Crocodilos No Paul - Hans Ulrich Gumbrecht

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    CROCODILOS NO PAULO QUE PERDEMOS NO

    DESENCANTAMENTO?

    Hans Ulrich Gumbrecht

    Stanford University

    A cena tornou-se comum demais para chamar a ateno de algum. A aeronaveacaba de aterrissar e, enquanto a aeromoa faz o que pode para parecer intimamentecoletiva, expressando seu caloroso desejo de ser a primeira a dar boas vindas a voc queacaba de chegar cidade (como se ela estivesse ali esperando desde sempre), os passageirossentados esquerda e direita, aps horas de terrvel absteno, ativam seus telefonescelulares. Logo avisaro aos seus cnjuges, amigos ou motoristas (que sabem que estes jos esto esperando no aeroporto) aquilo que os ltimos acabaram de ver provavelmente natela diante de seus olhos: que o vo cujo nmero conhecem acaba de chegar e que seuspassageiros estaro num certo porto em alguns minutos mais ou em alguns minutosmenos, a depender da situao do taxeo areo. Realmente: um pouco mais, um poucomenos, enquanto o passageiro, que acaba de chegar a salvo, espera suas bagagens com seucnjuge, amigo ou motorista (caso seja antiquado o bastante para checar sua bagagem),far outras ligaes telefnicas para outros tantos, maridos, amigos, motoristas,colaboradores que no foram ao aeroporto. E estando o passageiro no carro que o levarao escritrio no centro da cidade ou sua casa no subrbio, h ainda outras pessoas queprecisam ser chamadas e avisadas sobre sua chegada e sua agenda e horrios. Isto tudo

    bastante racional e realmente poupa um tempo infinito, principalmente tempo para outraschamadas telefnicas. Pois o uso dos celulares reduziu imensamente o aleatrio no

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    planejamento e na execuo do cotidiano profissional e pessoal, permitindo s nossasmentes, de modo constante e bastante literal, estarem quilmetros frente de nossoscorpos.

    Pensem no e-mail. Estou sentado em meu escritrio, sendo pago a cada minutopela Universidade, enquanto falo com meus doutorandos, num ritmo de meia hora, sobre

    seus planos de dissertao e captulos de dissertao, e, enquanto tento concentrar-me emsuas preocupaes, alguns movimentos corriqueiros na tela do computador (e um ruidinhosimblico que os acompanha) me avisam que seria bem melhor ficar atento s mensagensque esto chegando vindas dos escritrios ao lado, da Costa Leste e do Meio Oeste, deuma tarde europia (numa manh californiana) ou num incio de manh no Japo (j tardeavanada na Califrnia). Sinto, s vezes, uma agradvel vertigem quando penso quodivinamente onipresentes nos tornamos quando prestamos ateno a toda informaodesencorpada que as mensagens de e-mails nos fornecem. Em nossa existncia dentro doescritrio ao menos somos liberados da inrcia corporal e das necessidades de tempo e dosinvestimentos financeiros que as viagens no espao (ou at mesmo em chamadas detelefone pr-celular) costumavam nos impor. Assim continuamos a acumular fraes desegundo e a economiz-las em contas imaginrias que esquecemos sempre de acessar. Bemcomo aquele notvel casal de jovens que vi certa vez numa agitada noite de sexta-feira, noRio de Janeiro, sentado mesa de um restaurante, beira da praia do Botafogo, um dosbairros mais chiques da cidade, e que fazia esse terrvel esforo para gastar juntos o tempoe o dinheiro que amealharam ao longo da longa semana. Chegou ento aquele momento danoite em que os quatro, de modo individual e separado, j estavam ao celular, falando comgente de outras plagas. E durante toda a noite, houve apenas algumas fraes de tempo,curtas, em que todos pareciam ociosos para fazer sua partilha de conversa ao redor damesa.

    O ensino distncia, o ensino do futuro pelo menos o que tenho escutado

    dar aos estudantes meios bem mais baratos de falar com os professores do que aquelesantiquados encontros de estudo. Minha lembrana de Botafogo parece sugerir que amesma lgica regular, em breve, a maior parte da sociabilidade de fins de semana dasnovas geraes. s vezes, antecipo a nostalgia do dia em que seminrios, com estudantes eum professor, sentados em volta de uma mesa, tero se tornado definitivamente umcenrio acadmico obsoleto. Nesses momentos creio efetivamente que as discusses emgrupo devem ter algo que a troca de informao eletrnica nunca ser capaz de substituir.Mas se voc pensa sobre isso seriamente, difcil, se no impossvel, detectar com precisoo que ser nossa perda intelectual, ao passo que o grande argumento econmico (e, pordeduo, at mesmo poltico) em favor do ensino distncia no pode ser negligenciadonuma poca de gastos cada vez maiores com educao. No pode ser negligenciado, comoaquela ttrica predio realista de que o sexo humano e a procriao humana seroseparados e se tornaro, na verdade, completamente distintos em poucas dcadas. Quemargumentaria contra a idia de o sexo ser finalmente e definitivamente libertado do medoda gravidez no intencional? E quem seria contrrio a que se desse fim s desvantagens dagestao na vida das mulheres e promessa de que a fertilizao in vitro e a gravidezextracorporal minimizaro, num grau at ento utpico, todos os riscos genticos e desade para as crianas que vo nascer?

    A esta altura voc entendeu que o denominador comum desses cenrios presentese futuros um sentimento muito forte, um sentimento que ameaa tornar-se cada vez maiso rudo de fundo dominante e exasperante no meu dia-a-dia o sentimento de que

    preferiria viver num mundo sem telefones celulares, sem e-mail (principalmente), nummundo em que as pessoas possam continuar a sentar-se em volta de uma mesa, enquanto

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    discutem e comem. Admito tambm que seria melhor viver num mundo onde algumasformas de sexo e procriao pudessem continuar associadas.

    (1) Mas haver algo mais em meu sentimento do que uma nostalgia dos bons eirreversveis tempos, uma nostalgia tpica de um homem de cinqenta e sete anos de idade

    que, mesmo em sua gerao, parece ser muito excntrico por sua falta de entusiasmo e poruma ainda maior falta de talento quando se trata de lidar com a tecnologia atual? Ser quepelo menos posso explicar o que acho que perdi? E haveria um modo de argumentar queat mesmo os que adoram celulares e que esto cheios de entusiasmo com a perspectiva dafertilizao artificial, deveriam estar mais apreensivos com algumas possveis conseqnciasdessas tecnologias?

    O que todas as situaes que geram tantas queixas de minha parte tm em comum uma separao cada vez mais acentuada entre, de um lado, corpos e coisas que nossascabeas esto percebendo e experienciando e, de outro, a localizao de nossos corposcomo base da percepo e da experincia mental. uma distncia espacial sempre maiorentre nossos prprios corpos e outros corpos ou coisas que produz a impresso de umacrescente distncia existencial entre nossos prprios corpos e nossas prprias mentes.Podemos nos referir a essa situao como uma perda de imediatez ou como uma perdade presena1. Mas o que estaria errado com a perda de imediatez ou presena?

    Dizer que os nossos corpos pertencem (devem estar na) proximidade do quequer que nossas mentes esto experienciando, apenas tornaria mais bvia a rigidez (parano dizer claustrofilia) insuportvel e algo pequeno-burguesa de qualquer cosmologia emcujo nome se pode com direito reclamar sobre a perda da imediatez e da presena.Ento no deveramos simplesmente ficar gratos por pelo menos trs aperfeioamentosexistenciais que as modernas tecnologias de comunicao conquistaram para ns,precisamente porque reduziram a importncia da imediatez e da presena? Em primeiro

    lugar, a extenso dos fenmenos e situaes que podemos perceber e sobre os quaispodemos ter um impacto num momento especfico, cresceram exponencialmente. Issoimplica, em segundo lugar, que temos maior controle sobre o que est acontecendo emnosso meio e estamos numa posio incomparavelmente melhor para nos protegermos,individualmente e como espcie, contra as ameaas potenciais deste meio (pense apenasem sistemas preventivos baseados em observao meteorolgica). Em terceiro lugar,algumas tecnologias nos possibilitam economizar dinheiro e recursos que, de outro modo,teramos que investir para comprar privilgio de nos expormos a algumas formas e objetosde experincia (entre outros, esse o nico argumento forte em prol do ensino distncia).Graas s novas tecnologias, o mundo (e mundo no se refere aqui apenas ao planetaTerra) foi transformado em um potencial impressionantemente complexo que est a todoinstante ao nosso alcance.

    Tudo o que invoquei at aqui (e a maior parte daquilo de que me queixei) podenaturalmente ser descrito como efeitos de desencantamento, bem no sentido daquelefamoso argumento de Max Weber sobre o desencantamento que fundiu definitivamenteessa noo a uma certa viso do processo de modernidade2. Mais precisamente paraWeber, desencantamento (Entzauberung) a parte de uma tipologia de diferenteslegitimaes de comportamentos que abrange os plos extremos da racionalidade e damagia. As legitimaes racionais tentaro mostrar que certas formas de comportamento(e, a partir da perspectiva da racionalidade, a maioria das formas de comportamentopareceriam ser aes, isto , formas de comportamento propositalmente guiadas) so

    ajustadas para se dirigirem a objetivos e propsitos (motivaes) que devem seratingidos no futuro, e que a evoluo em direo a tais objetivos e propsitos podem ser

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    monitorados e at mesmo (pr-)calculados passo a passo. O comportamento racionalser sempre, portanto, um investimento voltado a futuros efeitos potenciais. Aes comousar o telefone celular ou optar pela fertilizao in vitro cairo justamente na categoria decomportamento racional porque esto direcionadas a efeitos futuros e tornam oscaminhos de nosso comportamento entre o presente e o futuro mais calculveis do que

    nunca. As legitimaes no interior da ordem do mgico, ao contrrio, alegaro quecertos comportamentos tm efeito de evitar situaes de perda ou de desvantagem (deperda ou de desvantagem em comparao com as situaes do presente e do passado). Amaioria das formas do comportamento religioso, por exemplo, est voltada antes a impedirque a bno dos Deuses desaparea ou a nos proteger contra sua ira, do que a adquirir eproduzir uma graa ainda maior do que aquela que tnhamos. Assim as legitimaesmgicas tm seu ponto de referncia naquilo que j est presente e so, na maioria dasvezes, guiadas pelo medo da perda. Tornar-se cada vez mais racional tem sido um processocontnuo de desencantamento porque a racionalidade promete nos livrar do medo dosdeuses e do medo das perdas. Surpreendentemente, segue-se tambm que, dentre muitosoutros fenmenos, qualquer objeo sustentada s inovaes tcnicas, conjugada com omedo de uma subseqente perda da imediatez em nossa relao com o mundo material,pode adequar-se descrio weberiana do mgico do comportamento.

    (2) Mgicas ou no (mgico ou racional num nvel mais elevado deracionalidade, como alguns mais conservadores gostariam de apresent-lo), essasalegaes, principalmente sobre algumas inovaes tcnicas dentro do processo deModernidade e suas conseqncias, tiveram uma tradio que parecem hoje bastantehonradas pela idade, se no sempre honradas graas aos autores que emprestaram suasvozes a esses lamentos. A crtica intelectual massiva de um meio social e material, cujas

    tecnologias parecem ter um impacto escravizante ou alienador, foi instaurada pelosocialismo no incio do sculo XIX, cujo discurso atingiu seu impacto culminante nosescritos de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas se autores como Marx e Engels estavamconvictos de que haviam encontrado as solues, solues que estavam em seu especficofuturo histrico (ou como acreditavam: at em seu futuro histrico previsvel), as vises deFriedrich Nietzsche sobre uma cultura alternativa no mais pressups esse futuroespecfico, calculvel.

    A crtica de Nietzsche da cultura e sociedade de que foram contemporneas suasassinala uma viso algo vaga, de aspecto arcaico, que no poderia funcionar como guiaprtico para um futuro possvel. Isto o que estabelece o gnero genuinamente alemo deKulturkritik (como o vejo derivar nos textos de Nietzsche) distinto da literatura socialistaanterior, a qual sempre quis ser poltica e prtica (mas nunca o conseguiu). Agora, o queNietzsche criticava em sua prpria cultura contempornea eram, sobretudo, os diferentessintomas de uma perda de imediatez e de presena nessa relao da cultura com o meiomaterial. Por exemplo, o historicismo vindouro de seu tempo pareceu desprezvel aNietzsche, porque tinha o sentido e o instinto para tudo, gosto e lngua para tudo, nosentido que era oposto a ter sentido e tato apenas para um perodo especfico do passado3.Nesse mesmo sentido, Nietzsche era altamente ctico quanto ao desejo de seu tempo deabolir o sofrimento. O bem-estar, ele acrescenta, era um estado que, para ele, logotornaria os homens ridculos e desprezveis o que tornaria sua destruio desejvel4.

    Outro ponto de partida possvel para o discurso especfico que procuramos no

    passado, que o discurso que criticou o processo da Modernidade pela perda da presena eimediatez na vida cotidiana (sem sustentar que tal crtica contribusse para reordenar a

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    Modernidade), o livro bastante influente e at mesmo monumental de Oswald SpenglerThe Decline of the West (O Declnio do Ocidente), cujas duas partes forampublicadas respectivamente em 1918 e 1922. Como os dois autores viveram na mesmapoca e se formaram na mesma atmosfera intelectual alem, interessante assim comoplausvel observar que a descrio crtica de Spengler da Alma Faustiana corresponde ao

    conceito weberiano altamente afirmativo de Racionalidade como um princpio central nasua avaliao sobre a cultura moderna. Do ponto de vista de Spengler, a caractersticacentral da cultura fustica, que ele supunha estar se aproximando de seu fim depois de umconturbado milnio de dominao no Ocidente, fora sua tendncia de produzir sistemasformais vastos e abstratos5. Em razo desse subjacente princpio de abstrao, os bens setornam mercadorias, e, ao invs de pensar nos bens, temos de pensar em dinheiro6. Aobservao de Spengler ressoa na associao proposta por Weber entre a racionalidade e aavidez em calcular o futuro como um potencial para futuros potenciais sempre maisremotos. Sobretudo a cultura fustica, que a cultura moderna na narrativa de Spengler, vista como se descrevesse, analisasse e lidasse com o espao como uma abstrata dimensogeomtrica: O espao [...] algo espiritual, rigidamente diferente do presente-sensitivomomentneo7.

    Depois de mais de uma dcada e meia, Martin Heidegger levou o motivo crtico daabstrao da Modernidade a um novo patamar de sofisticao histrica e filosfica em suaconferncia de 1938 sobre The Age of the World Picture (A Era da Imagem do Mundo)8. Notrabalho de Heidegger, essa crtica fora precedida por uma passagem algo isolada (e de tomestranhamente descontrolado) da obra Ser e Tempo, publicada em 1927, em que eleacusou Descartes de ter abandonado, no contexto da filosofia ocidental, a dimenso deespao em sua fenomenalidade no-abstrata9. No entanto, o ensaio O Retrato do Mundodescreve a Cincia moderna como tendo surgido do paradigma-Sujeito/Objeto enquantobase epistemolgica da Modernidade, base que teria mantido progressivamente o mundo

    material e espacial a certa distncia da experincia humana imediata, substituindopaulatinamente sua palpabilidade por um retrato do mundo que era construdo segundoos princpios da abstrao matemtica e da coerncia imanente. Com sua nfase sobre asfundaes epistemolgicas da Cincia moderna, esse texto tambm pode ser lido comopreparatrio para o ngulo especfico de Heidegger em sua crtica, vinte anos mais tarde,da Tecnologia moderna (em oposio Cincia moderna). Heidegger defendia que aTecnologia moderna, neste particular de modo diferente da Cincia, era um lugar potencialpara o des-cobrimento do Ser como um ltimo evento-verdadeiro. Mas, conformeHeidegger, a cultura moderna corre o risco de perder essa oportunidade (umaoportunidade que existencialmente obriga a espcie humana) devido sua tendncia detransformar a natureza no potencial de uma reserva disponvel (Gestell)10. Mais umavez, vemos como um elemento positivo na avaliao weberiana da Modernidade, desta vezsua orientao-futural e sua tendncia em transformar tudo o que estiver presente empotenciais futuros, foi reavaliado e reformulado como um motivo no interior da crtica dacultura moderna enquanto uma cultura sem presena e imediatez. Na minha viso, adescoberta dessa tendncia, na tecnologia moderna e na cultura moderna, de construirpotenciais, em vez de permitir a presena dos fenmenos de se auto-desvelarem, marcauma introviso interpretativa decisiva.

    Abstive-me de subsumir as crticas diferenciadas, mas bastante convergentes dacultura moderna segundo Spengler e Heidegger, dentro de conceitos polticos tais comoconservador ou at mesmo de direita, porque essas preocupaes tambm so centrais

    (sob conceitos quase idnticos) para o livro A dialtica do esclarecimento de MaxHorkheimer e Theodor W. Adorno, que, apesar das restries ocasionais11, tornou-se

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    cannico dentro da tradio intelectual da esquerda europia. Escrito por dois judeusalemes imigrantes na Califrnia durante os anos decisivos (mas ainda no decididos) daSegunda Grande Guerra, A Dialtica do Esclarecimento tenta desvendar a dramticaambigidade (dialtica) no legado da Racionalidade Ocidental. Se a abstrao e a pro-orientao facilitaram uma nova auto-imagem do homem como agente de sua prpria

    histria, tais princpios tambm esto inseparavelmente interligados na execuo doHolocausto (e de outras catstrofes de impacto comparvel), porque produzem umaposio de agncia e um efeito de reificao, pelo qual os homens tornaram-se objetosdescartveis abstratos e vtimas para outros humanos.

    Ainda mais do que nos textos de Spengler e Heidegger, manifesta umaproximidade com a avaliao weberiana da Modernidade na Dialtica doEsclarecimento, na qual a noo de desencanto (Horkheimer e Adorno de fato usam apalavra Entzauberung no original alemo) explicitamente empregada num contextobastante crtico12. Tambm surpreendente (e consistente com a tradio discursiva daKulturkritik), uma passagem em que a Crtica da Razo Pura de Kant acusada de terantecipado a prpria tendncia de abstrao que se supe dominante na indstriacultural hollywoodiana: Os sentidos so determinados pelo aparato conceitual antes dapercepo; o cidado v o mundo como feito a priori da matria da qual ele prprio oconstruiu. Kant antecipou intuitivamente o que Hollywood ps conscientemente emprtica: imagens so pr-censuradas durante as filmagens pelo mesmo modelo decompreenso que existe de determinar posteriormente sua recepo pelos expectadores13.

    obvio o ponto central de convergncia que aproxima as diferentes tentativas decrtica da cultura do sculo XX nos textos de Spengler, Heidegger, Horkheimer e Adorno.Cada um desses autores revela os modos como a Racionalidade, por mais central que tenhasido seu lugar na auto-imagem cannica e canonicamente positiva da Modernidadeocidental, teve devastadores efeitos colaterais de abstrao, alienao, escravizao e de

    matana industrializada. Eis por que acredito legtimo invocar a autoridade desses textoscomo precedendo uma crtica dos efeitos de desencantamento da tecnologia e da culturado sculo XXI.

    (3) Ao mesmo tempo, continua muito difcil determinar e descrever o queprecisamente perdemos nessas vagas abstratizantes e alienantes do desencantamento eainda mais o que queremos recuperar. Comparado com a sua anlise e crtica daModernidade, do desencantamento e de seus efeitos, o que Spengler, Heidegger,Horkheimar e Adorno tm a dizer sobre os mundos cuja ausncia eles lamentam consistentemente vago e, na verdade, muito abstrato. Como um tpico intelectual datradio alem (e que nunca declara de modo inteiramente explcito seu anseio exclusivopor aquela outra cultura no-fustica), Oswald Spengler projeta uma imagem realmenterobusta da cultura da Grcia Antiga, que ele chama de Apolnea, seguindo a imagem deNietzsche: Em nenhuma outra cultura a base slida e o encaixe de base so toenfatizados. As colunas dricas adentram o solo, os vasos so sempre projetados de baixopara cima14. E o que Spengler esperava do futuro, de modo mais proftico, pelo menos nahistria alem, do que era capaz de saber por volta de 1920, era um Cesarismo quedestruiria a ditadura do dinheiro e sua arma poltica, a democracia 15. O dilemaconceitual (mais do que poltico) que quero destacar torna-se imediatamente bvio nessacitao. Tudo o que Spengler capaz de imaginar e descrever como objeto de seu anseio maculado, para dizer o mnimo, por uma viso muito mais poderosa daquilo que ele odeia

    e quer eliminar.

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    E esse problema retorna quando levantamos a mesma questo em relao aostrabalhos de Heidegger ou aos trabalhos escritos por Max Horkheimer e Theodor W.Adorno. Se, para Heidegger, uma relao de estar--mo (zuhanden) com as coisas domundo, significando uma familiaridade bsica amide no-intelectual com o mundo16, oideal que ele, em Ser e Tempo, ope ao estar-frente--mo (vorhanden), como uma

    relao de distncia que ele interpreta como o equivalente existencial do paradigma-Sujeito/Objeto, esta distino de valor entre estar--mo e estar-frente--mo sermais tarde progressivamente substituda pela distino mais slida (pelo menos pela suacarga de pathos) entre ente (Seiendes) e Ser (Sein). Mas, infelizmente, o queHeidegger tem a dizer, de forma muito crtica, sem nenhuma exceo, sobre oesquecimento do Ser (Seinsvergessenheit) sempre muito mais claro e talvez at maisimpressionante filosoficamente do que suas tentativas de circunscrever o que o Ser talvezrealmente seja. Lemos que o Ser est em grande parte apartado da experincia humana;tambm lemos que no h meios para os homens provocarem o desvelamento do Sercomo um evento da verdade. Mas, novamente, o que seria o Ser ele prprio? Elepoderia ser um noumenal, o mundo independente de todas as perspectivas humanas? Ou o sentimento ocasional (existencial) de estar em sincronia com ou ser parte de umaordem cosmolgica? Em seus textos mais tardios s vezes Heidegger usa as palavrasdeus e deuses onde se poderia esperar, em princpio, o conceito de Ser17. Mas aindano claro se esses deuses esto de fato ali para substituir o que quer que ele quisessereferir como Ser ou se so concebidos como foras auxiliares que poderiam facilitar oprprio desvelamento do Ser que os homens, de acordo com Heidegger, tentam e todesesperadamente fracassam em alcanar. Sem fornecer uma soluo para o problema queestou apontando, minha referncia favorita ao Ser desvelado no trabalho de Heideggersurge no curso de 1952 sobre O que chamado pensamento. Ao mostrar, mais uma vez,porque a imagem do mundo abstrato que a Cincia moderna nos fornece nunca ir nos

    permitir abarcar o Ser desvelado, Heidegger imagina, como uma alternativa, o momentoem que um piloto ou um passageiro sente a arrancada produzida pelo motor de umamoderna aeronave18. Esses comentrios sero ento o fim de nossos sonhosepistemolgicos e existenciais?

    As coisas no parecem definitivamente melhores quando nos voltamos aos textosde Horkheimer e, sobretudo, de Adorno. Pois por mais burguesa que tenha sido suacriao e refinado o seu gosto, ambos autores esto sob o feitio do tpico intelectual deesquerda que sempre se sente potencialmente culpado pelas alegrias da vida queporventura tenha experimentado (e que Marx os proteja pelos momentos de alegria quepossam ter conjurado e proporcionado). assim bastante consistente que na TeoriaEsttica de Adorno, as obras de literatura e msica preenchero, sobretudo, a funo delembrar aos seus leitores e ouvintes o que nunca sero capazes de ter e nunca serocapazes de desfrutar num mundo alienante e alienado. E Adorno insiste ainda mais nessafalta - como um fato e como uma condio de vida do que naquilo que pode estarfaltando. H apenas algumas poucas passagens em que Adorno, como que por acaso e enpassant, evoca momentos de prazer e jbilo pessoal. Nas suas memrias de infncia dapequena cidade de Amorbach no sudoeste da Alemanha, Adorno escreve sobre os sonsproduzidos por uma balsa que atravessa o rio Meno: aos quais escutamos silenciosamente e que nos dizem tanto porque no eram diferentes milhares de anos atrs19. Lembro-mede outro pequeno texto, isto , a reflexo de nmero 100 em sua Minima Moralia, ondeAdorno identifica novamente um momento de felicidade como um momento de calma em

    que seguir os movimentos da gua permite ao corpo e mente relaxarem, abandonaram-se:

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    Rien faire comme une bte, descansar sobre a gua e olhar fundo no cu, repleto de paz,apenas ser, nada mais, no ter nenhuma outra determinao ou meta20.

    Refazendo a questo, o que que gostaramos de recuperar, caso fosse possvelainda um re-encantamento? Comeamos a entender que um problema est na dificuldade ou ser na impossibilidade? de dizer, em conceitos gerais, para onde apontam os nossos

    anseios. fcil declarar, Kulturkritisch e muitas vezes de modo bem ruidoso, o queacreditamos que perdemos e o que sentimos falta. Exige mais esforo e concentraolembrar e, sobretudo, descrever os momentos (So sempre e necessariamente momentoscurtos?) em que estvamos felizes. Mas esses momentos, em sua singularidade, parecemter desaparecido para sempre e irreversivelmente21. E por isso que, no mximo, nossasmemrias podem servir como metonmias para algo mais vasto que gostaramos derecuperar no futuro. Mas o que estamos aptos a dizer a um nvel mais genrico e com umtom menos nostlgico permanece realmente vago e francamente dependente das visesbem mais claras daquilo que odiamos. Mesmo assim podemos tentar.

    Da minha parte, bem que gostaria de viver de modo mais local durante os anosque me restam. E embora o que esteja dizendo pode muito bem significar que quero umavida provinciana (ou para ser mais escandaloso: uma vida suburbana) para mim e minhafamlia, uma vida local no seria o extremo oposto de uma vida metropolitana. Querodizer por local bem mais uma vida em que meu corpo tivesse a permisso de estarpresente naquilo que minha mente est experienciando; uma vida tambm em que a lgicaracional da ao no me obrigasse permanentemente a estar frente de mim mesmo, ouseja, obrigar-me a fazer chamadas telefnicas para poupar tempo para outras chamadasfuturas.

    Ao mesmo tempo, e como disse certa vez um grande atleta, estou ansiosamente espera de momentos em que esteja mergulhado em concentrada intensidade22. Queroestar aberto para algo inesperado ou at mesmo para algo ainda desconhecido, mais do que

    para momentos em que fao acontecer, impacientemente, o que h muito est anunciado.No necessariamente momentos de piedade religiosa, apesar da linguagem que estouusando aqui. Sobretudo, em meu caso, nem momentos religiosos, nem momentospassivos. O que sonho uma mxima vigilncia e abertura para o mundo, uma abertura toampla que ela se faria sentir como um estado muito ativo da minha mente e do meu corpo.

    s vezes respondo aos meus estudantes de nvel mais avanado que se queixampor no viverem numa grande cidade, que o curso de graduao uma forma de vidamonstica qual eu gostaria muito de poder retornar. Naturalmente, no estou mereferindo s longas horas gastas em oraes silenciosas ou em voz alta (embora, agnsticoque sou, prefira muito mais vozes de orao a vozes ao telefone). Refiro-me vidamonstica no sentido de uma vida concentrada, durante muitos anos e quase queexclusivamente, sobre uma tarefa central e desafiadora, uma vida equilibrando-se no limite,uma vida concentrada em algo fundamental como oposta a uma vida dispersiva edistrada. Nunca vou me esquecer desses dois velhos negros em New Iberia, Louisiana, queme disseram (em seu francs de acento arcaico) como eles se divertiram dias inteirosprocurando crocodilos no paul e que encontrei de novo, quatro anos depois de nossaprimeira conversa, no mesmo lugar, ainda caando crocodilos no paul. Fiquei vido poruma vida to sossegada, to concentrada em algo to concreto. Monsieur, um dos doisvelhos de New Iberia disse quando os encontrei da segunda vez, Monsieur, tem doistipos de crocodilos no paul. Uns tm 90 cm e so tenros e muito bons de comer. Mas ooutro tipo, os crocodilos de 1,20 cm so sem gosto.

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    (4) Agora consegui explicar algo que vai alm do meu desgosto por telefonescelulares (que chega a um ressentimento teimoso). s vezes sonho em me juntar a essesvelhos sossegados no paul em New Iberia sem ser capaz de saber em que princpios sefundam minhas preferncias. Ter ficado claro, s para dizer o mnimo, que no estouencantado, como tantos outros intelectuais hoje, pela interpretao de que aquilo que

    desgosto e gosto parece algo religioso e pode mesmo dar fundamento a uma religiosidadesecular?Assim, se esses dois pontos ficaram claros, talvez eu possa ter me dirigido a uma

    posio nada confortvel. Pois, de um lado, no tenho base nem conceitos para dar sminhas preferncias pessoais status de reivindicaes mais gerais. Por outro lado, recusei apossibilidade de dizer que minhas preferncias tm uma base algo religiosa e tambmrenunciei ao direito de considerar minhas preferncias completamente privadas quandocomecei a discuti-las num texto que est destinado publicao (e para uma esfera pblicareduzida). Estou assim pronto para responder ao amigo (e editor) que me pergunta se meuinteresse (para no dizer, minha paixo) por efeitos de presena no implica umprograma em prol de um re-encantamento racional. Terminarei esse ensaio tentandoreagir ao desafio do meu amigo do melhor modo possvel.

    Uma sada fcil seria dizer que a noo de um re-encantamento racional umoxmoro, que ele implica um paradoxo e uma tenso que exclui sua relevncia e seu uso emqualquer discusso sobre normas e sobre orientaes do comportamento coletivo (ouainda, um paradoxo que evita sua viabilidade em qualquer discusso sobre tica). Pois seentendo o conceito de racionalidade (do modo como fiz at o momento) no sentido deMax Weber, isso significa que associo a racionalidade a uma orientao futural docomportamento em questo, e se concordamos que o re-encantamento, por outro lado,no pode deixar de ser a recuperao das formas passadas de experincia que percebemoster perdido, ento a racionalidade e o re-encantamento parecem ser realmente

    incompatveis.Aqui, mais uma vez, a filosofia nietzschiana ou talvez mais precisamente: alinguagem de Nietzsche parece convergir com uma intuio sobre o status de nosso (ouapenas meu?) desejo por presena e imediatez. Pois, ao longo de toda a sua obra, ele hesitaem descrever seus prprios valores e vises para uma cultura que seria diferente da culturacontempornea. Como um futuro que se poderia alcanar num percurso de ao prtica e ainda menos como um futuro possvel para uma sociedade inteira ou para uma culturainteira. A seta que, na Cano Final que termina a obra Alm do bem e do mal, apontapara o futuro ser impulsionada pela mais poderosa energia mas no tem um alvoespecfico: Tornei-me um mau arqueiro. Tocam-se as pontas do meu arco. S os maisfortes arqueiam o arco assim23. Numa rede diferente de metforas, a Cano Finalrecusa-se a ver esse futuro como o futuro de uma sociedade, de uma nao ou dahumanidade. Nenhum convidado est vindo para a ceia preparada para celebrar a vitria at que, tendo a cano j terminado, surge, sozinho, Zaratrusta: Festejamos a festa dasfestas. O amigo Zaratustra chegou, o hspede dos hspedes24. A mesma hesitao torna-se ainda mais bvia sempre que Nietzsche invoca os filsofos do futuro. Ele se senteobrigado a insistir que com toda seriedade: [ele v] esses filsofos surgindo25. Eles sochamados de Versucher26 sedutores mas tambm aqueles que podem apenastentar ou experimentar. Sobretudo, os filsofos do futuro ousaro dizer no, sem tera certeza dos padres de valor27.

    O que quero dizer, usando os conceitos e metforas de Nietzsche, que o re-

    encantamento no pode ser a filosofia ou a tica de nosso futuro. E isso talvez tenhamenos a ver com uma tenso entre uma orientao rumo ao futuro da racionalidade e a

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    profunda nostalgia que permeia qualquer desejo de re-encantamento do que com osvalores de re-encantamento e com seus status em nosso mundo cotidiano. Contrrio aalguns devaneios acadmico-intelectuais tpicos, nosso meio tecnolgico contemporneono est disposio de qualquer agenciamento coletivo (para no dizer individual). Acomunicao eletrnica continuar pela simples razo que no uma ferramenta ou um

    instrumento da ao humana, como imaginamos com freqncia, mas, antes, parte deum estado irreversvel de evoluo em que a mudana cultural assumiu por muito tempo opapel da variao biolgica28.

    No seria pattico argumentar em favor do uso reduzido de celulares e e-mailscomo uma norma tica? Quem, salvo a indstria dos planos de sade e alguns parentesbem-intencionados, teria vontade de persuadir ou de obrigar uma pessoa a correr, umapessoa pouco inclinada a se envolver em corridas e exerccios cedo de manh? Sim, realmente possvel tornar certas formas de comportamento ecologicamente relevantes umaobrigao mas essa possibilidade depende da possibilidade emprica de predizer asconseqncias realmente letais de algumas formas de comportamento ecologicamenteirresponsveis. Quem, em contraste, ousaria garantir que um mundo com um ritmodesacelerado de troca de informao (um mundo de velhos caa de crocodilos no paul)seria realmente um mundo melhor para uma maioria consistente de cidados? Pode muitobem haver algumas formas de comportamento e de vida que poderiam ser chamadas dere-encantamento e que se prestariam a uma transformao em normas ticas. Mas istosimplesmente no o caso para aqueles momentos e para aqueles valores de que sinto faltae que creio termos perdido no desencantamento.

    A menos que voc queira entender a palavra tica mais no sentido de umatradio remontando tica a Nicmaco de Aristteles e isso significaria formas decomportamento incorporadas cujo apelo e cuja funo poderiam ser melhor descritoscomo estticos do que como ticos, pelo menos no significado atualmente

    predominante dessas palavras. E se dissssemos que no ligar o seu telefone celular naaterrissagem constitui nada mais do que um sinal de elegncia apenas isso? E se algumafirmasse que no possuir um telefone celular, recusar aquela vida em que se espera quevoc esteja e que se sentir obrigado de estar permanentemente disponvel far voc serparte de uma elite desde que voc esteja numa profisso e uma vez que voc esteja emposio que lhe permita at mesmo contemplar tal gesto?

    Acredito que esse seja o esprito com o qual Hannah Arendt to apaixonadamenteescreveu sobre o valor da ao (como oposto ao trabalho) na esfera pblica. Sobretudo,Arendt no estava interessada em um comportamento social que se tornou o padropara todas as regies da vida. Tinha um compromisso contra um reino socialconstantemente crescente que teria conquistado o privado e o ntimo, de um lado, e, dooutro, o poltico (no sentido mais estrito da palavra). O que ela chamou a esfera polticaou pblica so dimenses que acreditava desapareceriam para sempre se no asusssemos para realizar e desenvolver nossa capacidade para a ao e para o discursonum nvel de excelncia, aret" e virtus. Como se para remover qualquer dvidapossvel que seu argumento fosse sobre esttica (ou sobre tica na tradio aristotlica),Arendt insistiu, mais de uma vez, que apreciava a excelncia na ao e no discurso comoum meio de alcanar distino individual: uma vida sem discurso e sem ao [...] e esse o nico modo de vida que sinceramente havia renunciado a toda aparncia e vaidade nosentido bblico da palavra est literalmente morta para o mundo; cessou de ser uma vidahumana porque no mais vivida entre homens. E mais ainda: em cada instncia uma

    capacidade humana que, por sua prpria natureza, aberta ao mundo e comunicativatranscende e libera ao mundo uma intensidade passional vinda de sua priso dentro do eu.

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    Uma tal intensidade em alguns casos at mesmo uma tal intensidadeapaixonada o que eu associo com uma vida que permitiria aos nossos corposcompartilhar um espao com os corpos e coisas que eles experienciam e que trariamnossos corpos de volta s nossas mentes, at atingirem o valor e a forma nostlgicos deuma vida voltada beleza da incorporao. Tambm concordo com o argumento de

    Arendt de que a incorporao como valor transcende, sempre e necessariamente, a prisodentro do eu mas essa incorporao no aquilo que chamaramos hoje de um valorsocial, um valor cuja legitimidade repousaria em promover o maior bem-estar possvel deuma maioria de cidados.

    Para concluir: se seguirmos a intuio de Heinrich von Kleist de que a graa deformas incorporadas vem da impossibilidade de v-las e experienci-las como aexpresso de quaisquer programas, intenes ou conceitos; se concordarmos que a graa um estado que nos faz perceber com tremor, como Kleist disse de modo bastanteliteral e com muita beleza, que a alma repousa no cotovelo, ento temos ainda outrarazo para nosso ceticismo amigvel no tocante ao re-encantamento racional. Pois seaquele pequeno grupo de gente venturosa que no precisa de telefones celulares podemuito bem ter, de vez em quando, sua graa natural como os dois velhos de New Iberiaque eu gostaria muito de chamar de meus amigos no consigo imaginar nada maisdetestvel do que Ligas Anti-Celulares ou Clubes de Viglia aos Crocodilos.

    Traduo de Carlos Ludwig, Marcus de Martini e Lawrence Flores Pereira

    Notas

    1 Discuti amplamente as condies e as conseqncias do uso da palavra presena emcontextos similares em meu livro: Production of Presence. What Meaning Cannot Convey.

    Stanford 2004.2 Weber sugeriu e tornou constantemente complexa essa associao em alguns de seustextos mais importantes. Veja a excelente entrada Entzauberung, por Walter M.Sprondel no segundo volume de Joachin Ritter (ed.): Historiches Woerterbuch derPhilosophie. Basel 1972, pp. 564f.3 Ver: Alm do Bem e do Mal. Preldio para uma filosofia do futuro. Translated, with aCommentary by Walter Kaufmann. New York 1966, p. 151.4 Ver Alm do bem e do mal, p. 153.5 Ver Oswald Spengler: The Decline of the West. Uma edio compacta por Helmut Werner.Edio Inglesa compacta preparada por Arthur Helps, da traduo de Charles FrancisAtkinson. Oxford 1991, p. 68.6The Decline of the West, p. 404.7 P. 97.8 Em Martin Heidegger: A questo acerca da Tecnologia e Outros Ensaios. Translated andwith an Introduction by William Lovitt. New York, 1977, pp. 115 154. Esta ediooferece uma avaliao s complicadas coordenadas filolgicas para os textos que contmna pgina IX XI.9 Ver pargrafos 20ss. Em O Ser e o Tempo.10 Ver o ttulo do ensaio (de 1955) em: A questo acerca da Tecnologia, pp. 3 35, etambm (de 1949): O desvio, pp. 36 49. Como um exemplo impressionante para umacrtica cultura do incio do sculo XXI, baseado em sua tendncia de produzir uma

    reserva disponvel, o ensaio de Robert Pogue Harrison: Of Terror and Tigers.

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    Reflections on Cai Guo-Qiangs Inopportune. In: Cai Guo-Qiang Inopportune. NorthAdams, MA 2005, pp. 28-36.11 Veja as fortes restries expressadas no influente ensaio de Juergen Habermas: DieVerschlingung Von Mythos und Aufklaerung. Bemerkung zur Dialektik derAufklaerung nach einer erneuten Lektuere. In: Karl Heins Bohrer (ed.): Mythos und

    Moderne. Frankfurt/M, 1983, 405 431.12 Dialectic of Enlightenment. Philosophical Fragmets. Editado por Gunzelin SchmidNoerr, Traduzido por Edmund Jephcott. Stanford 2002, p. 91.13 Dialtica do Esclarecimento, p. 65.14 O Declnio do Ocidente, p. 97.15 p. 414.16 O conceito de estar--mo desempenha um papel central na viso de AndraNightingale de re-encantamento. Ver o ensaio Broken knowledge.17 Veja por exemplo: The turning, pp. 47 49.18 Was heisst Denken? Vierte Auflage. Tuebingen, p. 142.19 Amaorbach. In: Kulturkritik und Gesellschaft I. Gesammelte Schriften 10/1.Frankfurt/Main, 1997, pp. 302 309, essa passagem est na p. 303.20 Gesammelte Schriften 4, p. 179.21 Para uma discusso filosfica de essa temporalidade exttica, veja Karl Heinz Bohrer:Der Abschied. Theorie der Trauer: Baudelaire, Goethe, Nietzsche, Benjamin.Frankfurt/M, 1960, mas tambm: Ploetzlichkeit. Zum Augenblick des aesthetischenScheins. Frankfurt, 1981, e: Das absolute Praesenz. Die Semantik aesthetischer Zeit.Frankfurt/M, 1994.22 Esse foi o nadador e o medalhista de ouro olmpico Pablo Morales, um ex-estudante deStanford e Cornell. Veja a citao inteira em meu livro: In Praise of Athletic Beauty.Cambridge, MA, 2006, pp. XX.

    23 Alm do Bem e do Mal, p. 242.24 p. 245.25 p. 11.26 p. 52.27 p. 134.28 Tomo esse argumento (que mereceria uma descrio e uma discusso mais detalhada) deAndr Leroi-Gourhan: Gesture and Speech. Cambridge, MA 1984/1985.

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