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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995) JOSé GERALDES FREIRE Universidade de Coimbra CRITICA TEXTUAL: Eclesiastes I, 8. Pro TOE XaXsiv corrige oí> XaXeïv Traduções muito diferentes — Estava lendo um estudo de Hugo de Azevedo \ quando deparei com esta tradução do livro do Eclesiastes d, 8): Todas as coisas são difíceis; o homem não consegue explicá-las com as palavras. O texto pareceu-me ser capaz de interessar à Linguística: — a pala- vra como expressão do pensamento humano; falta de correspondência entre o signo, o significado e o significante; dificuldade de o homem fazer compreender os seus mais profundos pensamentos e sentimentos 2 . Estranhando nunca ter visto citado este passo em sentido linguístico, pro- 1 Hugo de Azevedo, Meditação do Natal, Edições Prumo, Lisboa, 1994, p. 9. Sendo, certamente, uma tradução pessoal, ela corresponde, como se diz adiante, à de Matos Soares, Bíblia Sagrada, IH vol., Porto 1946, p. 238. Estas traduções são feitas sobre o texto latino, vertido por SJerónimo. A primeira edição de Matos Soares (então sensacional) saiu no Porto, de 1927 a 1930. 2 Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1971; Stephen Ullmann, Semântica. Introduction a la Ciência dei Significado, Aguilar, Madrid, 1967. Para situar Saussure e a escola dos Wõrter und Sachen na lin- guística actual, ver Maurice Leroy, Les grands courants de la linguistique moderne, P.U.F, Paris, 1963, p. 42-53.

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

JOSé GERALDES FREIRE

Universidade de Coimbra

CRITICA TEXTUAL: Eclesiastes I, 8. Pro TOE XaXsiv corrige oí> XaXeïv

Traduções muito diferentes — Estava lendo um estudo de Hugo

de Azevedo \ quando deparei com esta tradução do livro do Eclesiastes

d, 8):

Todas as coisas são difíceis;

o homem não consegue explicá-las com as palavras.

O texto pareceu-me ser capaz de interessar à Linguística: — a pala­

vra como expressão do pensamento humano; falta de correspondência

entre o signo, o significado e o significante; dificuldade de o homem fazer

compreender os seus mais profundos pensamentos e sen t imentos 2 .

Estranhando nunca ter visto citado este passo em sentido linguístico, pro-

1 Hugo de Azevedo, Meditação do Natal, Edições Prumo, Lisboa, 1994, p. 9. Sendo, certamente, uma tradução pessoal, ela corresponde, como se diz adiante, à de Matos Soares, Bíblia Sagrada, IH vol., Porto 1946, p. 238. Estas traduções são feitas sobre o texto latino, vertido por SJerónimo. A primeira edição de Matos Soares (então sensacional) saiu no Porto, de 1927 a 1930.

2 Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1971; Stephen Ullmann, Semântica. Introduction a la Ciência dei Significado, Aguilar, Madrid, 1967. Para situar Saussure e a escola dos Wõrter und Sachen na lin­guística actual, ver Maurice Leroy, Les grands courants de la linguistique moderne, P.U.F, Paris, 1963, p. 42-53.

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curei uma tradução feita por peritos em ciências bíblicas, a dos Padres

Capuchinhos, muito divulgada entre nós3:

Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer.

Perante a diferença de palavras e de sentido, quis comparar com

outra tradução portuguesa, que goza de muita reputação, editada pelos

Paulistas de S. Paulo (Brasil) e da responsabilidade do Pontifício Instituto

Bíblico de Roma4 :

Cada coisa não faz senão afadigar-se,

quanto, ninguém saberia dizer.

Sendo a tradução dos Paulistas mais próxima da dos Capuchinhos,

pretendi desempatar em relação à primeira, consultando a da Bíblia tradu­

zida e comentada, segundo a edição da B.A.C.5:

Todas las cosas trabajan más,

que quanto el hombre puede ponderar.

Tradução latina e grega — Quem tem prática de crítica filológica

sabe que traduções muito diferentes normalmente denunciam variantes no

texto de partida ou dificuldade de compreensão do pensamento do autor.

Atendendo a que a Vulgata Latina goza de uma grande autoridade, pro­

curei o texto latino da Sixto-Clementina6 e da Nova Vulgata7, isto é, da

3 Bíblia Sagrada, Verbo, Lisboa, 1982. Desta tradução comentada está muito divulgada uma apresentação popular que vai já na 15.a edição, a cargo da Difusora Bíblica, Missionários Capuchinhos, Lisboa, 1991, p. 846.

4 Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, São Paulo, 1967, p. 787. Esta tradução é muito apreciada pela justeza dos seus comentários ad calcem.

3 Professores de Salamanca, Bíblia comentada. Texto de Nácar Colunga, IV, Libros Sapienciales, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1962. As introduções histórico-críticas e os comentários actualizam os dados da filologia bíblica (hebraico, grego, latim, etc.) e da crítica histórico-literária, tal como antes os divulgaram Lagrange, Fillion, Pirot, etc. Sobre a problemática actual da filologia bíblica foi publi­cado recentemente (1993) um documento da Comissão Pontifícia Bíblica, A interpreta­ção da Bíblia na Igreja (Rei dos Livros, Lisboa,1994), o qual foi apresentado por João Paulo II, a 23-IV-1993, num discurso cheio de interesse para biblistas e filólogos (e publicado na Lumen, Junho-Julho, II série, 1994, ano 55, p. 250-256).

6 Bíblia Sacra iuxta Vulgatam Clementinam, noua editio a A. Colunga et L. Turrado, Biblioteca de Autores Cristianos, Matriti, 1946.

7 Noua Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio, Libreria Editrice Vaticana, 1979.

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Vulgata mandada rever cientificamente e aperfeiçoar pelo II Concílio do Vaticano. Neste passo, não há alterações significativas. A tradução latina «vulgata» é:

Cunctae res difficiles;

non potest homo eas explicare sermone.

E o texto que serviu de base à citada tradução de Hugo de Azevedo, a qual, muito naturalmente, corresponde a outra muito divulgada há mais de meio século, a de Matos Soares.

Impunha-se, pois, consultar um texto com mais autoridade, o grego conhecido pelo nome de Tradução dos Setenta, ou simplesmente, os Septuaginta8:

IMvxsç oí Xóyoi syKOTtoi-où SuvTjaetcu âvrip xoõ XaXstv, Kai OòK su.:n:Xncr©r]<TETai ócpGaXjxòç toC ôpãv, Kcd où TiXTipcoGi asTai oûç (XTtò cbcpoácrecuç;.

Novos problemas surgem agora: oi Xóyox não se encontra traduzido em nenhuma das versões anteriores; è'yicoTtoi é interpretado como difíceis ou afadigar-se ou trabalhar] XaXeïv vem dar a explicare sermone ou dizer ou mesmo ponderar! O tempo futuro de SuvfjaeTai não é conside­rado por nenhuma; e o significado deste verbo, tão corrente, oscila entre conseguir explicar ou poder ou saber! Perante esta divergência de tradu­ções e de sentidos, convenhamos em que os tradutores terão tido dificul­dade em apreender o pensamento do autor e terão feito, cada um, uma tra­dução aproximada. Podemos ir mais longe: além da dificuldade de compreensão, não haverá também uma corrupção do texto grego?

O «Cohelet» ou «Eclesiastes» — Como todos os outros livros da Bíblia (e como qualquer outra obra literária, afinal), o Eclesiastes levanta muitos problemas de crítica histórico-literária9. Hoje em dia, é geralmente aceite que o seu autor não é Salomão, mas um desconhecido que se escondeu sob a figura literária de Salomão e que por duas vezes se desig-

8 Septuaginta, id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, edidit Alfred Rahlfs, editio octaua, Wûrttembergische Bibelanstal, Stuttgart, 1935 (hergestellt 1965), II vol.

9 Seguimos as introduções histórico-críticas de J.Renié, Manuel d'Écriture Sainte, t.II. Livres historiques, Livres didactiques, Libr. Cath. Emmanuel Vitte, Lyon, 1946; e de Gabriel Pérez Rodriguez no cit. vol. da B.A.C.

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na a si mesmo pelo pseudónimo hebraico de Cohelet, traduzido para grego por eKKlrioiáaxric,- «o que fala na assembleia». Tratar-se-á de um rabino piedoso e culto que resolveu expor as suas reflexões sobre o homem e sobre o mundo. Um seu discípulo terá escrito o explicit, actual capítulo XII, 9-14.

A data tem que deduzir-se da mentalidade expressa, do estádio cro­nológico da língua original (o hebraico) e da citação que desta obra já faz um outro livro semelhante, o Eclesiástico, ou livro de Ben Sirá. Deduz-se que o Cohelet foi escrito ou no círculo judaico de Alexandria, ou perto do templo de Jerusalém, cerca do ano 200 a.C.

O género literário é o de reflexões ou pensamentos, e não o diálogo, não obstante as ideias contrárias que aparecem no livro e que não exigem a atribuição a dois autores separados. Antes, o mesmo autor se coloca perante pensamentos diferentes e conduz a sua reflexão, procurando tomar uma posição moderada, realista, sobre os problemas.

A mentalidade expressa é, no geral, pessimista, mas há passos de mani­festo optimismo. Alguns vêem até aqui indícios de hedonismo. Todavia, uma educação piedosa leva o autor a adoptar, no conjunto, uma atitude moderada. Há males na vida; há também prazeres no mundo. Usufruamos, moderadamente, as pequenas alegrias que a existência nos proporciona.

Contexto de Eccl. 1,8 — Cohelet, depois de se ter apresentado (v.l), principia com uma das mais conhecidas expressões da Bíblia: Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade! (v.2). E logo se pergunta: Que proveito tira o homem de todo o seu esforçado trabalho debaixo do sol? (v.3). A resposta deixa ver o seu estado de alma: — Nada! O mundo continua na mesma! Vem então a primeira reflexão sobre a constância das leis da Natureza.

Considera o autor três elementos notáveis: — o Sol nasce e põe-se a ritmo certo (v.5); o Vento sopra e vira para os quatro pontos cardeais e repete sempre as suas voltas (v.6); os Rios correm para o mar, mas o vapor do Oceano leva a sua água de novo às nascentes dos rios (v.7).

É então que Cohelet introduz novo pensamento, também em forma trimembre, mas fundado na observação do homem. A natureza segue as suas leis imutáveis. Permanece! O homem não: — nasce e morre. Passa! Apesar disso, também o homem está sujeito a leis naturais.

O Prof. Gabriel Pérez Rodriguez10 interpreta assim o conteúdo do versículo 8: «El hombre lleva impreso en su alma el deseo de saber, y su

Op. Cit. (n. 7) p. 871.

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ojo no se sacia de ver ni su oído de oír, de modo que también se dá en el nombre, en cierto sentido, esa repetición indefinida de una misma acti-vidad.»

Como vemos, Pérez Rodriguez assinala também três actividades naturais no homem: — o saber, o ver e o ouvir. Mas, enquanto as duas últimas estão bem claras no texto (ôpãv/uisus e àicpóaoiq/auditus), a primeira, el deseo de saber, de modo nenhum corresponde ao grego XaXeív.

Em nosso entender, os versículos 5-7 e o n.° 8 estão compostos num dos artifícios literários mais correntes na Bíblia, o paralelismo, que tão belas representações tem, igualmente, nas outras literaturas n . Como que numa estrofe, temos o paralelismo progressivo, em que se descreve o ritmo incessante do sol, do vento e dos rios; e a fazer de antístrofe vem o versículo 8 com uma nova tríade, esta formada pelas funções do homem, o falar (kakziv), o ver (ópãv) e o ouvir (expresso pelo substantivo ctKpóaaiç).

Também estes dotes humanos têm as suas apetências e realizações naturais e estáveis. Daqui conclui o autor que assim foi e será no futuro (v.9); que não há nada de novo debaixo do sol (v.10); e — com bastante pessimismo e exagero — que dos antepassados não se guarda a memória

e do que acontecer no futuro não haverá recordação entre os que vierem

tempos depois (v.ll). Neste contexto, parece claro que o primeiro membro da antístrofe

deve mencionar a fala como um dom natural do homem, dom que ele terá sempre apetência para exercer.

E certo que nenhum dos tradutores considerados entendeu assim. Importa ver, em primeiro lugar, em que dificuldades esbarraram eles. Depois justificarei a interpretação já esboçada e apresentarei a tradução que parece mais plausível e fiel ao texto grego.

11 Sobre.o paralelismo em geral, especialmente na Bíblia, em Santo Agostinho e na Literatura Portuguesa, cf. Dicionário Bíblico, Editorial Perpétuo Socorro, Porto, 1989; Helena Beristáin, Diccionário de Retórica y Poética, Edit. Porrúa, México, 1992; Christine Mohrmann, Études sur le Latin des Chrétiens, I vol., Edizioni di Storia e Letteratura, Roma, 1958, p. 396-398; Melchior Verheijen, Eloquentia Pedisequa. Observations sur le style des Confessions de saint Augustin, Aedibus Dekker & Van de Vegt, Nijmegen, 1949, p. 137-139; Dicionário de Literatura, II vol., Livraria Figueirinhas, Porto, 1971; Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Edit. Caminho, Lisboa, 1993.

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Sentido de &JKOTíOI — Uma das dificuldades de todos os tradutores

foi dar um sentido apropriado, exacto, ao adjectivo eyKOTioç. Consultando

os Dicionários 12, verificamos que a esta família vocabular pertencem:

êyKOTtsóç: cinzel de escultor;

syKonrj: incisão, entalhe;

èjKOKTiKÓç: que pode interromper;

èyKomám: trabalhar sem cessar;

èyKÓTtTCo: fazer uma incisão, pregar um prego, impedir, interromper, can­

sar, etc.

Todas estas palavras se encontram com as respectivas abonações de fontes, principalmente em Liddel-Scott-Jones e em A.Bailly. Entre as cita­ções, encontram-se três textos do Antigo Testamento, entre os quais Eccl. I, 8, que estamos a estudar. Para enquadrar o sentido de èjKÒnxcu no A.T., transcrevemos esses passos, sublinhando as palavras que traduzem este conceito:

Iob XIX, 2: usquequo affligitis animam meam.

Isaias XLIII, 23: nec laborem tibi praebui in thure. Aqui os Paulistas traduzem: «nem te cansei com pedidos de incenso»; e os Capuchinhos interpretam: «nem te importunei por causa do incenso».

Segundo o Lexicon de F. Zorell, no Novo Testamento èyKOífr] encontra-se em 1 Cor. IX, 12 e êyicoirtcû em Act. XXIV, 4; Rom. XV, 22; Gal. V, 7; 1 Thés. II, 18; 1 Petr. Ill, 7. O seu significado é: pregar ou fixar, cortar, impedir. Para Actos XXIV, 4 defende Zorell o valor de «fati­gar», em vez do verbo da Vulgata: Ne diutius te protraham. Para isso, apoia-se em Diógenes Laércio, onde eyKOTtoc vale «fatigado», e em Isaías e Job onde sytcoTtov 7ioico significa «fatigar» 13.

12 Para a investigação lexicológica seguinte utilizámos os dicionários de H. R. Liddel — R. Scott — H. S. Jones, A Greek-English Lexicon, Clarendon Press, Oxford, 1966; A. Bailly, Dictionnaire Grec-Français, Libr. Hachette, Paris, 1950; Franciscus Zorell, Lexicon Graecum Noui Testamenti, Editrice Pontifício Istituto Bíblico, Roma, 1990; G.W.H.Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Clarendon Press, Oxford, 1968.

13 Consultámos dois comentários ad litteram do Novo Testamento, em grego. Ambos propõem sentidos mais genéricos; Max Zerwick, Analysis philologica Noui Testamenti Graeci, Pont. Inst. Biblico, Romae, 1953, explica: èyKÓTixco, impingo, intercido, impedio; hic potius: detineo, demoror; e Fritz Rienecker-Cleon Rogers, Chave linguística do Novo Testamento Grego, Sociedade Edições Vida Nova, São Paulo, 1988, traduzem por; impedir ou talvez atrasar, delongar.

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Entrámos assim já no valor exacto de è'yK07toç. Para Liddel-Scott--Jones, aplicado a Eccl. I, 8, significa «wearisome», isto é, fatigante, enfa­donho, aborrecido, e para Bailly vale, em Eccl. I, 8 «qui brise, fatigant», e em Job e Isaías «fatigué».

Esta investigação lexicológica leva-nos a traduzir o primeiro hemistí-quio de Eccl. I, 8 por

Todas as palavras são fatigantes.

Utilizando os diversos matizes da família de EYKOTCOI poderemos explicar: cortantes, incisivas, molestas, que cortam, que afligem e ferem. Qualquer destes sinónimos de êyK07toi cai bem no contexto de Eccl. I, 8.

Xóyov res ou uerba? — A dificuldade de compreender o sentido de eyKOTtoi, interpretado (erradamente ao que parece) como difficiles, afadi-gar-se, trabajar más, levou os tradutores a dar ao vocábulo Xóyoi, rico de sentidos, o valor de res, coisas. O que se pergunta é se este significado é legitimo e cai bem no contexto.

Os grandes dicionários de Liddel-Scott-Jones e de A. Bailly não con­templam esta equivalência. Em contrapartida, o Lexicon Graecum Noui Testamenti, de F. Zorell menciona o seguinte significado: «res quae fuit aut est aut esse debet, (...) res, causa, negotium». Do mesmo modo, G. Lampe, em A Patristic Greek Lexicon, entre muitas outras equivalên­cias inclui: «matter, fact», citando três abonações.

Mais expressivo é Lothar Coenen-Colin Brown14, num longo artigo sobre Palavra, em que contempla os seus matizes em grego yXã<j<ja, Xóyoç, prjjia. Observa-se aqui que pfjpa tem o valor de «coisa» e tam­bém de «palavra, expressão vocal»; e que é frequentemente sinónimo de Xóyoç, e ainda que os dois termos alternam em vários passos do Antigo Testamento.

Compreende-se facilmente que as palavras sejam incisivas, fatigan­tes, molestas. Mais difícil é atribuir estes predicados a res ou dizer que as «coisas se afadigam» ou que «trabalham mais»!

Procurando na Bíblia conotações de ordem moral ou psicológica para uerbum: palavra, verificamos que aspectos paralelos a syKorcoí:

14 Lothar Coenen — Colin Brown, O novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, III vol., Sociedade Edições Vida Nova, São Paulo, 1989, art. Palavra, p. 389-444.

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fatigantes, incisivas, ocorrem em comparações e qualificativos como

(segundo a tradução dos Paulistas):

Eclesiastes XII, 11: As palavras dos sábios são como aguilhões e como cravos bem pregados as colectâneas dos autores.

Eclesiástico XIX, 12: Como flecha cravada na carne da coxa, assim é uma palavra nas entranhas do néscio.

Efésios VI, 17: Tomai o elmo da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus.

Jeremias XXIII, 29: Não é a minha palavra como fogo e como martelo que despedaça as pedras?

Eclesiástico XLVIII, 1 : Surgiu o profeta (Elias) que parecia de fogo, e suas palavras uma fornalha ardente.

Salmo XC, 3: Sim, ele te há-de livrar do laço do caçador, de um caso funesto (Vulgata: et a uerbo áspero).

Provérbios VII, 5: (Que a Sabedoria te preserve da mulher) estranha, que tem palavras lúbricas (Vulgata: uerba sua dulcid).

Provérbios XVI, 24: As palavras agradáveis são favo de mel, doçura para o coração e saúde para o corpo.

Provérbios XVIII, 4: Como águas profundas são as palavras do homem, regato jorrante, fonte de vida.

Estes exemplos bíblicos mostram que às palavras são atribuídos efei­

tos ora dolorosos (aguilhão, cravo, flecha, espada, martelo, fogo, fornalha)

ora agradáveis (favo, doçura, saúde, regato jorrante, fonte). E também as

palavras são qualificadas de doces e de ásperas.

Porém, o anónimo autor do Eclesiastes vê tudo, frequentemente, com o

olhar do desgosto (1,8): Todas as palavras cortam como o cinzel! É esta ima­

gem do cinzel que corta que se encontra subjacente no discutido vocábulo

ëyKOîioi, da familia de syKortEÓç (cinzel) e âyicÓTixco (fazer uma incisão).

Além da demonstrada justeza bíblica do símile entre a palavra e o cin­

zel, a preferência por Xóyoi traduzido por palavras (e não por coisas) baseia-

-se na própria estrutura interna do pensamento: — para o autor, a Natureza

segue inexoravelmente as suas leis, não muda nada. Assim também o homem

não consegue modificar e melhorar o seu destino. Apesar de as palavras

serem cortantes e ferirem o homem, ele continuará sempre a falar, tal como

a ver e a ouvir. É como quem diz: a força da natureza humana é irresistível,

tal como as leis de todo o universo criado. A proximidade de taxXeïv, falar,

é, pois, mais um argumento para interpretar Xóyoi por palavras.

Paralelismo do futuro do indicativo — Considerando a estrutura de

Eccl. I, 8, parece evidente um duplo paralelismo: — por um lado, as

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faculdades humanas expressas por XaXexv, ó p ã v s áicoúeiv (aqui

representado pelo substantivo áKpóaaiç); de outra banda, os futuros ver­

bais que constituem o predicado de cada uma das orações gramaticais:

Suvrjaexcu, êu.TtXrjcj9TjCTeTai e nXr]p(oQr]aexai. Vejamos o grego dos

Septuaginta e as traduções latina e portuguesas:

oô ôuv/jaexcu âvTjp xoC XaXsív, Kaí OòK è\xnXr](jQic]uexa.i ò<pBa\\xòç TOC ópãv, Kal où TtXrjpcoGrjCTSTai oõç ànò cbcpoácscDç;.

Vulgata: Non potest eas homo explicare sermone.

Non saturatur oculus uisu,

Nee auris auditu impletur.

Capuchinhos: ... mais do que se pode dizer.

A vista não se farta de ver,

nem o ouvido se cansa, de ouvir.

Paulistas: ... quanto, ninguém saberia dizer;

não se farta o olho de ver,

nem o ouvido se cansa de ouvir.

O paralelismo entre ó p ã v e òncoósiv é reconhecido por todos. Não

assim a inclusão de Xakzïv entre os membros desta frase paralelística.

Todavia, o tempo e o modo dos três verbos é precisamente o mesmo: —

o futuro do indicativo. Aceite o paralelismo do segundo e terceiro mem­

bro, reconhecido que a estrofe anterior (os vers. 5-7 são trimembres: o

sol, o vento e os rios) tem uma estrutura semelhante a esta e a antecede

de forma antitética, forçoso se torna aceitar também a inclusão de Xaksiv

entre os elementos de um paralelismo não diádico, mas triádico.

O pensamento do autor e a sua lógica justifica-se do seguinte modo:

Vede como o sol continua a girar, os ventos a mudar e os rios a correr!

Assim também o homem continuará a. falar, os olhos continuarão a ver e

os ouvidos a ouvir!

A opção pelo tempo verbal parece inteiramente lógica; e como o

futuro constitui uma unidade expressiva do pensamento, tudo leva a con­

cluir que são três (e não duas) as faculdades humanas postas em confron­

to. A tradução que proponho é, pois:

o homem não poderá deixar de falar,

o olho não se fartará de ver,

e o ouvido não se saciará de ouvir.

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Reconhecida a estrutura literária da estrofe (v.5-7) e da antístrofe

(v.8) e justificado o emprego do futuro do indicativo como expressão

mais correcta do pensamento, mal se compreende que as traduções apre­

sentadas insistam em substituir o futuro pelo presente (como se poderá 1er

no princípio deste estudo).

Tov XaXeïv (loqui) ou oò XaXeïv (non loquï)? — A primeira observação que urge fazer é o facto de XaXeïv não ter sido traduzido em nenhum caso por falar, conversar. Com efeito, XaXeïv representa indubi­tavelmente uma das nobres funções do homem: a capacidade de se expri­mir por palavras, o dom de se entender com os semelhantes por meio da fala. Consultando os dicionários, não encontramos um só que lhe dê o si­gnificado geral de dizer! Muito menos ainda justificam os dicionaristas a tradução por explicare sermone ou por ponderar (esta na B.A.C.). Urge, pois, restituir a XaXeïv a alta dignidade expressa por falar.

Há, porém, um ponto em que o paralelismo dos três membros do versículo 8 não é total. Sê-lo-ia se a frase estivesse assim (esquematica­mente) construída:

o homem não se cansa de falar, o homem não se cansa de ver, o homem não se cansa de ouvir.

Todavia, para a visão, o autor mencionou o órgão próprio, o olho (ó<p9aXuóç) e para a audição (f) àKpóaaiç) também o órgão apropriado, o ouvido (oòç). O mesmo não aconteceu com o órgão da fala, o qual é mais complexo do que simplesmente a boca. Fundamental é o funciona­mento da língua e das cordas vocais. Aliás, tratando-se da primeira capa­cidade expressa do homem, bastou, de facto, indicar àvrjp. Este é afinal o sujeito explícito ou implícito de toda a frase.

Além disso, mantendo embora os três verbos no futuro do indicativo, para o ver e o ouvir variou o vocábulo escolhido: éu-nXi-icrO^c-exai (de é(j.7rí(.i7iX,T)jj.i -encher, fartar) e TtXrjpcoGf a-e-tai (de nXripóm -encher, saciar). Para a fala, tendo já omitido a menção do órgão próprio (o apare­lho fonador), exprimiu o conceito esperado (o homem continuará a falar) por meio do verbo 5ovr)aeTai (de 5óva^ai -poder, ser capaz de). Esta mudança do conceito fundamental (o de encher) arrastou consigo também a mudança da construção da oração gramatical. Em vez de oí> nXr]aQr](jsxa.i àvrjp xoõ XaXeïv aparece, na versão dos Setenta, o texto transmitido: où ôovr]C7exai àvrjp TOD XaXeïv.

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Tal como se encontra, este membro da frase devia traduzir-se assim:

«o homem não poderá falar»! Evidentemente que tal pensamento não tem

qualquer sentido dentro do contexto em que se encontra e já acima sufici­

entemente justificado. O sentido exigido pelo contexto é que

assim como o olho e o ouvido não se cansam de ver e de ouvir, assim também o homem, dotado da fala, não pode deixar de falar.

Para que tal pensamento seja assim expresso, bastará conjecturar que

se deu, numa cópia do texto dos Setenta, uma confusão entre où s T O ò .

Tal engano é tanto mais fácil, quanto qualquer pessoa que leia simultanea­

mente o segundo e o terceiro hemistíquio da frase fica na memória com

as palavras finais: ôcp9aX|aòç xov ôpãv . Sendo assim, facilmente foi

reproduzida a mesma construção sintáctica depois de futuros com função

entre si paralela. A nossa proposta é, pois, que em vez de

où Sov/jcTExai âvf)p TOO XaXeïv

a tradução primitiva dos Septuaginta deveria ter:

oô SuvTjCTETai âví)p où XaXeïv.

Este modo de dizer é bem conhecido do grego e do latim como pro­

cesso de reforçar a afirmação através de uma dupla negação. F. Zorell cita

dois exemplos tirados do Novo Testamento. Quanto ao seu uso em latim,

tanto literário como coloquial, está bem documentado15.

Nem é para admirar que alguns erros se tenham introduzido num

texto tantas vezes copiado e que chegou até nós , na versão dos

Septuaginta editada por Alfred Rahlfs, só através de manuscritos da

Antiguidade Tardia e da Idade Média. Nestas condições é inevitável que

se tenham introduzido erros, os quais importa expurgar16.

15 J. B. Hofmann - A. Szantyr, Lateinische Syntax und Stilistik, Beck'scheverlag-buchhandlung, Miinchen, 1965, p. 805; José Guillén, Gramática Latina histórico-teóri-co-prática, Ediciones Sigueme, Salamanca, 1960, p. 431; J. B. Hofmann, El Latin Familiar, Instituto António Nebrija, Madrid, 1958, p. 221.

16 L. Renié, op. cit., p. 524 (n.9), chega a dizer que «l'excessive littéralité de la version grecque facilite beaucoup la reconstitution de l'original hébreu». Ora o original hebraico que possuímos (o texto dos massoretas) é-nos transmitido por manuscritos que (no dizer de G. Pérez Rodriguez) «no parecen ser anteriores ai siglo XI» {Bíblia comentada, IV vol., B. A. C, 1962, p. 867). Aliás basta 1er a introdução de A. Rahlfs à sua edição dos Septuaginta (op.cit., n. 8) para ver que os manuscritos mais antigos são dos séculos IV e V (cf. I vol., texto latino nas p. XXXlX-XLVffl, com menção das

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668 JOSE GERALDES FREIRE

Feita esta correcção conjectural, que restabelece a coerência do pen­

samento e a harmonia do paralelismo, traduzimos assim Eccl. I, 8:

Todas as palavras são fatigantes: o homem não poderá deixar de falar, e o olho não se fartará de ver, e o ouvido não se saciará de ouvir.

Conclusão — A leitura ocasional de Eclesiastes I, 8 e as diferentes

traduções que encontrei levaram-me a inquirir do seu pensamento genuí­

no. A estranheza é tanto maior quanto, de quatro dessas traduções, se afir­

ma terem sido feitas sobre o texto hebraico original. O facto de tais tradu­

ções não serem semelhantes e serem até obscuras na expressão do

pensamento, levou-me a procurar a redacção que deste passo nos foi

transmitida pela famosa tradução grega dos Setenta.

Esta não serviu de apoio aos tradutores do hebraico por duas razões

fundamentais: a expressão Xóyot ëjiconoi torna-se de difícil compreen­

são à primeira leitura; mas concluímos que está perfeitamente ajustada ao

contexto, se lhe dermos o valor (plenamente justificado filologicamente)

de: palavras que cortam como o cinzel, ou seja, palavras fatigantes; um

erro de cópia na transmissão manuscrita do grego dos Septuaginta fez

perder a percepção da existência de um paralelismo triádico e antitético

entre os versículos 5-7 (a imutabilidade dos elementos da natureza física)

e o v. 8 (que se refere à apetência natural e constante de três das faculda­

des humanas).

Encontrado o fio condutor que desvendou o sentido da passagem em

discussão, fez-se uma pesquisa filológica sobre Xóyoç, è'yKOîtoi, Xa-

Xeiv e a pertinência do uso do futuro (e não do presente) em três verbos

que marcam a relação paralelística: Sovi'jasTa.i, éu.7t^r]CT9r]a£Tat e

nXripcoQrjOexai. A coerência e harmonia do pensamento tornam-se perfei­

tamente límpidas, se admitirmos que um erro de transmissão do texto

grego (por motivos compreensíveis) transformou a construção infinitiva

où XaXsxv em xoõ XaXeív. Assim, um hemistíquio que, segundo as

edições actuais daria: o homem não poderá falar (sem possibilidade de

edições impressas de cujas correcções se serviu); e na breve introdução ao Eclesiastes (vol. II, p. 238) tem esta elucidativa nota: «multa in hoc libro restitui, sed non omnia sanari possunt, nisi quis uim adhibere uult». Temos, pois, que as correcções ao texto transmitido, já tentadas por muitos outros, são, não só legítimas, mas necessárias. Importa que alguém queira fazer violência sobre si próprio para detectar imprecisões de sentido e tentar reconstituir a redacção original. Dura tarefa, mas gratificante!

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CRITICA TEXTUAL: Eclesiastes I, 8 669

inserção no contexto) é corrigido de modo a significar: o homem não poderá deixar de falar. Os vv. 5-7 passam a constituir uma estrofe a que corresponde a antístrofe do v. 8. Desaparecem a dificuldade de compreen­são e a obscuridade encontrada nas traduções em apreço; e ressalta a bele­za literária do paralelismo.

A crítica textual dá grandes consolações ao estudioso. Ao exercê-la, não posso deixar de recordar e agradecer a iniciação que a este ramo da Filologia (bem como ainda a outros nove) me deu a Prof.a Dr.a Maria Helena da Rocha Pereira.

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