOTA DA EDIO ELETRNICA

    Para aprimorar a experincia da leitura digital, optamos por extrair desta verso ele-trnica as pginas em branco que intercalavam os captulos, ndices etc. na verso impressa do livro. Por este motivo, possvel que o leitor perceba saltos na numerao das pginas. O contedo original do livro se mantm integralmente reproduzido.

  • CRTICA RAZO DUALISTA

    O ORNITORRINCO

    Francisco de Oliveira

    E D I T O R I A L

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:305

    PrefcioRoberto Schwarz

  • Sobre O AUTOR

    Francisco de Oliveira, um dos mais importantes socilogos brasileiros, professor titular de sociologia da Universidade de So Paulo, diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP e autor de vasta obra, em que se destacam: Os direitos do an-tivalor, Elegia para uma re(li)gio e A navegao venturosa: ensaios sobre Celso Furtado, este ltimo tambm pela Boitempo.

  • Sobre CRTICA RAZO DUALISTA/ O ORNITORRINCO

    O ESTILO SECO COMO O AGRESTE pernambucano. O ttulo uma refern-cia quase pardia a outro clssico das cincias sociais. Este Crtica razo dualista surgiu em 1972 e teve o impacto de uma bordoada nos meios acadmicos, nos tene-brosos anos do governo Mdici. Francisco de Oliveira ou Chico, como conhecido no viera para contemporizar nos rarefeitos debates de ento. Ao identificar o sub-desenvolvimento como produto da evoluo capitalista, mudou a maneira de pensar a economia brasileira num tempo em que as teorias do emparelhamento gozavam de grande prestgio. Denunciava-se, quela altura, a misria em que vivia (ainda vive) a maior parte da populao da Amrica Latina, mas o arsenal terico da intelectu-alidade progressista se mantinha amarrado a um tipo de pensamento que procurava explicar a luta contra o subdesenvolvimento como se o pas fosse um duplo, moderno e arcaico, e via os extremos de opulncia e misria como mundos estanques. Essa dualidade, segundo Chico, reconciliava o suposto rigor cientfico das anlises com a conscincia moral de seus autores, levando a proposies que desconsideravam o pro-cesso de acumulao interno, que para se viabilizar concentrou renda e propriedade em escala assombrosa. Publicado primeiramente como um ensaio com o ttulo A economia brasileira: crtica razo dualista , este clssico da reflexo sobre o Brasil foi transformado em livro em 1973, e agora, trs dcadas depois, reeditado pela Boitempo. instigante e polmico, como de resto toda a obra de Chico de Oliveira, que mantm uma busca permanente pela interseco entre a poltica, a economia e a sociedade brasileira e seus conflitos, pois se o subdesenvolvimento, como teoria, deixou de existir, perpetuam-se suas calamidades.Coerente com essa busca ele promoveu a atualizao de sua Crtica, escrevendo o ensaio aqui includo, batizado de O ornitorrinco, que a mais perfeita traduo do Brasil de hoje, sob o signo de Darwin: uma combinao esdrxula de setores altamente desenvolvidos, um setor financeiro macroceflico, mas com ps de barro. Uma figura magra, esqueltica, sustentando uma cabea enorme, que o sistema financeiro, mas com pernas esqulidas e anmicas, que so a desigualdade social e a pobreza extrema. Esse ornitorrinco no como o subdesenvolvimento, que surgiu de uma singularidade histrica, quando o capitalismo mercantil alcanou a Amrica, destruindo as civilizaes pr-colombianas e criando outras sociedades, chamadas subdesenvolvidas porque no eram um elo na cadeia do desenvolvimento mas uma coisa criada pelo encontro do capitalismo com outras sociedades. Esse bicho, que no isso nem aquilo um animal improvvel na escala da evoluo , foi a forma encontrada por Chico para qualificar a espcie de capitalismo que se gerou no pas e que no d mostras de mudana no momento mesmo em que o Partido dos Traba-lhadores chega Presidncia da Repblica. Somado aos dois ensaios do autor neste volume encontramos o magnfico Prefcio com perguntas, de Roberto Schwarz. Mais que uma bela e original anlise da obra de Chico, esse prefcio um chamado a que pensemos o mundo alm do estreito pragmatismo corrente. O que o leitor tem em mos uma contribuio e uma provocao inestimvel nestes tempos que continuam obscuros e deveriam desvelar uma aurora.

  • Copyright 2003, Francisco de OliveiraCopyright desta edio 2003, Boitempo Editorial

    O ensaio A economia brasileira: crtica razo dualista foi publicado pela primeira vez em Estudos Cebrap no 2, de 1972, reeditado em Selees Cebrap no 1, em 1975 e 1976, e transformado em livro

    pela editora Vozes, em 1981.

    RevisoLuiz Chamadoira

    Maria Fernanda Alvares

    CapaMaringoni

    Ilustrao: Avenida Lus Carlos Berrini, So Paulo, em 1999foto: L.C. Leite / AE

    Projeto grfico e editorao eletrnicaAlfredo Carracedo Castillo

    EditoraIvana Jinkings

    Assistncia editorialAna Paula Castellani

    Coordenao de produoMarcel Iha

    Produo Ana Lotufo Valverde

    Impresso e acabamentoNeo Graf Ind. Grfica e Editora

    ISBN: 978-85-7559-036-2

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    1a edio: outubro de 20031a reimpresso: janeiro de 20062a reimpresso: julho de 20083a reimpresso: agosto de 2011

    BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo SP

    Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869editor@boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

    A teoria da alienao.indd 6 21/07/2011 12:21:56

  • Para meus amigos e interlocutores do antigo Cebrap.

    Para minha tribo do Cenedic: Maria Clia, Cibele, Laymert,Vera, Carlo, Ana Amlia, Carmelita, Leonardo, Nia.

    Para Caico Carlos Fernandez da Silveira , o inspirador deO ornitorrinco.

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:307

  • SUMRIO

    PREFCIO COM PERGUNTAS ..............................................11

    CRTICA RAZO DUALISTA ............................................... 25

    I. Uma breve colocao do problema ...................................... 29

    II. O desenvolvimento capitalista ps-anos 1930e o processo de acumulao ................................................. 35

    III. Um intermezzo para a reflexo poltica:revoluo burguesa e acumulao industrial no Brasil .......... 61

    IV. A acelerao do Plano de Metas:as pr-condies da crise de 1964 ........................................ 71

    V. A expanso ps-1964: nova revoluo econmicaburguesa ou progresso das contradies? ............................. 93

    VI. Concentrao da renda e realizaoda acumulao: as perspectivas crticas ................................ 107

    O ORNITORRINCO ................................................................ 1 1

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:309

    2

    Roberto Schwarz

  • PREFCIO COM PERGUNTAS

    Roberto Schwarz

    Venceu o sistema de Babilnia e o garo de costeletaOswald de Andrade, 1946

    O poema em epgrafe condensa, em chave debochada, a decepohistrica de um poeta modernista e libertrio com o curso do ps-guerra. As derrotas do nazifascismo na Europa e da ditadura Vargas noBrasil haviam sido momentos de esperana incomum, que entretantono abriram as portas a formas superiores de sociedade. No que nostocava, a vitria ficara com o sistema de Babilnia, quer dizer, o capita-lismo, e com o garo de costeleta, quer dizer, a esttica kitsch. Oresultado da fermentao artstica e social dos anos 20 e 30 do sculopassado acabava sendo esse.

    Um ciclo depois, guardadas as diferenas de gnero, os ensaios deFrancisco de Oliveira expem um anticlmax anlogo, ligado ao esgota-mento do desenvolvimentismo, que tambm vai se fechando sem cum-prir o que prometia. Escritos com trinta anos de intervalo, Crtica

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3011

  • 12 Roberto Schwarz

    razo dualista (1972) e O ornitorrinco (2003) representam, respec-tivamente, momentos de interveno e de constatao sardnica. Num,a inteligncia procura clarificar os termos da luta contra o subdesenvolvi-mento; no outro, ela reconhece o monstrengo social em que, at segun-da ordem, nos transformamos. Note-se que o primeiro ttulo aludia Crtica da razo dialtica, o livro ento recente em que Sartre* procuravadevolver atualidade o marxismo, a prpria dialtica e a revoluo, sobo signo de uma filosofia da liberdade, ao passo que a comparao como ornitorrinco, um bicho que no isso nem aquilo (um heri semnenhum carter?), serve ao crtico para sublinhar a feio incongruenteda sociedade brasileira, considerada mais no que veio a ser do que nassuas chances de mudar. O nimo zoogrfico da alegoria, concebida porum petista da primeira hora na prpria oportunidade em que o Partidodos Trabalhadores chega Presidncia da Repblica, no passar desperce-bido e far refletir. O paralelo com Oswald, enfim, interessa tambmporque leva a recapitular a lista comprida de nossas frustraes histri-cas, que vm do sculo XIX, sempre ligadas ao desnvel tenaz que nossepara dos pases-modelo e idia de o transpor por meio de umavirada social iluminada.

    A transformao do Brasil em ornitorrinco se completou, segundoFrancisco de Oliveira, com o salto das foras produtivas a que assisti-mos em nossos dias. Este foi dado pelos outros e no fcil de repetir.A Terceira Revoluo Industrial combina a mundializao capitalista aconhecimentos cientficos e tcnicos, os quais esto seqestrados em paten-tes, alm de submetidos a um regime de obsolescncia acelerada, quetorna intil a sua aquisio ou cpia avulsa. Do ponto de vista nacional,o desejvel seria incorporar o processo no seu todo, o que entretantosupe gastos em educao e infra-estrutura que parecem fora do alcancede um pas pobre e incapaz de investir. Nessas circunstncias de neo-atraso, os traos herdados do subdesenvolvimento passam por umadesqualificao suplementar, que compe a figura do ornitorrinco.

    Jean-Paul Sartre, Crtica da razo dialtica, traduo de Guilherme Joo de FreitasTeixeira, So Paulo, DP&A, 2002. (N.E.)

    *

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3012

  • Prefcio com perguntas 13

    No campo dos trabalhadores, a nova correlao de foras leva aodesmanche dos direitos conquistados ao longo da quadra anterior. Aextrao da mais-valia encontra menos resistncia e o capital perde oefeito civilizador que pudesse ter. A tendncia vai para a informalizaodo trabalho, para a substituio do emprego pela ocupao, ou, ainda,para a desconstruo da relao salarial. A liga do trabalho rebaixadocom a dependncia externa, consolidada na semi-excluso cientfico-tcnica do pas, aponta para a sociedade derrotada. As reflexes doAutor a esse respeito e a respeito das novas feies do trabalho abstratodaro pano para discusso.

    Tambm do lado da propriedade e do mando h reconfigurao,que reflui sobre o passado. Contra as explicaes automticas pelo inte-resse material imediato ou pela tradio, o acento cai no aspecto conscien-te das escolhas, dotadas de certa liberdade, o que alis s lhes agrava oteor. Para o perodo do subdesenvolvimento, Francisco de Oliveira insistena opo das classes dominantes por formas de diviso do trabalho quepreservassem a dominao social corrente, ainda que ao preo de umaposio internacional medocre. Retoma o argumento de Fernando Hen-rique Cardoso, que pouco antes do golpe de 1964 dizia, contrariandoa voz comum na esquerda, que a burguesia industrial havia preferido acondio de scio-menor do capitalismo ocidental ao risco de vercontestada a sua hegemonia mais frente. Diante dessa desistncia hist-rica, o candidato a levar avante o desenvolvimento econmico do paspassaria a ser a massa urbana organizada. No limite a pergunta serento, subcapitalismo ou socialismo?1 A quarenta anos de distncia,Francisco de Oliveira vai catar naquela mesma desistncia um inespera-do gro de otimismo, mas de otimismo para o passado, que por contrasteescurece o presente: se houve escolha e deciso, a porta da transformaoestivera aberta2. Mesmo no-aproveitadas, ou deliberadamente recusadas,as brechas do perodo circunscrito pela Segunda Revoluo Industrial

    Fernando Henrique Cardoso, Empresrio industrial e desenvolvimento econmico, SoPaulo, Difuso Europia do Livro, 1964, p. 186-7.Francisco de Oliveira, O ornitorrinco, p. 132 deste livro.

    1

    2

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3013

  • 14 Roberto Schwarz

    quando cincia e tecnologia ainda no estavam monopolizadas exis-tiam. Conforme notou Paulo Arantes num debate sobre O ornitorrin-co, o raciocnio alimenta alguma saudade do subdesenvolvimento e desuas lutas, justificada em retrospecto pelo cerco atual.

    A tese mais polmica e contra-intuitiva do ensaio refere-se forma-o de uma nova classe social no pas. Como a anlise de classe est forade moda, no custa reconhecer o interesse fulminante que lhe prprio,desde que no se reduza recitao de um catecismo. A partir dasrecentes convergncias pragmticas entre o PT e o PSDB e do apa-rente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC,radicalizando-o, o Autor observa que no se trata de equvoco, nem detomada de emprstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classesocial, que se estrutura sobre, de um lado, tcnicos e economistas doublsde banqueiros, ncleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados emoperadores de fundos de previdncia, ncleo duro do PT. A identidadedos dois casos reside no controle do acesso aos fundos pblicos, noconhecimento do mapa da mina3.

    O leitor julgar por conta prpria a fora explicativa da hiptese, asobservaes sociais e histricas em que se apia, as suas conseqnciaspara uma teoria atualizada das classes, a sua originalidade e coragemintelectual, e sobretudo as implicaes que ela tem para a poltica. Denossa parte, assinalamos apenas a sua ironia objetiva.

    Para decepo dos socialistas, o centro-esquerda formado na lutacontra a ditadura no resistiu aos anos da redemocratizao. A divisocristalizou-se no antagonismo partidrio-eleitoral entre esquerda e cen-tro-direita, acompanhado das correspondentes adjetivaes recprocas.Agora, passados dez anos de governo do centro-direita, a vitria de Lulanas eleies pareceria um ponto alto desse enfrentamento. No obstante, luz das primeiras medidas do novo governo, Francisco de Oliveiraestima que o ncleo dos partidos adversrios na verdade compe duasfaces de uma nova e mesma classe. Suscitada pelas condies recentes,esta faz coincidirem os ex-aliados, que no momento da Abertura poltica,

    Ibidem, p. 14 .3

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3014

    7

  • Prefcio com perguntas 15

    diante da tarefa de corrigir os estragos da ditadura e do milagre econ-mico, se haviam desunido. O reencontro, dentro da maior contrariedadee antipatia mtuas, no se deve s boas tarefas antigas, mas a uma pautanova, ditada pelas necessidades presentes e sempre anti-sociais do capital,cujo domnio se aprofunda. Ainda nessa direo, o Autor observa que osprincipais fundos de inverso do pas so propriedade de trabalhadores, oque faria um desavisado imaginar que est diante de uma sociedade so-cialista. Acontece que o ornitorrinco no dispe de autocompreensotico-poltica e que a economia dos trabalhadores empregada como seno fosse nada alm de capital, o que no deixa de ser, por sua vez, umaopo. O paralelo se completa com a converso tecnocrtica daintelectualidade peessedebista, vinda vale a pena lembrar das lutassociais contra o regime militar e da anterior militncia de esquerda.

    Num sentido que mereceria precises, o ornitorrinco deixou de sersubdesenvolvido, pois as brechas propiciadas pela Segunda RevoluoIndustrial, que faziam supor possveis os indispensveis avanosrecuperadores, se fecharam. Nem por isso ele capaz de passar para onovo regime de acumulao, para o qual lhe faltam os meios. Restam-lhe as transferncias de patrimnio, em especial as privatizaes, queno so propriamente acumulao e no diminuem as desigualdadessociais. Trata-se de um quadro de acumulao truncada cuja mecni-ca econmica eu no saberia avaliar em que o pas se define pelo queno ; ou seja, pela condio subdesenvolvida, que j no se aplica, epelo modelo de acumulao, que no alcana4.

    Este no-ser naturalmente existe, embora a sua composio internae sua dinmica ainda no estejam identificadas, razo pela qual ele comparado a um bicho enigmtico e disforme. Seja como for, no huma estrada conhecida, e muito menos pavimentada, que leve da posi-o atrasada adiantada, ou melhor, da perdedora vencedora. Se queo caminho existe, ele no obedece s generalidades ligadas a uma noouniversalista do progresso, qual bastasse obedecer. Pelo contrrio, nocurso normal deste, em sua figura presente, reduzida precedncia dos

    Ibidem, p. 1 .4

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3015

    50

  • 16 Roberto Schwarz

    preceitos do mercado, que se encontra o motor do desequilbrio. Aconsiderao dialtica do progresso, vista objetivamente pelos vriosaspectos que vai pondo mostra, sem iluso providencial ou convicodoutrinria a seu respeito, sem ocultao de suas conseqncias regressi-vas, uma das qualidades deste ensaio. Para fazer a diferena, lembre-mos que em nossa esquerda e ex-esquerda o carter progressista doprogresso artigo de f, meio inocente e meio ideolgico.

    De outro ngulo, note-se como vertiginoso e inusitado o andamentodas categorias: esto em formao, j perderam a atualidade, no vierama ser, trocam de sentido, so alheias etc. Uma classe-chave perde arelevncia, entra em cena outra nova, de composio chocante; odesenvolvimento das foras produtivas desgraa uma parte da humanida-de, em lugar de salv-la; o subdesenvolvimento deixa de existir, noassim as suas calamidades; o trabalho informal, que havia sido umrecurso heterodoxo e provisrio da acumulao, transforma-se em ndi-ce de desagregao social, e assim por diante.

    No estilo da dialtica esclarecida, o limiar das mudanas exato, no determinado por uma construo doutrinria, mas sim fixado nobojo de uma totalizao provisria e heurstica, a qual se pretende ligadaao curso efetivo das coisas. Trata-se de um raro exemplo de marxismoamigo da pesquisa emprica. O privilgio definitrio do presente forte(O crtico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres, WalterBenjamin), mas no guiado pelo desejo de aderir correlao deforas dominante, ou de estar na crista da onda, nem muito menos pelavergonha de chorar o leite derramado ou pelo medo de dar murro emponta de faca (pelo contrrio, o socilogo no caso tem perfil quixotes-co). O atualismo reflete uma exigncia terica, bem como a aspirao efetividade do pensamento, como parte de sua dignidade moderna. sua luz, desconhecer a tendncia nova ou a data vencida de convicesque esto na praa seria uma ignorncia. Nem por isso o presente e ofuturo so palatveis, ou melhores que as formas ou aspiraes queperderam o fundamento. As denncias que as posies lanam umascontra as outras devem ser acompanhadas sem preconceito, como elemen-tos de saber. Esse atualismo sem otimismo ou iluses uma posio

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3016

  • Prefcio com perguntas 17

    complexa, profundamente real, base de uma conscincia que no semutila, ao mesmo tempo que rigorosa.

    Em certo plano, a definio pelo que no reflete um momento dedesagregao. Em lugar dos impasses do subdesenvolvimento, com asua amarrao conhecida e socialmente discutida, organizada em mbitonacional, vm frente os subsistemas mais ou menos avulsos do conjuntoanterior, que por enquanto impressionam mais pelo que j no viro aser do que pela ordem alheia e pouco acessvel que passaram a represen-tar. Por outro lado, a situao convida a uma espcie de atualismocurto, avesso preocupao nacional e memria da experincia feita, asquais afinal de contas acabam de sofrer uma desautorizao histrica. Poisbem, o esforo de Francisco de Oliveira, energicamente voltado para aidentificao da nova ordem de coisas, no acata esse encurtamento, queseria razovel chamar positivista, a despeito da roupagem ps-moderna.A resistncia confere ao Ornitorrinco a densidade problemtica alta,em contraste com o rosa kitsch e o isso a do progressismo imp-vido. Trata-se de aprofundar a conscincia da atualidade atravs da consi-derao encompridada de seus termos, que reconhea a base que eles tmnoutra parte, no passado, noutro setor do campo social, no estrangeiroetc. Assim, no indiferente que o capital se financie com dinheiro dostrabalhadores, que os operadores do financiamento sejam sindicalistas,que os banqueiros sejam intelectuais, que a causa cristalizadora da novafragmentao seja um progresso feito alhures. So determinaes reais,cuja supresso produz a inconscincia social, algo daquela indiferenciaoem que Marx via o servio prestado ao establishment pela economiavulgar. Ao insistir nelas e na irracionalidade social que elas tornamtangvel, Francisco de Oliveira procura trazer a conscincia alturanecessria para criticar a ordem. Ou procura dar conscincia razesclaras de revolta, remorso, vergonha, insatisfao etc., que a inquietem.

    Numa boa observao, que reflete o adensamento da malha mundiale contradiz as nossas iluses de normalidade, o Autor aponta a marcada exceo permanente no dia-a-dia brasileiro5. Com perdo dos

    Ibidem, p. 1 .5

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3017

    31

  • 18 Roberto Schwarz

    compatriotas que nos supem no Primeiro Mundo, como no ver queo mutiro da casa prpria no vai com a ordem da cidade moderna(embora na prtica local v muito bem), que o trabalho informal novai com o regime da mercadoria, que o patrimonialismo no vai coma concorrncia entre os capitais, e assim por diante? H um inegvelpasso frente no reconhecimento e na sistematizao do contraste entreo nosso cotidiano e a norma supranacional, pela qual tambm nospautamos. O avano nos torna quem diria contemporneos deMachado de Assis, que j havia notado no contrabandista de escravosa exceo do gentleman vitoriano, no agregado verboso a exceodo cidado compenetrado, nas manobras da vizinha pobre a exce-o da paixo romntica, nos conselhos de um parasita de fraque aexceo do homem esclarecido. A dinmica menos incompatvel coma esttica do que parece. Dito isso, h maneiras e maneiras de enfrentaro desajuste, que a seu modo resume a insero do pas (ou do ex-pas,ou semipas, ou regio) na ordem contempornea.

    Concebido em esprito de reviso conclusiva, O ornitorrinco nonega as perspectivas da Crtica razo dualista, mas aponta razes paraa sua derrota. A reunio dos dois ensaios num volume representa, almde um novo diagnstico de poca, o estado atual das esperanas doAutor: uma prestao de contas terica e uma auto-historicizao, emlinha com o propsito de trabalhar por formas de conscincia expan-dida. Indicada a diferena, preciso convir que a Crtica, escritacom grande fibra combativa no auge da ditadura militar, em plenomilagre econmico e massacre da oposio armada, j lutava em postosemiperdido. A sua descrio da barbrie do processo brasileiro s noquadrava com a imagem de um monstro porque vinha animada pelaperspectiva de auto-superao.

    A tese clebre da Crtica razo dualista dizia algo inusitado sobreo padro primitivo da agricultura brasileira da poca, bem como sobrea peculiar persistncia de formas de economia de subsistncia no mbitoda cidade grande, ou sobre o desmoralizante inchao do tercirio etc.Para o Autor, contrariando o senso comum, estes no eram vestgios dopassado, mas partes funcionais do desenvolvimento moderno do pas,

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3018

  • Prefcio com perguntas 19

    uma vez que contribuam para o baixo custo da mo-de-obra em quese apoiava a nossa acumulao. O lance era dialtico e de mestre, comrepercusso em duas frentes. Por um lado, a responsabilidade pelo teorprecrio da vida popular era atribuda dinmica nova do capitalismo,ou seja, ao funcionamento contemporneo da sociedade, e no heran-a arcaica que arrastamos mas que no nos diz respeito. Por outro, essamesma precariedade era essencial acumulao econmica, e nada maiserrado que combat-la como uma praga estranha ao organismo. Muitopelo contrrio, era preciso reconhec-la como parte de um processoacelerado de desenvolvimento, no curso do qual a pobreza quase desva-lida se elevaria ao salrio decente e cidadania, e o pas conquistarianova situao internacional. A pobreza e a sua superao eram a nossachance histrica! Sem entrar no mrito fatual da hiptese, a vontadepoltica que ela expressa, segundo a qual os pobres no podem serabandonados sua sorte, sob pena de inviabilizar o progresso, salta aosolhos. Em lugar do antagonismo assassino entre Civilizao e Barbrie,que v os pobres como lixo, entrava a idia generosa de que o futurodependia de uma milagrosa integrao nacional, em que a conscinciasocial-histrica levasse de vencida o imediatismo. Uma idia que emseu momento deu qualidade transcendente aos escritos de Celso Furta-do, s vises da misria do Cinema Novo, bem como Teoria daDependncia.

    Com originalidade conceitual e afinidades populares trazidas talvezdo Nordeste, no plo oposto ao progressismo da ditadura, Francisco deOliveira imaginava um esquema moderno de viabilizao nacional, queconvocava o pas conscincia inclusiva por oposio a excludente ,como momento de autotransformao. Do ponto de vista econmicotratava-se de criticar o dualismo da Cepal (Comisso Econmica paraa Amrica Latina), que separava a modernizao e os setores tradicionaisda sociedade, embora considerando que os benefcios da primeira, casohouvesse tica, poderiam proporcionar assistncia humanitria, remdioe ensino leseira dos segundos. De passagem, pois o adversrio nomerecia respeito, tratava-se tambm de refutar os economistas do regime,segundo os quais era preciso fazer crescer o bolo do setor adiantado,

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3019

  • 20 Roberto Schwarz

    para s depois reparti-lo na rea do atraso, tese cnica em que nin-gum acreditava.

    No plano terico, a Crtica aderia apropriao no-dogmtica domarxismo que estivera em curso na Universidade de So Paulo desdeantes de 1964 e que vinha adquirindo relevncia poltica no Cebrap,onde se refugiou durante os anos de chumbo. Poltica, economia eclasses sociais deviam ser analisadas articuladamente, ao contrrio doque pensavam os especialistas em cada uma dessas disciplinas. Nas guasda Teoria da Dependncia, Francisco de Oliveira definia o subdesenvolvi-mento como uma posio desvantajosa (de ex-colnia) na diviso interna-cional do trabalho, cimentada por uma articulao interna de interessese de classes, que ela cimentava por sua vez. Da a importncia atribudaao entrevero de idias e ideologias, pois os seus resultados ajudam adesestabilizar, alm do inquo equilbrio interno, a posio do pas nosistema internacional, permitindo lutar por outra melhor. Vem da tam-bm a naturalidade pouco usual entre ns com que o Autor critica osseus melhores aliados, de Celso Furtado a Maria da Conceio Tavares,Jos Serra e Fernando Henrique Cardoso, num belo exemplo de discus-so comandada por objetivos que vo alm da pessoa. Um poucoinesperadamente, o valor da luta de classes dessa mesma ordem. Francis-co de Oliveira no bolchevique, e a sua idia de enfrentamento entreas classes menos ligada ao assalto operrio ao poder que ao auto-esclarecimento da sociedade nacional, a qual atravs dele supera ospreconceitos e toma conhecimento de sua anatomia e possibilidadesreais, podendo ento dispor de si.

    Nada mais distante do Autor que os sonhos de Brasil-potncia e queo desejo de passar a perna nos pases vizinhos. Contudo possvel que,em verso sublimada, o seu recorte permanea tributrio do aspectocompetitivo dos esforos desenvolvimentistas. Por outro lado, comono seria assim? Num sistema mundial de reproduo das desigualda-des, como no disputar uma posio melhor, mais prxima dos vencedo-res e menos truncada? Como escapar posio prejudicada sem tomarassento entre os que prejudicam? A reflexo sobre a impossibilidade deuma competio sem perdedores, ou, por outra, sobre a impossibilidade

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3020

  • Prefcio com perguntas 21

    de um nivelamento por cima mas que por cima esse? impele aquestionar a ordem que engendra o problema. Aqui, depois de haverativado a disposio poltica em mbito nacional, a reflexo dialticapassa a paralis-la na sua forma corrente, ou melhor, passa a solicitar umtipo de poltica diversa, meio por inventar, para a qual a questo nacio-nal relativa. A seu modo, a superconscincia visada nos esforos doAutor, para a qual, audazmente, a iniqidade uma tarefa e uma chance,tem a ver com isso. Assim tambm as suas reflexes sobre a desmercan-tilizao, desenvolvidas no ensaio sobre o antivalor6. Um dos eixos doOrnitorrinco a oposio entre Darwin e Marx, entre a seleo natu-ral, pelo jogo imediatista dos interesses, e a soluo consciente dosproblemas nacionais e da humanidade. Ora, na esteira do prprio Marx,os argumentos de Francisco de Oliveira esto sempre mostrando quenada ocorre sem a interveno da conscincia; porm... Presente emtudo, mas enfeitiada pelo interesse econmico, esta funciona natural-mente e sustenta o descalabro a que ela poderia se contrapor, casocrescesse e mutasse.

    Agosto de 2003

    Adendo. Transcrevo em seguida um artigo-homenagem de 1992,escrito por ocasio do concurso de Francisco de Oliveira para professortitular da USP7. Sem prejuzo das ironias que o tempo acrescentou,espero que combine com o que foi dito at aqui.

    Valor intelectual

    Alm de muito bons, os ensaios de Chico de Oliveira sobre a atuali-dade poltica so sempre inesperados. Isso porque refletem posies

    Francisco de Oliveira, Os direitos do antivalor, Petrpolis, Vozes, 1998.Roberto Schwarz, Valor intelectual, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 25 de outubrode 1992.

    6

    7

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3021

  • 22 Roberto Schwarz

    adiantadas, de que no fundo no temos o hbito, embora as aprovemosda boca para fora. A comear pelo seu carter contundente, e nem porisso sectrio, o que a muitos soa como um despropsito. Faz parte dafrmula dos artigos de Chico a exposio de todos os pontos de vistaem conflito, sem desconhecer nenhum. Mas ento, se no sectrio,para que a contundncia? A busca da frmula ardida no dificulta anegociao que depois ter de vir? J aos que apreciam a caracterizaovirulenta o resumo objetivo dos interesses contrrios parece suprfluo echeira a tibieza e compromisso. Mas o paradoxo expositivo no caso nodenota motivos confusos. Na verdade ele expressa adequadamente asconvices de Chico a respeito da forma atual da luta de classes, a qualsem prejuzo da intensidade no comporta a aniquilao de um doscampos.

    Em vrias ocasies Chico acertou na anlise quase sozinho, sustentandoposies e argumentos contrrios voz corrente na esquerda. O valordessa espcie de independncia intelectual merece ser sublinhado, aindamais num meio gregrio como o nosso. Alis, o desgosto pela tradiobrasileira de autoritarismo e baixaria est entre os fatores da clarividnciade Chico. Assim, como no abria mo de levar em conta o que estava vista de todos, o seu prognstico sobre o governo Collor foi certeiro,antes ainda da formao do primeiro ministrio8. Tambm a sua crticaao Plano Cruzado, publicada em plena temporada dos aplausos, foiconfirmada pouco depois9. Nos dois casos Chico insistia numa tese quelhe cara, segundo a qual a burguesia brasileira se aferra iniciativaunilateral e prefere a desordem ao constrangimento da negociao socialorganizada. Ainda nesse sentido, quando tudo leva a culpar o atraso deAlagoas pelos descalabros de Collor, Chico explica o mandato destrutivoque este recebeu da classe dominante moderna, aterrorizada com ahiptese de um metalrgico na Presidncia.

    Cf. Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n. 26.Folha de S.Paulo, 16 de maro de 1986.

    8

    9

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3022

  • Prefcio com perguntas 23

    O marxismo agua o senso de realidade de alguns, e embota o deoutros. Chico evidentemente pertence com muito brilho ao primeirogrupo. Nunca a terminologia do perodo histrico anterior, nem daluta de classes, do capital ou do socialismo lhe serve para reduzir acertezas velhas as observaes novas. Pelo contrrio, a tnica de seuesforo est em conceber as redefinies impostas pelo processo emcurso, que preciso adivinhar e descrever. Assim, os meninos venden-do alho e flanela nos cruzamentos com semforo no so a prova doatraso do pas, mas de sua forma atroz de modernizao. Algo anlo-go vale para as escleroses regionais, cuja explicao no est noimobilismo dos tradicionalistas, mas na incapacidade paulista paraforjar uma hegemonia modernizadora aceitvel em mbito nacional.Chico um mestre da dialtica.

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3023

  • CRTICA RAZO DUALISTA

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3025

  • Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta s indagaes de

    carter interdisciplinar que se formulam no Cebrap acerca do processo de

    expanso socioeconmica do capitalismo no Brasil. Beneficia-se, dessa maneira,

    do peculiar clima de discusso intelectual que apangio do Cebrap, a cujo

    corpo de pesquisadores pertence o autor. O autor agradece as crticas e as

    sugestes dos seus colegas, particularmente a Jos Arthur Giannotti, Fernando

    Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, Francisco Weffort, Juarez

    Brando Lopes, Boris Fausto, Fbio Munhoz e Regis Andrade, assim como

    a Caio Prado Jr. e Gabriel Bolaffi, que participaram de seminrios sobre o

    texto. Evidentemente, a nenhum deles pode ser imputada qualquer falha ou

    erro deste documento.

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3026

  • IUMA BREVECOLOCAO DO PROBLEMA

    A perspectiva deste trabalho a de contribuir para a reviso domodo de pensar a economia brasileira, na etapa em que a industrializaopassa a ser o setor-chave para a dinmica do sistema, isto , para efeitosprticos, aps a Revoluo de 1930. O exame que se tentar vai centrarsua ateno nas transformaes estruturais, entendidas estas no sentidorigoroso da reposio e recriao das condies de expanso do sistemaenquanto modo capitalista de produo. No se trata, portanto, nemde avaliar a performance do sistema numa perspectiva tico-finalista desatisfao das necessidades da populao, nem de discutir magnitudes detaxas de crescimento: a perspectiva tico-finalista muito associada aodualismo cepalino parece desconhecer que a primeira finalidade do sis-tema a prpria produo, enquanto a segunda, muito do gosto doseconomistas conservadores do Brasil, enreda-se numa dialtica vulgarcomo se a sorte das partes pudesse ser reduzida ao comportamento dotodo, a verso comum da teoria do crescimento do bolo.

    Deve ser acrescentado que a perspectiva deste trabalho incorpora,como variveis endgenas, o nvel poltico ou as condies polticas dosistema: conforme o andamento da anlise, tratar de demonstrar que

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3027

  • co de Oliveira

    as passagens de um modelo a outro, de um ciclo a outro, no sointeligveis economicamente em si, em qualquer sistema que revistacaractersticas de dominao social. O economicismo das anlises queisolam as condies econmicas das polticas um vcio metodolgicoque anda de par com a recusa em reconhecer-se como ideologia.

    Este trabalho se inscreve ao lado de outros surgidos recentemente, quebuscam renovar a discusso sobre a economia brasileira; nesse sentido, otrabalho de Maria da Conceio Tavares e Jos Serra, Ms all del estan-camiento: una discusin sobre el estilo del desarollo reciente del Brasil*,retoma um estilo e um mtodo de interpretao que estiveram ausentesda literatura econmica latino-americana durante muito tempo, sepulta-dos sob a avalanche cepalina, e inscreve-se como um marco e um roteiropara as novas indagaes. Convm assinalar que, por todos os lados, opensamento socioeconmico latino-americano d mostras de insatisfaoe de ruptura com o estilo cepalino de anlise, procurando recapturar oentendimento da problemtica latino-americana mediante a utilizao deum arsenal terico e metodolgico que esteve encoberto por uma espciede respeito humano que deu largas utilizao do arsenal marginalista1

    e keynesiano, estes conferindo honorabilidade e reconhecimento cientfi-co junto ao establishment tcnico e acadmico. Assim, boa parte da intelec-tualidade latino-americana, nas ltimas dcadas, dilacerou-se nas pontas

    Trimestre Econmico, n. 152, nov.-dez. de 1971, Mxico. [Ed. bras.: Alm daestagnao: uma discusso sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil, inJos Serras, Amrica Latina ensaios de interpretao econmica, So Paulo, Paz eTerra, 1976.] (N.E.)Ver, por exemplo, o trabalho de Rolando Cordera e Adolfo Orive sobre a industria-lizao mexicana, publicado pelo Tase Boletin del Taller de Analisis Socioeconmico,vol. 1, n. 4, Mxico. No meramente casual a coincidncia de reinterpretaes, namesma linha terica, de economias como a mexicana e a brasileira, marcadas porconfiguraes socioeconmicas bastante similares no que se refere a indicadores deestrutura, s quais chegaram por processos polticos bastante dissemelhantes. A coin-cidncia no casual reside no fato de que ambas as sociedades chegaram a situaesestruturais semelhantes lato sensu mediante processos cujo denominador comum foia ampla explorao de sua fora de trabalho, fenmeno que est na base da cons-tituio de um seleto mercado para as indstrias dinmicas ao mesmo tempo que dadistribuio desigualitariamente crescente da renda.

    1

    *

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3028

    Francis30

  • Crtica razo dualista 31

    do dilema: enquanto denunciavam as miserveis condies de vida degrande parte da populao latino-americana, seus esquemas tericos eanalticos prendiam-nos s discusses em torno da relao produto-capi-tal, propenso para poupar ou investir, eficincia marginal do capital,economias de escala, tamanho do mercado, levando-os, sem se daremconta, a construir o estranho mundo da dualidade e a desembocar, acontragosto, na ideologia do crculo vicioso da pobreza2.

    A dualidade reconciliava o suposto rigor cientfico das anlises coma conscincia moral, levando a proposies reformistas. A bem da ver-dade, deve-se reconhecer que o fenmeno assinalado foi muito maisfreqente e mais intenso entre economistas que entre outros cientistassociais: socilogos, cientistas polticos e tambm filsofos conseguiramescapar, ainda que parcialmente, tentao dualista, mantendo, comoeixos centrais da interpretao, categorias como sistema econmico,modo de produo, classes sociais, explorao, dominao. Mas,ainda assim, o prestgio dos economistas penetrou largamente as outrascincias sociais, que se tornaram quase caudatrias: sociedade moder-na-sociedade tradicional, por exemplo, um binmio que, deitandorazes no modelo dualista, conduziu boa parte dos esforos na sociolo-gia e na cincia poltica a uma espcie de beco sem sada rostowiano.

    O esforo reinterpretativo que se tenta neste trabalho suporta-seterica e metodologicamente em terreno completamente oposto ao dodual-estruturalismo: no se trata, em absoluto, de negar o imenso aportede conhecimentos bebido diretamente ou inspirado no modelo Cepal,mas exatamente de reconhecer nele o nico interlocutor vlido, que

    Um caso tpico o da denncia de Prebisch sobre os mecanismos do comrciointernacional que levam deteriorao dos termos de intercmbio em desfavordos pases latino-americanos. A estaria a base para uma reelaborao da teoria doimperialismo; abortada sua profundizao em direo a essa reelaborao, a propo-sio que sai nitidamente reformista e nega-se a si mesma: Prebisch espera queos pases industrializados reformem seu comportamento, elevando seus pagamen-tos pelos produtos agropecurios que compram da Amrica Latina e rebaixandoo preo dos bens que vendem, que em essncia o esprito das confernciasUnctad. A proposio altamente tica e igualmente ingnua.

    2

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3029

  • 3ao longo dos ltimos decnios contribuiu para o debate e a criaointelectual sobre a economia e a sociedade brasileira e a latino-america-na. Mesmo porque a oposio ao modelo Cepal, durante o perodoassinalado, no se fez nem se deu em nome de uma postura terica maisadequada: os conhecidos opositores da Cepal no Brasil e na AmricaLatina tinham, quase sempre, a mesma filiao terica marginalista,neoclssica e keynesiana, desvestidos apenas da paixo reformista ecomprometidos com o status quo econmico, poltico e social da mis-ria e do atraso seculares latino-americanos. Como pobres papagaios,limitaram-se durante dcadas a repetir os esquemas aprendidos nasuniversidades anglo-saxnicas sem nenhuma perspectiva crtica, sendorigorosamente nulos seus aportes teoria da sociedade latino-america-na3. Assim, ao tentar-se uma crtica razo dualista, reconhece-se aimpossibilidade de uma crtica semelhante aos sem-razo.

    O anterior no deve ser lido como uma tentativa de contemporizao:a ruptura com o que se poderia chamar o conceito do modo de produ-o subdesenvolvido ou completa ou apenas se lhe acrescentarodetalhes. No plano terico, o conceito do subdesenvolvimento comouma formao histrico-econmica singular, constituda polarmente emtorno da oposio formal de um setor atrasado e um setor moderno,no se sustenta como singularidade: esse tipo de dualidade encontrvelno apenas em quase todos os sistemas, como em quase todos os pero-dos. Por outro lado, a oposio na maioria dos casos to-somenteformal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade,uma unidade de contrrios, em que o chamado moderno cresce e sealimenta da existncia do atrasado, se se quer manter a terminologia.

    O subdesenvolvimento pareceria a forma prpria de ser das econo-mias pr-industriais penetradas pelo capitalismo, em trnsito, portan-to, para as formas mais avanadas e sedimentadas deste; todavia, umatal postulao esquece que o subdesenvolvimento precisamente uma

    Nenhum dos economistas conservadores anti-Cepal, na Amrica Latina e no Brasil,conseguiu produzir obra terica; seus escritos so apenas ocasionais, ora de um,ora de outro lado da cerca.

    3

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3030

    2 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 33

    produo da expanso do capitalismo. Em rarssimos casos dosquais os mais conspcuos so Mxico e Peru , trata-se da penetraode modos de produo anteriores, de carter asitico, pelo capitalis-mo; na grande maioria dos casos, as economias pr-industriais da AmricaLatina foram criadas pela expanso do capitalismo mundial, como umareserva de acumulao primitiva do sistema global; em resumo, o sub-desenvolvimento uma formao capitalista e no simplesmente his-trica. Ao enfatizar o aspecto da dependncia a conhecida relaocentro-periferia , os tericos do modo de produo subdesenvolvidoquase deixaram de tratar os aspectos internos das estruturas de domi-nao que conformam as estruturas de acumulao prprias de pasescomo o Brasil: toda a questo do desenvolvimento foi vista pelo ngulodas relaes externas, e o problema transformou-se assim em umaoposio entre naes, passando despercebido o fato de que, antes deoposio entre naes, o desenvolvimento ou o crescimento um pro-blema que diz respeito oposio entre classes sociais internas. O con-junto da teorizao sobre o modo de produo subdesenvolvidocontinua a no responder quem tem a predominncia: se so as leisinternas de articulao que geram o todo ou se so as leis de liga-o com o resto do sistema que comandam a estrutura de relaes4.

    Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto elaboram uma teoria da dependnciacuja postulao essencial reside no reconhecimento de que a prpria ambigidadeconfere especificidade ao subdesenvolvimento, sendo a dependncia a forma emque os interesses internos se articulam com o resto do sistema capitalista. Afastaram-se, assim, do esquema cepalino, que v nas relaes externas apenas oposio a supostosinteresses nacionais globais, para reconhecerem que, antes de uma oposio global, adependncia articula os interesses de determinadas classes e grupos sociais da AmricaLatina com os interesses de determinadas classes e grupos sociais fora da Amrica Latina.A hegemonia aparece como o resultado da linha comum de interesses determinadapela diviso internacional do trabalho, na escala do mundo capitalista. Essa formula-o , a meu ver, muito mais correta que a da tradio cepalina, embora ainda nod o devido peso possibilidade terica e emprica de que se expanda o capitalismoem pases como o Brasil ainda quando seja desfavorvel a diviso internacional dotrabalho do sistema capitalista como um todo. A meu ver, a expanso do capitalismono Brasil, depois de 1930, ilustra precisamente esse caso. Ver, dos autores citados,Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.

    4

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3031

  • 3Penetrado de ambigidade, o subdesenvolvimento pareceria ser umsistema que se move entre sua capacidade de produzir um excedenteque apropriado parcialmente pelo exterior e sua incapacidade de absorverinternamente de modo produtivo a outra parte do excedente que gera.

    No plano da prtica, a ruptura com a teoria do subdesenvolvimentotambm no pode deixar de ser radical. Curiosa mas no paradoxal-mente, foi sua proeminncia nos ltimos decnios que contribuiu paraa no-formao de uma teoria sobre o capitalismo no Brasil, cumprin-do uma importante funo ideolgica para marginalizar perguntas dotipo a quem serve o desenvolvimento econmico capitalista no Bra-sil?. Com seus esteretipos de desenvolvimento auto-sustentado,internalizao do centro de decises, integrao nacional, planeja-mento, interesse nacional, a teoria do subdesenvolvimento sentou asbases do desenvolvimentismo que desviou a ateno terica e a aopoltica do problema da luta de classes, justamente no perodo em que,com a transformao da economia de base agrria para industrial-urba-na, as condies objetivas daquela se agravavam. A teoria do subdesenvol-vimento foi, assim, a ideologia prpria do chamado perodo populista;se ela hoje no cumpre esse papel, porque a hegemonia de uma classese afirmou de tal modo que a face j no precisa de mscara.

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3032

    4 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 33

    II

    O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTAPS-ANOS 1930 E O PROCESSO DE ACUMULAO

    A Revoluo de 1930 marca o fim de um ciclo e o incio de outrona economia brasileira: o fim da hegemonia agrrio-exportadora e oincio da predominncia da estrutura produtiva de base urbano-indus-trial. Ainda que essa predominncia no se concretize em termos daparticipao da indstria na renda interna seno em 1956, quando pelaprimeira vez a renda do setor industrial superar a da agricultura, oprocesso mediante o qual a posio hegemnica se concretizar crucial:a nova correlao de foras sociais, a reformulao do aparelho e daao estatal, a regulamentao dos fatores, entre os quais o trabalho ouo preo do trabalho, tm o significado, de um lado, de destruio dasregras do jogo segundo as quais a economia se inclinava para as ativi-dades agrrio-exportadoras e, de outro, de criao das condies insti-tucionais para a expanso das atividades ligadas ao mercado interno.Trata-se, em suma, de introduzir um novo modo de acumulao, qua-litativa e quantitativamente distinto, que depender substantivamentede uma realizao parcial interna crescente. A destruio das regras dojogo da economia agrrio-exportadora significava penalizar o custo e arentabilidade dos fatores que eram tradicionalmente alocados para a

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3033

  • 3produo com destino externo, seja confiscando lucros parciais (o casodo caf, por exemplo), seja aumentando o custo relativo do dinheiroemprestado agricultura (bastando simplesmente que o custo do dinhei-ro emprestado indstria fosse mais baixo).

    Nesse contexto, alguns aspectos passam a desempenhar um papel deenorme significao. O primeiro deles faz parte da chamada regulamenta-o dos fatores, isto , da oferta e demanda dos fatores no conjuntoda economia. A esse respeito, a regulamentao das leis de relao entreo trabalho e o capital um dos mais importantes, se no o maisimportante. A chamada legislao trabalhista tem sido estudada apenasdo ponto de vista de sua estrutura formal corporativista, da organizaodos trabalhadores e da sua possvel tutela pelo Estado, e tem sidoarriscada a hiptese de que a fixao do salrio mnimo, por exemplo,teria sido uma medida artificial, sem relao com as condies concre-tas da oferta e demanda de trabalho: os nveis do salrio mnimo, paraIgncio Rangel, por exemplo, seriam nveis institucionais 1, acima daqui-lo que se obteria com a pura barganha entre trabalhadores e capitalistasno mercado. Uma argumentao de tal tipo endossa e alimenta asinterpretaes dos cientistas polticos sobre o carter redistributivistados regimes polticos populistas entre 1930 e 19642 e, em sua verso

    ... graas a isso ( legislao trabalhista) o padro salarial tornou-se relativamenteindependente das condies criadas pela presena de um enorme exrcito industrialde reserva... Igncio Rangel, A inflao brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1963, p. 44-5.No fugiu percepo dos cientistas polticos que escreveram sobre o assunto o aspectode dominao para os fins da expanso capitalista que a legislao trabalhista reveste,quando os amplos setores das massas urbanas passam a desempenhar um papel-chavena estruturao poltica que permitiu a industrializao. Sem embargo, freqentementeessa percepo correta leva no bojo a premissa de que a doao getulista das leis dotrabalho dava, em troca do apoio das massas populares, alguma participao crescentenos ganhos de produtividade do sistema, o que no encontra apoio nos fatos. O quese discute neste ponto o carter redistributivista, do ponto de vista exatamente dosreferidos ganhos; sob outros aspectos, principalmente polticos, pode-se falar em redistri-butivismo dos regimes populistas, mas em termos econmicos tal postulao intei-ramente insustentvel.

    1

    2

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3034

    6 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 37

    econmica, faz parte da base sobre a qual se pensa a inflao no Brasile contribui para a manuteno, no modelo dual-estruturalista cepalino,do distanciamento cumulativo entre os setores moderno e atrasado3.

    As interpretaes assinaladas minimizam o papel da legislao traba-lhista no processo de acumulao que se instaura ou se acelera a partirde 1930. Em primeiro lugar, estranha a abstrao que se faz do papeldo Estado na prpria criao do mercado: a que mercado se referem,quando dizem que os nveis do salrio mnimo foram ou so fixadosacima do que se poderia esperar num mercado livre? Esse mercadolivre, abstrato, em que o Estado no interfere, tomado de emprstimoda ideologia do liberalismo econmico, certamente no um mercadocapitalista, pois precisamente o papel do Estado institucionalizar asregras do jogo; em segundo lugar, uma hiptese nunca provada quetais nveis estivessem acima do custo de reproduo da fora de trabalho,que o parmetro de referncia mais correto, para avaliar-se a artificia-lidade ou a realidade dos nveis do salrio mnimo. Importa noesquecer que a legislao interpretou o salrio mnimo rigorosamentecomo salrio de subsistncia, isto , de reproduo; os critrios defixao do primeiro salrio mnimo levavam em conta as necessidadesalimentares (em termos de calorias, protenas etc.) para um padro detrabalhador que devia enfrentar um certo tipo de produo, com um certo

    Segundo o ponto de vista cepalino, os nveis artificiais de fixao do salrio mnimoinduziram uma precoce elevao do capital fixo na composio orgnica do capital,estimulando inverses capital-intensives que tm por efeito no referido modelo diminuir o multiplicador de empregos das novas inverses, baixar a relao produto-capital, conduzindo ao estreitamento progressivo do mercado e, a longo prazo, queda da taxa de lucro, e conseqentemente da taxa de crescimento, reforando omodelo de dualidade da economia. Empiricamente, no tem sido provada umapeculiar estrutura de inverses capital-intensives na estrutura global das inverses;teoricamente, uma das fontes do erro do modelo est na considerao estrita dasinverses apenas no setor industrial da economia, alm da no-considerao do efeitodas relaes internacionais sobre a funo de produo, que potencializa, atravs daabsoro de tecnologia (trabalho acumulado ou trabalho morto do exterior), umabase de acumulao razoavelmente pobre.

    3

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3035

  • 3tipo de uso de fora mecnica, comprometimento psquico etc. Est-se pensando rigorosamente, em termos de salrio mnimo, como aquantidade de fora de trabalho que o trabalhador poderia vender. Noh nenhum outro parmetro para o clculo das necessidades do traba-lhador; no existe na legislao, nem nos critrios, nenhuma incorpo-rao dos ganhos de produtividade do trabalho.

    Sem embargo, esses aspectos ainda no so os decisivos. O decisivo que as leis trabalhistas fazem parte de um conjunto de medidasdestinadas a instaurar um novo modo de acumulao. Para tanto, apopulao em geral, e especificamente a populao que aflua s cida-des, necessitava ser transformada em exrcito de reserva. Essa conversode enormes contingentes populacionais em exrcito de reserva, adequa-do reproduo do capital, era pertinente e necessria do ponto devista do modo de acumulao que se iniciava ou que se buscava refor-ar, por duas razes principais: de um lado, propiciava o horizontemdio para o clculo econmico empresarial, liberto do pesadelo deum mercado de concorrncia perfeita, no qual ele devesse competirpelo uso dos fatores; de outro lado, a legislao trabalhista igualavareduzindo antes que incrementando o preo da fora de trabalho.Essa operao de igualar pela base reconvertia inclusive trabalhadoresespecializados situao de no-qualificados, e impedia ao contrriodo que pensam muitos a formao precoce de um mercado dual defora de trabalho4. Em outras palavras, se o salrio fosse determinado

    Uma indagao pertinente sobre o tema da legislao trabalhista a de por queela se inspira nas formas jurdicas do direito corporativista italiano. Esse problema temsido abordado apenas do ngulo do carter do Estado brasileiro na poca: autoritriomas ao mesmo tempo de transio entre a hegemonia de uma classe a dos proprie-trios rurais e a de outra a da burguesia industrial. Um aspecto no estudado o de sua adequao como uma ponte, uma juno entre as formas pr-capitalistasde certos setores da economia particularmente a agricultura e o setor emergenteda indstria. Nesta hiptese, o direito corporativista a forma adequada parapromover a complementaridade entre os dois setores, desfazendo ao unificar apossvel dualidade que poderia formar no encontro do arcaico com o novo; essadualidade, no que respeita formao dos salrios urbanos, particularmente naindstria, poderia realmente pr em risco a viabilidade da empresa nascente.

    4

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3036

    8 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 39

    por qualquer espcie de mercado livre, na acepo da teoria da concor-rncia perfeita, provvel que ele subisse para algumas categoriasoperrias especializadas; a regulamentao das leis do trabalho operoua reconverso a um denominador comum de todas as categorias, com oque, antes de prejudicar a acumulao, beneficiou-a.

    Uma objeo que pode ser levantada contra a tese anterior emprica:no existem provas de que a legislao trabalhista tenha tido tal efeito,rebaixando salrios. Esse tipo de objeo de uma fragilidade incrvel:para os efeitos da acumulao, no era necessrio que houvesse rebaixa-mento de salrios anteriormente pagos, mas apenas equalizao dossalrios dos contingentes obreiros incrementais; isto , da mdia dos sa-lrios. Como no caso da industrializao brasileira ps-anos 1930 osincrementos no contingente obreiro so muitas vezes maiores que ostock operrio anterior, a legislao alcanava seu objetivo no decla-rado, verdade, mas isso corresponde a verbalizao ideolgica dasclasses dominantes de propiciar a formao de um enorme exrcitode reserva propcio acumulao. Alm disso, pode-se aduzir, emfavor da tese, um argumento que da lgica do sistema: se fosseverdade que os nveis do salrio mnimo estivessem por cima de nveisde pura barganha num mercado livre, o que aumentaria demasiada-mente a parte de remunerao do trabalho na distribuio funcionalda renda, o sistema entraria em crise por impossibilidade de acumular;o que se viu aps a implantao da legislao trabalhista foi exatamenteo contrrio: a partir da que um tremendo impulso transmitido acumulao, caracterizando toda uma nova etapa de crescimento daeconomia brasileira. Uma segunda objeo retira seu argumento dofato de que comparado ao rendimento auferido no campo (sob qualquerforma, salrio, renda da terra, produto das roas familiares etc.) osalrio mnimo das cidades era sem dvida superior, o que, dada aextrao rural dos novos contingentes que afluam s cidades, tornou-seum elemento favorvel aos anseios de integrao das novas populaesoperrias e trabalhadoras em geral, debilitando a formao de conscin-cias de classe entre elas. No se desconhece o efeito que esse fenmenopode ter tido social e politicamente embora exista certo exagero nas

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3037

  • concluses , mas, do ponto de vista da acumulao, esse fenmenono teve nem tem nenhuma importncia, j que, se as atividades urba-nas, particularmente a indstria, paga salrios mais altos que os rendimen-tos auferidos no campo, o parmetro que esclarece a relao favorvel acumulao a produtividade das atividades urbanas; em outras pala-vras, a relao significativa a que se estabelece entre salrios urbanose produtividade das atividades urbanas (no caso, indstria), isto , a taxade explorao que explica o incremento da acumulao determinadaem funo dos salrios e dos lucros ou ganhos de produtividade dasatividades urbanas.

    O segundo aspecto refere-se interveno do Estado na esfera eco-nmica, operando na regulamentao dos demais fatores, alm do traba-lho: operando na fixao de preos, na distribuio de ganhos e perdasentre os diversos estratos ou grupos das classes capitalistas, no gastofiscal com fins direta ou indiretamente reprodutivos, na esfera da pro-duo com fins de subsdio a outras atividades produtivas. Aqui o seupapel o de criar as bases para que a acumulao capitalista industrial, nonvel das empresas, possa se reproduzir. Essa interveno tem um carterplanificador, ao modo do Estado ingls que editava tanto o poor lawcomo o cereal act, isto , no trnsito, o Estado intervm para destruiro modo de acumulao para o qual a economia se inclinava natural-mente, criando e recriando as condies do novo modo de acumulao.Nesse sentido, substituam-se os preos do velho mercado por preossociais, cuja funo permitir a consolidao do novo mercado, isto, at que o processo de acumulao se oriente, com certo grau deautomaticidade, pelos novos parmetros, que sero o novo leito do rio.Os preos sociais podem ter financiamento pblico ou podem sersimplesmente a imposio de uma distribuio de ganhos diferenteentre os grupos sociais, e a direo em que eles atuam no sentidode fazer da empresa capitalista industrial a unidade mais rentvel doconjunto da economia. Assim, assiste-se emergncia e ampliaodas funes do Estado, num perodo que perdura at os anosKubitschek. Regulando o preo do trabalho, j discutido anterior-mente, investindo em infra-estrutura, impondo o confisco cambial ao caf

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3038

    40 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 41

    para redistribuir os ganhos entre grupos das classes capitalistas, rebaixan-do o custo de capital na forma do subsdio cambial para as importaesde equipamentos para as empresas industriais e na forma da expansodo crdito a taxas de juros negativas reais, investindo na produo(Volta Redonda e Petrobras, para exemplificar), o Estado opera conti-nuamente transferindo recursos e ganhos para a empresa industrial, fa-zendo dela o centro do sistema. A essa destruio e criao vo sersuperpostas as verses de um socialismo dos tolos tanto da esquerdacomo da ultradireita, que viam na ao do Estado, estatismo, sem sefazer nunca, uns e outros, a velha pergunta dos advogados: a quem servetudo isso?

    O processo guarda alguma analogia formal com a passagem de umaeconomia de base capitalista para uma economia socialista. No perodode transio, no apenas no funcionam os automatismos econmi-cos da base anterior como, mais que isso, no devem funcionar, sobpena de no se implementar a nova base. Por essa razo, os mecanismosde mercado devem ser substitudos por controles administrativos cujamisso fazer funcionar a economia de forma no-automtica. Durantea transio, proliferam todos os tipos de controle, no somente naformao dos preos dos fatores como tambm no controle do gastodos consumidores. A tese perfeitamente ilustrada como o caso docaf: deixada entregue s leis automticas do mercado, a produo de cafno Brasil, aps a crise de 1929, entraria num regime anrquico, orasendo estimulada, ora sendo violentamente contrada. Os estmulos e ascontraes poderiam representar importantes desperdcios sociais. Foipreciso o controle governamental para faz-la crescer ou diminuirguardando certa distncia das flutuaes do mercado, para o que teve-se de recorrer ao controle direto (IBC) e aos preos sociais em lugar dospreos de mercado (o confisco cambial era um preo social). Aindaquando as perdas do caf fossem socializadas, transferidas para ocontribuinte, conforme Furtado, essa socializao consistia numa ope-rao de no-automaticidade: em quaisquer circunstncias, boas ou ms,isolava-se o produtor de caf da oferta e procura de fatores, a fim dereorientar a alocao de recursos em outros setores da atividade econ-

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3039

  • 4mica. nesse sentido que se fala de destruio da inclinao natural paracerto tipo de acumulao5.

    O terceiro aspecto a ganhar relevo dentro do processo da novaarticulao refere-se ao papel da agricultura. Esta tem uma nova eimportante funo, no to importante por ser nova mas por ser qualita-tivamente distinta. De um lado, por seu subsetor dos produtos deexportao, ela deve suprir as necessidades de bens de capital e intermedi-rios de produo externa, antes de simplesmente servir para o pagamen-to dos bens de consumo; desse modo, a necessidade de mant-la ativa evidente por si mesma. O compromisso entre mant-la ativa e noestimul-la como setor e unidade central do sistema, a fim de destruiro velho mercado, ser um dos pontos nevrlgicos de todo o perodo:ao longo dos anos assiste-se aos booms e s depresses, os quais afetarosensivelmente o ritmo da acumulao global, mas possvel dizer queo compromisso logrado, ainda que instavelmente. De outro lado, porseu subsetor de produtos destinados ao consumo interno, a agriculturadeve suprir as necessidades das massas urbanas, para no elevar o custoda alimentao, principalmente e secundariamente o custo das matrias-primas, e no obstaculizar, portanto, o processo de acumulao urbano-industrial. Em torno desse ponto girar a estabilidade social do sistemae de sua realizao depender a viabilidade do processo de acumulaopela empresa capitalista industrial, fundada numa ampla expanso doexrcito industrial de reserva.

    A soluo do chamado problema agrrio nos anos da passagemda economia de base agrrio-exportadora para urbano-industrial um

    O crescimento das funes do Estado implica necessariamente o crescimento damquina estatal, portanto da burocracia e da tecnocracia. No perodo da transio,o crescimento desses dois agentes do aparelho estatal uma funo mais estrita dadiferenciao da diviso social do trabalho no nvel da economia e da sociedade comoum todo, ao passo que em perodos mais recentes principalmente aps os anosiniciais da dcada de 1960 o crescimento da burocracia e da tecnocracia funomais estrita da diferenciao da diviso social do trabalho no nvel do prprio Estado,j que na economia como um todo, completada a formao do novo mercado,novas leis restauravam em parte sua automaticidade.

    5

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3040

    2 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 43

    ponto fundamental para a reproduo das condies da expanso capita-lista. Ela um complexo de solues, cujas vertentes se apiam noenorme contingente de mo-de-obra, na oferta elstica de terras e naviabilizao do encontro desses dois fatores pela ao do Estado cons-truindo a infra-estrutura, principalmente a rede rodoviria. Ela umcomplexo de solues cujo denominador comum reside na permanenteexpanso horizontal da ocupao com baixssimos coeficientes de capita-lizao e at sem nenhuma capitalizao prvia: numa palavra, operacomo uma sorte de acumulao primitiva. O conceito, tomado deMarx, ao descrever o processo de expropriao do campesinato comouma das condies prvias para a acumulao capitalista, deve ser, paranossos fins, redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processo emque no se expropria a propriedade isso tambm se deu em larga escalana passagem da agricultura chamada de subsistncia para a agriculturacomercial de exportao , mas se expropria o excedente que se formapela posse transitria da terra. Em segundo lugar, a acumulao pri-mitiva no se d apenas na gnese do capitalismo: em certas condiesespecficas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elabora-o de periferias, a acumulao primitiva estrutural e no apenasgentica. Assim, tanto na abertura de fronteiras externas como in-ternas, o processo idntico: o trabalhador rural ou o morador ocupaa terra, desmata, destoca, e cultiva as lavouras temporrias chamadasde subsistncia; nesse processo, ele prepara a terra para as lavouraspermanentes ou para a formao de pastagens, que no so dele, masdo proprietrio. H, portanto, uma transferncia de trabalho morto,de acumulao, para o valor das culturas ou atividades do proprietrio,ao passo que a subtrao de valor que se opera para o produtor diretoreflete-se no preo dos produtos de sua lavoura, rebaixando-os. Essemecanismo o responsvel tanto pelo fato de que a maioria dos g-neros alimentcios vegetais (tais como arroz, feijo, milho) que abaste-cem os grandes mercados urbanos provenham de zonas de ocupaorecente, como pelo fato de que a permanente baixa cotao deles tenhacontribudo para o processo de acumulao nas cidades; os dois fen-menos so, no fundo, uma unidade. No caso das fronteiras externas,

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3041

  • 44

    o processo se d mediante o avano da fronteira agrcola que se expan-de com a rodovia: norte do Paran, com o surto do caf nas dcadasde 1940 e 1950; Gois e Mato Grosso, na dcada de 1960, com apenetrao da pecuria; Maranho, na dcada de 1950, com a penetra-o do arroz e da pecuria; Belm-Braslia, na dcada de 1960; oeste doParan e sul de Mato Grosso nos ltimos quinze anos, com a produode milho, feijo, sunos. No caso das fronteiras internas, a rotao deterras e no de culturas, dentro do latifndio, tem o mesmo papel: oprocesso secular que se desenvolve no Nordeste, por exemplo, tpicodessa simbiose. O morador, ao plantar sua roa, planta tambm oalgodo, e o custo de reproduo da fora de trabalho a varivel quetorna comercializveis ambas as mercadorias.

    Chega a parecer paradoxal que a agricultura primitiva possa concor-rer com uma agricultura que incorporasse a utilizao de novos insumos,como adubos, fungicidas, pesticidas, prticas distintas de cultivo, e, sobre-tudo, com mecanizao. Duvida-se teoricamente de que os custos daque-la sejam competitivos e at mais baixos que os possveis custos desta. Noentanto, no Estado de So Paulo, em 1964, no municpio de Itapeva,a cultura do milho era economicamente mais rentvel para os agricul-tores que praticavam uma tcnica composta de trao animal com usode pouco adubo em relao aos que praticavam uma tcnica agrcola detrao motorizada e uso de muito adubo. Enquanto a primeira erautilizada nas lavouras de 1-4 e 5-8 alqueires, a segunda era praticada pelaslavouras de 40-80 alqueires: a renda lquida por alqueire era deCr$89,742 para as lavouras de tcnica mais atrasada, enquanto para aslavouras de tcnica mais adiantada era de Cr$79,654, tudo em cruzeirosde 1964, ainda quando o rendimento por alqueire (economias de escalade grande plantao) da tcnica adiantada fosse quase 60% mais elevadoque o da tcnica atrasada6. O exemplo, mesmo que possa parecer

    Dados do estudo realizado por O. T. Ettori, Aspectos econmicos da produode milho em So Paulo, recalculados por Ruy Miller Paiva, O mecanismo deautocontrole no processo de expanso da melhoria tcnica da agricultura, RevistaBrasileira de Economia, ano XXII, n. 3, setembro de 1968.

    6

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3042

    Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 45

    isolado, referente a um s municpio, vlido para a maior parte daagricultura brasileira de milho, e mais eloqente por localizar-se emSo Paulo, onde presumivelmente vrias condies deveriam favorecero uso de tcnicas adiantadas. Uma combinao, pois, de oferta elsticade mo-de-obra e oferta elstica de terras reproduz incessantementeuma acumulao primitiva na agricultura, dando origem ao que RuyMiller Paiva chamou de mecanismo de autocontrole no processo deexpanso da melhoria tcnica na agricultura7.

    O modelo descrito anteriormente, ainda que simplificado, tem im-portantes repercusses, tanto no mbito das relaes agricultura-inds-tria, como no nvel das atividades agrcolas em si mesmas. Em primeirolugar, ao impedir que crescessem os custos da produo agrcola emrelao industrial, ele tem um importante papel no custo de reproduoda fora de trabalho urbana; e, em segundo lugar, e pela mesma razode rebaixamento do custo real da alimentao, ele possibilitou a forma-o de um proletariado rural que serve s culturas comerciais de mer-cado interno e externo. No conjunto, o modelo permitiu que o sistemadeixasse os problemas de distribuio da propriedade que pareciamcrticos no fim dos anos 1950 ao mesmo tempo que o proletariadorural que se formou no ganhou estatuto de proletariado: tanto a legis-lao do trabalho praticamente no existe no campo como a previdn-cia social no passa de uma utopia; isto , do ponto de vista das relaesinternas agricultura, o modelo permite a diferenciao produtiva e deprodutividade, viabilizada pela manuteno de baixssimos padres docusto de reproduo da fora de trabalho e portanto do nvel de vidada massa trabalhadora rural. Esta a natureza da conciliao existenteentre o crescimento industrial e o crescimento agrcola: se verdade quea criao do novo mercado urbano-industrial exigiu um tratamentodiscriminatrio e at confiscatrio sobre a agricultura, de outro lado tambm verdade que isso foi compensado at certo ponto pelo fato deque esse crescimento industrial permitiu s atividades agropecurias man-terem seu padro primitivo, baseado numa alta taxa de explorao da

    Ruy Miller Paiva, op. cit.7

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3043

  • 46

    fora de trabalho. Ainda mais, somente a partir da constituio deuma fora de trabalho urbana operria que passou a existir tambm umoperariado rural em maior escala, o que, do ponto de vista das culturascomerciais de mercado interno e externo, significou, sem nenhuma dvi-da, reforo acumulao.

    A manuteno, ampliao e combinao do padro primitivo comnovas relaes de produo no setor agropecurio tm, do ponto devista das repercusses sobre os setores urbanos, provavelmente maiorimportncia. Elas permitiram um extraordinrio crescimento industriale dos servios, para o qual contriburam de duas formas: em primeirolugar, fornecendo os macios contingentes populacionais que iriamformar o exrcito de reserva das cidades, permitindo uma redefiniodas relaes capital-trabalho, que ampliou as possibilidades da acumula-o industrial, na forma j descrita. Em segundo lugar, fornecendo osexcedentes alimentcios cujo preo era determinado pelo custo de reprodu-o da fora de trabalho rural, combinaram esse elemento com o prpriovolume da oferta de fora de trabalho urbana, para rebaixar o preo desta.Em outras palavras, o preo de oferta da fora de trabalho urbana secompunha basicamente de dois elementos: custo da alimentao8 deter-minado este pelo custo de reproduo da fora de trabalho rural ecusto de bens e servios propriamente urbanos; nestes, ponderava forte-mente uma estranha forma de economia de subsistncia urbana, que sedescrever mais adiante, tudo forando para baixo o preo de oferta dafora de trabalho urbana e, conseqentemente, os salrios reais. Do outrolado, a produtividade industrial crescia enormemente, o que, contrapostoao quadro da fora de trabalho e ajudado pelo tipo de interveno estatal

    Entre 1944 e 1965, os preos de atacado dos gneros alimentcios em geral sobemdo ndice 22 ao ndice 3.198, enquanto os preos correspondentes dos produtosindustriais sobem do ndice 52 ao ndice 5.163, do que se depreende o argumentoutilizado acima, rejeitando-se o argumento contrrio, muito da tese cepalina, de queos custos da produo agrcola obstaculizavam a formao do mercado industrial.Dados da Conjuntura Econmica, citados por Ruy Miller Paiva, Reflexes sobre astendncias da produo, da produtividade e dos preos do setor agrcola do Brasil,Revista Brasileira de Economia, ano XX, ns. 2 e 3, junho/setembro de 1966.

    8

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3044

    Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 47

    descrito, deu margem enorme acumulao industrial das trs ltimasdcadas. Nessa combinao que est a raiz da tendncia concentraoda renda na economia brasileira.

    O quadro descrito nada tem a ver com a oposio formal de quaisquersetores atrasado e moderno, assim como est longe de existir a difun-dida tese da inelasticidade da oferta agrcola, modelo construdo a partirda realidade chilena e generalizado para toda a Amrica Latina pela Cepal,aplicado ao Brasil, repetida e especialmente por Celso Furtado. A inds-tria, como tal, nunca precisou do mercado rural como consumidor, oumelhor dizendo, nunca precisou de incrementos substantivos do mercadorural para viabilizar-se. No sem razo que, instalada e promovida aomesmo tempo que a produo de automveis, a produo de tratoresengatinhou at agora, no chegando a uma vigsima parte daquela co-irm; a produo e o consumo de fertilizantes, que tm experimentadoincrementos importantes no ltimo qinqnio, o tipo de insumo queno altera a relao homem/terra que a base do modelo primitivo daagricultura ou, melhor ainda, intensifica o uso do trabalho. Assim, aorientao da indstria foi sempre e principalmente voltada para osmercados urbanos no apenas por razes de consumo mas, primordial-mente, porque o modelo de crescimento industrial seguido que possi-bilita adequar o estilo desse desenvolvimento com as necessidades daacumulao e da realizao da mais-valia: um crescimento que se d porconcentrao, possibilitando o surgimento dos chamados setores deponta. Assim, no simplesmente o fato de que, em termos de produ-tividade, os dois setores agricultura e indstria estejam distanciando-se, que autoriza a construo do modelo dual; por detrs dessa aparentedualidade, existe uma integrao dialtica. A agricultura, nesse modelo,cumpre um papel vital para as virtualidades de expanso do sistema: sejafornecendo os contingentes de fora de trabalho, seja fornecendo osalimentos no esquema j descrito, ela tem uma contribuio importantena compatibilizao do processo de acumulao global da economia. Deoutra parte, ainda que pouco represente como mercado para a indstria,esta, no seu crescimento, redefine as condies estruturais daquela,introduzindo novas relaes de produo no campo, que torna vivel

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3045

  • 4a agricultura comercial de consumo interno e externo pela formao deum proletariado rural. Longe de um crescente e acumulativo isolamento,h relaes estruturais entre os dois setores que esto na lgica do tipo deexpanso capitalista dos ltimos trinta anos no Brasil. A tenso entreagricultura e indstria brasileiras no se d no nvel das relaes das forasprodutivas, mas se d ou se transfere para o nvel interno das relaesde produo tanto na indstria como na agricultura.

    A formao do setor industrial outro dos pontos crticos do processo.Trata-se, como j se salientou pargrafos atrs, de tornar a empresaindustrial a unidade-chave do sistema e de criar ou consolidar novosparmetros, novos preos de mercado, que canalizem e orientem oesforo da acumulao sobre a empresa industrial. Para tanto, o Estadodeliberadamente intervir, nos pontos e nas formas simplificadamentej enunciadas. A interpretao do arranque industrial que se d ps-anos1930 tem sido exageradamente reduzida chamada substituio deimportaes: a crise cambial encarece os bens at ento importados e,no limite, a no-disponibilidade de divisas e a Segunda Guerra Mundialimpedem, at do ponto de vista fsico, o acesso aos bens importados;isso d lugar a uma demanda contida ou insatisfeita, que ser o horizontede mercado estvel e seguro para os empresrios industriais que, semameaa de competio, podem produzir e vender produtos de qualidademais baixa que os importados e a preos mais elevados. Posteriormente,a adoo de uma clara poltica alfandegria protecionista ampliar as mar-gens de preferncia para os produtos de fabricao interna. No h dvidade que a descrio corresponde, sinteticamente, forma do processo.

    Segundo o modelo dualista cepalino, nessa forma estaria a raiz daformao dos dois plos, o atrasado e o moderno, e a imposio deformas de consumo sofisticadas9 que debilitariam a propenso parapoupar de um lado, e de outro, por serem demandas quantativamentepouco volumosas, obrigariam a indstria a superdimensionar suas unida-

    Este tipo de argumentao ratificado por Celso Furtado em Dependencia Externay Teoria Econmica, El Trimestre Econmico, vol. XXXVIII (2), n. 150, Mxico,1971.

    9

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3046

    8 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 49

    des, adotar tcnicas capital-intensives diminuindo o multiplicador doemprego, trabalhar com capacidade ociosa e deprimir a relao produ-to/capital: a longo prazo, isso redundaria numa deteriorao da taxa delucro e da taxa de inverso e, conseqentemente, da taxa de crescimen-to10. J Maria da Conceio Tavares e Jos Serra11 demonstraram convin-centemente que os supostos dessa construo no se sustentam tantoterica como empiricamente, ainda quando se permanea no marcoconceitual do modelo cepalino. A verdade que do modelo cepalinoesto ausentes conceitos como mais-valia, que so suficientes para expli-car como, ainda no caso de serem corretos os supostos cepalinos, suaconcluso unidirecional equivocada, pois podem aumentar a mais-valiarelativa e ainda a mais-valia absoluta (decrscimo absoluto dos salriosreais e no apenas decrscimo relativo). Por outro lado, a rentabilidadeou a taxa de lucro podem aumentar ainda quando fisicamente o capitalno seja utilizado integralmente: no somente a varivel mais-valiajoga um papel fundamental nessa possibilidade, como as posiesmonopolsticas das empresas, elevando os preos dos produtos.

    O estilo de interpretao ao qual se costumou associar a industriali-zao, tanto na Amrica Latina quanto no Brasil, e que fornece as basespara uma tmida teoria da integrao latino-americana12 privilegia asrelaes externas das economias capitalistas da Amrica Latina e, nessediapaso, transforma a teoria do subdesenvolvimento numa teoria dadependncia13. Parece, assim, que a industrializao substitutiva deimportaes funda-se numa necessidade do consumo e no numa ne-cessidade da produo, verbi gratiae, da acumulao; alm disso, asformas de consumo impostas de fora para dentro parecem no ter nadaque ver com a estrutura de classes, com a forma da distribuio da renda,

    A forma mais completa desse modelo e sua concluso mais radical acham-se formu-ladas por Celso Furtado em Subdesenvolvimento e estagnao na Amrica Latina, Riode Janeiro, Civilizao Brasileira, 1966.Op. cit.Ver ILPES, La brecha comercial y la integracin latinoamericana, Mxico, Siglo XXI,1967.Celso Furtado, Dependencia Externa y Teoria Econmica, op. cit.

    10

    11

    12

    13

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3047

  • e so impostas em abstrato: comea-se a produzir bens sofisticados deconsumo, e essa produo que cria as novas classes, que conformao padro de distribuio da renda, que perverte a orientao doprocesso produtivo, levando no seu paroxismo recriao do atrasa-do e do moderno. No entanto, a experincia histrica muito prxi-ma de ns encarrega-se de demonstrar exatamente o contrrio do queafirma essa verso da teoria do subdesenvolvimento: a Argentinaindustrializou-se, no perodo 1870-1930, em plena fase de crescenteintegrao com a economia capitalista internacional, em regime pre-ponderantemente livre-cambista, em perodos nos quais dispunha deampla capacidade de importao. A que se deve isso? Simplesmente razo que no difcil reconhecer se no se quer complicar o que simples de que a industrializao sempre se d visando, em primeirolugar, atender s necessidades da acumulao, e no s do consumo.Concretamente, se existe uma importante massa urbana, fora de traba-lho industrial e dos servios, e se importante manter baixo o custode reproduo dessa fora de trabalho a fim de no ameaar a inverso,torna-se inevitvel e necessrio produzir bens internos que fazem partedo custo de reproduo da fora de trabalho; o custo de oportunidadeentre gastar divisas para manter a fora de trabalho e produzir interna-mente favorece sempre a segunda alternativa e no a primeira. NoBrasil, tambm foi assim: comeou-se a produzir internamente emprimeiro lugar os bens de consumo no-durveis destinados, primordial-mente, ao consumo das chamadas classes populares (possibilidade respal-dada, alm de tudo, pelo elenco de recursos naturais do pas) e noo inverso, como comumente se pensa. O fato de que o processotenha desembocado num modelo concentracionista, que numa segun-da etapa de expanso vai deslocar o eixo produtivo para a fabricaode bens de consumo durveis, no se deve a nenhum fetiche ounatureza dos bens, a nenhum efeito-demonstrao, mas redefiniodas relaes trabalho-capital, enorme ampliao do exrcito industrial dereserva, ao aumento da taxa de explorao, s velocidades diferenciais decrescimento de salrios e produtividade que reforaram a acumula-o. Assim, foram as necessidades da acumulao e no as do consumo

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3048

    50 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 51

    que orientaram o processo de industrializao: a substituio de importa-es apenas a forma dada pela crise cambial, a condio necessria,porm no suficiente.

    Numa segunda etapa, o processo dirigiu-se produo dos bens deconsumo durveis, intermedirios e de capital. possvel perceber-se,tambm, que a orientao decorreu mais das necessidades da produ-o/acumulao que do consumo: este privilegiado sempre no nvelda ideologia desenvolvimentista (anlise do Grupo Cepal-BNDE queforneceu as bases para o Plano de Metas do perodo Kubitschek), mas duvidoso que o melhor atendimento ao consumo fosse mais racional-mente logrado com produtos de qualidade inferior e de preos maisaltos. Ainda no nvel do discurso dos planos de desenvolvimento fcilperceber que realmente a varivel privilegiada a dos efeitos interindustriaisdas novas produes, isto , a produo e a acumulao. Pouco impor-ta, para a rationale da acumulao, que os preos nacionais sejam maisaltos que os dos produtos importados: ou melhor, preciso exatamenteque os preos nacionais sejam mais altos, pois ainda quando eles se trans-mitam interindustrialmente a outras produes e exatamente por issoelevem tambm a mdia dos preos dos demais ramos chamados din-micos, do ponto de vista da acumulao essa produo pode realizar-seporque a redefinio das relaes trabalho-capital deu lugar concentra-o de renda que torna consumveis os produtos e, por sua vez, reforaa acumulao, dado que a alta produtividade dos novos ramos emcomparao com o crescimento dos salrios d um salto de qualidade,reforando a tendncia concentrao da renda. O que absolutamentenecessrio que os altos preos no se transmitam aos bens que formamparte do custo de reproduo da fora de trabalho, o que ameaaria aacumulao. J os preos dos produtos dos ramos chamados dinmi-cos podem e at devem ser mais altos comparativamente aos impor-tados, porque a realizao da acumulao que depende deles se realizainterna e no externamente. Em outras palavras, somente tem sentidofalar em preos competitivos quando se trata de produtos que vo aomercado externo: para o processo capitalista no Brasil importante queo custo de produo de caf seja competitivo internacionalmente, mas

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3049

  • 5nenhuma importncia tem o fato de que os automveis nacionais sejamduas a trs vezes mais caros que seus similares estrangeiros14. Tendocomo demanda as classes altas em uma distribuio de renda extrema-mente desigualitria, a produo nacional de bens de consumo durveis,dos quais o automvel um arqutipo, encontra mercado e realiza suafuno na acumulao tornando as unidades e os ramos fabris a eladedicados as unidades-chave do sistema: essas no apenas esto entre asmais rentveis e mais promissoras do setor industrial, como orientamo perfil da estrutura produtiva. Um raciocnio neoclssico-marginalistaaconselharia baixa do preo dos automveis, por exemplo, baseado nosuposto de uma alta elasticidade-renda daquela demanda: porm, comopara o sistema e as empresas no o consumo o objetivo, essa manobraapenas significaria vender mais carros sem repercusso favorvel noslucros, que poderiam at baixar15.

    O outro termo da equao urbano-industrial so os chamados servios,um conjunto heterogneo de atividades, cuja nica homogeneidade

    Outra a situao quando se tenta export-los: ento necessrio que eles sejamcompetitivos; da a razo pela qual o subsdio que o Governo d, hoje, s exportaesde manufaturados se situe em torno de 40% do preo FOB. Mas essa exportao marginal para a acumulao e, na maioria dos casos, representa, para a economiaglobal, queima de excedente, embora possa ser timo negcio para as empresas.No Brasil, recentemente, assiste-se a uma evoluo paradoxal do ponto de vista da teoriatradicional, na produo de automveis. A Volkswagen a nica produtora nacionalde veculos de passeio que, pelo volume de vendas de um nico modelo o conhecidoFusca , poderia beneficiar-se de economias de escala, reduzindo, portanto, o custode produo do seu modelo popular e, segundo a teoria convencional, ampliando omercado. A poltica da Volkswagen tem sido completamente oposta a esse modelo: nosltimos anos, a empresa diversificou sua linha de produo, passando da produo deum carro popular para mais de seis modelos diferentes, todos em linha ascensional depreos, buscando, justamente, competir pelo mercado das classes de altas rendas. Omodelo mais sofisticado da Volkswagen se iguala com os automveis da linha Opala,da General Motors, carros evidentemente destinados a uma faixa de mercado que nopode ser chamada de popular. No limite, a Volkswagen ter se quiser continuarcompetindo pelo mercado de altas rendas que mudar totalmente a concepo dosseus veculos, que encontra uma limitao muito sria na pequena potncia do motor,ao contrrio dos seus concorrentes no mercado brasileiro, que tendem todos a motoresde potncia similar aos do mercado americano.

    14

    15

    economia_final.p65 17/9/2003, 15:3050

    2 Francisco de Oliveira

  • Crtica razo dualista 53

    consiste na caracterstica de no produzirem bens materiais. O papel ea funo dos servios numa economia no tm sido matria muitoatraente para os economistas, a julgar pela literatura existente. A obraclssica de Colin Clark, The Conditions of Economic Progress (As condi-es do progresso econmico)* sentou as bases do modelo emprico dedesagregao do conjunto das atividades econmicas nos trs setores,Primrio, Secundrio e Tercirio. Analiticamente, o modelo de Clarktem servido de paradigma para a observao da participao dos trssetores no produto interno bruto, tomando-se a elevao relativa doproduto Secundrio (industrial) e do produto Tercirio (dos servios)como sinal de diversificao e desenvolvimento econmico. Sem embar-go, tambm tem sido usado o modelo de Clark num sentido equivo-cado, qual seja o de confundir as relaes formais entre os trs setorescom suas relaes estruturais, isto , com o papel que cada um desempe-nha no conjunto da economia e com o papel interdependente quejogam entre si. O modelo de Clark , repita-se, emprico-formal: eleassinala apenas as formas da diviso social do trabalho e sua aparioseqencial. Quando utilizado para descrever uma formao econmi-co-social concreta ou um modo de produo, necessrio se faz indagardas relaes estruturais entre os setores e do papel que cada um cumprena estruturao global do modo de produo concreto.

    A utilizao, em abstrato, do modelo de Clark tem levado, nosmodelos analticos da teoria do subdesenvolvimento, a uma interpreta-o equivocada que forma parte do que se chamou linhas atrs o modode produo subdesenvolvido: neste, o setor Tercirio ou de serviosestaria representado, em termos de participao no produto e no em-prego, num quantum desproporcional. Em outras palavras, segundo ostericos do subdesenvolvimento, o setor Tercirio tem participaes nosagregados referidos que ainda no deveria ter : inchado. Uma dascaractersticas, assim, do modo de produo subdesenvolvido ter um