Crítica democracia ateniense

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  1  AS NUVENS: A CRÍTICA DE ARISTÓFANES À DEMOCRACIA A TENIENSE  ANA MARIA AL MEIDA FRA GA MSc UNEC A SOCIEDADE ATENIENSE INTERNA E EXTERNA Internamente toda a evolução política ateniense refletiu as lutas entre os vários grupos políticos, sendo os principais: os eupátridas (aristocracia agrária, dona das melhores terras, rebanhos e organizados gentilicamente); geomores (pequenos proprietários rurais); demiurgos (artesãos urbanos) e tetas (trabalhadores urbanos assalariados que tinham perdido suas terras). Os governantes atenienses desde Sólon procuraram equilibrar as tensões entre estes grupos, mas os dois pilares da sociedade grega permaneceram intocáveis: a propriedade privada da terra e a escravidão. Sólon tornou publicas as antigas leis do direito consuetudinário, mas não alterou a situação dos endividados que perdiam suas terras e eram r eduzidos à escravidão ou obrigados a mudar-se para a cidade e tornarem-se trabalhadores assalariados, integrando mais tarde a força marítima de Atenas. Todos os grandes políticos atenienses, na verdade, apoiaram-se no povo, fizeram mudanças na constituição para ampliar o acesso dos atenienses à cidadania. O importante era ser cidadão e para isto era necessário ser livre e proprietário. O cidadão oriundo s dos vários grupos sociais (exceto escravos e estrangeiros) tinham um objetivo comum: limitar os poderes da aristocracia. É necessário não perder de vista que a reação aristocrática sempre se fez presente quando a oportunidade apareceu. Os atenienses aproveitavam todas as possibilidades oferecidas pela região que ocuparam: a Ática. No nordeste (Diácria) predominavam os planaltos, montanhas e a criação de gado. O litoral (Parália) era a região para se construírem bons portos, sendo o principal deles, o Pireu. Isto favoreceu em muito o comércio marítimo, no seu auge Atenas orgulhava-se de seu poder sobre o mar Egeu. A área de planícies (Pédion), onde se encontrava Atenas era a região própria para a agricultura. Os montes Láurion tinham minas de prata e as várias montanhas forneciam mármores de várias qualidades e excelente argila, base da produção artesanal ateniense. Até o séc. VIII a.C. os eupátridas (aristocracia) dominavam a política ateniense sempre a seu favor. As lutas sociais tomam força nesta época quando já era insustentável a pressão sobre os pequenos proprietários que se endividavam e eram reduzidos à escravidão ou à condição de assalariados (tetas). Os legisladores como Drácon e Sólon apenas ofereciam um paliativo para os problemas sociais. As verdadeiras mudanças (no sentido de ampliar a participação democrática destes grupos) vieram com os tiranos. Mas, agora, um grupo de comerciantes e artesões enriquecidos com o comércio externo e a colonização podiam dar sustentação aos tiranos que promoveriam as reformas básicas da democracia grega. Os tiranos prepararam o advento da democracia grega, promoveram a reforma agrária ampliando a base dos cidadãos, incentivaram a colonização para resolver os problemas dos que

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AS NUVENS: A CRÍTICA DE ARISTÓFANES À DEMOCRACIA ATENIENSE

ANA MARIA ALMEIDA FRAGA MSc

UNECA SOCIEDADE ATENIENSE INTERNA E EXTERNA

Internamente toda a evolução política ateniense refletiu as lutas entre os vários grupos

políticos, sendo os principais: os eupátridas (aristocracia agrária, dona das melhores terras, rebanhos

e organizados gentilicamente); geomores (pequenos proprietários rurais); demiurgos (artesãos

urbanos) e tetas (trabalhadores urbanos assalariados que tinham perdido suas terras).

Os governantes atenienses desde Sólon procuraram equilibrar as tensões entre estes grupos,

mas os dois pilares da sociedade grega permaneceram intocáveis: a propriedade privada da terra e a

escravidão.Sólon tornou publicas as antigas leis do direito consuetudinário, mas não alterou a situação dos

endividados que perdiam suas terras e eram reduzidos à escravidão ou obrigados a mudar-se para a

cidade e tornarem-se trabalhadores assalariados, integrando mais tarde a força marítima de Atenas.

Todos os grandes políticos atenienses, na verdade, apoiaram-se no povo, fizeram mudanças

na constituição para ampliar o acesso dos atenienses à cidadania. O importante era ser cidadão e

para isto era necessário ser livre e proprietário. O cidadão oriundos dos vários grupos sociais (exceto

escravos e estrangeiros) tinham um objetivo comum: limitar os poderes da aristocracia. É necessário

não perder de vista que a reação aristocrática sempre se fez presente quando a oportunidade

apareceu.

Os atenienses aproveitavam todas as possibilidades oferecidas pela região que ocuparam: a

Ática. No nordeste (Diácria) predominavam os planaltos, montanhas e a criação de gado. O litoral

(Parália) era a região para se construírem bons portos, sendo o principal deles, o Pireu. Isto

favoreceu em muito o comércio marítimo, no seu auge Atenas orgulhava-se de seu poder sobre o mar

Egeu. A área de planícies (Pédion), onde se encontrava Atenas era a região própria para a

agricultura. Os montes Láurion tinham minas de prata e as várias montanhas forneciam mármores de

várias qualidades e excelente argila, base da produção artesanal ateniense.

Até o séc. VIII a.C. os eupátridas (aristocracia) dominavam a política ateniense sempre a seufavor. As lutas sociais tomam força nesta época quando já era insustentável a pressão sobre os

pequenos proprietários que se endividavam e eram reduzidos à escravidão ou à condição de

assalariados (tetas).

Os legisladores como Drácon e Sólon apenas ofereciam um paliativo para os problemas

sociais. As verdadeiras mudanças (no sentido de ampliar a participação democrática destes grupos)

vieram com os tiranos. Mas, agora, um grupo de comerciantes e artesões enriquecidos com o

comércio externo e a colonização podiam dar sustentação aos tiranos que promoveriam as reformas

básicas da democracia grega.

Os tiranos prepararam o advento da democracia grega, promoveram a reforma agrária

ampliando a base dos cidadãos, incentivaram a colonização para resolver os problemas dos que

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ainda não tinham terras, exilaram os eupátridas, incentivaram o estabelecimento de artesãos

estrangeiros em Atenas e a busca de escravos estrangeiros.

Externamente o expansionismo ateniense e das cidades gregas chocou-se com o

expansionismo persa, dando início às guerras médicas.Inicialmente a política expansionista persa beneficiava aos gregos da Ásia Menor,

principalmente Mileto, mas quando Dario I passou a dar preferências aos fenícios em detrimento dos

gregos, eclodiu a primeira revolta das cidades da Jônia. Foram derrotados e a repressão que se

seguiu foi violenta. Apenas Atenas e Erétria auxiliaram Mileto, o que não foi suficiente.

Dois anos mais tarde (492 a.C.) a primeira vitória animou os persas a empreenderem a

conquista da Grécia Balcânica. Prepararam uma grande expedição naval que foi destruída por

violentas tempestades. Em 490 a.C., aproveitando-se dos inúmeros conflitos entre as cidades gregas,

os persas conquistaram a Erétria. Foram derrotados em Maratona pelos atenienses que acudiram sua

aliada e somente Platéia aliou-se a Atenas neste momento.Dez anos mais tarde, em 480 a.C. Com o seu poder consolidado, Xerxes organizou um

poderoso exército e armou uma poderosa esquadra para empreender a conquista da Grécia

Balcânica. Naquela época as demais cidades gregas sentiram-se ameaçadas e formaram uma liga

para enfrentar os persas. A liderança desta liga coube à Esparta, que possuía o exército mais

poderoso da época, apesar disto, o comandante espartano, Leônidas foi derrotado no Desfiladeiro

das Termópilas, mas o que salvou o mundo grego foi a ação marítima sob o comando do ateniense

Temístocles, em Salamina. A derrota final veio em Platéia e na batalha naval de Micala. Neste ponto

da guerra, Esparta retirou-se deixando Atenas sozinha para libertar as cidades da Jônia e cuidar da

defesa do mar Egeu.

Isto trouxe um enorme prestígio político a Atenas. Para afastar permanentemente a ameaça

persa organizou-se a Confederação de Delos formada por Atenas e praticamente todas as cidades da

Jônia e do litoral do mar Egeu. Esparta e suas aliadas formaram outra liga: Liga do Peloponeso.

A liderança na Liga de Delos deu à Atenas uma posição política invejável no mundo grego:

Como sede da Liga, foi escolhida a ilha de Delos, onde se localiza o oráculotantas vezes consultado pelos atenienses antes das batalhas. Para otesouro da Liga, cada cidade-membro contribuía com homens, navios eprincipalmente dinheiro. As contribuições eram administradas por Aristides,um dos principais idealizadores da Liga. Na realidade Atenas mantinha umaposição hegemônica sobre as cidades-membros, e aos poucos, sobretudo apartir do governo de Temístocles, a Liga de Delos foi-se transformando deuma aliança de Estados iguais e autônomos em uma confederação decidades subordinadas ao poderoso Estado ateniense. Este impedia deforma violenta que as cidades aliadas abandonassem a Liga. O Tesouro,sediado em Delos, foi transferido para a Acrópole de Atenas em 454 a.C. eseus recursos usados na reconstrução e embelezamento da cidade. Atenasserviu-se da Liga de Delos para transformá-la em um grande impériomarítimo e comercial. Correspondeu à formação da Liga o início dopredomínio econômico e político de Atenas no Mundo Grego. As diretrizespolítica e militares da Liga eram ditadas por Atenas, que manobrava oconselho que se reunia anualmente, e as causas jurídicas mais importanteseram julgadas nos tribunais e por magistrados atenienses. Atenas impunhaàs suas antigas aliadas – agora vassalas – o regime democrático emdetrimento dos grupos aristocráticos dominantes, e o comércio dessas

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cidades era feito somente com Atenas, usando-se como meio de troca amoeda ateniense – o dracma.B (AQUINO, et al. 1980, p.203).

Apesar de vitoriosa e dominando um vasto império marítimo e comercial, Atenas não conseguiu

reunir todas as cidades gregas, ou seja, não conseguiu realizar o pan-helenismo. A esta alturaEsparta, à frente da Liga do Peloponeso, começou a interferir na política externa ateniense e somente

em 445 a.C. as duas cidades celebraram a Trégua de Trinta Anos, pela qual se comprometiam a não

interferir nos assuntos internos das respectivas ligas e mantinham as suas possessões antes da

guerra.

Feita a trégua dos Trinta Anos, Péricles assumiu o poder e levou a experiência democrática

ateniense ao máximo. Governou durante trinta anos e este foi um período de grande prosperidade

econômica e progresso cultural. Seu governo foi tão importante que o século V é conhecido como

Século de Ouro ou Século de Péricles.

Politicamente ele representava os interesses de grandes camadas do povo ateniense comocomerciantes, artesãos, pequenos proprietários e grandes cultivadores de vinha e oliveira, cujos

produtos destinavam-se ao mercado externo, daí a importância da manutenção da política

imperialista. Quanto às camadas mais pobres, Péricles empreendeu reformas, que hoje podem ser

chamadas de populistas, mas, que na época reforçaram a democracia escravista e impediram o

colapso do regime político de Atenas. Suas principais reformas foram:

criação da mistoforia – remuneração pelo desempenho de cargos públicos;

soldados e marinheiros passaram a receber salários;

todos os funcionários, com exceção dos estrátegas, eram escolhidos por sorteio;

o Areópago perdeu grande parte de suas funções;

a Eclésia (assembléia popular) adquiriu amplos poderes, cabia-lhe as funções executiva e

legislativa e a fiscalização dos magistrados;

empreendeu uma política de grandes construções públicas para reduzir as pressões

sociais;

os cidadãos recebiam o teóricon, para poderem assistir aos espetáculos teatrais;

deu ampla liberdade de expressão para que as ciências e artes pudessem desenvolver-se.

Toda esta prosperidade baseava-se em dois pilares: o trabalho escravo internamente e a

manutenção da política imperialista.Apesar da Trégua dos Trinta Anos, vários conflitos e tensões acumularam-se entre Esparta e

Atenas.(...) A primeira fase da guerra iniciou-se em 431 aC. Quando Corintosolicitou o auxilio de Esparta contra Atenas. Esta apoiaria Córcira na disputaque mantinha com Corinto pela posse da colônia de Epidamos. Mégara eoutras cidades revoltaram-se contra Atenas a quem Esparta declarouguerra. As rivalidades entre Atenas e Corinto diziam respeito ao domíniodas rotas comerciais do Mediterrâneo Ocidental, particularmente a Sicília,região fornecedora de trigo. É importante assinalar que as camadasmercantis e artesanais de Atenas, interessadas em abalar a posiçãocomercial de Corinto e Mégara nas regiões ocidentais, impeliram o Estado àguerra contra as cidades aliadas de Esparta. (MOSSÉ, 1985, p.75).

Os conflitos acumularam-se durante dez anos.Quando a guerra começou todos esperavam

que fosse rápida. A estratégia inicial de Péricles era reunir toda a população na cidade e deixar que

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os exércitos espartanos devastassem a Ática, mas dificilmente conseguiriam dominar a cidade. Esta

estratégia revelou-se equivocada. Neste período uma peste assolou Atenas, vitimando inclusive

Péricles, seu líder mais carismático faltou no pior momento. Nunca saberemos se a guerra teria outro

desfecho se ele não tivesse morrido.Em 421 a.C., oito anos após a sua morte, foi celebrada a Paz de Nícias, de curta duração.

Neste momento, em que a cidade está sitiada e há um vácuo no poder, Aristófanes escreveu e

encenou “As Nuvens”.

O AUTOR

Para iniciar a análise da obra de Aristófanes precisamos saber quem foi o autor. Aristófanes

não era propriamente um membro da aristocracia ateniense, mas seus pais foram colonos em Egina,

onde tinham uma pequena propriedade.Muito precoce o autor inscreveu-se várias vezes nos concursos de comédias e perdeu algumas

vezes para outros poetas a quem nunca perdoou e sempre satirizou em suas comédias. Em 427 a.C.

com “Os Babilônicos ” atacou a política de Cléon, que o levou aos tribunais, acusando-o de ter

usurpado os direitos de cidadão. O poeta conseguiu livrar-se, mas, este pode ser o motivo de sua

insistência em criticar a mania dos atenienses de resolver tudo nos tribunais. Voltou aos seus ataques

contra os partidários da guerra em “Os Arcanânios ” em 425 a.C.. Com esta peça obteve o primeiro

lugar, diante de Cratino e Épolis seus maiores adversários nas disputas teatrais. Em 424 aC,

escreveu “Os Cavaleiros ”, um violento ataque à política de Cléon e obteve o primeiro prêmio. Em 423

aC. obteve o terceiro lugar com “As Nuvens ”, crítica violenta ao desvirtuamento dos mecanismos

democráticos. A partir daí vieram “As Vespas ” e “A Paz (421aC.), “As Aves ” (421 aC.), “Lisístrada ” e

“As Tesmoforias ” (entre 421 – 414 aC.), traziam novamente o tema da paz e uma revanche pessoal

contra seu mais novo inimigo: Eurípides. Este continuou sendo satirizado em “Pluto ” (408 aC.) e “As 

Rãs ”. Após a guerra do Peloponeso ele abandona a sátira política e passa à sátira social, é desta

fase a “Assembléia de Mulheres ”. Ignora-se a data de sua morte.

A OBRA: AS NUVENS

Não foi por acaso que Aristófanes conseguiu reconhecimento por esta peça. Em 423 aC. em

plena vigência da paz de Níceas, com a lembrança da morte recente de Pérícles e com o vácuo que

se instalava no poder, crise econômica e vários outros problemas, como a fuga de escravos do monte

Láurion e mesmo alguns domésticos, era natural que a sociedade repensasse os valores sobre os

quais estava calcada.

O autor coloca em cena as quatros classes ou grupos sociais que conviviam em Atenas no

século V representados pelos personagens principais. Estrepsíades representa o médio proprietário

rural que enriqueceu com o comércio marítimo do período imperial ateniense, mas manteve-se à

margem das questões políticas, da vida na pólis, e das próprias engrenagens do comércio marítimo.

Seu ideal de vida é cultivar, celebrar os cultos e as festas costumeiras.

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No entanto, Estrepsíades casou-se com uma “rica moça da cidade”, que tem hábitos

completamente diferentes, luxuosos, que deram início à dilapidação da sua fortuna. Neste

comportamento da personagem vemos uma crítica ao hábito dos novos grupos enriquecidos com o

comércio em contraírem matrimônio com os grupos falidos da aristocracia e conseguiram projeçãosocial.

Seu filho Fidípedides, representa a classe dos cavaleiros. Alguns enriquecidos com o comércio

e artesanato, outros através do casamento, que se dedicam aos jogos, à diversão, às festas, ao

esbanjamento, bajulavam os sofistas, enfim faziam tudo, menos prestar atenção à situação do povo e

da cidade que estava em guerra.

Sócrates e seus discípulos representam a si mesmos. Os sofistas, aqueles que, por dinheiro

ensinavam a arte da oratória para que o povo pudesse sair-se bem nas disputas da Assembléia, nos

tribunais ou nas disputas políticas. Acusava-se os sofistas de desvirtuar a antiga educação ateniense,

de querer subverter a religião e o culto aos deuses.Os cobradores de juros que tanto podiam ser membros da aristocracia, como cavaleiros

enriquecidos com o comércio.

Os escravos são longo da peça expectadores, como se o dilema de seu dono não dissesse

respeito a eles.

Temos portanto os personagens. A trama é simples. Estrepsíades está falido. Seus credores

vão citá-lo judicialmente na lua nova (quando se pagavam as dívidas em Atenas), ele não tem

dinheiro. Os luxos da esposa e os gastos do filho com os cavalos o arruinaram. Além disto, há a

guerra. A cidade está sitiada, os campos devastados, os escravos ociosos, ou seja, sua principal

fonte de renda, a produção agrícola, está impossibilitada para ele, como para todos os agricultores

durante a guerra.

Para safar-se do pagamento dos juros, ele recorre aos ensinamentos dos sofistas e esta é uma

das passagens mais hilárias da peça, onde Aristófanes mostra toda a sua arte e domínio técnico da

comédia. O suposto encontro de Sócrates com o velho camponês Estrepsíades é sem duvida uma

das maiores cenas do teatro grego.

O velho quer aprender a “falar bem”, ter domínio da palavra diante dos credores e dos tribunais

para defender-se e não pagar as dívidas. A palavra, em Atenas, era extremamente importante. De

seu uso correto nas assembléias dependia a sorte da cidade, a vida de uma pessoa. Daí anecessidade de saber falar bem. Os oradores do século V serão famosos. Não era incomum que os

políticos recorressem a escritores pagos especialmente para escreverem os seus discursos. Dizem

até que Demóstenes começou desta forma a sua carreira política. A eloqüência era extremamente

importante, seduzir pela palavra e não pela força, os seus aliados e adversários. Este era um

elemento básico da democracia ateniense. Era preciso seduzir a assembléia, por que:

Era a assembléia que decidia paz e a guerra, era ela que concluía asalianças, ela recebia os embaixadores estrangeiros, ratificava os tratados,designava aqueles que jurariam a paz junto ao inimigo, ou pelo contrário,lhe notificavam a guerra. Tucídides fez reviver na sua História da Guerra do

Peloponeso alguns dos seus grandes debates históricos que sedesenrolaram face ao povo e no decurso dos quais se devia decidir e jogara sorte da pátria. (MOSSÉ, 1985, p.77). 

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O uso da palavra era muito importante por causa da ameaça da grafhé paranómon. A

acusação de mau uso da palavra, de ter colocado em risco o Estado ou ainda de mentir diante dos

tribunais. As penas variavam, mas, se a acusação fosse política, a pena era de ostracismo por dez

anos. Daí a necessidade da boa educação. Do conhecimento da retórica, da responsabilidade para

com a segurança do Estado. Perguntamo-nos: quais eram os limites da isegoria? Será que todos

tinham capacidade e coragem de propor alguma coisa diante da assembléia? Os camponeses, como

Estrepsíades teriam coragem de apresentarem-se na Ágora e falar para o público? Ou, como hoje,

deixavam as questões políticas para os profissionais?

É verdade que, uma vez instituída a democracia, o povo acorreu todas as vezes em que ela

esteve em perigo, mas, fora isto Claude Mossé, afirma que houve “uma demissão política dos

demos”. A partir daí, continua a autora, o povo só voltou às assembléias por causa da criação do

misthòs ecclesiastikos.O demos desinteressou-se da política no século IV, quando os oligarcas renunciaram a agir de

outra forma que não fosse através dos escritos reservados a uma minoria de “intelectuais” (Mossé).

Para a autora o desinteresse é explicado pela crise econômica que assolou a Grécia após a

guerra do Peloponeso, principalmente Atenas.

Eis aí a situação do nosso camponês. Não tem grande interesse e nem entende a política da

cidade, embora sofresse as suas conseqüências. Não consegue saldar as suas dívidas porque o seu

mundo (o da produção) foi desorganizado pela guerra. Não consegue enfrentar os credores porque

não tem o Dom ao exercício da democracia e dos tramites legais.

Fidípedes, representando a classe enriquecida dos cavaleiros está como quer. Esta classe foi

acusada de incentivar a guerra por que o imperialismo ateniense os beneficiava, por isto a defesa do

império, frente à Esparta, era muito necessário. Mas enquanto o povo sofria as conseqüências da

guerra os cavaleiros lucravam com ela. Cabe a ele aprender no lugar do pai as artimanhas da oratória

(o argumento injusto), para poder vencer os credores. Analisando este fato em relação à democracia

devemos lembrar-nos que se somente os intelectuais tinham pleno conhecimento das artimanhas do

poder. Assessoravam os políticos, escreviam seus discursos..

Mas que democracia indiretamente Aristófanes nos passa? Acaso os atenienses não criaram a

democracia? O mundo da razão? Separaram o logos do mito? Criaram e garantiam direitos iguaispara todos os cidadãos? Segundo Luiz Alberto Grijó:

As bases da sustentação política da aristocracia estavam mergulhadas tantonas condições econômicas de seus membros, quando em uma paideía(educação em seu sentido de formação do homem, tendo em vista um idealde homem) que os qualificava per si para direção dos negócios públicos.Possuíam terras suficientes que lhes permitiam bons rendimentos. Em geralviviam do trabalho dos escravos e administradores de negócio, obtendotempo livre para dedicarem-se ao aprendizado e ao exercício políticos. Apaideía que referimos tem vinculação econômica que desfrutavam osaristocratas. No Período Arcaico sua liderança política era exclusiva ecalcada no uso da força. As stáseis – lutas sociais, comoção social – deste

período, determinaram a evolução legal e institucional, passando pelolegislador Sólon, pelo tirano Pisístrato e pelas reformas de Clístenes.Em todos estes acontecimentos identificamos a presença importante degrupos políticos comandados por membros da aristocracia. Antes de

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Pisístrato que se torna se tirano, dois grupos chefiados por aristocratas,Paralianos – gente do litoral – e Pedionomós – gente da planície – lutavamentre si. Pisístrato, um grupos dos Diacrinos – gente das montanhas. Odado novo que se inseriu nas lutas aristocráticas pelo poder, nesta ocasião,foi o fato de que “Pisístrato os aliciou (o demos, o povo em geral) para a sua

causa e ocupou com eles a acrópole.”, ou seja, Pisístrato logra apoio nodemos, de forma que este é cooptado a participar das lutas pelo podercomo, pela primeira vez, uma massa atuante. Pisístrato torna-se tirano.Em fins do século V aC. A Tirania é derrubada por dois grupos comandadospor aristocratas, um deles pelo Alcmeônida Clístenes, que “voltou-se para acompanhia do povo (...) Trazendo o povo para si, Clístenes levava umagrande vantagem sobre as facções rivais”. O grupo de Clístenesrepresentava uma opção política ao demos e possibilitava a aristocracia suamanutenção no poder. A partir de então a democracia inicia seu processode formação e desenvolvimento. (GRIJÓ, 1988, p. 78-80). 

Vejamos, portanto qual é a mensagem subliminar de Aristófanes. Embora aparentemente o

regime democrático seja favorável ao demos, este não tem condições dele participar efetivamente,por que não possui a ferramenta básica para tal: a educação. Por isto Estrepsíades procura a

educação dos sofistas, mais moderna, mais rápida e eficiente para livrá-lo das dívidas, mesmo

recorrendo a métodos escusos.

Os credores, que tanto podiam pertencer à classe dos cavaleiros ou à aristocracia, perdem seu

dinheiro diante dos argumentos sofistas. Eis aqui, onde o gênio de Aristófanes se revela por inteiro, a

palavra tanto pode ser usada para o bem como para o mal. Desta forma ele desnuda a democracia.

Mostra que os políticos e oradores, a serviço de seus próprios interesses podiam corromper a

assembléia com falsos argumentos e levar a cidade e o povo à bancarrota.

Por que Sócrates é colocado na peça? Para representar os sofistas. Aqueles que esqueciamas origens das cidades pregavam que o homem é a medida de todas as coisas (Protágoras), que

cada um pode conhecer a verdade e partir das próprias idéias (maiêutica – método de Sócrates).

Desta forma esquecia-se que o advento da pólis havia dado publicamente ao que antes era oculto,

secreto, mágico, conhecido apenas dos iniciados.

Mas Aristófanes faz mais do que isto, ele põe em julgamento todo o método da fase inicial de

Sócrates, quando ele ainda simpatizava com os sofistas e deixa claro que na falta de necessidade da

conexão entre a análise da realidade com o princípio do bem, o método fica questionado em sua

base. Ou seja, torna-se nulo por não ter conexão com a ética, a moral e o bem comum.

Além disto, Sócrates é apresentado em cima de uma canastra, imagem depreciativa, como se

o ato de filosofar nada tivesse com a realidade prática, como se fosse um ato que não leve a nada.

Sócrates não consegue fazer entender por Estrepsíades por causa do equívoco das palavras.

Onde mais uma vez fica evidente que a cultura e educação eram requisitos necessários para o

preparo do exercício da democracia. Não é a toa que Fidípedes que, representante dos cavaleiros,

que aprenderá o uso da palavra para exercê-lo na democracia. Ou seja, o uso público das palavras.

A Ágora era o espaço desta publicidade. Não havia mais rei, mas magistrados eleitos. Não

existiam mais talismãs e ritos sagrados celebrados por alguns sacerdotes e iniciados, mas culto

público. Nenhum processo secreto, mas audiências públicas nos tribunais. Mas, segundo Vernant:Lucidez dos chefes políticos e a sabedoria dos cidadãos, as decisões daassembléia têm por objetivo um futuro que permanece fundamentalmente

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opaco e que não pode ser alcançado completamente pela inteligência. Éentão essencial assegurar-se o seu controle, na medida do possível, poroutras diligências que empregam não mais meios humanos, mais a eficáciado rito. O “racionalismo” político que preside às instituições da cidade seopões certamente aos antigos processos religiões do governo, mas sem

excluí-los de forma radical. (VERNANT, 2000, p 39). 

Está correto Vernant neste raciocínio. Basta lembrara importância do oráculo de Apolo na vida

dos gregos, além dos sábios advinhos e mistérios. Portanto a palavra e seu uso continuavam

sagrados e banalizá-lo como pretendem os sofistas e políticos desonestos estava errado.

Por isto Estrepsíades é castigado no desfecho final da trama. A arma da palavra injusta com a

qual ele tinha se livrado dos credores volta-se contra ele quando seu filho não mais o obedece e não

o respeita.

Quando ouviu o debate entre o argumento justo e injusto. Estrepsíades ouviu um debate entre

moral e a imoralidade, que o autor julgava que imperava no regime democrático, e para o autor umaluta entre a legalidade e a ilegalidade. O nosso velho camponês contraiu dívidas dentro da legalidade,

agora procura argumentos ilegais para não pagá-las e até fazer a todos crerem que elas não existem.

Apesar de tratar-se de uma comédia envolvendo um caso particular, é necessário ver as

implicações da questão do uso da palavra, do argumento justo e do injusto com a crise da

democracia grega no período em que Aristófanes escreveu a peça. Se for verdade que a democracia

baseava-se na eterna vigilância, como intuiu Clístenes ao reorganizar os demos reunindo em todos,

os elementos da montanha, planície e cidade, é necessário vigiar a palavra que cada um profere, pois

dela dependem as ações dos cidadãos e o destino da coletividade. Esta lição vale para a democracia

em qualquer tempo e lugar.A maior ilustração desta conclusão é o final da peça quando o velho Estrepsíades coloca fogo

no Pensatório, começando pelo telhado, ou seja, pelo alto, pelo ato de pensar, na filosofia

desvinculada da realidade material, como era o caso do sofista.

REFERÊNCIAS

1- AQUINO, Rubim S. L. et al. História das Sociedades: das sociedades primitivas às sociedadesmedievais. São Paulo, AO LIVRO TÉCNICO, 1992.

2- ARISTÓFANES. As Nuvens. São Paulo, Editora Abril Cultural, 1973.

3- GRIJÓ, Luis Alberto Aristocracia e Democracia no Século de Péricles. In: Revista do Departamentode História, nº. 7, setembro, 1988.

4- MOSSÉ, Claude, As Instituições Gregas. Lisboa, Ed. 70.

5- VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do pensamento grego. São Paulo, Ed. Difel, 2ª edição.