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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 155 UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA Rafael Cabral Cruz Campus de São Gabriel, Universidade Federal do Pampa, São Gabriel, RS [email protected] Demétrio Luis Guadagnin Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, Centro de Tecnologia, Universidade Federal de Santa Maria [email protected]. Introdução O problema da conservação do Bioma Pampa como uma construção social é embrionário no Brasil. Nos setores acadêmicos e ambientalistas este bioma foi considerado negligenciado pelas politicas públicas de conservação da biodiversidade (OVERBERCK et al.,2009). Tratando-se de um problema novo, persistem importantes lacunas na construção das alegações para a conservação do Bioma Pampa. Neste artigo propomos uma sistematização da história ambiental do bioma, baseada nas informações disponíveis, com o objetivo de apresentar uma síntese abrangente das transformações ocorridas e das forças que as determinaram. Nossa abordagem se situa num campo da ciência relativamente novo, ainda pouco definido, que se constrói na interface entre a História Ambiental e a Ecologia Histórica (GRAGSON, 2005; BALLÉ & ERICKSON, 2006; SOLÓRZANO et al., 2009).

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 155

UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA

RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA

Rafael Cabral Cruz Campus de São Gabriel, Universidade Federal do Pampa, São Gabriel, RS

[email protected]

Demétrio Luis Guadagnin Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, Centro de Tecnologia, Universidade Federal de Santa Maria

[email protected].

Introdução

O problema da conservação do Bioma Pampa como uma construção social é embrionário no Brasil. Nos setores

acadêmicos e ambientalistas este bioma foi considerado negligenciado pelas politicas públicas de conservação da

biodiversidade (OVERBERCK et al.,2009). Tratando-se de um problema novo, persistem importantes lacunas na construção

das alegações para a conservação do Bioma Pampa. Neste artigo propomos uma sistematização da história ambiental do

bioma, baseada nas informações disponíveis, com o objetivo de apresentar uma síntese abrangente das transformações

ocorridas e das forças que as determinaram. Nossa abordagem se situa num campo da ciência relativamente novo, ainda

pouco definido, que se constrói na interface entre a História Ambiental e a Ecologia Histórica (GRAGSON, 2005; BALLÉ &

ERICKSON, 2006; SOLÓRZANO et al., 2009).

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A História Ambiental foca “os acontecimentos históricos que modificaram e, ao mesmo tempo, foram modificados pelo

ambiente” (SOLÓRZANO et al., op. cit.). Este enfoque permitiria construir uma investigação sobre como o ser humano alterou

o funcionamento dos ecossistemas onde estava inserido e como estes ecossistemas em transformação condicionaram a vida

destes seres humanos. Por outro lado, a Ecologia Histórica “procura compreender os fenômenos e componentes ecológicos,

como a funcionalidade de ecossistemas, a composição e a estrutura de comunidades, etc., à luz dos processos históricos de

transformação da paisagem” (SOLÓRZANO et al., op. cit.). Ou seja, embora ambas as abordagens envolvam a relação entre

ser humano e natureza, o foco da História Ambiental está voltado para o ser humano, enquanto da Ecologia Histórica mais

voltado para a natureza. Neste trabalho, adota-se a abordagem da História Ambiental, pois os questionamentos envolvem

forte conteúdo cultural. No entanto, não se trabalha com a dicotomia ser humano x natureza.

Neste artigo procuramos sistematizar os grandes ciclos de transformações ambientais provocadas pelo ser humano na

região hoje coberta pelo Bioma Pampa no estado do Rio Grande do Sul, sob o enfoque da compreensão da evolução do

Ecossistema Humano Total – ETH (NAVEH et al., 2001). Segundo este conceito, que não opõe ser humano e natureza, os

elementos da paisagem transformados pelo ser humano interagem com os demais elementos através de fluxos de massa,

energia e informação, constituindo uma entidade hierarquicamente superior que funciona como um todo (hólon). A

estabilidade de sistemas auto-organizativos é dependente da sua interação com o regime de perturbações e com a

capacidade de não se alterar perante uma perturbação (resistência) ou de retornar para condições próximas das iniciais após

a perturbação (resiliência) (MARGALEF, 1977; NAVEH et al., 2001). Deste modo, pode-se considerar que a estabilidade de

um sistema dependerá da relação que existe entre auto-organização e adaptação, onde o regime de perturbações estabelece

as condições de contorno para que o processo de adaptação ocorra e, através de mecanismos de resistência e resiliência,

persistir em um ambiente em constante mudança. Quando há uma mudança brusca no regime de perturbações o sistema

deriva para um novo estado de estabilidade.

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Como era o Pampa quando o ser humano aqui chegou?

A presença humana no Pampa provavelmente teve início no Pleistoceno, a cerca de 13.000 anos antes do presente

(AP) (KERN, apud BELLANCA & SUERTEGARAY, 2003; CONSENS, 2009), No período compreendido entre cerca de 18.000

e 12.000 anos AP imperava um clima mais seco e frio e nível do mar abaixo do atual (CARVALHO, 2003). De acordo com

Villwock (1989), o máximo da regressão marinha se deu a 14.000 anos AP, no terceiro ciclo regressão-transgressão do

Pleistoceno, atingindo a isóbata de 100m, praticamente expondo toda a plataforma continental. Mahiques et al. (2010)

revisaram dados sobre as últimas regressões, identificando evidências de que em cerca de 18.000 anos AP o nível do mar

determinava uma linha de costa que acompanhava a isóbata de 130m em relação ao nível do mar atual. No final do

Pleistoceno houve uma lenta transição climática com pelo menos três períodos de estabilização do nível médio do mar,

correspondendo, em relação ao nível atual, a terraços situados em profundidades entre 60 e 70m (cerca de 11.000 anos AP),

entre 32 e 45m (cerca de 9.000 anos AP) e entre 20 e 25m (cerca de 8.000 anos AP).

A combinação das informações disponíveis indica que no final do Pleistoceno predominava uma paisagem campestre

com rios em geral sem matas ciliares, povoada por uma fauna de vertebrados de grande porte (megafauna). Scherer & da

Rosa (2003) interpretando fósseis de mamíferos encontrados em sedimentos datados entre 11.740 e 14.830 anos AP,

descrevem o paleoambiente do final do Pleistoceno como aberto, úmido e frio. De acordo com Behling et al. (2005), com base

em análise do diagrama de pólen de amostra em São Francisco de Assis, a vegetação era predominantemente de campos,

dominados por Poaceae, com baixas percentagens de Cyperaceae, Asteraceae e outras ervas. Representantes de mata ciliar

e de vegetação aquática eram raros. A baixa representação de partículas carbonizadas demonstra que incêndios

espontâneos ocorriam raramente.

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Segundo Kerber & Oliveira (2008), os registros fósseis do Pleistoceno Superior da formação Touro Passo indicam uma

fauna de vertebrados que continha Propraopus sp. (um tatu gigante), Pampatherium typum (tatu gigante), Holmesina

paulacoutoi (tatu gigante), Glyptodontidae indet., Glyptodon sp., Glyptodon cf. G. reticulatus (os gliptodontes eram próximos

dos tatus, e chegavam a 3 metros pesando até duas toneladas), Panochthus sp. (gliptodonte de até 3 metros),

Neothoracophorus aff. N. elevatus (gliptodonte), Mylodontidae indet. (tipo de preguiça gigante), Canidae indet. (cão),

Hydrochoerus cf. H. hydrochaeris (capivara), Caviidae indet.(roedor), Toxodon sp. (notoungulado terrestre similar em

tamanho ao rinoceronte), Equidae indet. (cavalos e similares), Equus (A.) neogeus (similar ao cavalo atual), Hippidion sp.

(similar a um cavalo com tamanho de pônei), Morenelaphus sp. (cervo maior que os atuais), Antifer sp., Cervidae indet.

(cervo), Camelidae indet. (camelídeo, similar a lhama, guanaco), Hemiauchenia paradoxa (camelídeo de cerca de 1,80

metros de altura), Lama sp. (camelídeo, similar a lhama, guanaco) e uma forma indeterminada de Testudines (grupo das

tartarugas e similares). No Uruguai, estudos demonstram a ocorrência de mastodonte (Stegomastodon waringi; ALBERDI et

al., 2007; ALBERDI & PRADO, 2008). A megafauna de pastadores possuía a capacidade de controlar a sucessão vegetal e a

probabilidade de incêndios espontâneos através da redução da biomassa e do pisoteio, criando heterogeneidade de estádios

sucessionais na matriz campestre, transformando-a em um mosaico de manchas com intensidades de pisoteio/pastoreio

diferentes. Este efeito tem sido documentado e testado experimentalmente em parques africanos (WALDRAM et al., 2007).

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Primeiro Ciclo de Transformações Ambientais: Chegada do Ser Humano

Embora exista certa incerteza referente ao período da chegada do ser humano no Pampa riograndense28, pode-se

considerar que esta chegada torna-se significativa por volta de 12.000 anos AP. Sustentamos a hipótese de que a chegada

de seres humanos induziu nesta época à extinção da megafauna e à manutenção das paisagens abertas, porém com um

novo padrão de vegetação, estabilidade e perturbações. Os campos baixos dominados por geófitas adaptadas ao pastoreio

deram lugar para uma paisagem de campos altos dominados por hemicriptófitas adaptadas ao fogo. O novo regime de

perturbações se estendeu por um período de 4.000 anos (fase de mudanças), quando ocorreu a extinção da megafauna, e

estabilizou a nova fisionomia dos campos por um período de cerca de 7.600 anos (fase de estabilização), até a chegada do

gado europeu.

Os primeiros povos que chegaram Pampa, na região do rio Uruguai Médio, eram caçadores-coletores. Dadas as

características dos instrumentos líticos utilizados, incluindo pontas de projéteis e também pela presença de bolas de

boleadeiras, estes indígenas pré-colombianos foram classificados como da Tradição Umbu (BELLANCA & SUERTEGARAY,

2003). Os membros da Tradição Umbu ocupavam ambientes abertos, onde podiam caçar. Carvalho (2003) descreve que as

comunidades da Tradição Umbu enterravam seus mortos sobre cinzas, mesmo na presença de brasas. Eles não dominavam

o polimento de rochas. A presença de ossos de exemplares da megafauna em vários sítios de ocorrência de vestígios da

Tradição Umbu demonstra que estes caçadores predavam sobre a megafauna que povoava os campos (SUERTEGARAY &

28 De acordo com Behling et al. (2005) foram localizados artefatos líticos junto com ossos de megafauna em um sítio junto ao rio Ibicuí, datado de 15.400 anos AP. Outros sítios foram datados em 13.470 e 9.550 anos A.P. No entanto, Kern (1998, apud BELLANCA & SUERTEGARAY, 2003; DIAS, 2004) apresenta esta entrada do ser humano em 12.770 ± 220 anos A.P.

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PIRES DA SILVA, 2009). No noroeste do Uruguai foram encontrados vários sítios arqueológicos em que se encontram

evidências da exploração da paleofauna pelos primeiros habitantes da região (CONSENS, 2009). Aspecto importante é que

eles dominavam o fogo. De acordo com Kern (1994) e Schmitz (1996), citados em Overbeck et al. (2009), e Leonel (2000),

citado em Behling et al. (2009), provavelmente estes caçadores utilizavam o fogo para caçar. O fogo, nas caçadas, é utilizado

para conduzir a fauna em direção aos caçadores, reduzindo o gasto energético para a perseguição da caça e aumentando a

eficiência da mesma. Dias (2004), revisando os sítios do rio Uruguai Médio, cita que não foram encontrados ossos de

megafauna nos locais que ela considerou válidos, pois foram encontrados ossos de uma preguiça gigante (Glossotherium

robustus) no sítio datado em 12.770 anos AP, o qual não é totalmente aceito como sítio válido, uma vez que os artefatos

líticos encontrados podem ser de origem não humana. No entanto, realçou que os locais não foram investigados

intensivamente, pois as escavações foram efetuadas unicamente para obtenção de amostras para datação. Apesar desta

ausência de confirmação de caça de megafauna nos sítios citados em Dias (2004), existem descobertas na margem

esquerda do rio Quaraí, no Uruguai, que demonstram a caça de animais da megafauna pelos primeiros moradores do Pampa

uruguaio (17 espécies identificadas29), na fronteira com o Brasil (SUÁREZ, 2003; SUÁREZ & LÓPEZ, 2003; CONSENS,

2009).

Evidências, obtidas a partir de registros obtidos em testemunhos de sedimentos de turfeiras, permitem reconstruir a

história da composição da vegetação e da freqüência de incêndios e queimadas. O estudo de Behling et al. (2005), efetuado

em São Francisco de Assis, apresentado na Figura 1, nos permite fazer algumas observações. As datas da chegada dos

29 Glyptodon sp.; Stegomastodon sp.; Hemihauchenia paradoxa; Scelidoterium leptocephalum; Glossotherium robustus; Pampatherium humboldti; Toxodon platensis; Glyptodon clavipes; Hippidion principale; Equus neogeus; Megatherium americanum; Smilodon populator; Macrauchenia patachonica; Morenelaphus brachyceros; Morenelaphus lujanensis; Paraceros fragilis; Antifer ultra.

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primeiros habitantes (por volta de 12.000 anos AP) e da extinção provável da megafauna30 (por volta de 8.000 anos AP)

foram realçadas. Observa-se que a dominância dos campos ocorre em todo o perfil, mas diminui aproximadamente a partir de

5.000 anos AP, quando aumenta gradualmente a participação da vegetação de matas ciliares, indicada pela redução da

participação do pólen de espécies de campo. De acordo com Pillar (2003), o clima, em comparação com o presente, era mais

seco e frio até 10.000 anos AP, mais quente e estacional entre 10.000 e 4.000 anos AP passando, então, a mais frio e úmido,

aproximando-se do clima atual. Segundo Marchiori (2004), este aquecimento em relação ao Pleistoceno e umidecimento

ocorrido neste último período permitiram que a vegetação silvática penetrasse no Rio Grande do Sul, a partir de centros de

dispersão situados ao norte, através de duas rotas migratórias: uma litorânea e outra pelo interior do continente, ao longo dos

rios Paraná e Uruguai. O clima mais úmido e com baixa estacionalidade permitiu a implantação de vegetação florestal

primeiro ao longo da rede de drenagem e, a partir daí, nas vertentes, para então dominar sobre os campos.

Esta dinâmica é uma evidência contrária à hipótese climática para a extinção da megafauna (ver BURNEY &

FLANNERY, 2005). A teoria climática previa que a mudança climática mudaria a vegetação, tornando-a inadequada para a

megafauna. No entanto, observa-se que a penetração da vegetação silvática somente ocorreu de forma significativa a partir

de 4.000 a 5.000 anos AP, ou seja, pelo menos 3.000 anos depois da extinção da megafauna.

O mesmo palinograma nos traz informações sobre concentração e taxa de acumulação de partículas carbonizadas, que

nos conta a história da presença do fogo na região de São Francisco de Assis. Os dados nos mostram que a presença de

partículas carbonizadas era pequena mas constante até cerca de 12.000 anos AP, quando aumenta drasticamente e de

forma contínua até atingir um máximo por volta de 9.000 anos AP. A partir de então o carvão desaparece dos registros até

30 Segundo Kern (1997, apud PILLAR, 2003) a megafauna tornou-se extinta há 8.000 anos AP.

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cerca de 6.000 anos AP, quando retorna em taxas comparáveis às máximas anteriores e crescentes, com vários picos nos

últimos 1.000 anos AP. Quando comparam-se estes dados com a chegada dos primeiros seres humanos, a cerca de 12.000

anos AP, observa-se que existe uma sincronia entre o aumento da presença de partículas carbonizadas no período em que a

megafauna se extinguiu. Neste período também houve o predomínio de um clima mais quente e sazonal que deve ter atuado

sinergicamente com a redução rápida das populações de grandes herbívoros para facilitar a propagação do fogo e provocar

uma mudança na heterogeneidade da quantidade de biomassa inflamável.

O papel da megafauna na manutenção de vegetação herbácea rasteira de gramíneas, predominantemente geófitas

adaptadas ao pastoreio e pisoteio, e no controle das espécies cespitosas hemicriptófitas mais adaptadas ao fogo, já foi

experimentalmente demonstrado na savana (WALDRAM et al., 2007). Neste estudo a exclusão de rinocerontes tornou a

paisagem mais homogênea e mais sujeita à propagação de incêndios em grandes extensões. É provável que a redução das

populações da megafauna no Pampa tenham causado efeitos similares. Quando há uma mudança brusca no regime de

perturbações do sistema, como a ocorrida com a introdução do manejo humano do fogo para caça, de forma crônica e com

intensidade crescente, o sistema deriva para um novo estado de estabilidade, com ajustes que levaram à extinção da

megafauna e mudanças da fisionomia dos campos.

Após a extinção da megafauna, o fogo continuou a ser utilizado pelos indígenas da Tradição Umbu e por seus

descendentes, como os Charruas e Minuanos, para caça de animais de menor porte, como demonstrado na continuidade dos

registros de partículas carbonizadas do testemunho de São Francisco de Assis. É provável que em ambientes relictuais

abrigados dos incêndios as espécies adaptadas ao pastoreio e pisoteio tenham permanecido como uma reserva de

informação, de modo que tornou possível a adaptação dos campos ao novo ciclo de perturbações que se inicia com a

chegada dos europeus e sua biota acompanhante.

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Figura1 – Palinograma de São Francisco de Assis. Destacadas as prováveis datas de chegada dos primeiros indígenas da

Tradição Umbu e da extinção da megafauna. Adaptado de Behling et al. (2005).

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Segundo Ciclo: Chegada do Europeu

A paisagem dominada por campos altos de hemicriptóficas adaptadas ao fogo iniciou um novo ciclo de transformações

com a chegada de europeus e a introdução do gado. Missões Jesuíticas foram estabelecidas a partir de 1605, estancieiros

Lagunenses a partir de 1719 (ASSUNÇÃO, 2007). Em 1737 é fundada a primeira povoação oficial. Assim, cerca de 7.600

anos após a extinção da megafauna, os novos colonizadores trouxeram novos grandes herbívoros para o bioma Pampa,

principalmente bovinos e eqüinos.

Crosby (1993), revisando as conseqüências ecológicas da introdução de espécies exóticas na região pampeana,

registrou que em 1638, os jesuítas abandonaram uma estância com 5.000 cabeças de gado. De acordo com o mesmo autor,

o grande naturalista espanhol Félix de Azara estimou que no ano de 1700 haviam 48 milhões de cabeças de gado bovino no

Pampa. O jesuíta Thomas Falkner (apud CROSBY, 1993) descreveu que no ano de 1744 ele e quatro indígenas

permaneceram por quinze dias completamente cercados por cavalos asselvajados, de tão numerosos. O relato cita ainda que

em ocasiões as manadas eram tão grandes que passavam a pleno galope por três horas seguidas. Felix de Azara também

descreveu que a prática da queima anual dos campos, pastoreio e pisoteio estavam eliminando os capins mais altos e

abrindo espaço para invasoras como o cardo (Cynara cardunculus), malvas (Malva spp.) e outras invasoras. O naturalista

Charles Darwin descreveu centenas de quilômetros quadrados de áreas dominadas por cardos no Uruguai, impenetráveis

para cavaleiros (DARWIN, 2010). Na mesma obra, Darwin descreve os efeitos de uma grande seca ocorrida entre 1827 e

1830 em que, somente na Província de Buenos Aires, foram perdidas, no mínimo, um milhão de cabeças de gado, e que, na

ocasião, o país inteiro se aparentava a uma estrada poeirenta.

Esses quadros relatados por diferentes naturalistas, em diferentes épocas, permitem a construção de uma hipótese

sobre a dinâmica do sistema em resposta ao novo regime de perturbações. A descrição de Félix de Azara permite interpretar

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como se deu o ajuste da vegetação com a reintrodução de uma fauna herbívora de grande porte sobre campos que estavam

a 7.600 anos sem pressão de seleção pelo pisoteio e pastoreio. Pode-se imaginar que, logo após a disseminação do gado

bovino e eqüino sobre os campos, sem que houvessem predadores especializados e com ampla abundância de alimentos,

houvesse um crescimento exponencial das populações, as quais rapidamente, sobre um período de 42 anos, passaram de

5.000 cabeças para 48 milhões de cabeças (taxa anual de crescimento exponencial de 17,8%).

O crescimento populacional acelerado das populações asselvajadas de gado bovino e equino, associado ao fogo

utilizado pelos índios para caça e estancieiros para renovar a pastagem, deve ter causado uma grande pressão sobre as

espécies de hemicriptófitas que dominavam os campos. É provável que tenha ocorrido uma grande perda de cobertura

vegetal. A redução cobertura vegetal pode ter criado as condições para a expansão de espécies oportunistas, incluindo os

cardos exóticos. Da introdução do gado no Pampa em 1638 até a viagem de Darwin, passaram-se 194 anos. Neste período,

ainda havia sinais de que os campos não haviam conseguido ajustar sua composição para o novo regime de perturbações

estabelecido, como pode ser deduzido da baixa cobertura vegetal em alguns lugares e de grandes extensões de terras

cobertas por cobertura homogênea de oportunistas exóticas. No entanto, gradualmente as espécies geófitas, que dominavam

os campos no final do Pleistoceno, foram se disseminando e permitindo a existência de uma cobertura vegetal contínua e

resistente a seca, ao pisoteio e pastoreio. O fogo foi utilizado pelos estancieiros para controlar o processo de sucessão.

É provável que o processo de ajuste tenha sido alcançado em algumas regiões do Pampa, estabelecendo uma nova

fase de estabilidade. No entanto, também é provável que a maior parte do Pampa não tenha tido tempo suficiente para que

esta fase de estabilidade se implantasse plenamente. Isto porque o regime de perturbações não permaneceu relativamente

constante por período suficiente. As mudanças econômicas e o crescimento populacional humano tiveram um papel

coadjuvante neste processo.

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Durante este período, diversas fases foram regulando o manejo dos campos. Na primeira fase, manadas de gado

asselvajado (reiúno), eram caçados (preia) pelos changadores (gaudérios) e indígenas remanescentes das missões

jesuíticas, que se utilizavam do gado para alimento, obtenção do couro para vestuário e construção dos toldos, assim como

por estancieiros para a indústria do charque, exportado para a região sudeste do Brasil (ASSUNÇÃO, 2009).

Em uma segunda fase os indígenas já haviam sido aniquilados e os sobreviventes incorporados nas estâncias e

ocorreram mudanças na legislação de terras (Lei de Terras de 1859, citada em CHELOTTI, 2010; SUERTEGARAY & PIRES

DA SILVA, 2009), que obrigaram ao cercamento das propriedades. Tornou-se então possível um manejo de lotação que,

associado com o fogo, permitiu uma maior estabilização do regime de perturbações e favoreceu o estabelecimento de uma

nova fase de estabilidade na composição dos campos com dominância de uma cobertura de geófitas com hábito rasteiro.

Quando em lotação adequada estes campos permitem a persistência de uma grande biodiversidade.

Uma terceira fase pode ser identificada a partir da segunda metade do século XX, por necessidades econômicas ou

por pressão da política fundiária. Nesta fase a estabilidade é rompida por excesso de lotação, gerando uma redução da

cobertura vegetal e resultando em campos degradados, com perda elevada de biodiversidade. Estes campos degradados

tem sua produtividade em carne reduzida e oferece a oportunidade para que o terceiro ciclo de transformações ambientais

avance sobre o Pampa: as atividades agrícolas industriais.

Cabe realçar a escala temporal das mudanças decorrentes do novo regime de perturbações. As duas fases, de ajuste

e estabilização, ocorreram em um período de cerca de 400 anos, possivelmente com cerca de 200 anos para cada uma

(escala de centenas de anos). Ou seja, em uma velocidade muito maior do que aquela que decorreu do primeiro ciclo de

transformações, que ocorreu em escala de milhares de anos.

Este segundo ciclo de transformações ambientais tem importância cultural para o Rio Grande do Sul. Foi em torno das

duas primeiras fases, que duraram praticamente 350 anos, que foi forjado o tipo humano do Gaúcho, através da atividade das

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estâncias, da miscigenação entre brancos, índios e negros e através da incorporação de elementos culturais destes três na

cultura gaúcha. A cultura do gaúcho é de ambientes abertos. A palavra Pampa, de origem na língua trazida dos Andes pelos

primeiros povoadores da Tradição Umbu, o quéchua, significa ambiente plano e aberto (SUERTEGARAY & PIRES DA

SILVA, 2009).

A paisagem aberta é herança do clima e do ser humano, que maneja estes campos a 12.000 anos. O clima atual é

florestal (BURIOL et al., 2007), ou seja, se não houvesse manejo humano, uma grande proporção do Pampa seria coberta

por florestas. A dominância da vegetação campestre é mantida por um processo de manejo que implica em um sistema de

perturbações que provoca regressão no processo de sucessão que, se não houvesse manejo, levaria a uma substituição do

bioma Pampa pelo bioma Mata Atlântica, com ritmos diferenciados, dada a heterogeneidade de solos que ocorre na região.

Pode-se assim dizer que o Pampa que existe hoje, e que deve ser preservado, gerou e foi gerado pelo gaúcho. Pode-se

afirmar que houve uma co-evolução entre a cultura do gaúcho e o sistema de campos atual do bioma Pampa.

Terceiro Ciclo: Agricultura industrial

O terceiro ciclo, envolve um processo perda e fragmentação dos campos naturais do bioma Pampa e sua substituição

por uma matriz de agroecossistemas. De acordo com MMA (2007), a velocidade de substituição de ecossistemas de campo

por agroecossistemas é de 60% da área original em 60 anos. Restam somente 40% da área original, sendo que destas

somente 22% são campos nativos, 5% são florestas, 13% mosaicos de campos e florestas. Entre 11 a 13% destes

remanescentes encontram-se em bom estado de conservação. O ritmo das mudanças está, portanto, na escala de décadas.

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Diferentemente dos ciclos anteriores, que tenderam a novos padrões de estabilidade ajustados a diferentes regimes de

perturbações, este novo ciclo envolve a substituição do ecossistema de campo por outro ecossistema: o agroecossistema. É

um regime de perturbação tão intenso que descaracteriza completamente o sistema de campo.

De acordo com Overbeck et al. (2009), a cultura do milho cresceu sobre os campos do sul do Brasil de 1,4 para 11,8

milhões de toneladas entre 1940 e 1996. No mesmo período, o soja aumentou de 1.530 toneladas para 10,7 milhões de

toneladas. O trigo, de 95 mil para 1,4 milhão de toneladas. Segundo os autores, este aumento de produção se deu,

principalmente em cima de áreas de campo. Nas várzeas, o grande avanço da orizicultura provocou quase a extinção dos

ecossistemas de banhados, sendo que os remanescentes, na sua maior parte, estão muito fragmentados e alterados

(CARVALHO & OZORIO, 2007). Este avanço da agricultura sobre os campos se dá em resposta à revolução verde, a

implantação do capitalismo no campo e a integração entre a indústria mecânica e química com a agricultura. Com taxas de

retorno por unidade de área maiores que a pecuária tradicional em campos degradados pelo mau manejo de lotação,

rapidamente os campos passaram a ser utilizados, geralmente através de arrendamento, para a agricultura empresarial.

Enquanto que o efetivo pecuário de bovinos na região da Campanha, no Rio Grande do Sul (IBGE, 2011a), estabilizou-

se entre 4 e 5 milhões de cabeças entre 1990 e 2006, a produção de grãos se expandiu de 300.000 para 500.000 hectares

de área colhida (IBGE, 2011b). Estes dados sugerem um aumento de lotação de gado nos remanescentes de campo nativo

(BENCKE, 2009; CARVALHO et al., 2009). Segundo Overbeck et al. (2009), para manter esta maior lotação, há um aumento

das pastagens cultivadas e da introdução de espécies exóticas em plantio direto sobre campo nativo (“melhoramento de

campo”). Uma das espécies introduzidas na década de 1950 foi o capim-anonni (Eragostis plana), que tem mostrado grande

potencial invasor sobre campos nativos pastejados (pelo menos 400.000 hectares invadidos), com perda de qualidade

forrageira e de biodiversidade (OVERBECK et al.; op.cit.).

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Ainda neste ciclo pode ser caracterizada uma nova fase, marcada pelo esgotamento do modelo tradicional de pecuária

extensiva e progressiva degradação e desvalorização das as áreas de campos, tornando-as atrativas para empresas de

silvicultura. Entre 2002 e 2008, a área de silvicultura aumentou em 30% no Rio Grande do Sul, a maior parte sobre campos

(BENCKE, 2009). Na região sudoeste do RS, apenas uma empresa, a Stora Enso adquiriu 50.000 hectares para plantio de

eucalipto (SUERTEGARAY & PIRES DA SILVA, 2009). A silvicultura é menos susceptível às secas e apresenta portanto

menos pressões de controle do que os cultivos anuais. A expansão da silvicultura produz uma radical transformação da

paisagem pela introdução de um elemento novo na matriz – a presença de maciços florestais em substituição aos

ecossistemas abertos que caracterizam a região a pelo menos 15.000 anos.

Estas transformações foram ainda acompanhadas pelo estabelecimento de espécies exóticas invasoras, A primeira

revisão sobre a presença de espécies vegetais exóticas no Bioma Pampa na Argentina, Brasil e Uruguai registrou a presença

de 356 que conseguiram estabelecer populações espontâneas em campos naturais, a maioria delas introduzidas de forma

intencional (GUADAGNIN et al. 2009).

O efeito da perda e fragmentação dos hábitats e invasão por espécies exóticas é a perda da biodiversidade. Boldrini

(2009) cita que 213 espécies da flora de campos nativos estão ameaçadas de extinção. Destas, 146 são exclusivas do bioma

Pampa e 28 ocorrem tanto neste como nos campos do bioma Mata Atlântica. Bencke (2009) elenca 21 espécies da fauna

ameaçada de extinção do Rio Grande do Sul como habitantes obrigatórias de campos nativos e outras 11 espécies são semi-

dependentes, utilizando outros hábitats. Considerando outras espécies que usam ecossistemas associados ao campo nativo,

chega-se a 49 espécies ameaçadas.

Uma das conseqüências culturais destas transformações ambientais é o processo de desterritorialização (CHELOTTI,

2010) do Gaúcho, acompanhado de uma territorialização de um empresariado rural. A base objetiva sobre a qual se construiu

a co-evolução do gaúcho e do Pampa se rompe com a substituição da estância pela granja. Existe o risco de erosão do

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 170

patrimônio cultural, que somente não é maior porque ainda existem fortes movimentos culturais (tradicionalismo) e ainda

sobrevivem práticas tradicionais em algumas propriedades.

Quarto Ciclo: Mudança Climática Induzida pelo Ser Humano

O clima global apresenta uma tendência de aquecimento, com importantes conseqüências para a sociedade e a

biodiversidade. A Figura 2 apresenta um conjunto de estimativas relativas à temperatura média mundial para os últimos 2.000

anos. Observa-se que a temperatura em 2004 ultrapassa a média verificada no período mais quente da Idade Média. A

maioria dos cenários resultantes de inúmeros modelos rodados de forma independente e relatados pelo IPCC (IPCC, 2007;

SOLOMON, 2007) demonstram tendências de aquecimento global, ainda que persistam algumas incertezas. O clima é

resultante de complexas relações entre a quantidade de radiação recebida do sol, sua absorção heterogênea na superfície do

planeta e a movimentação do envoltório fluído, que transporta energia do Equador para os pólos. Modificações no uso da

terra, com correspondente mudança no albedo, associadas ao acúmulo de gases do efeito estufa, resultantes do

desmatamento, da queima de combustíveis fósseis, podem sinergicamente modificar as relações complexas que existem

entre os oceanos e as massas de ar e mudar o clima da Terra.

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Figura 2 – Temperatura média medida (linha preta) e dez séries reconstruídas (estimadas de temperatura média global.

Fonte: Rhode (2005).

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE (MARENGO, 2007) tem apresentado estudos que detalham para a

realidade brasileira os cenários produzidos pelo Painel Intergovernamental para Mundaça Climática – IPCC. Dependendo do

cenário de emissões de gases de efeito estufa até 2100, a temperatura global média à superfície pode subir de 1,5 ºC até 5,5

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ºC. Avaliações subjetivas, que são tomadas como referência, estimam que aumentos da temperatura média global acima de

3 ºC teriam grande potencial para causar severos danos na economia.

Na Bacia do Prata, onde se encontra o Pampa, o cenário A2, de alta emissão de gases do efeito estufa, sugere que

poderiam haver aumentos na precipitação da ordem de 1 a 5 mm por mês, e aumento de temperatura média de cerca de

cerca de 3 a 5 ºC. No entanto, o aumento da precipitação causaria um forte aumento na evapotranspiração durante os meses

de maior déficit hídrico, tornando o clima mais sazonal que o atual, com possíveis impactos negativos sobre a agricultura e

geração de energia. O aumento da temperatura também pode transferir os limites geográficos de distribuição de espécies

praga e de vetores de doenças tropicais mais ao sul, exigindo adaptação das culturas (MARENGO, 2007).

Embora exista muita incerteza quanto ao futuro, a aplicação deste cenário sobre o Pampa remete a uma savanização do

clima – tendência de um clima mais quente, com chuvas sazonais. O balanço entre espécies C3 e C4 seria alterado e haveria

uma grande extinção de espécies, talvez em parte substituídas por outras em dispersão desde regiões tropicais. A Figura 3

apresenta uma simulação sobre diagrama climático da que seria a trajetória do clima considerando este cenário. O ponto de

partida seriam campos temperados. Na representação, a localização do mesmo é aproximada.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA AMBIENTAL DO PAMPA: PROPOSTA DE UMA ABORDAGEM BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE PERTURBAÇÃO E MUDANÇA 173

Figura 3 – Trajetória do clima, de acordo com o cenário IPCC A2 (alta emissão) para a cidade de São Gabriel, situada no Pampa

Gaúcho, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Fonte: adaptado de Ricklefs (1996).

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Comentários finais

Neste estudo apresentamos uma proposta de sistematização da história ambiental do Bioma Pampa no Rio Grande do

Sul, enfatizando os diferentes regimes de perturbações resultantes da interação entre o clima, os campos naturais e sua biota

e o ser humano. Foram propostos 4 ciclos de transformações ambientais:

• Ciclo 1: Entrada do ser humano. Escala temporal: milhares de anos. Resposta adaptativa da biota.

• Ciclo 2: Chegada do europeu. Escala temporal: centenas de anos. Restauração e co-evolução – criação do Pampa e

do Gaúcho.

• Ciclo 3: Agricultura industrial. Escala temporal: dezenas de anos. Perda e fragmentação de hábitats naturais e

introdução de espécies exóticas. Substituição de ecossistemas nativos por agroecossistemas. Escala temporal:

dezenas de anos.

• Ciclo 4: Savanização do clima pela mudança climática e desaparecimento dos campos como são hoje conhecidos.

Escala temporal: dezenas de anos.

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Todo esforço de síntese ajuda nas tarefas de gerar novas perguntas e alimentar as discussões, bem como facilitar a

transmissão do conhecimento para a população em geral. Por outro lado, toda síntese envolve generalização e esta, uma

certa subjetividade dos autores para selecionar os aspectos sistêmicos mais relevantes para a construção do modelo

conceitual. Deste modo, este modelo pode ser reconstruído por autores com outro ponto de vista.

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