CRÍTICA DA MORAL COMO

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Nietzsche e Seu Sculopor Oswald Spengler Voltando os olhos para o sculo XIX e deixando seus grandes homens passarem diante dos olhos de nossa mente, ns podemos observar uma coisa incrvel sobre a figura de Friedrich Nietzsche, algo que dificilmente foi perceptvel em seu prprio tempo. Todos os outros personagens fantsticos, incluindo Wagner, Strindberg e Tolsti, refletem em certa medida a cor e forma daqueles anos. Cada um deles estava de alguma forma amarrado com o otimismo superficial dos progressistas, com sua tica social e utilitarismo, sua filosofia da matria e da energia, pragmatismo e "adaptao"; cada um deles fez sacrifcios aps sacrifcios ao esprito do tempo. Apenas uma pessoa representa uma separao radical desse padro. Se a palavra "extemporneo", que ele mesmo criou, aplicvel a algum, ento a Nietzsche. Busca-se em vo atravs de toda sua vida e todo seu pensamento por alguma indicao de que ele possa ter sucumbido internamente a algum modismo. Nesse sentido ele a anttese de, e ainda assim em algumas maneiras profundamente relacionado a, um segundo alemo dos tempos modernos cuja vida foi um grande smbolo: Goethe. Esses so os dois nicos alemes notveis cuja existncia possui significncia profunda parte de e em adio a suas obras. Porque amobs estavam conscientes disso desde o incio e continuamente deram expresso a essa conscincia, sua existncia tornou-se um tesouro para nossa nao e uma parte integral de sua histria espiritual. Foi a boa sorte de Goethe ter nascido no pice da cultura ocidental, em um tempo de intelectualidade rica e madura que ele mesmo eventualmente veio a representar. Ele tinha apenas que tornar-se o eptome de seu prprio tempo de modo a alcanar a grandeza disciplinada implicada por aqueles que posteriormente chamaram-no o "Olmpico". Nietzsche viveu um sculo depois, e no meio tempo uma grande mudana ocorreu, uma que apenas agora ns somos capazes de compreender. Foi seu destino vir ao mundo aps o perodo rococ, e estar em meio as dcadas completamente aculturais de 1860 e 1870. Considere as ruas e casas nas quais ele teve que viver, as modas, os mveis, e os costumes sociais que ele tinha que observar. Considere o modo como as pessoas moviam-se em crculo sociais em sua poca, o modo como pensavam, escreviam, e sentiam. Goethe viveu em uma poca plena com respeito pelas formas; Nietzsche almejava desesperadamente por formas que haviam sido destrudas e abandonadas. Goethe precisava apenas afirmar o que ele viu e experimentou ao seu redor; Nietzsche no tinha recurso seno protestar apaixonadamente contra tudo contemporneo, se ele devia resgatar alguma coisa que seus antepassados haviam transmitido-lhe como herana cultural. Ambos estes homens lutaram durante toda sua vida por uma forma e disciplina interiores rgidas. Mas o sculo XIX estava em si mesmo "em forma". Possui o tipo mais elevado de sociedade que a Europa Ocidental jamais conheceu. O sculo XIX no tinham nem uma sociedade distinguida ou qualquer outro tipo de atributos formais. parte dos costumes incidentais da classe alta urbana ele possua apenas os restos espalhados, preservados com grande dificuldade, da tradio aristocrtica e da classe mdia. Goethe foi capaz de compreender e solucionar os grandes problemas de seu tempo como um membro reconhecido de sua sociedade, como ns aprendemos em Wilhelm Meister e Afinidades Eletivas; Nietzsche podia permanecer verdadeiro a sua tarefa apenas virando as costas para a sociedade. Sua solido assombrosa permanece como um smbolo acima e contra a alegre gregariedade de Goethe. Um desses grandes homens deu forma s coisas existentes; o outro ruminou sobre coisas inexistentes. Um deles trabalhou por uma forma prevalecente; o outro contra uma prevalecente ausncia de forma.

parte isso, porm, forma era algo muito diferente para cada um deles. De todos os grandes intelectuais alemes, Nietzsche foi o nico msico nato. Todos os outros - pensadores, poetas, e pintores - haviam sido ou moldadores de material ou separadores de material. Nietzsche vivia, sentia, e pensava pelo ouvido. Ele era, afinal, dificilmente apto com os olhos. Sua prosa no "escrita", ela ouvida - poder-se-ia at mesmo dizer cantada. As vogais e cadncias so mais importantes do que as smiles e metforas. O que ele sentia conforme ele vasculhava as eras era sua melodia, sua mtrica. Ele descobriu os acordes musicais de culturas estrangeiras. Antes dele, ningum havia sabido o tempo da histria. Muitos de seus conceitos - o Dionisaco, o Pathos da Distncia, o Eterno Retorno - devem ser compreendidos bastante musicalmente. Ele sentiu o ritmo do que chamado nobreza, tica, herosmo, distino, e moralidade-mestra. Ele foi o primeiro a experimentar como sinfonia a imagem da histria que havia sido criada por pesquisa acadmica a partir de dados e nmeros - a sequncia rtmica de eras, costumes, e atitudes. Ele mesmo tinha msica, conforme ele andava, falava, vestia, experimentava outras pessoas, constatava problemas, e tirava concluses. O que Bildung havia sido para Goethe, para Nietzsche tato no sentido mais amplo: tato social, moral, histrico, e lingustico, um sentimento para a sequncia apropriada das coisas, tornada mais aguada por seu sofrimento em uma era que tinha muito pouco desse sofrimento. Como Zaratustra, o Tasso de Goethe nasceu do sofrimento, mas Tasso sucumbiu a um sentimento de fraqueza quando confrontado por um mundo contemporneo que ele amava e que ele considerava superior a si mesmo. Zaratustra abominava o mundo contemporneo, e fugiu dele para mundos distantes do passado e do futuro. A inabilidade de sentir-se "em casa" no prprio tempo - esta a maldio alem. Por causa da culpa de nosso passado ns viemos a florescer tarde demais e rpido demais. Comeando com Klopstock e Lessing, ns tivemos que cobrir em oitenta anos uma distncia para a qual outras naes tiveram sculos. Por essa razo ns nunca desenvolvemos uma tradio formal interior ou uma sociedade distinta que pudesse agir como guardi de tal tradio. Ns pegamos emprestadas formas, motivos, problemas, e solues de todos os lados e lutamos com elas, onde outros cresceram com elas e nelas. Nosso fim estava implcito em nosso comeo. Heinrich von Kleist descobriu - ele foi o primeiro a faz-lo - a problemtica de Ibsen ao mesmo tempo em que ele lutou para emular Shakespeare. Esse estado trgico produziu na Alemanha uma srie de personalidades artsticas impressionantes em um tempo em que Inglaterra e Frana j haviam partido para produzir literati - arte e pensamento como profisso ao invs de como um destino. Mas isso tambm causou a fragmentao e frustrao expressada em muito de nossa arte, o impedimento de objetivos finais profundidade artstica. Hoje ns usamos os termpos "Clssico" e "Romntico" para denotar a anttese que apareceu por volta de 1800 em todo lugar na Europa Ocidental, inclusive na Petersburgo literria. Goethe era um Clssico na mesma medida em que Nietzsche era um Romntico, mas estas palavras meramente designam as tonalidades predominantes em suas naturezas essenciais. Cada um deles tambm possua a outra potencialmente, a qual em tempos impelia para a frente. Goethe, cujos monlogos de Fausto e Weststlicher Diwan so os pontos altos da sensibilidade romntica, lutou em todos os momentos para confinar esse impulso pela distncia e ausncia de fronteiras dentro de formas tradicionais claras e estritas. Similarmente, Nietzsche usualmente suprimia sua inclinao adquirida pelo Clssico e pelo racional, que tinham uma fascinao dupla para ele por razo de temperamento e profisso filolgica, pelo que ele denominou Dionisaco, ao menos quando ele estava avaliando. Ambos homens eram casos fronteirios. Assim como Goethe foi o ltimo dos Clssicos, Nietzsche foi, junto a Wagner, o ltimo dos Romnticos. Por suas vidas e suas criaes eles exauriram as possibilidades desses dois movimentos. Aps eles, no era mais possvel representar o sentido das eras nas mesmas

palavras e imagens - os imitadores do drama clssico e os Zaratustras-dos-ltimos-dias provaram isso. Ademais, impossvel inventar um novo mtodo de ver e dizer como o deles. A Alemanha pode muito bem parir mentes formativas impressionantes no futuro; porm, felizmente para ns, eles vo no obstante ser ocorrncias isoladas, pois ns chegamos ao fim do grande desenvolvimento. E eles sempre sero sobrepujados pelas duas grandes figuras de Goethe e Nietzsche. Uma caracterstica essencial do Classicismo Ocidental foi sua preocupao intensa com o mundo contemporneo. Ao mesmo tempo em que buscava controlar impulsos humanos que tendiam em direes opostas, ele tentava fazer com que passado e futuro coalescessem na situao contempornea. O ditado de Goethe sobre as "Demandas do Dia", seu "presente alegre", implicam afinal que ele invocou vrios tipos de figuras e eventos passados - seus Gregos, sua Renascena, Gtz von Berlichingen, Fausto, e Egmont - de modo a infundi-los com o Esprito de seu tempo. O resultado que lendo tais obras como Tasso ou Ifignia ns no estamos de modo algum conscientes de precedentes histricos. Exatamente o oposto o caso com os Romnticos; seu domnio prprio eram lugares e tempos remotos. Eles almejavam ela fuga do presente para reinos distantes e estranhos, para o passado e para o futuro da histria. Nenhum deles jamais teve um relacionamento profundo com as coisas que cercavam-nos. O Romntico enfeitiado por tudo que estranho a sua natureza, o Clssico pelo que prprio a sua natureza. Nobres sonhadores por um lado, nobres mestres dos sonhos por outro lado. Um tipo adorava os conquistadores, os rebeldes, e os criminosos do passado, ou os Estados ideais e super-homens do futuro; o outro tipo construiu o estadismo em termos prticos e metdicos ou, como Goethe e Humboldt, at mesmo praticaram-no. Uma das obras-primas de Goethe o dilogo entre Egmont e Guilherme de Orange. Ele amava Napoleo, pois ele foi testemunha de seus feitos em seu prprio tempo e localidade. Ele nunca foi capaz de recriar artisticamente as personalidades violentas do passado; seu Caesar permaneceu no-escrito. Mas esta precisamente o tipo de personalidade que Nietzsche adorava - distncia. De perto, como com Bismarck, ele sentia-se repelido. Napoleo tambm teria repelido-o. Ele teria parecido-lhe rude, superficial, e acfalo, como os tipos napolenicos que rodeavam-no - os grandes polticos europeus e os comerciantes pragmticos que ele nunca viu, nem mesmo compreendeu. Ele precisava de uma vasta distncia entre o Ento e o Agora de modo a ter um relacionamento genuno com uma dada realidade. Assim ele criou seu Super-Homem e, quase to arbitrariamente, a figura de Cesare Brgia. Essas duas tendncias esto tragicamente presentes na mais recente histria alem. Bismarck era um Clssico da poltica. Ele baseava seus clculos inteiramente em coisas que existiam, coisas que ele podia ver e manipular. Os patriotas fanticos nem amavam-no ou compreendiam-no at que sua obra criativa aparecesse como produto finalizado, at que ele pudesse ser romanticamente transfigurado como um personagem mtico: "O Velho das Florestas Saxs". Por outro lado, Ludwig II da Bavria, que pereceu como um Romntico e que nunca criou ou mesmo poderia ter criado qualquer coisa de valor duradouro, efetivamente recebeu esse tipo de amor (sem retorn-lo) no apenas do povo em grande medida, mas tambm de artistas e pensadores que deveriam ter olhado mais de perto. Kleist considerado na Alemanha com, no mximo, uma admirao relutante que quase equivalente rejeio, particularmente naquelas instncias em que ele foi bem-sucedido em superar sua prpria natureza Romntica. Ele interiormente muito remoto da maioria dos alemes, diferentemente de Nietzsche, cuja natureza e destino foram em muitas maneiras similares do rei bvaro, e que instintivamente honrado at mesmo por aqueles que nunca leram-no.

O desejo de Nietzsche pelo remoto tambm explica seu gosto aristocrtico, que era aquele de um completo solitrio e de uma personalidade visionria. Como o Romantismo ao estilo de Ossian que originou-se na Esccia, o primeiro Classicismo do sculo XIX comeou no Tmisa e foi posteriormente levado para o Continente. impossvel consider-lo parte do Racionalismo do mesmo perodo. Os classicistas engajavam em um ato de criatividade conscientemente e deliberadamente; eles substituam imaginao livre com conhecimento, s vezes at mesmo com erudio acadmico. Eles entendiam os gregos, a Renascena, e inevitavelmente tambm o mundo das questes contemporneas ativas. Esses classicistas ingleses, todos eles de alto nvel social, ajudaram a criar o liberalismo como uma filosofia de vida como era entendido por Frederico o Grande e seu sculo: a ignorncia deliberada das distines que eram sabidas existirem na vida prtica mas que eram em todo caso no consideradas como obstculos; a preocupao racional com questes de opinio pblica das quais no poder-se-ia nem livrar-se ou apagar, mas que de algum modo tinham que ser tornadas inofensivas. Esse classicismo de classe alta deu origem democracia inglesa - uma forma superior de ttica, no um programa poltico codificado. Ele era baseado na longa e intensiva experincia de um estrato social que habitualmente lidava com possibilidades reais e prticas, e que nunca esteve sob risco de perder sua congenialidade essencial. Goethe, que tambm era consciente de seu nvel social, jamais foi um aristocrata no sentido apaixonado e terico - diferentemente de Nietzsche, que carecia da habitualidade de uma experincia prtica regular. Nietzsche jamais tornou-se familiarizado com a democracia de seu tempo em toda sua fora e fraqueza. Certamente, ele rebelou-se contra o instinto de rebanho com a fria de sua alma extremamente sensvel, mas a causa principal de sua ira deve ser encontrada em algum lugar do passado histrico. Ele era indubitavelmente o primeiro a demonstrar de modo to radical como em todas as culturas e pocas do passado as massas no contam para nada, que elas sofrem da histria mas no criam-na, que eles esto em todos os momentos pees e vtimas da vontade pessoal de indivduos e classes nascidas para governar. Pessoas j haviam sentido isso muitas vezes antes, mas Nietzsche foi o primeiro a destruir a imagem tradicional da "humanidade" como progresso na direo da soluo de problemas ideais atravs da agncia de seus lderes. Aqui est a imensa diferena entre a historiografia de um Niebuhr ou de um Ranke, que como idia eram similarmente de origem romntico, e o mtodo de viso histrica de Nietzsche. Seu modo de olhar dentro da alma de pocas e povos passados superou a mera estrutura pragmtica de fatos e eventos. Porm tal tcnica necessitava de distncia. O classicismo ingls, que produziu o primeiro historiador moderno da Grcia em George Grote - um comercianete e poltico prtico - era algo exclusivo da alta sociedade. Ele enobrecia os gregos considerando-os como pares, apresentando-os no mais verdadeiro sentido da palavra como seres humanos distintos, cultivados, intelectualmente refinados que em todo momento agiam "com bom gosto" - mesmo Pndaro, poeta que a escola inglesa de filologia clssica foi a primeira a preferir acima de Horcio e Virglio. Dos crculos mais altos da sociedade inglesa, esse classicismo entrou nos nicos crculos correspondentes na Alemanha, as cortes dos pequenos principados, onde os tutores e sacerdotes agiam como intermedirios. A atmosfera cortes de Weimar era o mundo no qual a vida de Goethe tornou-se o smbolo da convivalidade alegre e da atividade propositada. Weimar era o centro da Alemanha intelectual, um lugar que oferecia satisfao calma em um grau desconhecido por qualquer outro escritor alemo, uma oportunidade para crescimento harmonioso, amadurecimento, e envelhecimento que era clssico em um sentido especificamente alemo. Prxima a essa carreira h outra, que tambm terminou em Weimar. Ela comeou na recluso da casa de um pastor protestante, o bero de muitas seno da maioria das grandes mentes

alems, e alcanou seu pice na solido ensolarada de Engadin. Nenhum outro alemo jamais viveu uma existncia privada to apaixonada, completamente distante de toda sociedade e publicidade - apesar de todos os alemes, mesmo se eles so personalidades "pblicas", possuem um desejo por essa solido. Seu desejo intenso por amizada foi em ltima anlise simplesmente sua inabilidade de liderar uma vida social genuna, e assim era mais uma forma espiritual de solido. Ao invs da amistosa "casa de Goethe" em Weimar, ns vemos as tristes e pequenas casas-de-campo em Sils-Maria, a solido das montanhas e do mar, e finalmente um colapso solitrio em Turim - foi a carreira mais profundamente romntica que o sculo XIX j ofereceu. No obstante, sua necessidade de comunicar-se era mais forte do que ele mesmo acreditava, muito mais forte em qualquer medida do que a de Goethe, que era um dos homens mais taciturnos apesar da vida social que cercava-o. As Afinidades Eletivas de Goethe um livro secreto, para no falar em Os Anos de Viagem de Wilhelm Meister e Fausto II. Seus poemas mais profundos so monlogos. Os aforismas de Nietzsche jamais so monlogos; nem e Cano da Noite e os Ditirambos de Dionsio completamente monlogos. Uma testemunha invisvel est sempre presente, sempre observando. por isso que ele permanecem em todos os momentos um Protestante. Todos os romnticos viveram em escolas e crculos sociais, e Nietzsche inventou algo do tipo imaginando que seus amigos eram, como ouvintes, seus pares intelectuais. Ou novamente, ele criou no passado remoto e no futuro um crculo de ntimos, apenas para reclamar com eles, como Novalis e Hlderlin, de sua solido. Toda sua vida foi preenchida com a tortura e prazer da renncia, do desejo de render-se e de forar sua natureza interior, de amarrar-se de alguma maneira a alguma coisa que sempre provou-se ser estranha a ele. Porm foi assim que ele desenvolveu um entendimento da alma das pocas e culturas que jamais revelariam seus segredos a mentes clssicas e seguras. Esse pessimismo orgnico de seu ser explica as obras e a sequncia na qual elas apareceram. Ns que no fomos capazes de experimentar o grande florescimento do materialismo em meados do sculo XIX jamais deveramos cessar de ficarmos assombrados com a audcia que foi posta na escrita, em to tenra idade e contrariamente s opinies do academicismo filolgico contemporneo, de O Nascimento da Tragdia. A famosa anttese de Apolo e Dionsio contm muito mais do que at mesmo o leitor mdio de hoje pode compreender. A coisa mais significativa sobre aquele ensaio no foi que seu autor descobriu um conflito interior na Grcia "Clssica", a Grcia que havia sido a manifestao mais pura da "humanidade" para todos os outros exceto talvez Bachofen e Burckhardt. Mais importante ainda foi que mesmo naquela idade ele possua a viso superior que permitia-lhe perscrutar dentro do corao de culturas inteiras como se elas fossem indivduos vivos, orgnicos. Ns precisamos apenas ler Mommsen e Curtius para notar a tremenda diferena. Os outros consideravam a Grcia simplesmente como a soma das condies e eventos ocorrendo dentro de um certo perodo do tempo e do espao. Nosso mtodo presente de olhar para a histria deve sua origem, mas no sua profundidade, ao Romantismo. Nos dias de Nietzsche, a histria, no que concernia Grcia e Roma, era pouco mais do que filologia aplicada, e em relao aos povos ocidentais concernia pouco mais do que pesquisa arquivolgica aplicada. Ela inventou a idia de que a histria comeou com os registros escritos. A liberao dessa perspectiva veio do esprito da msica. Nietzsche o msico inventou a arte de sentir o prprio caminho no estilo e no ritmo das culturas estrangeiras, parte de e muitas vezes em contradio com os documentos escritos. Mas que importavam mesmo os documentos escritos? Com a palavra "Dionsio" Nietzsche descobriu aquilo que os arquelogos eventualmente trouxeram luz trinta anos depois - o submundo e o inconsciente da Cultura Clssica, e ultimamente a fora espiritual que subjaz toda a histria. A descrio histrica

tornou-se a psicologia da histria. O sculo XIX e o classicismo, incluindo Goethe, acreditavam em "cultura" - uma nica, verdadeira, mental e moral cultura como a tarefa de uma humanidade unificada. Desde o incio Nietzsche falou bem naturalmente de "culturas" como fenmenos naturais que simplesmente comeavam em um certo tempo e lugar, sem razo ou objetivo ou o que seja que uma interpretao demasiado humana pudesse fazer daquilo. "Em um certo tempo" - o ponto foi tornado claro desde o incio no livro de Nietzsche de que todas essas culturas, verdades, artes, e atitudes so peculiares a um modo de existncia que faz seu aparecimento em u mcerto tempo e ento desaparece para sempre. A idia de que cada fato histrico a expresso de um estmulo espiritual, que culturas, pocas, estados e raas possuem uma alma como aquela dos indivduos - esse foi um passo to grande na anlise de profundidade histrica que at mesmo o prprio autor no estava consciente na poca de suas verdadeiras implicaes. Porm, uma das coisas que o romntico deseja escapar de si mesmo. Esse desejo, junto com o grande azar de ter nascido naquele perodo particular da histria, fizeram com que Nietzsche tornasse-se o arauto da mais banal forma de realismo em seu segundo livro, Humano, Demasiado Humano. Esses foram os anos nos quais o Racionalismo Ocidental, aps abandonar seus primrdios gloriosos com Rousseau, Voltaire, e Lessing, terminou como farsa. As teorias de Darwin, junto com a nova f na matria e na energia, tornaram-se a religio das grandes cidades; a alma foi considerada como um processo qumico envolvendo protenas, e o sentido do universo resumiu-se tica social de filisteus iluminados. Nem uma nica fibra do ser de Nietzsche era parte desses desenvolvimentos. Ele j havia dado vazo a seu desprezo na primeira de suas "Consideraes Intempestivas", mas o acadmico nele invejava Chamfort e Vauvenargues e sua leveza e s vezes cnica maneira de tratar tpicos srios no estilo do grand monde. O artista e o entusiasta nele estavam perplexos pela sobriedade massiva de um Eugen Dhring, que ele confundiu com verdadeira grandeza. Carter sacerdotal que ele era, ele precedeu a desmascarar a religio como um pr-conceito. Agora o objetivo da vida era o conhecimento, e o objetivo da histria tornou-se para ele o desenvolvimento da inteligncia. Ele disse isso em um tom de ridculo que servia para aguar sua prpria paixo, precisamente porque era doloroso faz-lo, e porque ele sofria do desejo insatisfeito de criar em meio a seu prprio tempo uma imagem sedutora do futuro que contrastasse com tudo em que ele nasceu. Enquanto o utilitarismo exttico da escola darwinista era extremamente remoto em relao ao seu modo de pensar, ele tomou dela certas revelaes secretas com as quais nenhum darwinista jamais sonou. Em Aurora e A Gaia Cincia apareceram, em adio a uma maneira de olhar para as coisas que pretendia ser prosaica e mesmo desdenhosa, outra tcnica de examinar o mundo uma atitude restrita, quieta, e admiradora que penetrou mais profundamente do que qualquer mero realista poderia esperar alcanar. Que, antes de Nietzsche, jamais havia falado da mesma maneira da alma de uma era, de um estado, uma profisso, do sacerdote e do heri, ou do homem e da mulher? Quem jamais foi capaz de resumir a psicologia de sculos inteiros em uma frmula quase metafsica? Quem jamais havia postulado em histria, ao invs de fatos e "verdades eternas", os tipos da vida herica, sofredora, visionria, forte, e doentia como a substncia atual dos eventos como eles ocorrem? Esse era um tipo completamente novo de formas vivas, e somente poderia ter sido descoberto por um msico nato com um sentimento para ritmo e melodia. Seguindo essa apresentao da fisionomia das eras da histria, uma cincia da qual ele foi e sempre ser o criador, ele alcanou os limites exteriores de sua viso para descrever os smbolos de um futuro, seu futuro, que ele precisava de modo a ser limpo do resduo da histria contempornea. Em um momento sublime ele conjurou a imagem do Eterno Retorno, como ela havia sido vagamente apresentada por msticos alemes na Idade Mdia - um crculo sem fim no vcuo eterno, na noite das eras incomensurveis, um modo de perder a prpria alma completamente nas profundezas

misteriosas do cosmo, independentemente de tais coisas serem cientificamente justificveis ou no. No meio dessa viso ele posicionou o Super-Homem e seu profeta, Zaratustra, representando o sentido incarnado da histria humana, em toda sua brevidade, no planeta que era seu lar. Todas essas trs criaes eram completamente distantes, impossveis de relacionar com condies contemporneas. Por essa prpria razo elas exerceram uma curiosa atrao sobre cada alma alem. Pois em cada alma alem h um lugar no qual sonhos so sonhados de ideais sociais e de um futuro melhor para a humanidade. Goethe carecia de tal canto em sua alma, e por isso que ele nunca tornou-se um personagem realmente popular. O povo sentia essa carncia, e assim eles chamavam-no de arredio e frvolo. Ns jamais superaremos esse nosso devaneio; ele representa dentro de ns a poro no vivida de um grande passado. Uma vez tendo chegado a seu pice, Nietzsche apresentou a questo sobre o valor do mundo, uma questo que acompanhava-o desde a infncia. Fazendo-o ele ps fim ao perodo da filosofia ocidental que havia considerado os tipos do conhecimento como seu problema central. Essa nova questo similarmente tinha duas respostas: uma resposta clssica e uma romntica ou, para coloc-lo nos termos do tempo, uma resposta social e uma aristocrtica. "A vida possui valor na mesma medida em que serve a totalidade" - essa era a resposta dos ingleses educados que haviam aprendido em Oxford a distinguir entre o que uma pessoa afirmava como sua opinio e o que a mesma pessoa fazia em momentos decisivos como um poltico ou comerciante. "A vida mais valiosa, quanto mais fortes forem seus instintos" - essa foi a resposta dada por Nietzsche, cuja prpria vida era delicada e facilmente afetada. Seja como for, pela mesma razo que ele era remoto da vida ativa ele era capaz de compreender seus mistrios. Sua compreenso ltima da histria real era que a Vontade de Poder mais forte do que todas as doutrinas e princpios, e que ela sempre fez e sempre far a histria, no importa o que outros possam provar ou pregar contra isso. Ele no preocupava-se com a anlise conceitual de "vontade"; para ele a coisa mais importante era a imagem da Vontade ativa, criativa, destrutiva na histria. O "conceito" de vontade dava lugar ao "aspecto" de vontade. Ele no ensinava, ele simplesmente apontava as coisas: "Assim foi, e assim ser." Mesmo que indivduos tericos e sacerdotais queiram mil vezes diferentemente, os instintos primordiais da vida ainda assim emergero vitoriosos. Que diferena entre a viso de mundo de Schopenhauer e esta! E entre os contemporneos de Nietzsche, com seus planos sentimentais para melhorar o mundo, e esta demonstrao de fatos! Tal realizao coloca este ltimo pensador romntico no prprio pinculo do seu sculo. Nisso ns somos todos seus pupilos, quer queiramos ser ou no, quer saibamos disso ou no. Sua viso j conquistou imperceptivelmente o mundo. Ningum escreve histria mais sem buscar ver as coisas sob sua luz. Ele assumiu para si avaliar a vida usando fatos como o nico critrio, e os fatos ensinaram que a vontade mais forte ou mais fraca de vencer determinam se a vida valiosa ou indigna, que bondade e sucesso so quase mutuamente exclusivas. Sua imagem do mundo alcanou sua culminao com uma magnfica crtica da moralidade na qual, ao invs de pregar moralidade, ele avaliou as moralidades que surgiram na histria - no segundo qualquer sistema moral "verdadeiro" mas segundo seu sucesso. Isso foi de fato uma "transvalorao de todos os valores", e ainda que ns saibamos agora que ele declarou inexatamente a anttese entre moralidade crist e moralidade-mestra como resultado de seu sofrimento pessoal durante a dcada de 1880, no obstante a anttese ltima da existncia humana encontra-se por trs dessa afirmao; ele buscou-a, e sentiu-a, e acreditou que havia capturado-a com sua frmula. Se ao invs de "moralidade mestra" ns dissssemos a pratica instintiva de homens que esto determinados a agir, e ao invs de "moralidade crist" os modos tericos nos quais pessoas

contemplativas avaliam, ento ns teramos diante de ns a natureza trgica de toda a humanidade, cujos tipos dominantes sempre no entendero, combatero, e sofrero um com o outro. Ao e pensamento, realidade e ideal, sucesso e redeno, fora e bondade - essas so as foras que jamais viro a termos uma com a outra. Porm na realidade histrica no o ideal, a bondade, ou a moralidade que prevalecem - seu reino no desse mundo - mas sim a decisividade, a energia, a presena mental, o talento prtico. Esse fato no pode ser descartado com lamentaes e condenaes morais. O homem assim, a vida assim, a histria assim. Precisamente porque toda ao era estranha a ele, porque ele sabia apenas como pensar, Nietzsche compreendeu a essncia fundamental da vida ativa mehor do que qualquer grande personalidade ativa do mundo. Mas quanto mais ele compreendeu, mais timidamente ele recolheu-se de contato com a ao. Nesse modo seu destino romntico alcanou sua realizao. Sob a fora dessas ltimas compreenses, a fase final de sua carreira tomou forma no contraste estrito quela de Goethe, que no esta estranho aom as que considerava sua verdadeira vocao como sendo a poesia, e assim restringiu alegremente suas aes. Goethe, o Conselheiro Privado e Ministro, o celebrado ponto focal do intelecto europeu, foi capaz de confessar durante seu ltimo ano de vida, no ato final de seu Fausto, que ele olhava para sua vida como tendo alcanado realizao plena. "Espere agora, tu s to bela" - essa uma frase expressiva da mais prazeirosa saciedade, falada no momento em que o trabalho fsico ativo est completo sob o comando de Fausto, para perdurar agorar e para sempre. Foi o grande e ltimo smbolo do Classicismo para o qual essa vida havia sido dedicada, e que levou da educao cultural controlada do sculo XVIII para o exerccio controlado do talento pessoal do sculo XIX. Porm, no pode-se criar distncia, apenas pode-se proclam-la. Tanto quanto a morte de Fausto trouxe uma carreira clssica a um fim, a mente do mais solitrios dos vagantes desapareceu com uma maldio sobre sua idade durante aqueles misteriosos dias em Turim, quando ele testemunhou as ltimas nvoas desaparecem de sua imagem do mundo e dos picos mais altos clarearem em suas vistas. Esse episdio final enigmtico de sua vida a prpria razo pela qual a existncia de Nietzsche tem tido uma forte influncia sobre o mundo desde ento. A vida de Goethe foi uma vida plena, e isso quer dizer que ela trouxe algo completude. Incontveis alemes honraro Goethe, vivero com ele, e buscaro seu apoio; mas ele no pode jamais transform-los. O efeito de Nietzsche uma transformao, pois a melodia de sua viso no terminou com sua morte. A atitude romantica eterna; ainda que sua forma possa s vezes estar unificada e completa, seu pensamento nunca . Ele sempre conquistar novas reas, ou destruindo-as ou mudando-as radicalmente. O tipo de viso de Nietzsche passar tanto a amigos como a inimigos, e estes por sua vez transmitir-lhe-o a outros seguidores e adversrios. Mesmo que algum dia ningum mais leia suas obras, sua viso perdurar e ser criativa. Sua obra no parte de nosso passado para ser aproveitada; uma tarefa que faz de ns todos servos. Como uma tarefa ela independente de seus livros e seu tema, e assim um problema do destino alemo. Em uma era que no tolera ideais outromundistas e vinga-se de seus autores, quando a nica coisa de valor reconhecvel o tipo de ao impiedosa que Nietzsche batizou com o nome de Cesare Borgia, quando a moralidade dos idelogos e dos melhoradores do mundo limitada cada vez mais radicalmente do que nunca a escritos e discursos suprfluos e incuos - em tal era, a no ser que aprendamos a agir conforme a histria real quer que ajamos, ns cessaremos de existir como povo. Ns no podemos viver sem uma forma de sabedoria que no console meramente em situaes difceis, mas ajude a escapar delas. Esse tipo de sabedoria dura faz seu primeiro aparecimento no pensamento alemo com Nietzsche, apesar do fato de que estava mascarado em pensamentos e impresses que ele havia reunido de outras fontes.

Para o povo mais esfomeado de histria em todo o mundo, ele mostrou a histria como ela realmente . Sua herana a obrigao de viver a histria da mesma maneira.

Ao Princpio Foi Nietzschepor Marcello Veneziani O sculo XX nasceu com a morte de Nietzsche e terminou com o renascimento de Nietzsche; um destino circular, como o Eterno Retorno cantado por Zaratustra. J advertiu-o o prprio Friedrich: "Falar-se- de mim no sculo XX, compreeder-me-o depois do sculo XX"... Nietzsche dizia sentir-se em casa no sculo XXI...ele, o renegado do sculo XIX, o pai do sculo XX. Ernst Jnger, parafraseando o Super-Homem de Nietzsche, definiu o sculo XX como a era dos tits. Qui o XXI seja o sculo da conquista do Super-Homem, ou qui no, porque o "novo homem" no seno um subproduto prometico dos sonhos da ideologia e da tecnologia, os dois grandes atributos popularmente atribudos ao "bermensch" nietzscheano, o Super-Homem no sentido de Tit, aquele que galvaniza a Vontade de Poder (mal traduzida s vezes como "vontade de potncia"), o Ultra-Homem, em tudo distante e contraposto a esse ltimo Homem de nossa virada do milnio. O sculo XXI anuncia-se por isso como o sculo da guerra civil nietzscheana, pois j vislumbram-se sobre o horizonte novos renascimentos do filsofo. O Super-Homem espreita em cada encruzilhada, e a ditadura que sobre ele exercem os "ltimos homens" ("Den letzten Menschen", "homens envelhecidos prematuramente pelo niilismo", saciados de tudo e de nada, conformistas em sua vida carente de sentido) resulta-lhe intolervel. A centria passada foi a das interpretaes de Nietzsche, dos sucessivos "renascimentos" cclicos de periodicidade mais ou menos duodecimal. Ernst Nolte foi o ltimo em ressuscitar o filsofo de sua tumba em Sils Maria. Sua obra Nietzsche e o Nietzscheanismo deveria, em propriedade, entitular-se Nietzsche Contra Marx, pois suas pretenses no so outras seno opor o fascismo ao comunismo, tal como Nolte entende ambos conceitos: vulgarizados ao mximo. Os dois filsofos do martelo so vistos por Nolte como os idelogos mais importantes daquela gigantesca guerra civil que caracterizou a histria do sculo XX e materializou-se em dois conflitos mundiais de caractersticas apocalpticas...ou qui, mais exatamente, "ragnarokicas", prprias de um crepsculo dos deuses. Nesta radical anttese, Nolte no deixa de descobrir analogias subterrneas, em verdade um tanto frgeis: por exemplo, as referncias comuns Grcia clssica, que no economista so muito mais imprecisas e infrequentes que no fillogo (normal, por outra parte: Nolte esquece pressupomos que no ignora - que Nietzsche ganhava a vida como professor de grego clssico). O helenismo marxiano seria acusado pelo apstolo do politesmo dionisaco como "monotesta" e "apolneo". Ao contrrio, a influncia que exerceu em ambos a crtica de Feuerbach s religies aparece marginal em Nietzsche frente centralidade que assume em Marx. A ns resulta-nos mais curioso, e muito mais significativo, que nas bibliotecas pblicas alems do incio do sculo XX os livros do aristocrtico Nietzsche eram trinta vezes mais lidos pelos operrios que as obras de Marx (mostrou-o um estudo sobre as fichas de sada nas bibliotecas municipais de Berlim e Hamburgo), ou que na Rssia nas vsperas da revoluo bolchevique as edies em russo de Assim Falou Zaratustra alcanavam j o nmero 18 frente solitria traduo cirlica de "O Capital". A nica concluso possvel que a leitura nacionalista, ou de direita, de Nietzsche foi, quando menos, precedida pela apropriao anrquica de muitos exegetas que converteram-o em um novo Stirner.

A histria das interpretaes de Nietzsche poderia fabulisticamente entitular-se como A Histria de Friedrich e os Sete Anes Nietzscheanos. A primeira das exegeses popularizadas de Nietzsche, que arrancando com Bandres e continuando com Stefan George acaba em D'Annunzio, de tipo esttica e estetizante. O aristocratismo de Nietzsche aparece aqui fundado sobre a superioridade da arte e do artista, em uma espcie de redeno da vida atravs da beleza. A esta leitura esttica seguiu imediatamente a leitura poltica, porm, curiosamente, oposta quela leitura nacionalista estetizante de um Barrs ou um Corradini, por exemplo. O primeiro intrprete em chave poltica de Nietzsche, desde a esquerda, foi o jovem socialista Benito Mussolini, em uma memorvel obra datada de 1918 e entitulada em italiano Filosofia della Forza, onde a idia do Super-Homem aparece ligada ao impulso ateu, revolucionrio, subversivo, filtrado pelas lentes de Sorel e Pareto. O dito poder ser embaraoso para muitos, porm no deixa de ser constatvel. O terceiro Nietzche foi o pangermano; o Nietzsche prologado por sua prpria irm Elizabeth Fster Nietzsche e legitimado por Baeumler entre a msica de fundo dos corais wagnerianos. a este Nietzsche a quem refere-se o mais insano dos vulgarizadores de Marx, Lukacs, como o "portavoz do capitalismo em sua fase mais agressiva". Depois chegou o Nietzsche filsofo-puro (uma definio que teria tirado do srio o prprio Friedrich); desvinculado de toda esttica e poltica; este o Nietzsche presente nas obras de Heidegger, para quem o Assim Falou Zaratustra deveria ser ldo do mesmo modo rigoroso que um Tratado sobre a Moral de Aristteles. Com Heidegger, Nietzsche deixa de ser o profeta do Super-Homem para tornar-se o filsofo do Ultra-Homem. E atravs desta chave como chegase leitura "libertria", "ecologista", "ps-moderna" de Nietzsche, acima de tudo atravs dos ps-marxistas italianos, com Vattimo cabea, que inclusive tem suas representaes cinematogrficas na diretora francesa Liliana Cavan. Pela outra parte no faltaram as tentativas de conjugar Nietzsche com o tradicionalismo, seja em negativo, como testemunho do niilismo, seja em positivo, como o profeta da f no antimodernismo e no anti-igualitarismo. Tal foi a muito lcida leitura de Julius Evola e de seu sucessor Adriano Romualdi, ou, por outras veredas, a de Rudolf Steiner. Tampouco faltaram os que situam Nietzsche no contexto de uma crtica interior da tradio crist, desde Jaspers at Max Scheler, para quem a luta de Nietzsche contra o cristianismo produto de sua "cristandade", de seus impulsos radicais cristos que evidenciar-se-iam no: a) convencimento de que o homem tem conhecimento da histria humana na totalidade de seu processo; b) a idia da moral e a espiritualidade como bases da cincia; c) a idia de que o homem "algo essencialmente falido" (ainda que a essa leitura crist pode objetar-se que o "mal" em Nietzsche entende-se em seu sentido grego de "ausncia", nunca como "corrupo" ou "pecado original"). Jaspers definiu a Nietzsche como "um homem de Deus que nunca chegou a compreender-se", comentando a famosa citao de Heidegger segundo a qual "Nietzsche foi o nico crente do sculo XIX". Lwith protestar ante essa leitura, reafirmando "o atesmo radical de Nietzsche, no qual no cabe dvida". Tambm protestou Alain de Benoist, destacando antes de tudo o paganismo de Nietzsche e sustentando que a peculiaridade de seu pensamento reside em sua "historicidade", enquanto que suas referncias metafsicas seriam uma sombra contraditria que alarga-se desproporcionada e indevidamente.

Dois filsofos catlicos como Roberto Sciacca e Augusto del Noce viram em Nietzsche o ponto mais alto ao qual pode chegar o niilismo em sua crtica modernidade e em sua busca desesperada de sentido, um ponto tal que somente pode esperar reencontrar a Deus. Nesta contabilidade de interpretaes todavia escapa-se um Nietzsche emboscado, voluntariamente eclipsado, um Nietzsche em tudo contraposto a sua imagem negativa que hoje prevalece, por cima dos grupos folclricos ou marginais, tipo skinheads, que fazem do SuperHomem sua pardia, porm tambm acima dessa imagem to grata aos banqueiros, os anarcocapitalistas e os novos burgueses bomios, que fazem do niilismo uma espcie de egosmo sagrado para os abastados. O Nietzsche do Super-Homem, da vontade de poder, do darwinismo social, est bemp resente hoje nas vulgarizaes de Superman, de Rambo, dos senhoras da bolsa e do poder sem escrpulos dissimulado sob o traje hipcrita da boa conscincia tica, liberal e democrtica. O Nietzsche do populacho a perfeita representao daquilo que Lukacs descreve em A Destruio da Razo como a expresso mais forte da vontade de poder do capitalismo. Este no Nietzsche, nem se quer um dos sete anes nietzscheanos, seno um primo invejoso que fez fortuna e que podemos encontrar, por exemplo, nos escritos de um tal Achad Haam, lder sionista do incio do sculo XX que desde ttulos como De Sils Maria a Jerusalm, encontra em Nietzsche motivos suficientes para legitimar um futuro Estado hebreu na Palestina, identificado o Super-Homem com o "povo eleito", os "Senhoras da Terra". Em Nietzsche, as clebres afirmaes antissemitas encontram-se com outras menos clebres, ainda que igualmente veementes, crticas ao antissemitismo. Em uma de suas cartas a Bandrs, em 1888, Nietzsche afirma que "no h melhor frmula para a aniquilao do cristianismo que delegar o poder no internacionalismo hebreu". Este um Nietzsche menor, porm no deixar de ser Nietzsche. Por outra parte no h que rechaar completamente a tese do encontro com Marx, no na tese nolteana do combate entre o comunismo e o fascismo, seno ao contrrio, no rechao de toda religio, tambm das seculares, em nome de uma humanidade autorredenta. Para ambos, a religio no seno um "substrato oriental" do qual h que livrar-se, pois o Ocidente a terra prometida da secularizao, onde o homem cultiva-se a si mesmo. em Humano, Demasiado Humano onde Nietzsche louva a contribuio do hebrasmo "progressiva ocidentalizao do Ocidente". O Nietzsche antissemita convive, ao menos "ex aequo", com o Nietzsche filossionista, por simples razes de vontade de poder. Porm o Nietzsche futuro, aquele que h de compreender-se somente depois do sculo XX, no simplesmente o Nietzsche "profundo", pois Nietzsche acima de tudo o filsofo das palavras claras, inimigo declarado das profundidades, para bem e para mal muito mais direto do que pensam seus "profundos" exegetas. Compreender Nietzsche compreender o sentido de sua "superficial profundidade", margem de sua beleza literria e autobiogrfica: "Ns, os ricos de esprito, vivemos nossa atualidade porque estamos escravizados poca e a suas pequenas e grandes misrias...faremos o que sempre temos feito: disfaramos de profundidade, para assim cavalgar a onda dos tempos e surgir novamente limpos, porque somente a verdade sobrevive profundidade". O Nietzsche futuro, ao qual teremos que prestar contas, o juiz do niilismo e da superao do niilismo, o ponto mais alto ao que pode aceder o pensamento imanentista. Referimo-nos, certamente, ao pensamento sincero, consciente, no aos diversos modos de "pensamento dbil", tranquilos e felizes, refugiados entre seu niilismo tcnico, prtico e funcional. O Nietzsche por vir ser o grande juiz que guardas as portas do cu na convico de que Deus morreu, sim, porm somente para voltar a naser...porque assim h de ser, porque assim foi sempre no eterno

retorno dos tempos, porque em realidade Deus no nasce e morre em si, seno em ns. Sua morte, como seu renascimento, coisa nossa, no dele. Somente nestes anos de mudana de milnio percebe-se, a nvel de civilizao, a nvel popular, o sentido radical daquela experincia que estremeceu Nietzsche nos fins do sculo XIX; somente ao fim do XX o niilismo fez-se enfermidade congnita e comum, niilismo prtico para consumo das massas, no pensamento abissal para poucos. A grande guerra do sculo XXI j perfila-se no horizonte: Nietzsche contra Nietzsche.

CRTICA DA MORAL COMO POLTICA EM NIETZSCHE Oswaldo Giacia Jnior IFCH/UNICAMP "Tambm no futuro, no oeste e no leste, no faltaro motivos para se rejeitar Nietzsche. Nada mais fcil, pois ele, decerto, no cabe nas gavetas que o mundo burgus ou socialista mantm preparadas para filosofias polticas. Mas tambm a democracia, para silenciar inteiramente acerca da modernidade e de suas promessas de liberdade, tem seus perigos especficos. Nietzsche os v, e v apenas eles. Mas quem no quer apenas amaldioar Nietzsche, respeita-lo como adversrio da democracia e da modernidade, adversrio de quem se pode aprender. Eralhe estranho, em todo caso, tambm nos anos oitenta, a separao entre mundo burgus e socialista e, como se manteve ao mesmo tempo distante dos dois, ele tem algo a dizer a ambos." (Ottmann, H. 1987, p. 294) J se consagrou como corrente de interpretao largamente difundida aquela que distingue na filosofia de Nietzsche uma inteno e significado fundamentalmente polticos. Nesse sentido caminha, por exemplo, a recepo do incio do sculo (posteriormente conhecida como culto a Nietzsche - em especial ao longo dos anos 20 e 30 -), que o considerava defensor de um ultralibertrio amoralismo esteticista, socialmente irresponsvel, desprezando vnculos de solidariedade para com os direitos fundamentais da pessoa; tambm aquela que o interpreta como partidrio de um maquiavelismo desptico, retrgrado, saudosista das aristocracias grega e renascentista, ou como precursor dos sistemas ideolgicos totalitrios e mesmo kriptofacista; mas no faltaram tambm exegeses em sentido inverso, que acentuavam a rebeldia emancipatria presente na filosofia poltica nietzscheana, seu curioso parentesco terico com a esquerda hegeliana de M. Stirner ou at mesmo com o anarquismo. De toda maneira, no espectro variado de interpretaes dessa espcie que se cristalizou um entendimento poltico da filosofia nietzscheana. Assim que, durante a trajetria montante do nacional-socialismo e no perodo de sua consolidao, A. Bumler e A. Rosenberg, por exemplo, vm em Nietzsche uma justificao filosfica de seu regime totalitrio; e G. Lukcs, nos anos cinqenta, em especial em seu famoso livro A Destruio da razo, julga poder situar o essencial do pensamento de Nietzsche em sua visceral hostilidade para com o socialismo, apostrofando-o de fundador do irracionalismo caracterstico do perodo imperialista do capitalismo ocidental Mas no se trata, nessa insero de Nietzsche direita ou esquerda do espectro poltico, de um captulo encerrado. Mesmo filsofos contemporneos, como J. Habermas, que em seu livro O Discurso Filosfico da Modernidade interpretam o pensamento de Nietzsche como radicalizao extrema das experincias estticas da moderna arte de vanguarda, no hesitam em lig-lo a movimentos irracionalistas e politicamente autoritrios. A esse respeito, tambm caberia meno a um episdio relativamente recente, ocorrido do outro lado do ento existente muro de Berlim, em meados dos anos 80. Iniciava-se ento, na antiga Repblica Democrtica da Alemanha (DDR.) o esboo de um movimento de reviso na interpretao at ento assente da filosofia nietzscheana - ou at mesmo de sua incluso como parte do legado espiritual do mundo socialista alemo -; nessa ocasio, uma estrela da cena cultural oficial, o filsofo Wolfgang

Harich, em carta ao ento presidente do conselho ministerial da antiga Repblica Democrtica da Alemanha, assim se expressa: "Por meio desta, gostaria de solicitar-lhe com urgncia que atue de modo efetivo contrariamente s aspiraes em curso para promover uma Renaissance da herana de Friedrich Nietzsche. Nietzsche a apario mais reacionria, misantropa, que houve em todo desenvolvimento da cultura mundial, da antigidade at o presente. Ele renega e combate todos os valores humanistas da cultura antiga, do Cristianismo e da modernidade, aqui sobretudo aqueles da burguesia liberal, da democracia e do socialismo-comunismo. Exige a restaurao da escravido como presumvel condio indispensvel da cultura superior, uma cultura de senhores. Glorifica a guerra como fim em si. Prega o aniquilamento da conscincia moral e de toda compaixo humana. Zomba do sexo feminino e se contrape sua emancipao com uma resoluo sem precedentes. Ele escarnece dos povos de cor e esclarece, nesse contexto, que seria bom importar chineses para a Europa, para o trabalho escravo. Porm seu dio infernal para com o moderno movimento operrio. Por isso, ele foi o mais importante precursor ideolgico do fascismo, e no h qualquer idelogo que tenha exercido maior influncia sobre Hitler e Alfred Rosenberg. Que Nietzsche foi um puro charlato, tanto no seu mais prprio domnio, aquele da filologia clssica, quanto como filsofo; e que as tentativas com as quais diletou, como poeta e compositor, so desprovidas de qualquer valor, seja apenas mencionado margem. Somente na atmosfera do imperialismo foi possvel celebr-lo como um grande pensador. A cultura alemo no pode descer mais fundo do que com a moda-Nietzsche e o culto a Nietzsche. O fenmeno se relaciona, do modo mais ntimo, com as causas econmicosociais resultantes das duas guerras mundiais." Para transmitir uma idia aproximada do poder de provocao investido na filosofia nietzscheana, politicamente interpretada, vale a pena prosseguir citando ainda um pequeno trecho da carta de Wolfgang Harich a Willi Stoph, membro do comit central do partido socialista: "Motivo atual dessa minha carta ao senhor que hoje, em visita a uma livraria da Friedrichstrasse, deparei-me com a primeira publicao de uma obra de Nietzsche na Repblica Democrtica da Alemanha, desde 1945, - um acontecimento abalador, de arrepiar os nervos, capaz de me roubar o sono. O senhor pode reproduzir o golpe que isso foi para mim, se o senhor se representar como se vendo, em nosso meio, confrontado de repente, com a permisso, digamos, para uma liga tradicional da SS." Com efeito, Nietzsche foi um radical adversrio da modernidade, da democracia liberal, do socialismo e do anarquismo - ainda que sua posio quanto a este ltimo seja nuanada e ambivalente. Tal oposio dura, intransigente e incmoda; to incmoda que interpretaes recentes de sua obra preferem, em nome de uma espcie de soft-Nietzsche, obliterar, quando no simplesmente silenciar ou mesmo denegar a faceta ambiguamente maquiavelista de sua filosofia, inequivocamente anti-liberal, anti-democrtica, anti-moderna. Tal dimenso, no convm reneg-la - at mesmo porque soft s tem sentido em relao a hard, de modo que, tambm por isso, h que se enfrentar o hard-Nietzsche -; preciso, antes, tentar apreende-la em sua genuna significao. , em minha opinio, essa autntica significao que se bagateliza, quando s tomamos literalmente algumas provocaes estridentes do filsofo, uma vez que, dessa maneira, ficam elas mal-entendidas, caindo-se assim precisamente nas armadilhas e sutilezas que o filsofo tinha sempre prepararadas para ouvidos grosseiros, alheios s suas verdades; ele que era mestre em provocar o mal-entendido entre fanticos partidrios das "idias modernas". E o principal mal-entendido consiste justamente nesse erro de interpretao, que identifica o essencial da filosofia de Nietzsche com sua crtica da modernidade poltica. certo que essa crtica existe e que algumas de suas figuras so, efetivamente, problemticas, decididamente anti-humanitrias; mas no menos certo que ela apenas uma faceta ou conseqncia da crtica da moral e da crtica da cultura empreendidas por Nietzsche, uma espcie de sub-produto de sua tentativa de "refutao genealgica" do Cristianismo e de transvalorao de todos os valores superiores da cultura ocidental. Com efeito, como se poderia dar sustentao a uma interpretao que transforma em filsofo-poltico, no sentido tradicional do termo, um pensador que, desde a juventude, tem reservada, para a poltica, sua mais malvola ironia: "Toda filosofia que acredita removido ou at mesmo solucionado, atravs de um acontecimento poltico, o problema da existncia uma filosofia de brinquedo e uma pseudo-filosofia. Com muita freqncia, desde que h mundo, foram fundados Estados; isso

uma velha pea. Como poderia uma inveno poltica bastar para fazer dos homens, de uma vez por todas, habitantes satisfeitos da Terra? Mas se algum acredita de todo corao que isso possvel, que se apresente: pois merece verdadeiramente tornar-se professor de filosofia em uma universidade alem, como Harms em Berlim, Jrgem Meyer em Bonn e Carrire em Munique." Para Nietzsche, como para tantos outros, a filosofia, desde que no se contente em ser uma Afterphilosophie, tem que enfrentar o "problema da existncia"; e esse nem sequer roado se permanecemos apenas, ou principalmente, no domnio das prticas sociais e das tecnologias polticas para sua regulao. Esse problema se enuncia, em sua instncia fundamental, no universo dos valores e, por conseguinte, no domnio da moral, de onde se irradia e produz significativas reverberaes em outras esferas da cultura superior, ou seja, nos planos da cincia, da arte, da poltica, etc. Por conseguinte tambm, a filosofia poltica de Nietzsche no apenas fica mal-entendida, como tambm se revela inconsistente e desvirtuada, se a tomarmos como auto-subsistente, desvinculada da relao essencial que mantm com a crtica da moral e da religio. Dessa filosofia poltica, uma de suas mais importantes expresses se encontra no derradeiro perodo da produo filosfica nietzscheana, que podemos situar a partir de 1884, e representa uma explicitao e uma decorrncia das noes mais importantes de Assim falou Zaratustra. Para essa dimenso de sua filosofia, Nietzsche cunha a expresso grande poltica, a poltica dos bons europeus e dos espritos livres. J a prpria adjetivao indica o carter especificamente contra-dictrio dessa filosofia, sua natureza essencialmente polmica . Grande poltica, aquela de Nietzsche, se articula como crtica e recusa da pequena poltica, como denncia da mediocridade no entendimento moderno da poltica, em especial, na verso bismarckiana do nacionalismo e do imperialismo alemo. nesse sentido, orientado por um ideal transnacional de Europa unificada, como ptria dos espritos livres - cuja geografia imaginria inteiramente fantstica, a ponto de, partindo da Frana, incluir a Rssia e os pases americanos e praticamente excluir a Inglaterra - que Nietzsche concebe sua grande poltica, de que ele prprio, quando do mergulho derradeiro no delrio megalmano, se auto-estiliza como personagem histrico mundial: "Derradeira considerao: Tanto melhor se pudssemos prescindir da guerra. Eu saberia fazer um uso mais proveitoso dos doze bilhes que custa anualmente a paz armada da Europa; h ainda outros meios de honrar a fisiologia do que por meio de lazaretos ... Curto e bem [dito OGJ.], muito bem at: depois que o velho Deus foi suprimido, estou preparado para governar o mundo." Pequena poltica significa, para o ltimo como para o jovem Nietzsche, a confuso entre nacionalismo, imperialismo econmico ou militar, e identidade, grandeza cultural de um povo. Em face do nacionalismo e do militarismo do Reich forjado por Bismarck, de seu efeito deletrio sobre toda espcie de cultura superior, exclama Nietzsche: "... o fato de que na Alemanha de hoje no deixe de obter xito toda espcie de patranha espiritual algo que se relaciona com a inegvel, j palpvel desertificao do esprito alemo, cuja causa eu a procuro numa alimentao composta, com demasiada exclusividade, de jornais, poltica, cerveja e msica de Wagner, acrescida do que constitui o pressuposto dessa dieta: em primeiro lugar, o enclausuramento e a vaidade nacionais, o forte, porm tacanho princpio Alemanha, Alemanha acima de tudo, e depois a paralysis agitans das idias modernas". Pequena poltica significa tambm a funesta confuso ideolgica, essencialmente democrtica, segundo Nietzsche, entre felicidade, por um lado, e segurana, comodidade, ausncia de dor, por outro lado. Essa identificao implica, para ele, em tomar inglesa o ideal bem supremo, transform-lo em wellfare, conforto e bem estar; significa apequenar a poltica, amesquinhar a figura ou o tipohomem que se pretende formar por intermdio da poltica e da cultura; grande poltica a poltica cultural que se inspira num outro ideal de homem, numa outra figura que no o homem das "idias modernas", do utilitarismo com sua felicidade de mercearia e dos direitos iguais. Esse homem, Nietzsche o caricaturiza na figura do "ltimo homem", o homem do rebanho e da pacfica felicidade das verdes pastagens. Esse tipo-homem , para Nietzsche, a verdadeira meta da pequena poltica; ele o "ltimo homem" porque se auto-interpreta como o fim da histria, como o telos at ento oculto e ora manifestado do curso do mundo, como se toda histria universal no fosse seno o preldio e a gestao do advento de sua felicidade, enfim assegurada num pacfico reinado universal da razo, de onde se pode, por fim, fazer desaparecer toda desigualdade, injustia e sofrimento; fisiolgicamente decadente, esse "ltimo homem" , sobretudo, impotente para sofrer e suportar o sofrimento, da porque a banalidade dos prazeres e

confortos moderados constitui seu supremo ideal de felicidade: "Ai! Chega o tempo do homem mais desprezvel, que no pode mais desprezar a si mesmo. Olhai! Eu vos mostro o ltimo homem. Que amor? Que criao? Que anelo? Que estrela - assim pergunta o ltimo homem, e pestaneja. A terra se tornou pequena ento, e sobre ela saltita o ltimo homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe indestrutvel, como a pulga; o ltimo homem o que mais tempo vive. Ns inventamos a felicidade - dizem os ltimos homens, e pestanejam. Abandonaram as regies onde duro viver: pois a gente precisa de calor. A gente ama inclusive o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco quem continua tropeando com pedras e com homens! Um pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradveis. E muito veneno no final, para ter uma morte agradvel. A gente continua trabalhando, pois o trabalho um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse. J no nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas so demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas so demasiado molestas." Essa felicidade amesquinhada, confundida com segurana e bem-estar, expresso de uma vida reduzida ao mnimo possvel de intensidade - "a terra se tornou pequena ento" -, de onde toda tenso e contraste foram suprimidos, para no restar seno o tpido aconchego e o montono atritamento dos rebanhos, a igualdade transformada em igualitarismo da uniformidade, onde no subsiste qualquer diferena ou distncia - "quem ainda quer governar? quem ainda obedecer?" -. Como intensidade, tenso e contraste - juntamente com o sofrimento e com a capacidade para suporta-lo tragicamente - so condies incontornveis de toda grandeza, de toda elevao do tipo-homem, a felicidade inventada pelo ltimo homem acoberta a hipocrisia de uma vontade de poder inconsciente de si mesma, ou seja, a inocente tirania da uniformidade, o despotismo dos "mais estpidos e medocres", que sufoca e anatemiza a singularidade encarnada em toda verdadeira e grande individualidade. "Nenhum pastor e um s rebanho! Todos querem o mesmo, todos so iguais: quem sente de outra maneira, vai voluntariamente para o hospcio. Outrora todo mundo desvairava, dizem os mais sutis e pestanejam. Hoje somos inteligentes e sabemos o que ocorreu - assim no tem fim o gracejar. A gente ainda discute, mas logo se reconcilia - seno se estraga o estmago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas honramos a sade. Ns inventamos a felicidade - dizem os ltimos homens e pestanejam." A figura do "ltimo homem" simboliza, pois, o alvo principal da crtica nietzscheana da modernidade poltica: a bagatelizao do tipo-homem embutida no igualitarismo uniformizante; um outro conceito polmico para o mesmo fenmeno, Nietzsche o fixou no termo: mediocrizao (Mittelmssigkeit), com o qual fustiga a prudncia mercantil dessa mida felicidade dos pequenos prazeres iguais para todos, caracterstica da moderna sociedade civilburguesa; para ele, nela que desemboca, finalmente, a ideologia da liberdade, igualdade e fraternidade universais. Alm desse efeito nivelador, Nietzsche identifica, na hegemonia das "idias modernas" ainda um outro perigo iminente: com o apagamento de todas as diferenas e a dissoluo de toda autoridade legtima, prepara-se involuntriamente o caminho para o caminho para a barbrie e a tirania. A esse respeito, conviria destacar o quanto Nietzsche levou a extremos sua posio ambgua com relao a Plato. Com efeito, sua crtica da democracia liberal enquanto dissolutora de toda hierarquia e, com ela, de todo princpio de autoridade legitimada, assim como de sua tendncia ao igualitarismo uniformizador, se aproxima extraordinariamente da crtica da democracia feita por Plato na Repblica: "o pai se acostuma a parecer-se com o filho e comea a temer-se dele, e o filho toma o lugar do pai, sem o menor respeito ou receio de seus progenitores, para provar que livre; o meteco se iguala ao cidado, e vice-versa, o mesmo acontecendo com os estrangeiros ... em semelhante situao, o professor tem medo dos alunos e passa a adul-los; os alunos desprezam o professor, o mesmo se dando com relao aos preceptores. De modo geral, os moos procuram igualar os velhos e competir com eles por atos ou por palavras, como os velhos, por sua vez, se esforam por imit-los nos gracejos e ditos espirituosos, a fim de no passarem por casmurros ou autoritrios ... A mesma doena que atacou a oligarquia e lhe causou a runa, aqui se manifesta num mbito maior e com mais fora, pela falta de freio, at reduzir a democracia servido, pois um fato que o abuso seja do que for provoca reao

correspondente, o que se verifica tanto nas estaes, nas plantas e nos corpos, como no governo das cidades" (563 a e seguintes). Nietzsche, o anti-Plato, cujo esforo filosfico se concentra numa titnica empresa de reverso do platonismo, se perfila aqui como um Plato moderno, ao efetuar sua crtica da democracia burguesa, especialmente em sua verso liberal, mas tambm do socialismo e do anarquismo que, para ele, nela esto contidos como que in nuce. Prefigurando a teoria heideggeriana do desgaste (Vernutzung) do homem e da natureza pela objetivante vontade de poder da tcnica moderna, Nietzsche apreende a consolidao da moderna sociedade civil-burguesa como uma "utilizao cada vez mais econmica de homem e humanidade, uma maquinaria de interesses e rendimentos sempre mais firmemente entrelaados entre si." Essa forma de sociedade configura, para ele, a "inevitavelmente iminente administrao econmica total da terra", a que tambm pertence, de modo necessrio, a ideologia utilitarista da acomodao, segurana e conforto, a superficializao mercantilizante da virtude, aquilo que Nietzsche, como smbolo do igualitarismo uniformizador, denomina "chinesismo superior" ou, em suma, o apequenamento da humanidade, tal como se encontra tipificado no "ltimo homem". Trata-se aqui, para Nietzsche, de um movimento irreversvel: " a igualizao do homem europeu o grande processo que no h que ser inibido: dever-se-ia ainda aceler-lo." Essa experincia histrica da inevitabilidade do "ltimo homem", Nietzsche a professa tambm pela boca de Zaratustra: "Ns inventamos a felicidade - dizem os ltimos homens e pestanejam. E aqui terminou o primeiro discurso de Zaratustra, que se chama tambm o prefcio: pois nesse ponto interrompeu-o a gritaria e o prazer da turba. D-nos esse ltimo homem, oh Zaratustra - assim gritavam eles -, faze de ns esses ltimos homens! O alm-dohomem (bermensch), ns o presenteamos a ti." Nietzsche interpreta a racionalizao global da sociedade, emergente com a revoluo industrial, como maquinalizao do homem, como solidarizao reificadora das peas de um imenso mecanismo de interesses e rendimentos, que promove o moderno sucateamento geral do tipo-homem, na armao dessa monstruosa engrenagem universal feita de "rodas sempre menores, sempre mais finamente adaptadas." Esse ajustamento global dos interesses e rendimentos implica tambm, por outro lado, na fragmentao do homem pela diviso alienante do trabalho tornado abstrato, em sua transformao em indivduo adestrado, laborioso, utilizvel em mltiplas ocupaes, nivelado e indefinidamente intercambivel. a partir desse pano de fundo que o Nietzsche da grande poltica fala em escravido e achinesamento da humanidade; tambm contrastivamente ao tipo-homem representado por essa figura que ele concebe seu ideal de singularidade genial, do homem de exceo. Para Nietzsche, o balano possvel da modernidade poltica no deixa margem a dvidas: ao invs de um "otimismo econmico" que acredita poder ainda retirar proveito geral do crescente prejuzo de cada um, Nietzsche aposta no contrrio: "os prejuzos de todos se somam num prejuzo global: o homem se torna menor: " Essa auto-mediocrizao da humanidade, Nietzsche no a justifica ou prega; antes julga poder constat-la no avano irreversvel da moderna sociedade industrial. Ela j se encontra prfigurada, como expresso poltica, na democracia liberal, com suas prerrogativas de direitos iguais e suas tendncias subterrneas tanto para a anarquia como para a tirania; sua verdadeira causa h que ser buscada na absolutizao dos valores morais consagrados pelas "idias modernas", sob o efeito da qual esses se tornam valores em si: "Digamos logo, mais uma vez, o que j dissemos uma centena de vezes: pois hoje os ouvidos para tais verdades - para nossas verdades -, no tm boa vontade. Sabemos, j o bastante, como soa ofensivo quando, em geral, algum inclui o homem, sem cosmticos e sem alegoria, entre os animais; mas quase como culpa que nos imputado que, precisamente em referncia aos homens das "idias modernas", usamos constantemente as expresses rebanho, instintos de rebanho, e semelhantes. De que adianta! No podemos fazer de outro modo: pois precisamente nisto consiste nossa nova viso. Descobrimos que em todos os juzos-mestres da moral a Europa se tornou unnime, inclusive os pases onde domina a influncia da Europa: sabe-se, pelo visto, na Europa, o que Scrates pensava no saber, e o que aquela velha e clebre serpente prometeu certa vez ensinar - "sabese" hoje o que bom e mau...Moral hoje, na Europa, moral de animal-de-rebanho."

Aqui se encontra, talvez, um dos aspectos mais peculiares da platonizante crtica de Nietzsche modernidade poltica: o desdobramento virtual do liberalismo democrtico no socialismo e tambm no anarquismo. Para ele, o liberalismo burgus, com suas aspiraes universais liberdade e igualdade conduz fatalmente, no plano poltico, s instituies democrticas e daqui tanto absoluta igualizao da humanidade na camisa de fora social do "rebanho autnomo", quanto anrquica vontade de destruio de todo regime existente. Ao auto-proclamar-se moral absoluta, ou como essncia de toda moral, a figura moderna da conscincia-moral crist no apenas institui a unanimidade gregria no bem e no mal; alm disso, "com o auxlio de uma religio que fazia a vontade dos mais sublimes apetites de animal-de-rebanho, e os adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituies polticas e sociais, encontramos uma expresso cada vez mais visvel dessa moral: o movimento democrtico herdeiro do cristo. Que, porm, sua cadncia, para os mais impacientes, para os doentes e manacos do citado instinto, ainda muito lenta e sonolenta, disto testemunha o clamor que se torna cada vez mais furioso, o cada vez menos oculto arreganhar de dentes dos ces anarquistas que agora vagueiam pelos becos da civilizao europia: aparentemente em oposio aos pacfico-laboriosos democratas da revoluo, e mais ainda aos broncos filosofastros e fanticos da irmandade que se denominam socialistas e querem a sociedade livre; em verdade, porm, unnimes com eles na fundamental e instintiva hostilidade contra toda e qualquer outra forma de sociedade que no a do rebanho autnomo." Nietzsche, por sua vez, acredita identificar nesse movimento o supremo perigo trazido tona pelas "idias modernas": o perigo do niilismo entendido como indiferena, cansao do homem consigo mesmo, como tdio por si e fastio de si, do conseqente anseio pelo repouso nirvnico numa espcie inusitada de budismo moderno, o budismo europeu. Compreendido como experincia histrica de esvaziamento de sentido e perda de vigncia por parte dos supremos valores de nossa cultura, a vivncia coletiva da indiferena niilista acarreta a precipitao do homem moderno - j despojado de sua singularidade pessoal - seja no insuportvel absurdo de uma existncia sem sentido, seja na fria selvagem do budismo da ao, isto no paroxismo de destruio (nadificao) gratuita de toda subsistncia, inclusive institucional, processo que ele apreende e analisa menos a partir da considerao de movimentos scio-polticos concretos do que a partir da freqentao dos romances de Turgueniev e Dostoivski, especialmente em Pais e Filhos e Os Demnios, por exemplo. Contrapondo-se hegemonia e absolutizao dos valores do "homem moderno", Nietzsche procura abrir um espao de possiblidade para aqueles que "so de uma outra crena", para quem o liberalismo democrtico no significa apenas uma "degradao da organizao poltica, mas uma forma de degradao, ou seja de apequenamento do homem, sua mediocrizao e rebaixamento de valor", Nietzsche diagnostica, tambm, nessa degradao do humano em rebanho uniforme uma "animalizao do homem", a degenerao geral da humanidade. Como contra-ideal e figura antittica do "ltimo homem", Nietzsche desenvolve seu conceito de "alm-do-homem" (bermensch), como contra-movimento visando fazer face mediocrizao em curso, que dramaticamente se faz conscincia de si na figura histrica do niilismo europeu. certo que, ao dar nfase compensatria a seu contra-ideal, Nietzsche coqueteia tambm com a idealizao artstica da individualidade genial, alm de bem e mal, despoticamente dominadora e desapiedada, ciente e zelosa de suas prerrogativas e privilgios excepcionais. O contexto terico em que isso se manifesta apresenta, por vezes, um aspecto assustador; em algumas passagens de Para alm de Bem e Mal, por exemplo, mas sobretudo em experimentos tericos que permaneceram como fragmentos inditos, Nietzsche descreve o movimento de uma dialtica imanente ao processo civilizatrio, ao termo da qual este, ao atingir seu ponto extremo de nivelamento e domestificao do homem, sua completa transformao em ferramenta e inofensivo animal de rebanho, prepararia tambm, involuntariamente, as condies ideais para a gestao de seu oposto, isto do indivduo soberano, no gregrio. Cumpre observar, desde logo, que no se trataria aqui de um resultado necessrio e inevitvel da dinmica do processo, mas de uma possiblidade que seria indispensvel considerar: "O apequenamento do homem tem que valer por muito tempo como nica meta: porque primeiro preciso criar um largo fundamento, sobre o qual se possa por de p uma espcie mais forte de homem: em que medida at aqui toda espcie-homem fortalecida esteve sobre a de um nvel inferior." Do ponto de vista

de Nietzsche, intervir nessa direo seria uma tarefa prpria do filsofo, que compreende a extenso em que a forma atual da sociedade poderia ser mobilizada para um profundo processo de transformao, em que esta talvez pudesse, alguma vez, no mais existir por si mesmo, mas encontrar a justificao de sua existncia apenas como meio "nas mos de uma raa mais forte. O crescente apequenamento do homem justamente a fora motriz para se pensar na criao de uma raa mais forte: que teria sua super-abundncia precisamente l onde a espcie apequenada se tornaria cada vez mais fraca (vontade, responsabilidade, auto-certeza, poder-fixar-metas)." Essa seria a justificao compensatria do moderno processo de apequenamento e mediocrizao da humanidade, j ela prpria reificada na annima maquinaria dos interesses e rendimentos. Observemos, de maneira mais extensa e detalhada um desses experimentos tericos: "Esta minha desconfiana, que retorna sempre, minha inquietao, que jamais se assossega, minha pergunta, que ningum ouve ou pode ouvir, minha esfinge, ao lado da qual existe no apenas um abismo: creio que hoje em dia nos enganamos a respeito das coisas que ns europeus mais amamos, e que um cruel duende (ou nem cruel, apenas indiferente, maroto) brinca com nosso corao e seu entusiasmo, como talvez j tenha brincado com tudo aquilo que outrora viveu e amou: - creio que tudo o que estamos acostumados a glorificar, hoje na Europa, como humanidade, moralidade, humanitarismo, co-sentimento, justia, pode, com efeito, ter um valor de fachada como enfraquecimento e abrandamento de algumas poderosas e perigosas pulses fundamentais, mas que, a longo prazo, nada mais que apequenamento do tipo homem em seu todo - sua definitiva mediocrizao, se me for permitida uma palavra desesperada num desesperado assunto; creio que para um divino espectador epicurista a comdia humana deveria consistir em que os homens, graas sua crescente moralidade, em toda inocncia e vaidade, presumem sobrelevar-se do animal ao nvel dos deuses e das determinaes ultra-mundanas, mas, em verdade, decaem; isto , por meio do aperfeioamento de todas as virtudes graas s quais um rebanho prospera, e inibio daquelas outras e opostas, que do origem a uma espcie nova, superior, mais forte, mais senhorial, desenvolvem justamente apenas o animal de rebanho no homem e talvez com isso fixem o animal homem pois at aqui o homem foi o animal no fixado -; creio que o grande, irresistvel movimento democrtico da Europa, que segue avante - aquilo que se denomina progresso -, do mesmo modo como j sua preparao e prefigurao, o Cristianismo -, significa apenas a gigantesca conjurao total do rebanho contra tudo aquilo que pastor, animal de rapina, ermito e Csar, em proveito da conservao e ascendncia de todos os fracos, oprimidos, fracassados, medocres, semi-malogrados, como uma prolongada, de incio secreta, em seguida cada vez mais auto-consciente rebelio de escravos contra toda espcie de senhor, por ltimo at contra o conceito senhor, como uma guerra de vida e morte contra toda moral brotada do seio e conscincia de uma espcie-homem superior, mais forte, senhorial, como j dito -, de uma espcie que necessita da escravido, sob alguma forma e nome, como de seu alicerce e condio; creio finalmente que at aqui toda elevao do tipo homem foi obra de uma sociedade aristocrtica, que acreditava num longo escalonamento de hierarquia e diferena de valor entre homem e homem, e necessitava da escravido: sim, que sem o pathos da distncia, assim como este resulta da incorporada diferena dos estamentos, do permanente olhar distncia e para baixo dirigido pela casta dominante a sditos e utenslios, de seu exerccio tambm permanente em comandar, sobrepujar e manter distncia, tambm aquele outro e mais misterioso pathos no pode absolutamente surgir, aquela exigncia de sempre novo alargamento de distncia no interior da prpria alma, a configurao de estados sempre superiores, mais raros, mais remotos, mais tencionados, mais abrangentes, em suma, a auto-superao do homem, para tomar uma frmula moral num sentido transmoral. Uma pergunta me retorna sempre, uma m e tentadora pergunta talvez: que ela seja dita ao p do ouvido de quem tem um direito a tais perguntas problemticas, as almas mais fortes de hoje, que melhor se tm a si mesmas sob domnio: no estaria no tempo, quanto mais o tipo animal de rebanho agora desenvolvido na Europa, de fazer a tentativa principal, artificial e consciente de criao do tipo oposto e de suas virtudes? E, para o prprio movimento democrtico, no seria ento uma espcie de meta, redeno e justificao, se viesse algum que dele se servisse, pelo que se acrescentaria sua nova e sublime configurao da escravido - tal como um dia se apresentar o aprimoramento da democracia europia - aquela espcie mais elevada de espritos senhoriais e cesreos, que carece

tambm, pois, dessa nova escravido? Para novos, at aqui impossveis, para seus horizontes, para suas tarefas?" No h como negar o efeito arcaizante dessa idealizao esttica da fora, que no capaz de se articular como um diagnstico concreto da modernidade poltica; no h como negar tambm que a grande poltica de Nietzsche no dispe de frmulas para regulao e controle polticoinstitucional dos conflitos de poder e interesse, de disciplinarizao dos mecanismos sociais de dominao. Mas isso no significa seno que Nietzsche no um filsofo poltico stricto sensu, que ele sempre foi, antes de tudo, um crtico da moral e filsofo da cultura. O alm-do-homem, assim como a tragicamente famosa raa senhorial no tem um sentido social ou biolgicamente identificvel; as diferenas hierrquicas de que fala Nietzsche no so, de nenhuma maneira, diferenas de estratificao econmica ou social, nem h que se confundir as expresses nobre, senhor, com qualquer espcie de estamento social, a no ser que permaneamos hipnotizados pelas formulaes de fachada, naquele domnio em que Nietzsche quis manter quem no consegue penetrar nos estratos de significao mais profunda de seu pensamento. preciso insistir em que suas figuras e frmulas tm, antes de tudo, um sentido opositivo e manifestamente provocador - elas simbolizam o contra-ideal da modernidade e so, nesse aspecto, uma reedio das Considerao Extemporneas e de seu efeito compensatrio do absoluto predomnio dos valores modernos. A aristocracia, pensada por Nietzsche, ainda que evoque o tipo-homem da Grcia pr-socrtica e coqueteie com a nobreza renascentista, , essencialmente, uma aristocracia do esprito - ela se refere, sobretudo, hierarquia dos talentos e das responsabilidades e, nesse sentido, tambm um curioso e paradoxal tributo ao filsofogovernante da Repblica de Plato -; no se deve, pois, confundi-la com a inescrupulosa instrumentalizao do rebanho dos medocres e malogrados para fins de satisfao da insacivel nsia de poder e dominao poltica; at mesmo porque o aplastamento e maquinalizao da humanidade que caracterizam a moderna escravido remunerada j representavam, para Nietzsche, uma realidade histrica. Ao invs de ser o cnico amoral que se compraz no cio e na explorao da figura moderna do trabalho escravo, o alm-do-homem no pode ser identificado com anacrnico saudosismo do antigo regime, ou com o capitalista possuidor dos meios de produo. Ele , antes, o filsofo-legislador para os futuros milnios, criador de novas tbuas de valor; uma personagem que - como os mitos de origem e formao na filosofia platnica - criada para fixar em imagem e atuar no sentido da formao, da promoo de um tipo-homem que represente uma alternativa para sua assustadora bagatelizao da humanidade em escala planetria, sua definitiva transformao em massa uniforme, padronizada em seu pensar, sentir e agir, sob o efeito dos mecanismos de normatizao e controle dessa hybris moderna da racionalidade instrumental. Muito se escreveu sobre o cesarismo e o bonapartismo, sim sobre o maquiavelismo de Nietzsche; e certo que a ambigidade das imagens e conceitos em que formulou sua crtica do movimento democrtico tem o poder de suscitar tais interpretaes. necessrio atentar, contudo, para que, Napoleo s figura, para Nietzsche, com o status de potncia cultural transnacional ao ser situado ao lado de Goethe, como sua necessria alma complementar. Se Napoleo pode ser considerado genial, s o pode porque o essencial no residia em seu poderio poltico ou blico, mas no grande estilo, na amplitude de horizontes de sua atividade militar ou de estadista. em virtude dessa combinao entre o poltico e o artstico que Napoleo grande, enquanto que a fora das armas e o poder poltico apenas no o teriam diferenciado da mediocridade moderna; ao vincul-lo ao humanismo pago de Goethe, Nietzsche, ainda uma vez, procura marcar sua distncia em relao aos "ideais democrticos"; por isso que, como individualidades histricas que poderiam apontar na direo virtual de um outro tipo-homem, Napolo-Goethe se entrepertencem como bons europeus. O mesmo se poderia dizer da fascinao por Cesare Borgia; tambm ela recorre a essa noo-chave de grande estilo; trata-se aqui da dramatizao da grandeza, mesmo nas paixes e no vcio, desta vez aplicada ao maquiavelismo de Cesare Borgia e que o tornava, aos olhos de Nietzsche, o contrrio absoluto da confortvel mediocridade utilitarista, que no sacudida por nenhuma paixo violenta, porque impotente para qualquer arrebatamento. Mas no nos esqueamos que essa estilizao de Cesare Borgia est intimamente vinculada a uma singular interpretao histrica de sua figura - interpretao devida, alis, em boa parte, a Jakob Burckhardt -; segundo ela, Borgia, no

trono pontifcio, significaria a auto-supresso do Cristianismo, no centro de seu prprio imprio. Tambm quanto a Julio Csar, verdade que, por vezes, Nietzsche o aproxima de seu ideal do alm-do-homem, nele vendo tambm uma espcie de indicao nesse sentido; mas esse Csar no se confunde inteiramente com o imperador romano; trata-se, antes, do Csar com a alma do Cristo, uma figura em si mesma antittica, somente pensvel no registro irreal dos ideais extremos: "A educao para essas virtudes de dominador, que se tornam senhoras tambm de sua benevolncia e compaixo, as grandes virtudes do criador (perdoar seus inimigos , comparado com isso, uma brincadeira) - trazer culminncia o afeto do criador - no mais esculpir em mrmore! - A posio de exceo e poder desses seres, comparada com a dos nobres de at aqui: o Cesar romano com a alma do Cristo." Essa ltima citao torna inequivocamente manifesto que o fundamental na filosofia poltica de Nietzsche seu sentido moral, sua viso e inteno pedaggicas de elevao da humanidade com auxlio de um ideal capaz de promover as virtualidades do esprito a partir da combinao artstica de suas faculdades mais sublimes, assim como da sublimao de suas energias ctnicas . nesse sentido que se pode interpretar tanto o conceito de alm-do-homem quanto a doutrina complementar do eterno retorno do mesmo; elas fazem parte tambm dessa "filosofia poltica" de Nietzsche. Isso se enfatizarmos o sentido tico do eterno retorno, tal como o fazem F. Kaulbach e H. Ottmann, por exemplo, ao consider-la como tentativas de cultivo e educao para uma forma nova de humanidade, suficientemente fortalecida para poder prescindir, por fim, dos consolos metafsicos para o drama da finitude, renunciar identificao entre a felicidade e a medocre placidez do conforto bem assegurado numa existncia sem conflitos. Nesse sentido, vontade de poder no o conceito do ser do ente em sua totalidade, nem o eterno retorno a correlata doutrina de seu modo de aparecer no perodo da calculabilidade tcnica sem resduos; O pensamento do eterno retorno seria, no contexto que ora nos interessa, um imperativo tico e pedaggico do tipo: "Age de tal maneira que tu possas viver assim ainda uma vez (ou inmeras vezes)! Ou: no fujas no verdadeiro mundo de Plato e do Cristianismo, age, porm, de tal maneira que todo o instante sobre esta Terra receba o valor da eternidade." Essa seria, enfim, a existncia sobre-humana, radicalmente singular; antes de tudo, denncia e anttese da fraqueza e do nivelamento mediocrizante expressos pelo "ltimo homem". Em derradeira instncia, tambm aqui, no domnio da filosofia poltica, a dominncia marcada pelo fundamental conceito nietzscheano de justia trgica. luz desse conceito, no se pode pensar maniqueisticamente a postura de Nietzsche em relao aos desdobramentos do processo de democratizao na Europa. Tambm ele no poderia ser, para Nietzsche, pura e simplesmente objeto de repdio e condenao; antes de tudo, o que se faz urgente esforo para compreende-lo em sua emergncia histrica e determinar seu sentido; para apreende-lo conceitualmente em sua necessidade, como movimento de aprofundamento do niilismo europeu e, dessa maneira, ao fazer a ele a justia que merece - afinal amor fati a frmula nietzscheana para a trgica aceitao do vir a ser -, intentar supera-lo pela transvalorao de todos os valores. Esse conceito nietzscheano de justia atravessa de ponta a ponta sua filosofia, das mais objetivas formulaes de sua teoria do conhecimento aos seus arrebatamentos ticos ou estticos. Por meio dele, Nietzsche procura manter e intensificar a tenso dos extremos entre os quais sempre se move sua filosofia, buscando desesperadamente manter entre eles um equilbrio delicado e precrio. Segundo a diretriz desse conceito, a fora e a riqueza super-abundante do alm-do-homem no pode ser pensvel sem o esgotamento definitivo da forma-homem engendrada pelo processo civilizatrio do Ocidente, de sorte que ela surge e, de algum modo, se alimenta do seu oposto. Mas tampouco ela seria desejvel como tipo, se no recolhesse em si e, desse modo, redimisse as supremas conquistas e os sublimes fragmentos de ideal que a humanidade criou para si nessa epopia de sua auto-constituio, afinal, trata-se do "homem sinttico, somatrio, justificador" , por conseguinte, esse conceito de justia trgica que descortina tambm o mais remoto horizonte de compreenso de sua filosofia poltica. O que se percebe, afinal, que a mesma tenso dialtica que se desenrola entre as figuras antagnicas do nobre e do escravo, do alm do homem e do ltimo homem, se reproduz, em menor escala, no interior de cada uma dessas figuras, desfazendo completamente toda tentativa apressada de encontrar em Nietzsche a unidade derradeira de uma sntese pacificadora: "Quando se l com rigor suficiente, nele (Nietzsche, OGJ.) se descobrir sempre uma dupla diretiva: uma vez, a

indicao da pluralidade de perspectivas, com o perigo correspondente de nela se perder (Infinitude! belo sucumbir nesse mar); em seguida, a exortao vigorosa, hierrquica unificao do mltiplo, com o correspondente perigo da violenta unilateralidade e injustia. Nietzsche denomina justia a difcil unio de ambos. O xito dela e permanece inseguro, sobretudo na poca do niilismo, isto , da dissoluo das antigas representaes de caminhos viveis da justia... Esse Nietzsche da delicadssima emoo, da colocao entre parnteses da prpria perspectiva de um ngulo, da justia, assim tornada possvel, para com a multiplicidade da realidade, no se deve negligenci-lo em proveito do Nietzsche que em primeiro lugar salta aos olhos, o das fortes palavras e programas, entre eles programas de violncia poltica e aparentemente apenas catica des-represso." Prof. Dr. Giacia especialista em Nietzsche, filsofo e professor da UNICAMP

Uma excelente entrevista a Olivier Mathieu no site da Nietzsche Acadmie:Nietzche Acadmie Que importncia tem Nietzsche para si? Olivier Mathieu Na minha biblioteca, ou se preferir, na minha biblioteca ideal, ocupa um espao importante. Tenho quase vontade, j de seguida, de pedir que me queiram desculpar por preferir um tal lugar comum. Pergunto-me se h um nico intelectual, um nico escritor, um nico artista que possa dizer que Nietzsche no teve importncia para si. Houve tanto de Nietzsche. O Nietzsche da juventude, fillogo e msico, e para quem o encontro com Wagner decisivo. E depois o Nietzsche a associao literrio-musical Germnia, em 1860, com os seus amigos Gustav Krug e Wilhelm Pinder. Depois o Nietzsche que se debrua sobre a civilizao grega. Partilho a viso de Nietzsche contra o racionalismo socrtico, preldio da dissoluo e da decadncia. A obra de Nietzsche, em parte fragmentria e inacabada, riqussima e, no verdadeiro sentido do termo, genial. Por vezes contraditria, se queremos empregar esse termo. Ora por, ora contra Schopenhauer. Ora por, ora contra Wagner. So apenas exemplos. Mas, ao mesmo tempo, a sua obra no to contraditria como alguns pretendem. Vejo em Nietzsche um poeta como um filsofo. um trgico, e o poeta, o filsofo e o profeta da crise europeia. Um pensador mais importante, ou mais original, que Darwin e Marx. Sem falar de tudo o que nele influenciou Freud e Bergson. NA Que livro de Nietzsche recomendaria? OM No fcil recomendar um nico livro de Nietzsche. Tanto mais que basta por vezes comparar duas tradues do mesmo livro para perceber que, de um tradutor para outro, no lemos a mesma coisa. Tambm no acredito que seja suficiente enumerar ttulos. qualquer coisa de muito fcil e muito banal. A obra de Nietzsche foi publicada em vida entre 1872 (A Origem da Tragdia) e 1888 (O caso Wagner). Se a sua primeira biografia data de 1895, e obra do marido da sua irm (Bernhard Frster-Nietzsche, Das Leben F. Nietzsches, Leipzig, 1895, em trs volumes, segunda edio em 1904, etc.) preciso dizer que outras obras suas, por vezes as mais importantes, foram publicadas a ttulo pstumo. difcil aconselhar apenas um dos seus livros. Creio que existem livros de Nietzsche (e poderamos dizer o mesmo relativamente a outros autores) que deveriam ser lidos numa certa idade, por exemplo a partir da juventude, enquanto outros no deveriam ser apreendidos seno mais tarde. Se suposto haver uma alquimia, uma alquimia real, entre um leitor e os livros de Nietzsche, ento essa alquimia surge. Leituras complementares indispensveis, as obras de Schopenhauer, mas tambm as de Heidegger: este ltimo escreveu bastante sobre ele, nomeadamente o seu Nietzsche. Teria tendncia a dar um conselho aos jovens que vo comear a ler Nietzsche, evitar, na maioria dos casos, os prefcios dos especialistas de Nietzsche, ou de muitos deles. E pessoalmente, uma vez que mo pergunta, a minha preferncia vai para as Consideraes inactuais (18731876), em particular aquelas sobre Schopenhauer. Citei da um extracto significativo no meu romance La Quarantaine, surgido em Novembro de 2002 e sobre o qual Michel Marmin falou na revista lements. NA O que significa ser Nietzschiano? OM Nietzsche nico. E os nietzschianos so raros. Teria sido preciso talvez perguntar ao prprio Nietzsche o que ele considerava, ou no, como nietzschiano. Teria tendncia, contudo, a responder-lhe por esta frmula: em mil que lero Nietzsche, cem compreend-lo-o muito ou pouco, mas apenas um ser verdadeiramente capaz de o assimilar, de viver de modo

nietzschiano, de o incarnar, de o prolongar. No podemos, evidentemente, ou no deveramos contentar-nos em consumir Nietzsche. E, naturalmente, prolong-lo sem o trair no coisa fcil, e isto o mnimo que podemos dizer. Ser nietzschiano gostar de Nietzsche, mas tambm ter alguma probabilidade razovel de pensar que Nietzsche gostaria de quem o l. O ncleo central de uma filosofia nietzschiana , parece-me, a decad