Crítica do Filme Para Minha Amada Morta

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O longa “Para Minha Amada Morta” surge como o filme mais maduro da carreira de Aly Muritiba. O segundo longa de sua carreira guarda fortes semelhanças com outro filme nacional recente, O Lobo Atrás da Porte, mas consegue exceder esse e figurar-se como uma das jóias do cinema brasileiro do século XX. Apesar da multiplicidade de obras, em todas elas verifica-se elementos recorrentes (o que de nenhum modo minimiza a sua magnitude). Aqui, novamente encontramos o signo da falta, através do desencadeamento da narrativa a partir de alguém que não está lá cuja ausência vai sustentar toda a tensão da história, além da temática da religião que novamente aparece. O personagem principal, após um coque disruptivo com as memórias cristalizadas nas fitas VHS gravadas pela esposa morta, vai ser obrigado a lidar com a evidência da desconstrução de si que as fitas operaram e lançar-se na missão de reconstruir algo que soe compreensível ou ao menos possível. Aly Muritiba nos propõe, então, entrar em contato com um filme do que não é dito, não é mostrado, não é expressado. As fitas de VHS – que guardam muito mais um certo assombro do que uma nostalgia para a qual as imagens de Super8 comumente nos rementem quando utilizada nos filmes – pincelam imagens e sons perfurantes. Na agudez da dor, nenhuma semântica é possível, algo insustentável para alguém aparentemente tão bem acomodado na romanticidade de suas antigas memórias. O contato com as fitas vai marcar uma virada fundamental no filme. O personagem sai do luto e inicia um processo de implosão das emoções e sensações (note-se: implosão, não explosão). Exergava-se algo como uma possibilidade de restauração apesar da mutilação. A fotografia do filme acompanha essa transformação: durante o luto, mirávamos apenas planos executados no tripé e com raros movimentos; prezava-se pela fixidez, pela permanência, pela acomodação das memórias em sua conciliação com um passado sereno. Quando o personagem é lançado na jorna que o levará para próximo daquele outro que estava na fita com a sua mulher, a câmera passa a ser móvel, panorâmica, agitada, deambulante. Apenas no último plano, quando o personagem volta a encontrar o filho – retorno este que marca a o transformar-se da narrativa

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Exibido no Festival de Brasilia 2015Vencedor do prêmio de Melhor Direção

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O longa “Para Minha Amada Morta” surge como o filme mais maduro da carreira de Aly Muritiba. O segundo longa de sua carreira guarda fortes semelhanças com outro filme nacional recente, O Lobo Atrás da Porte, mas consegue exceder esse e figurar-se como uma das jóias do cinema brasileiro do século XX.

Apesar da multiplicidade de obras, em todas elas verifica-se elementos recorrentes (o que de nenhum modo minimiza a sua magnitude). Aqui, novamente encontramos o signo da falta, através do desencadeamento da narrativa a partir de alguém que não está lá cuja ausência vai sustentar toda a tensão da história, além da temática da religião que novamente aparece. O personagem principal, após um coque disruptivo com as memórias cristalizadas nas fitas VHS gravadas pela esposa morta, vai ser obrigado a lidar com a evidência da desconstrução de si que as fitas operaram e lançar-se na missão de reconstruir algo que soe compreensível ou ao menos possível.

Aly Muritiba nos propõe, então, entrar em contato com um filme do que não é dito, não é mostrado, não é expressado. As fitas de VHS – que guardam muito mais um certo assombro do que uma nostalgia para a qual as imagens de Super8 comumente nos rementem quando utilizada nos filmes – pincelam imagens e sons perfurantes. Na agudez da dor, nenhuma semântica é possível, algo insustentável para alguém aparentemente tão bem acomodado na romanticidade de suas antigas memórias.

O contato com as fitas vai marcar uma virada fundamental no filme. O personagem sai do luto e inicia um processo de implosão das emoções e sensações (note-se: implosão, não explosão). Exergava-se algo como uma possibilidade de restauração apesar da mutilação. A fotografia do filme acompanha essa transformação: durante o luto, mirávamos apenas planos executados no tripé e com raros movimentos; prezava-se pela fixidez, pela permanência, pela acomodação das memórias em sua conciliação com um passado sereno. Quando o personagem é lançado na jorna que o levará para próximo daquele outro que estava na fita com a sua mulher, a câmera passa a ser móvel, panorâmica, agitada, deambulante. Apenas no último plano, quando o personagem volta a encontrar o filho – retorno este que marca a o transformar-se da narrativa de vingança em uma espécie de expurgação - verificamos novamente a polidez da câmera fixa, observando a cena sem reagir.

O tema da mulher infiel focalizado por Aly Muritiba é análogo aos do filme de Chabrol de mesma temática, com a diferença que no caso do francês tratava-se de dramas essencialmente burgueses. A mulher infiel, do filme do diretor baiano radicado em Curitiba, é portadora de uma liberdade que parece não poder ser contida nos moldes de um casamento apaziguante. Ao admitir-se enquanto livre, arquiteta-se o destino e os acontecimentos. Na própria feitura das gravações, observa-se o seu domínio: é ela que filma, é a mulher quer produz a própria imagem de si, não o homem.

Os planos sequências nos quais Aly Muritiba aposta tem uma peculiaridade engrandecedora. Se não bastasse a precisão incrível dos diálogos, há uma dilatação do tempo que prolifera seus efeitos de uma maneira bastante particular. A força da dramaturgia dos planos orquestrada por Aly não deve-se a impressão que o fluxo da duração do tempo imprime, mas por uma espécie de historicidade própria de cada plano sequência, que encerra-se a si mesmo concomitante ao fato de estar inserido numa unidade. Apoiados na duração, abre-se a

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possibilidade dos personagens construírem uma complexidade para si. Somando-se a isso, há uma modo de tensionar o filme a cada planoa través de um mecanismo de anunciar algo no início e depois não concretizar aquilo que parecia estar premeditado. Tensiona-se a corda, esperamos que ela vai estourada e então ela é destensionada. As cenas da menina no carro (onde ela inicia durante a blusa), do personagem subindo no telhado (onde focaliza-se primeiramente a mão dele com o martelo) e a dos dois homens na cozinha (onde o empunhamento da fac parece indicar a aproximação de um movimento violento) nos permite entender isso que acabo de referir.

Dentre todos os planos sequências, dois hão de ser destacados. Aquele em que o traído conversa com o traditor segurando uma pá, hora de costas para a câmera, hora de frente, onde a câsmera mantém-se quase inteiramente focada no traído, apenas no momento em que o traditor termina revelando retalhos de amor que foi nutrida na relação dele com a amada morta que o foco vai para ele, evidenciando a complexidade da relação que não limitou-se a uma traição, mas o alvorecer der algo ainda mais violento como o próprio amor. O outro, é o que inicia-se com a morte do cachorro e que engloba todos os personagens do filme, filmado com uma maestria inedibriante.

Além de destacar o trabalho primoroso de direção do filme, as outras esferas do filme também merecem de destaque. A direção de arte, que tinha um grande desafio pela frente por tratar-se de planos dilatados onde o espectador tem tempo para vaguear pela tela e observá-la minuciosamente, foi primoroso e tornou todo aquele universo bastante crível. Os atores juntamente com a direção de atores de Amanda Gabriel, atuaram de maneira impressionantes, encarnando com uma potencialidade expressiva todos os personagens.

Assim, ao elaborar uma obra rigorosa que atesta a madureza do diretor, “Para Minha Amada Morta” soma-se a um conjunto seleto de obras que outorgam ao cinema nacional uma identidade de um cinema encorpado, trabalhado em suas minúscias, potente em retratar dramas com uma plasticidade e estética rigorosa que fazem os efeitos da obra excederem os limites e friccionar àquele que assiste.