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CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

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O presente tratado esclarece suficientemente por queesta Crítica não é intitulada Crítica da razão prática pura1

mas simplesmente Crítica da razão prática em geral, ain-da que o seu paralelismo com a crítica da razão especula-tiva pareça requerer o primeiro título. Ela deve meramen-te demonstrar que há uma razão prática pura e, em vistadisso, critica toda a sua faculdade prática. Se ela o conse-gue, não precisa criticar a própria faculdade pura para verse a razão não se excede, com uma tal faculdade pura,numa vã presunção (como certamente ocorre com a razãoespeculativa). Pois, se ela, enquanto razão pura, é efetiva-mente prática, prova sua realidade e a de seus conceitospelo ato2 e toda a argüição dessa possibilidade é vã.

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[3] Prefácio

1. Sobre a questão da tradução da expressão reine praktische Ver-nunft e sua justificação, cf. ROHDEN, V. Razão prática pura. Dissertatio,Pelotas, n. 6, pp. 69-98, verão de 1997.

2. O termo Tat provém do verbo tun, traduzindo-se preferentementepor “ato”, com o significado de feito ou de resultado de uma ação. Mas Le-wis White Beck o traduziu para o inglês por action: It will show its realityand that of its concepts in action (cf. KANT, I. Critic of Practical Reason. NewYork: Macmillan, 1993, p. 3). Na Metafísica dos costumes (cit. MS ) o termoTat é definido como ação produtora de um efeito, conscientemente pratica-da por uma pessoa, e em que tanto o efeito como a ação podem ser-lhe

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[4] Com esta faculdade fica doravante estabelecidatambém a liberdade transcendental e, em verdade, na-quele sentido absoluto em que a razão especulativa, nouso do conceito de causalidade, a necessitava para sal-var-se da antinomia em que inevitavelmente cai ao que-rer pensar, na série da conexão causal, o incondicionado;conceito esse que ela, porém, podia fornecer só proble-maticamente, como não impensável, sem lhe assegurara respectiva realidade objetiva, unicamente para não sercontestada em sua essência, mediante pretensa impossi-bilidade do que ela tem de considerar válido, pelo me-nos enquanto pensável, e não ser precipitada num abis-mo de ceticismo.

Ora, o conceito de liberdade, na medida em que suarealidade é provada por uma lei apodíctica da razão prá-tica, constitui o fecho de abóbada de todo o edifício de umsistema da razão pura, mesmo da razão especulativa, e to-dos os demais conceitos (os de Deus e de imortalidade),que permanecem sem sustentação nesta <última> comosimples idéias, seguem-se agora a ele e obtêm com ele eatravés dele consistência e realidade objetiva, isto é, a [5]possibilidade dos mesmos é provada pelo fato de que aliberdade efetivamente existe; pois esta idéia manifesta-se pela lei moral.

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imputados (cf. MS AB 22). Kant mesmo usa aí, para Tat, o termo Akt(noutras vezes actus). Mais expressivamente ainda ele escreve poucodepois: “Imputação em sentido moral é o juízo, pelo qual alguém é con-siderado causa (causa libera) de uma ação, que então se chama ato(factum) e está subordinada a leis” (MS AB 29). Sobre a relação entreTat e factum cf. ALMEIDA, G. Kant e o “facto da razão”: “cognitivismo”ou “decisionismo” moral? Studia Kantiana, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, pp.58 s., set. 1998.

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Mas a liberdade é também a única entre todas asidéias da razão especulativa de cuja possibilidade sabemosa priori, sem, contudo, ter perspiciência3 dela, porque ela

3. No original: ohne sie doch einzusehen. Reelaboro aqui o que jáobservara sobre o termo Einsicht e seu correspondente latino perspicien-tia em KANT, I. Crítica da faculdade do juízo 2.ª ed. Trad. Valerio Roh-den e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, pp.65-7. – 1) O termo perspicientia foi empregado filosoficamente por Cíce-ro no sentido de um conhecimento completo de algo. Cf. CÍCERO, Deofficiis I, 15 (trad. bras. Dos deveres, Martins Fontes, São Paulo, 1999.) Cf.também GEORGES, K. E. Ausführliches Lateinisch-Deutsches Handwör-terbuch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988, v. 2, p.1644. Segundo Georges, no domínio literário o verbo perspicere foi usa-do por PLAUTO, Curc. 144 G. Perspicuitas, no sentido de clareza, foiusado por PLÍNIO 37, 79. – 2) Kant empregou o termo predominante-mente no sentido de Cícero – que o vinculara praticamente a prudênciae sabedoria – ao distinguir, na Reflexão 426, entre perceptio, cognitio,scientia, intellectio, perspicientia e compreensio. Ao termo perspicientiaKant acrescentou: Einsehen (durch Vernunft) [perspiciência (pela ra-zão)]. Na reflexão 437 distinguiu entre os princípios do Einsehen e doVerstehen (compreender), observando: “A faculdade de julgar a priori (con-cluir) é a razão. Einsehen.” (Cf. KANT’S Gesammelte Schriften. Berlin:Walter de Gruyter, 1923, v. XV, pp. 170 e 180, respectivamente; cf. tam-bém KANT, I. Lógica. Trad. de Guido de Almeida. RJ: Tempo Brasileiro,1992, p. 82, Ak 65; ou: Manual dos cursos de lógica geral. Trad. FaustoCastilho. Campinas/Uberlândia: IFCH-UNICAMP/EDUFU, 1998, p. 111).Num esboço de carta do verão de 1792 ao príncipe A. von Beloselsky,Kant observou: “A esfera da perspicacité é a da perspiciência <Einsicht>sistemática da interconexão da razão dos conceitos em um sistema” (cf.KANT’S Gesammelte Schriften, v. XI: Briefwechsel v. II, p. 346. Cf. a res-peito também KANT, I., Opus postumum. Tradução, apresentação e notasde François Marty. Paris: PUF, 1986, p. 234). – 3) A língua alemã utilizacomo equivalente de perspicientia / Einsicht o termo Durschauung /durchschauen = ver através de, ter uma visão perspicaz, penetrante, in-terna, portanto desveladora, p. ex., daquilo que normalmente se oculta,ou esclarecer-se sobre algo, ter clareza. Para durchschauen possui aindaos equivalentes durchsehen, durchblicken, durchlesen.–4) Correspon-dentemente, talvez pudéssemos adotar em português, para Einsicht /einsehen, ver com perspicácia, ter uma visão penetrante ou perspicaz,

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é a condição4 da lei moral, que conhecemos <wissen>. Asidéias de Deus e de imortalidade, contudo, não são con-dições da lei moral mas somente condições do objeto [6]necessário de uma vontade determinada por essa lei, istoé, do uso meramente prático de nossa razão pura; portan-to não podemos tampouco afirmar acerca daquelas idéias,não quero simplesmente dizer a efetividade mas sequer apossibilidade de conhecê-las e ter perspiciência delas.Apesar disso, elas são as condições da aplicação da von-tade moralmente determinada a seu objeto, que lhe foidado a priori (o sumo bem). Conseqüentemente, sob esteaspecto prático a sua possibilidade pode e tem que ser ad-

evidência. Mas, por outro lado, talvez pudéssemos incorporar “perspi-ciência” como um termo técnico para expressar uma forma de conheci-mento racional. Contaríamos com o antecedente do tradutor latino deKant, Born, que, na tradução da Crítica da razão prática, empregou paraEinsicht o termo latino perspicientia e, para einsehen, perspicere, p. ex.,na seguinte passagem: Nun est aber alle menschliche Einsicht zu Ende(KpV A 81): Atqui omnis humana perspicientia haeret (cf. IMMANUELISKANTII. Critica rationis practicae. Trad. lat. Fredericus Gottlob Born. Lip-siae: Engelhard Benjamin Schwickerti, MDCCLXXXXVII, p. 39. Confessoalguma hesitação na adoção de um termo alheio ao uso comum, feita,no entanto, na esperança de que o leitor possa vir a oferecer sua própriacontribuição a respeito. Para tanto convém ler a resposta de Kant, nestePrefácio, à crítica de que ele pretendesse introduzir uma “nova lingua-gem” na Moral (cf. KpV A 19 s.).

4. Para que não se imagine encontrar aqui inconseqüências, quan-do agora denomino a liberdade condição da lei moral e depois, no tra-tado, afirmo que a lei moral seja a condição sob a qual primeiramentepodemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar quea liberdade é sem dúvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei mo-ral é a ratio cognoscendi da liberdade. Pois, se a lei moral não fosse pen-sada antes claramente em nossa razão, jamais nos consideraríamos auto-rizados a admitir algo como a liberdade (ainda que esta não se contradi-ga). Mas, se não existisse liberdade alguma, a lei moral não seria demodo algum encontrável em nós. (K)

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mitida, sem que se a conheça e se tenha dela uma perspi-ciência teórica. Para a última exigência basta, de um pon-to de vista prático, que ela não contenha nenhuma impos-sibilidade interna (contradição). Ora, aqui se encontra, emcomparação com a razão especulativa, um fundamentomeramente subjetivo do assentimento, que, todavia, é ob-jetivamente válido para uma razão igualmente pura masprática, com o que e mediante o conceito de liberdade éproporcionada realidade objetiva às idéias de Deus e deimortalidade e <é proporcionada> a faculdade, antes, anecessidade subjetiva (carência da razão pura) de admi-ti-las, sem que com isso, todavia, a razão seja ampliada noconhecimento teórico, mas que apenas a possibilidade,que antes não passava de problema e aqui [7] se torna as-serção, seja dada, e assim o uso prático da razão é co-nectado com os elementos do uso teórico. E esta carêncianão é, por assim dizer, uma necessidade hipotética de umobjetivo qualquer da especulação – de que se tenha deadmitir algo caso se queira elevar-se à completude do usoda razão na especulação – mas é uma necessidade legalde admitir algo, sem a qual não pode ocorrer o que sedeve pôr incessantemente como objetivo de sua conduta.

Seria certamente mais satisfatório para nossa razãoespeculativa resolver aqueles problemas por si e sem es-tes rodeios, reservando sua perspiciência para o uso práti-co; só que as coisas não se passam tão bem assim coma nossa faculdade especulativa. Aqueles que se vanglo-riam de tais conhecimentos elevados não deveriam abs-ter-se <deles> mas apresentá-los publicamente para exa-me e apreciação. Eles querem provar; muito bem!, elespodem prová-los e a crítica deporá a seus pés, como ven-cedores, todas as suas armas. Quid statis? Nolint. Atqui li-

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cet esse beatis 5. – Portanto, já que de fato não o querem,presumivelmente porque não o [8] podem, temos que re-tomar em mãos aquelas armas para procurar e fundar nouso moral da razão os conceitos de Deus, liberdade e imor-talidade, de cuja possibilidade a especulação não encontrasuficiente garantia.

Aqui também se esclarece, antes de mais nada, o enig-ma da Crítica, de como se possa contestar realidade obje-tiva ao uso supra-sensível das categorias e contudo conce-der-lhes6 essa realidade com respeito aos objetos da razão

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5. HORÁCIO, Sátiras I, 1, 19. A frase de Horácio situa-se no con-texto de uma descrição da insatisfação de cada um com a própria sorte,imaginando sempre mais feliz o outro do que a si próprio: o velho guer-reiro considera mais feliz o comerciante, e este ao soldado, o agricultorconsidera mais feliz o advogado, e assim inversa e indefinidamente. OPoeta imagina então que um deus, satisfazendo esses desejos, diga:muito bem, troquem os papéis! Ao que se seguem, na citação de Kant,as três últimas palavras de Júpiter, com o comentário de Horácio: “‘En-tão, por que hesitais?’ Eles renegariam o desejo; e contudo poderiamtornar-se agora tão felizes!” (cf. HORAZ. Sämtliche Werke. Lateinisch unddeutsch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1993, pp. 254-5).Conforme se pode verificar nesse texto e, comparativamente, em outrasedições da KpV, a edição de Vorländer transcreve nolunt em vez de no-lint, que aliás consta em todos os manuscritos, com exceção do Bernen-sis 363, onde se lê nolent (segundo carta de Eckhard Lefèvre ao Tradu-tor; cf. também KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft. Ed. Karl Vor-länder. Hamburg: Felix Meiner, 1993, p. 5). Em sua determinação doconceito de sátira em Horácio, E. Lefèvre cita uma definição recente deGustav A. Seeck: ela é “uma tentativa de desacreditar, que envolve indig-nação e/ou mofa, bem como uma espécie e forma de apresentação comomeio sugestivo para alcançar o assentimento do leitor” (apud LEFÈVRE,E. Horaz: Dichter im augusteischen Rom. München: Beck, 1993, p. 87).As sátiras de Horácio têm um sentido predominantemente moral: ex-pressam o modo de vida correto, chamado entre os romanos vita beatae entre os gregos eudaimonia, mas sob uma forma argumentativa nega-tiva, de insatisfação com o destino em decorrência da cupidez.

6. Erdmann propõe ihm (a ele), referindo-o a uso.

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prática pura: pois de início, enquanto se conhece um taluso prático só pelo nome, isto necessariamente tem deparecer inconseqüente. Mas, se agora, por uma análisecompleta da razão prática7, se compreende que a men-cionada realidade não culmina aqui de modo algum nu-ma determinação teórica das categorias e numa extensãodo conhecimento ao supra-sensível, mas que com isso so-mente se quis dizer que, sob este aspecto, em toda parteconvém a elas um objeto; assim, quer porque elas estãocontidas a priori na necessária determinação da vontade,quer porque estão inseparavelmente ligadas ao objetodessa determinação, [9] aquela inconseqüência desapa-rece; pois se faz daqueles conceitos um uso diverso doque a razão especulativa necessita. Contrariamente se ma-nifesta agora uma confirmação, sequer esperável antes emuito satisfatória, do modo de pensar conseqüente da crí-tica especulativa, no seguinte fato: visto que esta reco-mendava expressamente considerar os objetos da expe-riência enquanto tais, e entre eles inclusive o nosso pró-prio sujeito, como válidos somente enquanto fenômenos,todavia recomendava pôr-lhes como fundamento coisasem si mesmas, portanto não considerar todo o supra-sen-sível como ficção e seu conceito como vazio de conteú-do: a razão prática obtém agora por si mesma, e sem teracertado um compromisso com a razão especulativa, rea-lidade para um objeto supra-sensível da categoria de cau-salidade, a saber, da liberdade (embora, como conceitoprático, também só para o uso prático), portanto confir-

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7. “Razão prática” consta aí para der letzteren, que a Ak, baseadaem Adickes, substituiu para des letzteren (do último), significando então“do uso prático da razão”.

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ma mediante um factum 8 o que lá meramente podia serpensado.Ora, com isso a afirmação ao mesmo tempo es-tranha, embora indiscutível, da crítica especulativa – deque até o sujeito pensante seja para si mesmo,na intuiçãointerna, simplesmente fenômeno – alcança agora na Crí-tica da razão prática também a sua plena confirmação,a ponto de [10] se ter de chegar a ela mesmo que a Crí-tica anterior não tivesse também provado de modo al-gum esta proposição9.

Deste modo compreendo também por que as obje-ções até agora mais graves que me apareceram contra aCrítica giram precisamente em torno destes dois eixos:ou seja, por um lado, da realidade objetiva das categoriasaplicadas aos noumena 10, negada no conhecimento teó-rico e afirmada no conhecimento prático, e, por outro, daexigência paradoxal de, enquanto sujeito da liberdade,considerar-se noumenon, ao mesmo tempo, porém, com

8. Emprega-se, como o fez Kant – excepcionalmente com letramaiúscula na KpV –, a forma latina factum, para distingui-la de Tatsache,“fato” em seu sentido empírico. A forma germanizada Faktum, adotadaposteriormente, não é de Kant. Cf. adiante também o Corolário ao § 7,KpV A 56, e A 96, e ainda as Reflexões 6809 e 7131, Ak v. XIX, pp. 168e 255, respectivamente, etc. Constata-se também em textos de J. Derridao uso do termo latino factum.

9. A união da causalidade, enquanto liberdade, com a causalidadeenquanto mecanismo da natureza, sendo a primeira estabelecida pela leimoral e a segunda pela lei natural e, na verdade, em um e mesmo sujei-to, o homem, é impossível sem representar a este, em relação com a leimoral, como ente em si mesmo, e em relação com a lei natural, porémcomo fenômeno, aquele na consciência pura e este na consciência empí-rica. Sem isto a contradição da razão consigo mesma é inevitável. (K)

10. Em relação aos termos singular e plural noumenon / noumena,adota-se a sua forma grega, como Kant em geral também o fez; cf., p.ex., KrV B 294/A 235.

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vistas à natureza considerar-se fenômeno em sua própriaconsciência empírica. Pois enquanto não se formava ain-da nenhum conceito determinado de moralidade e liber-dade não se podia [11] supor que coisa por um lado sequeria pôr, enquanto noumenon, como fundamento dopretenso fenômeno, e, por outro lado, se em geral tam-bém é possível formar ainda um conceito dele, quandoantes se haviam consagrado todos os conceitos do en-tendimento puro, no uso teórico, exclusivamente aos sim-ples fenômenos. Somente uma crítica minuciosa da ra-zão prática pode remediar toda esta má interpretação epôr em clara luz a maneira de pensar conseqüente11, quejustamente constitui a sua máxima prerrogativa.

Basta isto para justificar por que, nesta obra, os con-ceitos e proposições fundamentais <Grundsätze>12 da ra-zão especulativa pura, que já sofreram sua crítica parti-cular, são aqui às vezes submetidos de novo à prova, oque, aliás, não convém muito ao curso sistemático deuma ciência a ser constituída (já que coisas ajuizadas, jus-tamente, só têm que ser referidas e não ser de novo dis-cutidas), o que, porém, aqui era permitido e mesmo ne-cessário; porque com aqueles conceitos a razão é conside-rada em trânsito para um uso totalmente diferente do queela lá fez deles. Semelhante [12] trânsito, porém, tornanecessária uma comparação do uso antigo com o novopara distinguir bem a nova via da anterior e, ao mesmotempo, permitir observar a sua interconexão. Portanto con-siderações dessa espécie, entre outras aquelas que foramnovamente dirigidas ao conceito de liberdade mas no uso

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11. Cf., no mesmo sentido, KANT, I. Crítica da faculdade do juízo.Trad., p. 141, B 158.

12. Cf. a nota do tradutor em A 26.

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prático da razão pura, não serão vistas como obstáculosque porventura só devem servir para preencher lacunasdo sistema crítico da razão especulativa (pois este é com-pleto em seu objetivo) e13, como sói acontecer em umaconstrução precipitada, para depois ainda colocar estacase contrafortes, mas serão vistas como verdadeiros mem-bros que tornam observável a interconexão do sistemae permitem ter agora em sua real apresentação a perspi-ciência14 de conceitos que lá puderam ser representados sóproblematicamente. Esta advertência concerne principal-mente ao conceito de liberdade, acerca do qual se temque observar com estranheza que ainda tantos se van-gloriam de sua15 perfeita perspiciência e de serem capa-zes de explicar a possibilidade da mesma16, na medida emque consideram o conceito simplesmente sob o aspectopsicológico, enquanto, se antes o tivessem consideradoexatamente sob o aspecto transcendental, [13] teriam queter conhecido tanto a sua indispensabilidade, como con-ceito problemático no uso completo da razão especulati-va, bem como a total incompreensibilidade do mesmo e,quando depois se dirigissem com ele ao uso prático, jus-tamente teriam que ter chegado por si à referida determi-nação do último relativamente a suas proposições funda-mentais, acerca de cuja determinação eles, aliás, queremtão a contragosto entender-se. O conceito de liberdadeé a pedra de escândalo para todos os empiristas mas tam-

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13. Hartenstein corrige und (e), substituindo-o por um (para).14. Hartenstein com razão elimina o zu (para).15. Kant: ihn, referido a conceito.16. Na 1.ª e da 4.ª à 6.ª edições constou derselben (da mesma), refe-

rido à liberdade, e na 2.ª, desselben (do mesmo), referido ao conceito. Cf.também a nota em A 30.

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bém a chave das mais sublimes proposições fundamentaispráticas para moralistas críticos, que com isso têm a pers-piciência de que precisam proceder de modo necessa-riamente racional. Por causa disso advirto o leitor a nãoreparar com olhos fugidios o que na conclusão da Ana-lítica é dito sobre esse conceito.

Tenho que deixar aos versados em semelhante tra-balho ajuizar se um tal sistema, como o que aqui é de-senvolvido sobre a razão prática pura a partir da crítica darazão, envolveu muito ou pouco esforço, principalmentepara não falhar o ponto de vista exato desde o qual o to-do da mesma pode ser corretamente traçado. O que, [14]na verdade, pressupõe a Fundamentação da metafísicados costumes, mas só na medida em que esta chega a co-nhecer provisoriamente o princípio do dever e indica ejustifica uma fórmula determinada deste17; afora isso um

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17. Um crítico*, que queria expressar algo em desabono dessa pu-blicação, teve melhor sorte do que ele mesmo possa ter imaginado, aodizer que nela não foi apresentado nenhum princípio novo da moralida-de mas somente uma nova fórmula. Mas quem é que queria introduzir tam-bém uma nova proposição fundamental de toda a moralidade e como queinventá-la pela primeira vez? Quem, porém, sabe o que significa para omatemático uma fórmula,a qual para executar uma tarefa determina bemexatamente e não deixa malograr o que deve ser feito, não consideraráuma fórmula, que faz isto com vistas a todo o dever em geral, como algoinsignificante e dispensável. (K)

* O crítico ao qual Kant se refere nessa nota chamou-se Gottlob Au-gust Tittel (1739-1816), conselheiro eclesiástico em Karlsruhe, adversárioda ética de Kant e adepto do eudaimonismo, como o seu mestre J. G. H.Feder (1740-1821), conhecido por uma polêmica recensão da Crítica darazão pura, atacada por Kant no Apêndice aos Prolegomena (cf. mais arespeito na carta de C. Garve a Kant, de 13.7.1783). O texto aqui em ques-tão foi: TITTEL, G. A. Über Herrn Kants Moralreform. Frankfurt e Leip-zig: bey den Gebrüdern Pfähler, 1786. Kant pretendeu responder-lhe, deacordo com carta de J. E. Biester, de 11.6.1786 (cf. KANT, I. Briefwechsel.Hamburgo: Felix Meiner, 1986, pp. 299 s., 304, 308 e 846).

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tal sistema subsiste por si próprio. Um argumento válido,pelo qual a divisão de todas as ciências práticas com vis-tas à completude não foi anexada, como o fez a crítica darazão especulativa, pode encontrar-se também na nature-za desta faculdade racional prática. Pois a determinaçãoespecífica dos deveres como deveres [15] humanos, paradividi-los, somente é possível se antes o sujeito dessa de-terminação (o homem) for conhecido segundo a naturezaque ele efetivamente detém, embora apenas na medidaem que é necessário com relação ao dever em geral; taldeterminação, porém, não pertence a uma Crítica da ra-zão prática em geral, que só deve indicar completamen-te os princípios de sua possibilidade, de seu âmbito e li-mites, sem referência particular à natureza humana. Por-tanto a divisão pertence aqui ao sistema da ciência e nãoao sistema da crítica.

Espero ter satisfeito, no segundo capítulo da Analítica,a um certo crítico18, amante da verdade e arguto, nisso por-tanto sempre digno de respeito, em sua objeção à Funda-mentação da metafísica dos costumes, de que nela o concei-to de bom não foi estabelecido antes do princípio moral(como, de acordo com sua opinião, [16] teria sido neces-

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18. Este crítico chamou-se Hermann Andreas Pistorius (1730-1798),pastor na ilha de Rügen e prior na ilha de Fehmarn, ambas no mar Bálti-co, que escreveu duas recensões anônimas, a primeira, aqui referida: PIS-TORIUS, H. A. Rezension von Kant’s “Grundlegung zur Metaphysik derSitten”. Allgemeine Deutsche Bibliothek, v. 66, pp. 447-63, 1786 (cf. sobrea autoria do texto a carta de D. Jenisch a Kant, de 14.6.1787. KANT, I.Briefwechsel, p. 316); e a segunda: PISTORIUS, H. A. Rezension der ‘Kri-tik der praktischen Vernunft’. Allgemeine Deutsche Bibliothek, v. 117, pp.78-105, 1794. Os textos podem ser lidos em BITTNER, R. / CRAMER, K.(Ed.). Materialien zu Kants “Kritik der praktischen Vernunft”. Frankfurt:Suhrkamp, 1975, pp. 144-60 e pp. 161-78, respectivamente.

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sário)19; do mesmo modo tomei em consideração váriasoutras objeções, que [17] me chegaram às mãos de partede pessoas que deixam ver que a investigação da verda-de lhes é cara (pois aqueles que só têm [18] ante os olhos

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19. Poder-se-ia ainda replicar-me por que também não elucidei an-tes o conceito de faculdade de apetição ou de sentimento de prazer; sebem que esta objeção seria injusta, porque tal elucidação, do modocomo é fornecida na Psicologia, justamente deveria poder ser pressupos-ta. Mas certamente aí mesmo a definição poderia ser estabelecida demodo tal que o sentimento de prazer fosse colocado como fundamento dadeterminação da faculdade de apetição (como também efetiva e geralmen-te costuma acontecer), pelo que porém o princípio supremo da filosofiaprática necessariamente teria de acabar sendo empírico, o que contudotem de ser decidido em primeiro lugar e é refutado completamente nestaCrítica. Por isso quero fornecer esta elucidação aqui do modo como elatem de ser, para, como é justo, deixar este ponto controverso inicialmen-te pendente. – Vida é a faculdade de um ente de agir segundo leis da fa-culdade de apetição. A faculdade de apetição é a faculdade do mesmoente de ser, mediante suas representações, causa da efetividade dos ob-jetos destas representações. Prazer é a representação da concordância doobjeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com a fa-culdade da causalidade de uma representação com vistas à efetividadede seu objeto (ou da determinação das forças do sujeito à ação de pro-duzi-lo). Mais eu não necessito, com vistas à crítica de conceitos que sãopedidos emprestados à Psicologia; do resto desincumbe-se a própria crí-tica. Nota-se [17] facilmente que a questão, se o prazer tem de ser postosempre como fundamento da faculdade de apetição, ou se também sobcertas condições ele somente se segue à determinação dela, fica median-te esta elucidação pendente; pois ela se compõe de meras característicasdo entendimento puro, isto é, de categorias, que não contêm nada em-pírico. Uma tal cautela é muito recomendável em toda a Filosofia e, nãoobstante, é freqüentemente descurada, ou seja, de não se antecipar emseus juízos, mediante temerária definição, antes da completa análise doconceito, que freqüentemente é alcançada só muito tardiamente. Tam-bém se observará, durante todo o curso da Crítica (tanto da razão teóri-ca como da prática), que nele se encontra um múltiplo ensejo para com-pletar algumas deficiências no antigo curso dogmático da Filosofia e cor-rigir erros que não são notados antes, como quando se faz com concei-tos um uso da razão que concerne ao todo dela. (K)

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o seu antigo sistema, e entre os quais já se decidiu de an-temão o que deve ser aprovado ou desaprovado, não rei-vindicam nenhuma discussão que pudesse contrariar seuobjetivo privado); e assim continuarei procedendo.

Se o que importa é a determinação de uma faculda-de particular da alma humana segundo suas fontes, con-teúdos e limites, então, de acordo com a natureza do co-nhecimento humano, não20 se pode começar de outromodo que das partes dela21, de sua exata e completaapresentação (na medida do que seja possível, segundoa situação atual de nossos elementos22 já adquiridos damesma). Mas há ainda um segundo cuidado, que é maisfilosófico e arquitetônico, a saber, de compreender corre-tamente a idéia do todo e a partir dela abarcar com a vis-ta, em uma faculdade racional pura, todas aquelas partesna sua relação recíproca mediante a derivação das mesmasdo conceito daquele todo. Este exame e [19] garantia so-mente é possível pela mais íntima familiaridade com o sis-tema, e aqueles que se aborreceram com a primeira in-vestigação – portanto não consideraram que a aquisiçãodessa familiaridade valesse a pena – não alcançam o se-gundo degrau, a saber, a visão geral, que é um retornosintético ao que antes foi dado analiticamente, e não énenhum milagre se encontram por toda a parte inconse-qüências, ainda que as lacunas que estas deixam presumir

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20. Na 2.ª edição original constou nichts (nada).21. Kant: derselben (da mesma, dela), pronome feminino, gramati-

calmente só poderia corresponder aos femininos Bestimmung (determi-nação), Seele (alma) ou Erkenntnis (conhecimento), e não ao masculinoVermögen (faculdade), como o pretenderam as traduções francesa (Fer-ry/Wismann) e portuguesa (Morão).

22. Vorländer: conhecimento?

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não se achem no sistema mesmo mas apenas em sua pró-pria incoerente ordem de idéias.

Não me preocupa minimamente a objeção, a respei-to deste tratado, de querer introduzir uma nova lingua-gem23, porque o modo de conhecimento aproxima-se aqui,por si, da popularidade. Esta objeção não podia tampoucoocorrer, acerca da primeira Crítica, a alguém que não a fo-lheou simplesmente mas a examinou a fundo. Produzirartificialmente novas palavras, quando a linguagem já nãotem nenhuma carência de expressões [20] para conceitosdados, é um esforço pueril para distinguir-se entre a mul-tidão, quando não mediante pensamentos novos e ver-dadeiros, mediante um trapo novo sobre a veste antiga.Se, pois, os leitores daquela obra conhecerem expres-sões mais populares, que, contudo, sejam tão adequadasao pensamento como aquelas me parecem ser, ou por-ventura se atreverem a provar a nulidade destes própriospensamentos, por conseguinte ao mesmo tempo de cadaexpressão que o designa, eles com isso me tornariam mui-to devedor por aquele primeiro aspecto, pois eu queroapenas ser entendido, porém em relação ao segundo as-pecto tornar-se-iam benemerentes da Filosofia. Mas, en-quanto aqueles pensamentos ainda estiverem de pé, duvi-do muito que pudessem encontrar-se para eles expres-sões adequadas e contudo mais correntes24.

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23. Objeção de G. A. Tittel, v. também a nota em A 14.24. Aqui às vezes me preocupa mais (do que aquela falta de enten-

dimento <Unverständlichkeit>) a falsa interpretação de algumas expres-sões, que escolhi com o máximo cuidado para não deixar fracassar oconceito a que elas remetem. Assim, na tábua das categorias da razãoprática, sob o título da modalidade, o lícito e ilícito [21] (o prático-objetiva-mente possível e impossível) têm no uso lingüístico comum quase o mes-mo sentido que a categoria subseqüente do dever e do contrário ao dever.

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[21] Deste modo os princípios a priori de duas facul-dades do ânimo – da [22] faculdade de conhecer e da fa-culdade de apetição – estariam doravante descobertos e

Aqui, porém, o primeiro deve significar aquilo que está de acordo ou co-lide com uma prescrição prática meramente possível (como aproximada-mente a resolução de todos os problemas da Geometria e da Mecânica);o segundo deve significar o que se encontra em tal referência a uma leique jaz efetivamente na razão em geral. E essa diferença de significadonão é inteiramente estranha também, se bem que um tanto inabitual, aouso lingüístico comum. Assim, por exemplo, a um orador enquanto talnão é lícito forjar novas palavras ou junções de palavras; ao poeta isso emcerta medida é lícito. Em nenhum dos dois casos cogita-se aqui de de-ver. Pois, se alguém quer perder sua reputação de orador, ninguém podeimpedi-lo. Aqui se trata somente da distinção dos imperativos sob funda-mentos determinantes problemáticos, assertóricos e apodícticos. Do mes-mo modo naquela nota em que comparei as idéias morais de perfeiçãoprática em diversas escolas filosóficas, distingui a idéia de sabedoria da desantidade, embora eu mesmo as tenha declarado, no fundo e objetivamen-te, como idênticas. Todavia neste lugar entendo por sabedoria somenteaquela que o homem (o estóico) se arroga, portanto atribuída subjetiva-mente ao homem, como propriedade. (Talvez a expressão virtude, que oestóico também alardeava, pudesse designar melhor o traço característi-co de sua escola.) Mas a expressão postulado da razão prática pura é aque mais ainda podia* ensejar uma falsa interpretação, quando se confun-dia com ela o significado que os postulados da matemática pura pos-suem, e os quais comportam certeza apodíctica. Mas estes postulam apossibilidade de uma ação, cujo objeto se conheceu teoricamente antes, apriori, com plena certeza como possível. Aquele, porém, postula a possi-bilidade de um objeto mesmo (de Deus e da imortalidade da alma) a par-tir de leis práticas apodícticas, portanto somente para o fim de uma ra-zão prática; pois, com efeito, esta certeza da possibilidade postulada nãoé de modo algum teórica, tampouco apodíctica, isto é, uma necessidadeconhecida com vistas ao objeto, mas uma suposição necessária em vistado sujeito para a observância de suas leis objetivas, porém práticas, porconseguinte é apenas uma hipótese necessária. Não consegui encontrarnenhuma expressão melhor para esta necessidade subjetiva, contudo ver-dadeira e incondicionada, da razão. (K)

* Hartenstein: könnte (poderia)?

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determinados, segundo as condições, a extensão e os [23]limites de seu uso; e com isso, porém, estaria assentadoo fundamento seguro para uma filosofia sistemática, tan-to teórica quanto prática, como ciência.

Mas nada pior poderia suceder a estes esforços doque se alguém fizesse a descoberta inopinada de que nãohá nem pode haver em parte alguma um conhecimentoa priori. Este perigo, todavia, inexiste. Seria como se al-guém quisesse provar pela razão que não há razão algu-ma. Pois apenas dizemos que conhecemos algo pela razãose estamos conscientes de que também teríamos podidoconhecê-lo, mesmo que não nos tivesse ocorrido assim na[24] experiência; por conseguinte conhecimento da razãoe conhecimento a priori são o mesmo. Querer extorquirnecessidade de uma proposição da experiência (ex pumi-ce aquam)25 e querer obter com esta também verdadeirauniversalidade para um juízo (sem a qual não há raciocí-nio algum, por conseguinte tampouco conclusão a par-tir da analogia, a qual é pelo menos uma presumida uni-versalidade e necessidade objetiva e, portanto, semprepressupõe a esta), é uma franca contradição. Substituira necessidade objetiva, que só se encontra em juízos apriori, pela necessidade subjetiva, isto é, o hábito, signi-fica negar à razão a faculdade de julgar sobre o objeto,isto é, de conhecer a ele e ao que lhe compete e signifi-ca, por exemplo, não dizer, acerca daquilo que freqüen-temente e sempre seguia de um certo estado precedente,que se possa concluir deste àquele (pois isto significarianecessidade objetiva e conceito de uma vinculação a prio-

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25. “Tirar água de pedra-pomes” (querer o impossível). Cf. PLAUTUS,T. M. (c. 251-184 a.C.). Persa I 1,41.

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ri) mas que só se permite esperar casos semelhantes (decomo se passa com os animais), isto é, rejeitar o conceitode causa, no fundo, como falso e [25] como simples pen-samento enganoso. Querer remediar esta falta de validadeobjetiva e de validade universal, dela resultante, medianteo fato de que em verdade não se veja nenhum fundamen-to para atribuir a outros entes racionais um modo diversode representação, se isto fornecesse uma conclusão vá-lida, então nossa ignorância contribuiria, mais do que to-da a reflexão, para a ampliação de nosso conhecimento.Pois, pelo simples fato de que não conhecemos outrosentes racionais além do homem, teríamos direito de ad-miti-los como constituídos do modo como nos conhece-mos, isto é, nós os conheceríamos efetivamente. Não men-ciono aqui uma única vez que não é a universalidade doassentimento que prova a validade objetiva de um juízo (is-to é, a sua validade como conhecimento), mas que, mes-mo que aquela casualmente estivesse certa, este ainda nãopoderia fornecer uma prova da concordância com o ob-jeto; que, muito antes, só a validade objetiva constitui ofundamento de uma concordância universal necessária.

[26] Hume também se sentiria muito bem neste sis-tema do empirismo universal em proposições fundamen-tais <Grundsätzen>26; pois ele, como se sabe, não exigia

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26. Este é um caso visível – nem sempre o é – em que, num mesmoparágrafo, os termos Grundsatz e Prinzip são tomados como sinônimos.Não obstante, para salvaguardar a índole do texto de Kant em geral e tor-nar viável em outros casos a própria tradução, os dois termos serão emgeral traduzidos por “proposição fundamental” e “princípio”, respectiva-mente. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem: “Esta justificação dosprincípios <Prinzipien> morais como proposições fundamentais <Grund-sätze> de uma razão pura...” (KpV A 164; cf. também A 57, A 72 e A 82). NaCrítica da razão pura encontramos uma diferenciação análoga: “A propo-

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nada mais do que, em vez de toda a significação objeti-va da necessidade no conceito de causa, fosse admitidauma significação meramente subjetiva, a saber, o hábito,para negar à razão todo o juízo sobre Deus, liberdade eimortalidade; e ele soube certamente muito bem, quandose lhe concederam somente os princípios <Prinzipien>,inferir daí conclusões com toda a concisão lógica. Mas tão

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sição fundamental <Grundsatz> da unidade sintética da apercepção é oprincípio <Prinzip> supremo de todo o uso do entendimento” (KrV B136, trad. 3. ed. 1987, p. 82). Mais expressiva ainda é a passagem: Einigewenige Grundsätze, welche die Geometer voraussetzen... dienen... nichtals Prinzipien (algumas poucas proposições fundamentais [aqui no sen-tido de axiomas] pressupostas pelos geômetras... não servem como prin-cípios. (KrV B 16, trad. 3. ed. 1987, p. 31). Peter Rohs, em suas conside-rações teóricas sobre a KrV, acentuou o caráter proposicional dos Grund-sätze : “Daß gewisse Sätze (die Grundsätze)... – que certas proposições (asproposições fundamentais)... antes, formulam condições sob as quais uni-camente tornam-se possíveis leis de experiência objetivamente válidas”(ROHS, P. Transzendentale Logik. Meisenheim: Anton Hain, 1976, p. 214).O termo Grundsatz foi introduzido na Filosofia e na linguagem científicapor Christian Wolff (Mathematisches Lexicon, 1716) como tradução de“axioma” (cf. RITTER, J. [Ed.]. Historisches Wörterbuch der Philosophie.Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974, v. 3, p. 923). Kantempregou-o nesse sentido em KpV A 167, embora no sentido de axioma,segundo ele, o termo diga respeito apenas à parte dos princípios intuiti-vos, com exclusão dos princípios discursivos. J. G. Schottel, segundo H.Paul, deu-lhe antes (1641) um sentido gramatical de lex vel regula funda-mentalis. A propósito, Kant utilizou numa mesma frase, na KpV A 110,como três expressões diferentes, Prinzip, Grundsatz e Grundregel (regrafundamental). Pela mesma época, segundo J. e W. Grimm, Grundsatzpassou a ser usado no sentido de princípio prático: “ein man von grund-sätzen” (um homem de princípios). Kant entendeu o princípio comouma espécie de proposição fundamental, reservando-lhe um sentido pre-ferentemente objetivo: Maxime heißt ein subjektiver Grundsatz. Ein objek-tiver heißt Prinzip. Eine Regel, die das Subjekt sich zum Prinzip macht,heißt Maxime (Máxima significa uma proposição fundamental subjetiva.Uma proposição fundamental objetiva chama-se princípio. Uma regra, queo sujeito estabelece para si como princípio, chama-se máxima. KANT, I.Logik Dohna-Wundlacken. Ak v. XXIV.2, 1966, p. 738).

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universal nem mesmo Hume fez o empirismo, a pontode incluir nele também a Matemática. Ele considerou asproposições dela analíticas e, na medida em que isso fos-se correto, elas de fato seriam também apodícticas, aindaque não possa ser tirada daí nenhuma conclusão – acer-ca de uma faculdade da razão – de também na Filosofiaproferir juízos apodícticos, a saber, juízos que fossem sin-téticos (como a proposição da causalidade). Mas, se se ad-mitisse universalmente o empirismo dos princípios, entãotambém a Matemática seria incluída nele.

[27] Ora, se esta entra em desacordo com aquela razãoque só admite proposições fundamentais empíricas, comoé inevitável na antinomia, já que a Matemática prova ir-refutavelmente a divisibilidade infinita do espaço, coisaque o empirismo não pode, porém, conceder: então a má-xima evidência possível da demonstração está em mani-festa contradição com as pretensas conclusões a partir deprincípios da experiência, e então se tem que perguntar,como o cego de Cheselden27: que é que me engana, a vis-ta ou o sentimento? (Pois o empirismo funda-se sobre umanecessidade sentida; o racionalismo porém sobre uma ne-cessidade da qual se tem perspiciência.) E assim o em-pirismo universal revela-se como o autêntico ceticismo,que falsamente se atribuiu a Hume num sentido tão ili-mitado28, uma vez que ele pelo menos deixou, [28] na Ma-

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27. CHESELDEN, W., anatomista inglês – citado também por Goethee autor de Osteografia e de Anatomia do corpo humano (esta traduzida parao alemão em 1790) –, narrou em Phil. Transactions, 1728, XXXV 447 a ope-ração de um cego, de cuja descrição, segundo Natorp, Kant teria tomadoconhecimento numa tradução de Abraham Gotthelf Kästner (1719-1800) daobra inglesa de Ótica: SMITH, R. Vollständiger Lehrbegriff der Optik (1755).

28. Nomes que designam o adepto de uma seita envolveram em to-dos os tempos muita rabulice; mais ou menos como se alguém dissesse:

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temática, uma segura pedra de toque da experiência, en-quanto aquele não permite absolutamente nenhuma pe-dra de toque da mesma (e que sempre só pode ser encon-trada em princípios a priori), embora a experiência nãoconste de simples sentimentos mas também de juízos.

Com efeito, já que nesta época filosófica e crítica di-ficilmente se pode tomar aquele empirismo a sério, e elepresumivelmente é proposto somente para o exercício dafaculdade de julgar e para, mediante contraste, colocarem mais clara luz a necessidade de princípios racionais apriori: assim se pode sempre ser grato àqueles que quei-ram empenhar-se por este trabalho, que afora isso nãoé propriamente instrutivo.

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N. é um idealista. Pois, embora ele não apenas admita enfaticamente masinsista que a nossas representações de coisas externas correspondam ob-jetos efetivos de coisas externas, ele contudo quer que a forma da intuiçãodas mesmas não seja inerente a elas mas somente ao ânimo humano. (K)

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