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GÊNEROS E FORMATOS EM JORNAUSMO 97 crítica de cinema entre o realismo a ideologia: Bazin, Kracauer, Adorno Rodrigo Cássio Oliveira! A caracterização da crítica de cinema como um tipo particular de texto prc ente na produção midiática - seja a mídia impressa, audiovisual ou digital .ncontra sempre um eixo de questões que atravessam os diferentes suportes e 1''' iblematízarn o papel do crítico em sua relação com o objeto-filme. Se, como I própria natureza da atividade já indica, toda crítica inevitavelmente lida com lima (ou várias) concepçãoíôes) de cinema, quais seriam os argumentos que ustentarn a concepção capaz de amparar os juízos presentes na própria crítica? ( que se pode tomar como sendo a ideia de cinema que um texto sobre um 111 me necessariamente subscreve ao avaliar as qualidades e a importância do 'U objeto? Ainda quando a avaliação de um filme não implica a defesa radical de uma única concepção - e, de fato, as melhores críticas tendem a ser as que I H .apam dessa conceituação categórica -, não convém acreditar que um texto que emite juízos sobre as qualidades e o lugar de uma obra em um contexto de pr dução possa estar isento de critérios minimamente estruturados em uma lundamentaçâo mais geral sobre, por exemplo, a relação entre as imagens do II ema e a nossa percepção sensorial da realidade. I Professor substituto da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (Facomb·UFG). Mestre 111 Comunicão e Cultura (UFG) e doutorando em Filosofia da Arte (UFMG).

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GÊNEROS E FORMATOS EM JORNAUSMO 97

crítica de cinema entre o realismoa ideologia: Bazin, Kracauer, Adorno

Rodrigo Cássio Oliveira!

A caracterização da crítica de cinema como um tipo particular de textoprc ente na produção midiática - seja a mídia impressa, audiovisual ou digital

.ncontra sempre um eixo de questões que atravessam os diferentes suportes e1''' iblematízarn o papel do crítico em sua relação com o objeto-filme. Se, comoI própria natureza da atividade já indica, toda crítica inevitavelmente lida comlima (ou várias) concepçãoíôes) de cinema, quais seriam os argumentos queustentarn a concepção capaz de amparar os juízos presentes na própria crítica?

( que se pode tomar como sendo a ideia de cinema que um texto sobre um111me necessariamente subscreve ao avaliar as qualidades e a importância do

'U objeto? Ainda quando a avaliação de um filme não implica a defesa radicalde uma única concepção - e, de fato, as melhores críticas tendem a ser as queI H .apam dessa conceituação categórica -, não convém acreditar que um textoque emite juízos sobre as qualidades e o lugar de uma obra em um contexto depr dução possa estar isento de critérios minimamente estruturados em umalundamentaçâo mais geral sobre, por exemplo, a relação entre as imagens doI I ema e a nossa percepção sensorial da realidade.

I Professor substituto da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (Facomb·UFG). Mestre111 Comunicão e Cultura (UFG) e doutorando em Filosofia da Arte (UFMG).

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8 oeNllltO IOI(M"1'O eM JORNALISMO

Não é difícil encontrar exemplos de como a crítica pode cunhar seus termoem uma perspectiva teórica em si mesmo problematizável, contribuindo comteoria ao avançar no entendimento das obras. Uma análise da evolução históri I

da crítica expõe as vicissitudes da sua margem de ação no seio da indústria cultural(e dela fazem parte, vale frisar, tanto os filmes quanto as publicações, as emissora,de rádio, a TV ou a internet, onde os críticos atuam). Por exemplo, a importânciados diretores dos filmes para a crítica, enquanto possíveis autores que assinamsuas obras, ganhou força decisiva apenas na passagem dos anos 1950 para os ano1960, período conhecido pela ascensão do cinema moderno em diversos pont ,no mundo - inclusive no Brasil, com o Cinema Novo, e, imediatamente depois, oCinema Marginal. A chamada politique des auteurs, originada nas páginas da revistafrancesa Cahiers du Cinéma, foi a maior responsável por essa guinada da crítica emtorno do conceito de autoria. Por mais frágil que ele se encontre atualmente-, (l

impacto da política dos Cahiers foi grande e ainda reverbera.A menor conclusão a se extrair dessa evidência é que a crítica de cinema, assim

como o próprio cinema, também se configura com as tensões inerentes aos produtoda indústria cultural, explicando o nosso interesse por fatores epistemológicos qupodem decidir critérios de juízo acerca de um filme. Na identificação e análisdesses fatores, vamos ao encontro da dimensão teórica que garante a sustentaçãode toda avaliação de um filme. Atento a isso, o objetivo desse artigo é tomarcomo foco dois traços fundamentais do cinema de maior visibilidade na indústriacultural: o realismo (pseudo-realista, segundo Adorno e Horkheimer) e a ideologiacomuns às mercadorias culturais; traços que encontram uma formatação muitoapropriada no potencial do aparato cinematográfico (a centralidade das imagen ,a linguagem ilusionista e a experiência do espectador como sujeito abstrato doolhar). Para tanto, uma introdução do conceito de realismo na teoria do cinemaencontra nos trabalhos de André Bazin e Siegfried Kracauer duas fontes dereflexões ao mesmo tempo dissonantes e complementares que contribuem para O

entendimento do que está em jogo no realismo das imagens em movimento.

A teoria realista de base: Bazin e Kracauer

Na teoria do cinema vem de longa data a discussão acerca da transparênciada opacidade que caracterizam os discursos fílmícos (XAVIER, 2005). O potencialrealista da câmera de filmar, no sentido da realização aprimorada de uma mímesis

2 Sobre essa crise da noção de autoria nas teorias do cinema, conferir Buscombe (2005).

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111l"1 ria do projeto renascentista de percepção sensorial, tornou-se uma balizaI I 1111 um de perspectivas favoráveis ou contrárias à consumação desse projeto.11 rrn muitos, o cinematógrafo teria levado a cabo, como jamais conseguido naI olução técnica dos meios, a aptidão humana de mimetizar a realidade por meiotil' una forma artística. Para outros, a recusa dessa suposta conquista da técnicainplicava tanto um aproveitamento mais acertado da câmera, tratando-se de um

1 quívoco a sua associação imediata ao projeto renascentista, como também umI 118 o necessário para a crítica ideológica da visão de mundo do Renascimento.

Entre a regimentação da decupagem clássica, tal como propagada pelo cinema[iollvwoodiano, e as teorias realistas de Siegfried Kracauer e André Bazin, nomeslundantes de uma teoria realista clássica do cinema:', encontramos posições diversasdiante do mesmo tópico. Em ambas, contudo, mantém-se o pressuposto de umaI -lação privilegiada entre a câmera e a realidade.

Para Bazin, essa relação é responsável por certa dispensa do artista no processo.lc criação. Ao incluir a duração e o movimento ao tipo de registro inaugurado pela1\ Itografia , "o cinema vem a ser a consecução no tempo da imagem fotográfica", AZIN, 1991, p. 24). No realismo baziniano, isso significa que, no cinema assim

rorno na fotografia, a realidade é transferida de si mesma para o material que areproduz, sem a mediaçãõda racionalidade de um agente humano. Logo, o processo\I ' registro é irracional, isto é, ele prescinde da habilidade de um pintor, a despeito\I ' quão hábil ele possa ser. É nessa gênese automática que reside o maior potencialI 'alista do cinema, advindo de uma antologia da imagem fotográfica, para repetiruqui a qualificação que Bazin dá à sua teoria. Uma investigação ontológica, e, porIsso,uma conceituação a partir da própria imagem, daquilo que ela é, independentedos usos a que é submetida - o que explica, em parte, a última e enigmática frase donutor no ensaio em questão: "por outro lado, o cinema é uma linguagem".

Nesse sentido, ainda, Bazin dá vazão a uma psicologia da espectatorialidade comontor inerente à experiência realista. Não apenas o registro mecânico, ao excluir amão humana, instala o alto grau de objetividade da imagem, mas também a atenção10 espectador, condicionada previamente a confiar na veracidade daquilo que seimpõe, na imagem, com uma força indisfarçável de equivalência ao mundo empírico- isto é, ao mundo visível. A propósito, a técnica contemporânea, com a ascensão10 componente digital, tende a lançar novos problemas para a tese baziniana, namedida em que vem à tona um novo tipo de espectador, agora abarrotado pelaI resença intensiva das imagens e provido de uma fatal desconfiança para com apossibilidade de manipulações em tudo o que lhe é dado a ver.

Dudley Adrew (2002) oferece uma classificação comentada dos dois autores realistas que expõe muito bem a posição de ambost10 desenvolvimento histórico das teorias do cinema.

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Para Bazin, que não chegou a conhecer esse período, a espectatorialidade trazainda as marcas do surpreendente poder de reprodução do registro. Pensando,assim, tanto no espectador como na linguagem, o teórico destinou ao plano-sequência um lugar privilegiado, contraposto às interferências excessivas damontagem: cabe ao filme proporcionar o acesso à ambiguidade que já está dispostana própria realidade do mundo, preservando-a para que seja recebida, de modosingular, no ato de assistir ao filme.

Nesse passo, por sua vez, Kracauer também prescreveu ao cinema um usoparticular da linguagem, valorando alternativas mais ou menos adequadas ao quelhe pareceu, com uma radicalidade tão maior quanto a de Bazin, a predestinaçãodo cinematógrafo. O cinema, segundo Kracauer, também se alimenta da realidadede maneira inovadora e exclusiva, confirmando o elo de parentesco com afotografia. A sua matéria-prima, ou seja, o real, é um centro organizador necessáriodo discurso fílmico, a ponto de recusar ao cinema a condição de arte. Se uma obraartística é aquela que se realiza quando subjetivamente moldada por seu criador,sobrepondo as virtudes formais ao conteúdo, a fotografia ou o cinema são algumacoisa diferente disso, na medida em que, para ambos, é o conteúdo que possuiprimazia sobre a forma. O objetivo, e não o subjetivo; o mundo, e não o homem;a matéria-prima, e não o trabalho prolixo que a negligencia - tais são os esteiosindispensáveis para o cineasta em busca da fidelidade ao seu meio de expressão.

Kracauer repudia o formalismo quando separado de uma espécie deimperativo categórico - numa analogia ao recurso principialista da ética kantiana-, formulado em Theory of Film, sua obra de maior fôlego nesse campo. O autororienta as inclinacões dos criadores na direcão do que é propriamente cinematic,, ,

isto é, do que é mais essencial ao cinema em seu próprio território, delimitadoem função do que está prometido no aparato como sendo as propriedades quelhe são inerentes: "todos os esforços criativos estão de acordo com o modocinemático desde que favoreçam, de um jeito ou de outro, a substantivainquietação do meio para com o nosso mundo visível" (KRACAUER, 1997,p. 39, tradução nossa). O cinema é favorecido quando o artista favorece a tensãodo olhar humano para a realidade - uma tensão que se impõe pela dupla via daprocura incessante pela verdade; o olhar que investiga, curioso, é o mesmo olharque se transforma ao ser fustigado pelo seu objeto.

Importante diferenciar, nas teorias realistas de Bazin e Kracauer, uma disposiçãopara compreender a relação entre o cinema e a realidade em chaves muitoparticulares, mas igualmente atentas aos caminhos tomados pelo cinema em suaprogressão expressiva na cultura de massas. Se o crítico e teórico francês, na margemde influência (anterior e posterior) em torno da revista Cahiers du Cinéma, pode

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'r situado facilmente como intérprete ou referência do neorrealismo italiano e dalIouvelle vague, Kracauer não está menos próximo do cinema moderno, na medida\'111 que faz coincidir a sua concepção de realidade física com a visão exasperadade uma modernidade com fraturas sociais decisivas, cujo balanço é a tese de que orealismo cinematográfico, per si, encontra-se na conjugação dos dotes naturais da'âmera com a restauração do contato entre o homem e as coisas.

Contra o abstracionismo da ciência, as falências da perspectiva religiosa, da crenca mobilizadora em grandes ideais, Kracauer encontra no cinema apossibilidade de recuperar o real como fonte de novos significados - ao não serarte, o filme assume uma missão quase sociológica: a de contornar os discursosvazios em nome da concretude de um mundo objetivo e partilhado, apesar deoculto pelos esquemas e fórmulas que orientam não apenas a forma de vida,mas também a sensibilidade dos modernos. Assim como Bazin, apesar de jamaister citado o francês em sua teoria, Kracauer acena para o neorrealismo italiano,.ncontrando ali exemplos bem resolvidos do seu modelo de realismo, cujostraços são fortemente humanistas.

Os dois realistas, portanto, marcam a ascensão de um pensamentoadepto da essencial proximidade entre os filmes e o real, sem legitimar, ipsofacto, o processo de n;turalização da realidade social verificado' no cinemahegemônico de origem clássica, vastamente produzido e exportado porHollywood como um padrão bem sucedido na maior parte do século XX eainda hoje. Cabe distinguir o realismo; tal como formulado por estes teóricos,do ideal de transparência enviesado nos artifícios de aproveitamento daimpressão de realidade que deram origem ao primado da decupagem clássicacomo um conjunto de convenções a serem respeitadas, com variáveismínimas e bem calculadas, a fim de alavancar o comércio de filmes segundoum padrão médio de experiência estética na sociedade do espetáculo,denunciada conceitualmente por Guy Debord no contexto de maio de 1968.Para Bazin, por exemplo, a atenção dirigida do espectador hollywoodianoé um empecilho para a manifestação da ambiguidade intrínseca ao real. Aeconomia da decupagem que enquadra e corta os planos em função da açãoé um fator que mina a liberdade do espectador em sua experiência com ovisível; ao passo que, no realismo que realmente interessaria, "obrigado afazer uso de sua liberdade e inteligência, o espectador percebe diretamentena própria estrutura das aparências a ambivalência ontológica da realidade"(BAZIN, 2005, p. 91).

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Realismo e ideologia na teoria crítica da sociedade

A exposição das teorias realistas de Bazin e Kracauer, ainda que concisa, favorecea problematização do caráter ideológico das imagens produzidas pela indústriacultural; etapa que nos remete à teoria crítica da sociedade, especialmente ao livroDialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Na medida em que a críticade cinema lida com questões acerca da natureza da imagem cinematográfica,ressaltando a sua relação com uma ideia de realidade, compreende-se que aelaboração de critérios de juízo na escrita sobre uma obra pode confrontar edesdobrar a própria teoria, sobretudo metodologicamente, ao investigar objetosestéticos específicos em um contexto previamente compreendido como umatotalidade orgânica (o já mencionado sistema da indústria cultural).

Desse modo, na perspectiva da teoria crítica, a abordagem do cinema se dáno registro mais amplo da cultura no capitalismo tardio. ° realismo ideológicodaindústria cultural- por assim dizer - alinha-se à tendência geral de indiferenciaçãoentre a experiência estética e a sensibilidade cotidiana, reproduzindo nas salas decinema as formas de ver, ouvir, sentir e conformar-se recomendadas pelo sistemade dominação. Até que ponto a crítica de cinema está atenta a esse processoininterrupto de conformação do (ao) real? Quando a ideologia é regulada noprimado da aparência que oculta a responsabilidade humana pelas instituições erelações sociais no capitalismo, encobertando a mutabilidade dessas instituições erelações para afirmá-Ias como uma segunda natureza, o cinema crítico da ideologiatoma para si a tarefa de desconstruir a linguagem do modelo hegemônico e acusaras intenções escusas por trás dessa própria linguagem. A crítica de cinema participadesse processo na construção de uma recepção qualificada das obras, sobretudodiante da ampla tendência intelectualizante da arte moderna, refletida no cinema.Dito de outro modo, encontramos aqui a tendência das obras a requererem cadavez mais uma filosofia da arte como parte indispensável da experiência estética(DANTO, 2006), o que confirma a crítica de cinema no papel de geradora desentido, com uma inédita carga de responsabilidade.

Entre a transparência, que pautou a decupagem clássica ou os realismoscríticos - como os de Bazin e Kracauer -, e a opacidade do cinema de rupturaencontramos linhas de força que se entrecruzam na arena cinematográfica,tanto nos filmes como nas respostas críticas que eles suscitaram. Trata-se deuma contra partida à premissa realista alimentada por Bazin e Kracauer - ade que há uma antologia do aparato cinematográfico que o orienta para arealidade. Se, como sentencia Adorno (2001, p. 204) nas Minima Moralia,"a diferença entre ideologia e realidade desapareceu", resta saber até que

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ponto um discurso que pretende questionar a ideologia, denunciando a suafalsidade, pode se ater a uma realidade mais fundamental, supostamentedissimulada no tecido social.

A indústria cultural solapa o que não obedece à positividade de umaconsciência de consumidor, não raramente travestida de consciência cidadã(inclusive com incentivos a uma visão supostamente crítica do real, em nome deverdades universais que nunca são critica das em si mesmas). Não há negatividade,no sentido estrito do termo. Todo sinal de insatisfação deve ser controlado (videas pesquisas de audiência, como a medição do Ibope, na TV do Brasil) em funçãoda permanência do conjunto de práticas sociais, valores e crenças que interessamà aparência de harmonia do sistema. ° realismo cinematográfico é um constructo"tendencialmente voltado para o reforço afirmativo da superfície visível da sociedadee que repele como romântico o querer ir além dessa fachada" (ADORNO, 1986,p.l04). Em outras palavras, uma pseudo-experiência da realidade é figurada nopseudo-realismo afirmativo das mercadorias culturais.

Muito pode ser dito sobre este reforço de uma superfície visível pelos produtosda indústria cultural, associando-o a princípios formais do cinema hegemônico: onaturalismo da rruse-en-scêne, o ilusionismo e a adoção de gêneros populares quebeneficiam, em sua ~~al particular, o tipo de sociedade planificada exigida pelostatus quo. ° debate teórico nas revistas de crítica de cinema, que acompanharamgrande parte das rupturas do cinema moderno, também apontaram a paridadeda tese de Adorno sobre o realismo com uma perspectiva de crítica ideológica".Analisemos brevemente dois casos de fundamentação de um conceito de cinemaligados a essa consciência de ruptura para com o realismo característico da ideologiadominante: o da teoria do dispositivo, oriunda da crítica francesa dos anos 1970, e oseu recebimento e reelaboração em passagens específicas da obra de Ismail Xavier.

Lançada por [ean-Louis Baudry em Cinema: efeitos ideológicosproduzidos pelo aparelhodebase, artigo publicado em 1970pela revista francesa Cinétique, a teoria do dispositivoacusa a decupagem clássica como um dos momentos de um processo maior, cuja somaconduz ao próprio conceito de dispositivo, e cujo resultado é um processo contínuode subjetivaçâo em termos muito próximos ao que ocorre no modelo particular demanipulação que a teoria crítica percebe na indústria cultural (uma maniPulaçãoretroativa, que produz as condições da recepção antes mesmo do estímulo, calculandoos desejos e as compensações do receptor). Vinculando os valores estéticos doRenascimento - a promoção da perspectiva, especialmente - ao tipo de experiênciainsuflada pela materialidade do aparato do cinema, Baudry (2003, p. 384) conclui que

4 o ponto de culminância dessa trajetória se deu também nas páginas da Cahiers du Cinéma, com a radicalização da crítica ao ilusio-

nismo hollywoodiano. Esse período é passado em revista na recente publicação em português do livro A Rampa, de Serge Daney.

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[ ... ) o aparelho ótico, a câmera escura, servirá ao mesmo campo histórico paraa elaboração da produção pictórica de um novo modo de representação, aperspectiva artificialis, que terá como efeito um recentramento - ou, pelomenos, um deslocamento do centro -, indo se fixar no olho, o que significa

assegurar a instalação do "sujeito" como foco ativo e origem do sentido.

o que está instalado, aqui, é o espectador como sujeito segundo a própriadisposição em individuar-se - mas um sujeito produzido externamente, cujo interessepela individuação é atravessado por outro: o da indústria cultural em conformá-10 enquanto consumidor". O "foco ativo" e a "origem do sentido" não retiramdesse "sujeito" (com as aspas de Baudry) a condição de objeto do sistema que develegitimar, ao contrário, a impressão de atividade e o recentramento do ego comouma origem do sentido, ambos indispensáveis à individuação, são dois indicadoresque distinguem a pseudo-individualidade (e não a completa ausência dela, comoquer uma leitura menos precisa da teoria crítica) como uma das marcas perniciosasda sociedade de massas no estado civilizatório corrente, ou seja, em um estado noqual o pertencimento do homem à sociedade não se realiza sem o intermédio de umpesado sistema de produção simbólica que o impede de emancipar-se.

Na obra de Ismail Xavier, por sua vez, a atualização da ideologia é investigadapor meio da atualização de seus próprios produtos - justamente a conquistametodológica que aproxima a crítica da ideologia dos filmes particulares, penetrandona totalidade regrada de um grande estilo (como o cinema narrativo clássico) ou umgrande meio produtivo (como Hollywood ou Bollywood). Seja quando Xavier sededica à análise do cinema hollywoodiano em suas matrizes, seja quando põe emquestão as alternativas a ele, o que está em jogo é a flutuação do espectador entreo que deve ser visto e aquilo que, por extensão dessa permissão tão imperativa, nãose pode ver (podemos acrescentar: ora não se pode ver pela indisponibilidade dosfilmes, pura e simplesmente, ora por inaptidão de um público condicionado aoespetáculo - dois motivos igualmente creditáveis à ideologia).

Em O Discurso Cinematográfico, o tipo de transparência que constitui o cinemahegemônico é situado em uma tríplice vertente, na qual a pressuposição de umaatitude mimética para com a realidade é levada a cabo, como visto, em Baudry, nachave da perspectiva realista do Renascimento, assinalando tanto a preferênciapelo aparato do cinema, enquanto filtro ou janela do real, quanto pelos valoresde uma burguesia ascensionária que assume o protagonismo político-social com a

5 Flusser (1983, p. 69) diria que "não é verdade que os espectadores não se rebelam porque não podem. Verdade é que nãose rebelam porque não querem. O seu comportamento prova que querem ser enganados". O cinema é um jogo cuja ilusãoé acatada no mesmo momento em que entramos na sala de cinema. Programação que programa o espectador, não por suapassividade, mas sim por sua atividade.

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_ do Antigo Regime Desse modo, temos no modelo clássico de cinemaHuperacao . . ,) di, _ d naturalismo de encenação (mlse-en-scene, ísposto em1\ orquestracao e um dl õeslima direcã~ de atores que ecoa o gestuário, o comportamento ~ as con 1Ç

. . 'd .da do mundo empírico: a adoção de gêneros narrattvos de grandeInatenalS e VI d f ando-se

A cia popular com destaque para o melo rama, e, por im, somI'cssonan, , .' 1 d d m'I esses elementos advindos do teatro moderno, o Iluslonlsmo ,resu t~ o e u'LISOorientado da técnica especifica do cinema, segundo ~ q~a~ e c~nftgura~~, ~at. mundo extenso e objetivo que respeita as leis físicas a expenencía

~:~:~e:i~:omum, ao mesmo tempo em que simula o ~lhar,do espectador comoum ponto de vista provido de eminente neutralidade, IStOe, capaz de a tudo ver,

semjamais ser visto. I', Em O Olhar e Cena, que aborda a renovação dessa tríp ICevertente, co~ as

, d 1970 as mesmas que culmmanam,inovacões tecnológicas a partir os anos -, 3D X . (2003, bli . " d mema - aVier ,muito recentemente, na ostentação pu icitarta o c - .'

48-9) caracteriza da seguinte maneira a decupagem cláss~ca" ~peraClo~ahzadaem funcão de uma subjetividade estreitamente ligada ao pnncrpio cartes1ano deuma ses cogitans centralizadora, para a qual a verdade do ~eal confunde-se com oexercício do próprio pensamento, inaugurando a modemídade:-

M' h moção está com os "fatos" que o olhar segue, mas a condição dessee~~ol:i:ento é eu me colocar no lugar do aparato, sintonizado com suasoperações. Com isso, incorporo (ilusoriamente) s,eus poderes e en~ont~onessa sintonia - solo do entendimento cinematografico - o maior cenano e. ulação de uma onipotência imaginária. No Cinema, faço uma viagem .que

~:firma minha condição de sujeito tal como a desejo ..~áquina de ef:ltos,a realização maior do cinema seria então esse efeito-suJeito: a sl~ulaçao deuma consciência transcendente que descortina o mundo e se ve no centrodas coisas, ao mesmo tempo que radicalmente separada delas, a observar o

mundo como puro olhar.

Essa descricão do mecanismo ilusionista para um 'sujeito abstrato ,do olhar, ) ue na Dialética do EsclareClmento se

(uma consciência transcendente aponta o q . . ., .. . d ," . divíduos não são mais mdlvlduos, mas Sim

enuncia do segumte mo o. os m '1 ' '1meras encruzilhadas das tendê~cias d~ uni~,ersal, [e é so;.e~~~~~Ei~;:'o~~,~~,reintegrá-los totalmente na Unlversahdade (ADORN,. " di - d, 128). A gramática do cinema narrativo clássico, ao con~lrmar a con 1ça.o_ ~

p ., 1como a desejo" (citando novamente Xavier), confirmaria qual cond1ç~o.~~e:: ~:ria este ser desejante - e o que ele afinal desejaria?~~a resp~tatoss,v;l, encontrada na própria análise da pseudo-individuah ~ e na, w enca oeE

1 . t Perder se de si mesmo na encruzilhada do universal e submeter-sesc areClmen o. -

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a um processo no qual a positividade da indústria cultural se responsabiliza pelaconstituição dos sujeitos, amparando-os em quantas frentes forem necessárias nocontato com o real.

Conclusão

A partir dessa exposição do conceito de realismo nas teorias do cinema, eem particular da dimensão ideológica que ele adquire paradigmaticamente nateoria crítica da sociedade, confirmam-se questões relativas à fundamentacão dacrítica de cinema; isto é, pensamos a crítica em um trabalho de subterrâneo, menosvoltado para os estilos textuais ou a relação texto-mídia, e mais para a relaçãoentre os juízos que podem cercar uma obra e o embasamento deste juizo, ou se, ,quisermos, a interpretação qualificada de um filme por meio da indispensávelconcepção de cinema que a torna possível. A passagem pela teoria realista debase indica na teoria crítica da sociedade a permanência de um entendimentodo aparato cinematográfico que se sofistica na medida em que ganha formauma problematização da subjetividade no processo de produção e recepção dasobras fílmicas. Do realismo intrínseco à imagem foto-cinematográfica, segundoBazin, passando pelo realismo como uma inquietação diante do mundo visível,segundo Kracauer, apertamos no cinema hegemõnico tendo como aspecto maisexuberante a sua potente simulação de uma experiência do real cujas coordenadassão decididas não pelos próprios sujeitos, mas sim pelo sistema que sonega a eleso controle da representação e a diversidade das experiências estéticas.

Se tomamos as teses debatidas como fundamentacão da crítica a relevância dela. ,não pode ser dissociada da relevância de suas respostas às questões levantadas naconceituação de realismo/realidade e ideologia aqui empreendida, mesmo quandoessas respostas estão apenas implícitas (como geralmente ocorre) ou simplesmentenão se deixam ver na estrutura interna do texto. Cabe considerar que um críticode cinema de um grande jornal diário, por exemplo, tende a selecionar as obrasque critica em integração com a dinâmica da indústria cultural e a possibilidade derealizar o seu trabalho no espaço ou tempo exigidos pelo medium (em pouquíssimaslaudas, no jornal; em pouquíssimos minutos, na TV). Esses são fatores externosque; invariavelmente, interferem na qualidade da crítica oferecida pela mídia. Noentanto, não apenas fatores externos direcionam as respostas que um crítico dáàs questões-problemas que expusemos; há também decisões que o crítico tomadurante a elaboração do trabalho, relativamente independentes da contingênciado medi um ou das interferências ideológicas extra-textuais do sistema da indústria

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.ultural. Como um eixo comum das questões levantadas, reencontramos ap 'rgunta sobre a concepção de cinema que uma crítica estabelece.

Mesmo ao escrever pautado pela indústria cultural, o crítico pode ou nãoICI roduzir o discurso publicitário que propaga um blockbuster em um mercado.Ele pode ou não corroborar, na avaliação da qualidade da obra, os critériosq ialitativos que a ideologia impõe em sua intrusiva propagação de mercadorias,falseando-as como obras de arte para o consumo das massas. Essa possibilidade delima margem de ação relativamente aberta do crítico em relação às demandas dosistema econõmico-simbólico do capitalismo tardio, por certo, não é uma leitura[ue contradiz a efetividade das teses lançadas por Adorno e Horkheimer naI ialética do Esclarecimento, em 1944. Antes disso, é precisamente uma análise dosionflitos inerentes a toda produção simbólica no contexto da produção massificadawe expõe da melhor maneira essa efetividade. Como visto, essa análise se dáom a problematização dos filmes e o aprofundamento da compreensão sobre aperacionalidade da ideologia em suas formas; o mesmo ocorre, sem dúvida, com

as críticas, de modo que tomá-ias em sua particularidade é um passo importantepara o avanço do problema introduzido nesse artigo - passo que, por razão deespaço e limitação tem~ica, cabe, por ora, somente noticiar.

Referências

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