CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

12
101 MONTEIRO, R. H. e ROCHA, C. (Orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012 ISSN 2316-6479 CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO PROCESSO PICTÓRICO DE REGINA CHULAM Jorge Luiz Mies [email protected] PPGA/UFES Angela Grando [email protected] PPGA/UFES Resumo Este texto trata de uma questão pontual no conjunto da obra da artista capixaba Regina Chulam. O foco de nossa análise aponta para os trabalhos em que a colagem se converte no elemento norteador da estrutura geral da linguagem pictórica da artista. Acreditamos que ao trabalhar com os princípios que deram vida a colagem cubista e ao transitar pela expressividade informalista, a artista tanto engenha um espaço que se retroalimenta da pluralidade de problemas pictóricos herdados como, também, assinala um estilo que se afirma. Palavras-chave: Regina Chulam, colagem, matéria, processo de criação. Abstract This text discusses a specific question in the work as a whole of the artist Regina Chulam, from Espírito Santo, Brazil. Our analysis focuses on the works in which informal collage becomes the element that guides the general structure of the pictorial discourse of the artist. We believe that by working with the principles that gave life to cubist collage and by walking through informal expressivity, Chulam conceives a space that nurteres itself of the plurality of inherited pictorial problems, at the same time that she signalizes a style that becomes established. Keywords: Regina Chulam, collage, matter, process of creation. Em 2011, a artista capixaba Regina Chulam (Vitória, 1950) recebeu em seu ateliê a visita de Gilberto Chateaubriand, um dos maiores colecionadores de arte do país. O colecionador adquiriu sete quadros e quinze desenhos. Atualmente, duas telas se fazem presentes na exposição “Novas Aquisições 2010/2012” no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). A mostra, com curadoria de Luiz Camillo Osorio, ao apresentar 64 artistas de diversas regiões do país, os vincula às referências históricas e visuais. Regina Chulam, que já apresenta uma trajetória de quase 40 anos no ofício da pintura, coloca-se no cenário nacional “da nova constelação poética da cena contemporânea brasileira”, como se refere o curador aos novos artistas presentes na coleção de Chateaubriand. Inspirada tanto pela diversidade construtiva do espaço modernista quanto pela herança cezanniana da cor, Regina Chulam, desde o início de sua trajetória na década de 1980, trabalha com elementos de colagem aplicando-os à superfície do suporte: fragmentos de papéis e pedaços de tecido se misturam ao pigmento enquanto meios de explorar a planaridade da superfície pictórica.

Transcript of CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

Page 1: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

101

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO

PROCESSO PICTÓRICO DE REGINA CHULAM

Jorge Luiz [email protected]

PPGA/UFES

angela [email protected]

PPGA/UFES

Resumoeste texto trata de uma questão pontual no conjunto da obra da artista capixaba regina chulam. o foco de nossa análise aponta para os trabalhos em que a colagem se converte no elemento norteador da estrutura geral da linguagem pictórica da artista. acreditamos que ao trabalhar com os princípios que deram vida a colagem cubista e ao transitar pela expressividade informalista, a artista tanto engenha um espaço que se retroalimenta da pluralidade de problemas pictóricos herdados como, também, assinala um estilo que se afirma.Palavras-chave: regina chulam, colagem, matéria, processo de criação.

AbstractThis text discusses a specific question in the work as a whole of the artist Regina Chulam, from Espírito Santo, Brazil. Our analysis focuses on the works in which informal collage becomes the element that guides the general structure of the pictorial discourse of the artist. We believe that by working with the principles that gave life to cubist collage and by walking through informal expressivity, chulam conceives a space that nurteres itself of the plurality of inherited pictorial problems, at the same time that she signalizes a style that becomes established.Keywords: regina chulam, collage, matter, process of creation.

em 2011, a artista capixaba regina chulam (Vitória, 1950) recebeu em seu ateliê a visita de Gilberto chateaubriand, um dos maiores colecionadores de arte do país. o colecionador adquiriu sete quadros e quinze desenhos. atualmente, duas telas se fazem presentes na exposição “novas aquisições 2010/2012” no Museu de arte Moderna do rio de Janeiro (MaM-rio). a mostra, com curadoria de Luiz camillo osorio, ao apresentar 64 artistas de diversas regiões do país, os vincula às referências históricas e visuais. regina chulam, que já apresenta uma trajetória de quase 40 anos no ofício da pintura, coloca-se no cenário nacional “da nova constelação poética da cena contemporânea brasileira”, como se refere o curador aos novos artistas presentes na coleção de chateaubriand.

inspirada tanto pela diversidade construtiva do espaço modernista quanto pela herança cezanniana da cor, regina chulam, desde o início de sua trajetória na década de 1980, trabalha com elementos de colagem aplicando-os à superfície do suporte: fragmentos de papéis e pedaços de tecido se misturam ao pigmento enquanto meios de explorar a planaridade da superfície pictórica.

Page 2: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

102

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479Suas pinturas refletem uma extensa e ininterrupta experimentação, que vai

permitir a ampliação de meios expressivos culminando num processo de busca incessante pela expressividade da cor, do gesto e da matéria. na escolha de ferramentas e suportes do legado da pintura européia, expandem-se as formas e a materialidade do espaço de seus quadros. assim, ao compararmos suas obras atuais com as que realizou no início de sua carreira, mesmo considerando a variedade do conjunto, perceberíamos as transformações e o amadurecimento de seu processo criativo. Sua obra, assim como a de qualquer artista totalmente entregue ao seu ofício, reflete orientações plásticas desdobradas em sucessivas etapas de pesquisa.

o trabalho de chulam ganhou fôlego quando ela ingressou na escola Superior de Belas artes de Lisboa (eSBaL) em 1976, período pós-revolucionário e de profundas mudanças no ensino artístico lusitano. em 1981, a artista obtém a Licenciatura em Pintura. neste período, Portugal já começava a estabelecer uma atmosfera democrática e promover as transformações sociais, que passaram a ser possíveis após a revolução do 25 de abril de 1974, data que marcou o fim do regime salazarista. Percebe-se que Chulam escolheu e agregou a seu trabalho influências estéticas do século XX: o rigor compositivo da geometria e a matéria de cor de Paul cézanne; o estudo do espaço e os benefícios da técnica da colagem, decorrentes da investigação do processo cubista; e o acúmulo de materiais na superfície da tela como uma necessidade expressiva.

Sabemos que o pintor italiano cennino cennini em seu trattato de pittura, atribuído ao decênio de 1390, apontou como herança de Giotto: “o fundamento da arte e o princípio de todos os labores de mão são o desenho e o colorir. estas duas partes desejam o seguinte: saber triturar ou macerar, colar, empanar, engessar e raspar os gessos e os polir [...]”(cennini, apud KoSSoVitcH, 1988, p. 183). Podemos perceber que a herança deixada pelo mestre renascentista foi aplicada ao longo da história da arte por grandes artistas que entenderam que a arte requer um (re)aprendizado constante no manuseio dos materiais e na sua aplicação técnica. Por exemplo: em nossa época, a arte contemporânea, entre outras questões, ao exigir novas formas e materiais, solicita um novo olhar do artista sobre os procedimentos já consagrados pela história, resgatando técnicas e as reinventando; mas, sobretudo, ampliando o campo expressivo da arte em acordo com direções dinâmicas e convergentes, que são a arte e a Vida.

a técnica da colagem, prática que se incorporou nas artes visuais no século XX com as obras cubistas de Pablo Picasso e Georges Braque, libertou o artista das limitações do suporte e o convidou a construir sua pintura sobre o plano, travando aí um debate no centro da problemática a que chamamos

Page 3: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

103

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479“tradição”. A partir do cubismo, o quadro se configura para acolher, segundo

o historiador da arte Giulio carlo argan, “elementos retirados diretamente da realidade; uma das inovações técnicas mais sensacionais é, de fato, a aplicação de pedaços de papel, de tecido etc.” (arGan, 1992, p. 305). a introdução desses elementos na pintura deu origem ao papier collé, uma forma particular de colagem que tornou o espaço da pintura viável e habitável. a prática de colar papel permite a manipulação desse material pelo artista, que inserido no processo de construção do objeto proporciona à materialidade do quadro diferentes cores e texturas, tanto visuais como táteis. o papier collé, pertencente a uma inovadora concepção de espaço moderno, motiva a experimentação estética do fazer artístico, se concentrando cada vez mais na atividade do olho e da mão, o que ocasionou no percurso da história da arte uma abertura a novos meios de expressão.

a técnica cubista, como mostra argan, torna-se, a partir de 1910, uma prática que se amplia nas vanguardas européias em processos variados, desdobrando-se em construções, justaposições e acumulações de objetos (arGan, 2010). a colagem, ao tornar o quadro um objeto real, traz para atividade do artista a problemática da matéria como linguagem. a matéria se converte em linguagem ao deixar-se manipular pelo artista lhe oferecendo um campo de possibilidades infinitas. Para Argan, a relação matéria-artista só se concretiza por uma questão de identificação. E nas reflexões do historiador “tudo o que se vive torna-se matéria; logo a matéria é memória” (arGan,1992, p. 542), portanto, a matéria pictórica é tudo o que existe no mundo e habita o espaço da obra para construí-la.

essas questões reverberaram em poéticas da arte européia, entre 1950 e 1960, visualizadas em antoni tàpies e em Jean Dubuffet, por exemplo. esses artistas foram defensores de uma pintura com novos espaços plásticos, estabelecidos pelo constante diálogo com a cor e a matéria. Uma pintura em que a matéria se converte em protagonista rompendo com os meios tradicionais. oriundas da arte moderna, essas poéticas conceberam a superfície da tela como um solo fértil de experimentação contínua, transformando os meios em opções de escolhas segundo seus interesses. Um fazer arte que em sua constante renovação modernista não recusa a grande tradição dos mestres e investiga novas técnicas e materiais, ou seja, uma atividade que solicita conexões entre o passado e o presente e, particularmente, com vida que pulsa ao redor do artista.

regina chulam, em suas aulas de pintura na eSBaL, passou a introduzir o papel de seda em seus trabalhos. isto ocorreu após o contato da pintora com

Page 4: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

104

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479as obras de Francisco Ferraras em uma visita à Madrid. nas composições

do artista espanhol, as colagens com o referido papel se tornaram um meio de expressão plástica: o papel de seda age em sua pintura alcançando contrastes cromáticos essenciais no jogo de tensão entre claro e escuro. a artista brasileira, à medida que convive com o trabalho de Ferraras, não somente inicia experimentos com este material como o torna imprescindível em seus trabalhos, descobrindo uma forma de aplicá-los sobre a superfície sem enrugá-los e de como sobrepô-los para conseguir as entre cores. É a colagem que permitirá a artista compreender melhor as passagens de cor e de tons, levando-a mais tarde a trabalhar com camadas de tinta muito diluídas, alcançando as transparências tão almejadas.

nos primeiros anos da década de 1980 tintas, papéis e tecidos dialogaram constantemente em suas pinturas e desenhos. a artista buscou em cada trabalho soluções visando à estrutura da composição, se aproximando das lições cubistas e de seus desdobramentos. Sem dúvida, seu trabalho de então refletiu absorções experimentais de ideias das vanguardas artísticas e, ao transformar as influências em conteúdo pictórico com rigor próprio, vai construindo uma poética singular que traz sua marca. Percebemos que as colagens de chulam, ao assimilar tanto a linguagem cubista como a informal, ganham uma materialidade que se processa em camadas justapostas e sobrepostas, construindo uma trama espacial que se dinamiza através de áreas claras, escuras e de transparências, favorecidas pelo papel de seda. neste contexto, é ele quem vai garantir às composições da artista texturas visuais e táteis, permitindo que forma e cor interajam através da superposição das tiras de papel colorido e das áreas sugeridas por elas.

É importante compreender que na trajetória da obra as incursões em direção à abstração são resultados de experiências de uma pintura que solicita estrutura composicional. Por exemplo, percebemos em seu trabalho a influência de tápies e Ferraras, mas percebemos também que chulam se mantém atenta aos efeitos estéticos que os materiais proporcionam, particularmente na textura e na superfície. Seus espaços compositivos lançam mão de duas camadas de materiais: os papéis de seda e as tintas, os obrigando a estarem juntos, colados. o que pode ser visto e discutido lançando o olhar sobre algumas de suas telas que iremos comentar.

as obras Composição rosa (fig. 1) e Sem título (fig. 2), servem para explanar, sinteticamente, tais discussões. na primeira, a sobreposição do papel de seda em formas retangulares, sobre a tinta heterogeneamente espalhada pela superfície, constrói um espaço rarefeito, transparente e texturizado. a linha

Page 5: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

105

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479obsessiva de chulam, que corre pela extensão da tela, ao mesmo tempo em

que reforça a verticalidade da composição quebra-a, ajudando a decompor a superfície em áreas mais ou menos luminosas. O jogo caligráfico (letras e números) presente em Composição rosa pertence a um fragmento da realidade inserido no quadro, e se mostra como um título suposto para a pintura, que além de reafirmar a planaridade do suporte, ressalta a verdadeira função do material: ampliar e suprir as necessidades pictóricas e expressivas do artista, o que ocorria também nas telas cubistas.

o espaço matérico de Sem título é arquitetado pelas sobreposições de quadrados que definem o ritmo compositivo do espaço, tanto pelo percurso do contorno quanto pelo conteúdo planar que as cores criam. o vermelho e o preto, ao mesmo tempo em que sustentam a composição, são também os responsáveis pelos contrastes com o branco e o acinzentado, ocasionado pela manipulação do papel de seda. texturas táteis e visuais são oferecidas pelo enrugamento do componente plástico e pela sensação de trabalho “inconcluído”, o que valoriza ainda mais a presença expressiva da matéria. esta composição já se mostra como uma experiência fundamental das indagações poéticas em sua pintura: cores, novas formas e materiais adversos.

Figura 1. composição rosa, 1981.

técnica mista sobre tela, 70 x 50 cm. coleção Luisah Dantas, Vitória.

Foto: Jorge Luiz Mies.

Page 6: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

106

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479

Figura 2. Sem título, 1982.

técnica mista sobre tela, 79,5 x 60 cm. coleção Luisah Dantas, Vitória.

Foto: Jorge Luiz Mies.

Já em Café da manhã (fig. 3), a artista atua com os princípios que deram vida a colagem cubista e emprega diferentes papéis concedendo valor plástico ao material. Pedaços retangulares de papel de seda são aplicados à superfície, obtendo um arranjo espacial que reforça a fragmentação dos planos no processo de construção dos objetos. as tiras de papel estampado, que apresentam uma função decorativa, dão à obra certa atmosfera de intimidade. ao serem justapostos horizontalmente em relação à garrafa, provocam uma sensação de relevo destacando o objeto representado em primeiro plano. a sobreposição dos papéis de seda sobre o papel estampado, na parte inferior da composição e sobre o fragmento escrito presente no bule, reforçam a transparência do material utilizado. o fundo preto e azul, área plana e abstrata de cor, destaca toda a construção em papel e intensifica o ilusionismo pictórico ao transmitir uma sensação de desprendimento dos objetos da tela.

Page 7: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

107

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479

Figura 3. café da manhã, 1982.

técnica mista sobre tela, 50 x 70 cm. coleção Silvia cohen, Vitória.

Foto: Jorge Luiz Mies.

Percebemos nas três telas, até então discutidas, que chulam associa o valor plástico da matéria ao seu fascínio pela geometria, numa expressão especificamente pictórica. Suas pinturas se constituem como experiências nas quais as formas geométricas, as superposições de planos e combinações de tons criam quadros dentro de um eixo modernista, o que exigirá da artista continuamente problematizar sua prática pictórica na intencionalidade de mergulhar em preceitos de projeção do contemporâneo.

a tentativa de dominar certos materiais está diretamente ligada ao que o artista deseja expressar. ao exercer seu domínio sobre o material, o pintor se torna conhecedor de suas funções e possibilidades de manipulação, alargando sua experimentação plástica e experiência estética. a matéria artística tem memória e chulam traz às suas obras esses registros ao se apropriar das técnicas e dos materiais utilizados por artistas modernos, que trabalharam suas práticas de modo solitário, mesmo sobre certas influências. Chulam também constrói sua poética, depura sua técnica solitariamente. Se os trabalhos iniciais da década de 1980 serviram para assimilar linguagens plásticas e aprofundar concepções estéticas, na década de 1990 a artista reorganiza sua trajetória pictórica compondo telas de altíssimo rigor formal e matérico. a pintora declara:

eu penso que na década de 90 [...] vou para a experiência mais segura daquilo que quero. antes eu andava um pouco perdida, mas procurando coisas sempre diferentes. [...] eu vou sempre experimentar. Fico fascinada quando descubro coisas novas para mim. [...] Quando me encanto com alguma coisa e quero fazer ou representar aquela coisa, eu procuro em que material que ela ficará melhor.

Page 8: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

108

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479Percebemos que sua reflexão afirma a necessidade de uma expressão

questionadora de seu trabalho estético, enriquecida pelas sugestões emotivas da matéria. a partir dos anos 1990, toda a sua pintura se reformula em estruturas que se fazem numa trama sensível de linhas e num tecido cromático rico em acumulações e manchas de cor. cada série engendrada produz um imaginário capaz de dar lugar a um discurso pictórico que encontra nos materiais os argumentos de uma incessante interrogação plástica. cada obra passa a ser uma nova descoberta que se desdobra em outras obras sempre esclarecendo, confirmando, recriando ou criando trabalhos já realizados

em 1998, a artista trabalha na estrutura compositiva da série Simplicity, na qual adensa as superfícies quadrangulares dos quadros uma massa feita à base de pó de mármore para esculpir distintos corações. Percebemos então, um domínio técnico possibilitado pela compreensão do material utilizado ao indagar a sua densidade plástica. o interesse de chulam por novas formas de expressão, realizadas principalmente com a colagem, descortina uma inquietação sugerida pela presença real dos materiais, o que direciona e vai marcando o ritmo de toda a sua obra.

as duas séries que iremos abordar, concluídas na década de 2000, constituem uma experiência que se submete as formas abstratas da geometria, a superposição de planos e a combinação de tons realizada pelo manuseio do papel. Vemos nestas séries o cuidado na preparação das superfícies nas quais cola papéis e pinta. a forma com que a pintora estrutura o espaço, que num primeiro momento pode parecer um amontoado de curvas e pontos sem vínculos, após uma apreciação atenta revela uma cuidadosa operação marcada pelas colagens de papel que estruturam o caos aparente das linhas e dos pontos.

nas séries Princípio da Incerteza (2002) e Coisa.Movimento (2006), percebemos o diálogo da artista com um universo poético que traz à tona um espaço plástico fragmentado e contaminado pelo acaso e pela improvisação. Sabemos que Pollock, com a action painting, criou uma grande transformação da representação gráfica da pintura tradicional ao engendrar obras por meio de uma ação não-projetada. o movimento do corpo, que gira ao redor do suporte posto no chão, e o gesto intenso e frenético da mão resultam num emaranhado rítmico de linhas e cores. Sua pintura de ação, dimensionada pela técnica do dripping, libertou a composição das leis da lógica solicitando o enfrentamento de acontecimentos inesperados, mesmo realizando um trabalho consciente ao escolher e dosar a quantidade de cor que cai sobre a tela (arGan, 1992).

chulam, nestas séries, ao se deixar inclinar no eixo herdado pela action painting, alarga seu campo de atuação questionando esta prática pictórica

Page 9: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

109

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479e cruzando-a com linguagens já assimiladas e postas em prática. em vista

disso, para elaborar a série Princípio da Incerteza, a artista recorta pedaços quadrangulares de papel de seda de cores neutras, espalha-os horizontalmente e em seguida salpica tinta em cima dos recortes, deixando visualmente a incerteza sobre o que vai acontecer. Logo depois, a presente falta de certeza é restabelecida pela consciente organização dos fragmentos soltos sobre a superfície da tela, apresentando variadas possibilidades de disposição. ao distribuir ordenadamente os papéis sobre o suporte, chulam cria uma sequência rítmica que lhe permite explorar as transparências por meio da sobreposição dos papéis.

Mas é com a série Coisa.Movimento que a artista experimenta as possibilidades de um gesto mais livre, ao pintar pedaços de papéis coloridos não mais com respingos de tinta, mas em movimentos contínuos que formam linhas pela mão embebida de matéria. assim, a pintora se afasta dos pincéis e do cavalete e vai preferir o movimento do corpo, que circula a mesa ou o chão em que se encontram os fragmentos. na tela, a sequência rítmica de formas retangulares continua presente (re)afirmando seu fascínio às estruturas geométricas. As linhas formulam variações ritmadas e seu percurso é interrompido com a justaposição dos planos de cores. Mas, se em algumas composições o espaço é preenchido com uma “mistura desordenada” de linhas que se ajustam com o seguimento visual dos planos, em outras organiza o espaço com intervalos de planos lisos que acentuam as vibrações rítmicas das linhas, o que caracteriza um espaço de profundidade.

Figura 4. Sem título, 2006 (série coisa.Movimento).

técnica mista sobre tela, 27 x 44 cm. coleção da artista.

Foto: Jorge Luiz Mies.

Page 10: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

110

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479certamente, são nos trabalhos da série Jogo do Bicho (2006/7) que a

artista transcende o espírito da colagem para interpretar plasticamente a sua indignação com os acontecimentos políticos que estavam ocorrendo no Brasil. a série, composta por 25 telas pequenas - cada uma com o seu bicho e o seu resultado respectivo - e por uma bandeira de grande dimensão, mostra um processo em que a escolha da artista ao selecionar e combinar papéis expõe e discute questões políticas e morais contemporâneas, por exemplo, a corrupção alargada pelos problemas da fragilidade de critérios políticos, provocando um ambiente de desordem social.

estes trabalhos coincidem com o momento que regina chulam retorna ao Brasil, marcando assim, outros questionamentos de seu processo criativo. chulam relata:

[...] Quando da minha volta, em 2003, ao aguardar a liberação da bagagem na alfândega que estava em greve, fiquei um tempo em Vitória. Via todos os dias a pequena mesa das ‘bancas’ pintadas de verde, amarelo, azul e branco, com aquelas ‘tirinhas’ penduradas. Primeiro fiquei fascinada com aquele espaço pequeno, tão brasileiro e plasticamente muito interessante. apaixonei-me pelas tirinhas carimbadas que trazem o resultado do jogo do bicho. Dei com o lema do jogo: ‘Vale o que está escrito’. esta foi a grande descoberta, o grande encontro. comecei a juntar as tirinhas com o auxílio de amigos e das mesinhas das esquinas. tarefa vagarosa.

Para executar o trabalho, a artista mergulhou nas origens históricas do jogo do bicho e descobriu que no início os bilhetes eram carimbados com a estampa do bicho e não com números. Mas, como não havia carimbos de bichos da forma que imaginava, lança mão do que mais gosta de fazer: desenhar. Sobre os bilhetes recolhidos e colados horizontalmente e verticalmente na superfície do suporte prepara uma base e, com esta ainda úmida, desenha por cima dela os animais com auxílio de carbonos coloridos. as manchas resultam do apoio das mãos que auxiliam o encontro do carbono e da base levemente molhada, deixando registradas as marcas dessa ação por meio das digitais.

O lema dos bicheiros, que serve para reforçar a confiança e seriedade nas apostas e no pagamento do prêmio, vai ao encontro de sua indignação com a política brasileira. o jogo do bicho, embora clandestino e criminalizado no país, é a cara do Brasil, pois com a forte adesão popular e milhares de apostadores, tornou-se um ambiente favorável à corrupção de policiais, de membros do poder judiciário e políticos. Diante disso, na tela com o formato da bandeira nacional, símbolo de nossa identidade, regina chulam altera a sentença “ordem e Progresso” por “Vale o que está escrito”.

Page 11: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

111

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479

Figura 5. Bandeira - Vale o que está escrito, 2006.

técnica mista sobre tela, 150 x 200 cm. coleção Márcio espíndula, Vitória.

ao escrever sobre a tela, faz com que as letras e as palavras se integrem a imagem, estabelecendo uma dinâmica criadora que ativa o território imagético. os números que pertencem às tirinhas, juntamente com os desenhos elaborados a carbono sobre a superfície e a autonomia da escrita presente na faixa que corta o círculo impregnam a obra com uma explosão de significados. O ato de escrever, prática que pertence ao seu processo artístico, revela a vontade da artista de agir sobre a matéria e de propor, no campo de possibilidades que habita a obra, o diálogo entre a palavra e o espaço. aqui, vemos uma síntese de todas as linguagens assimiladas por regina desvelada numa esmerada técnica, que ao estruturar e organizar os espaços declara um potencial imagético que aguça o campo visual e registra os gestos e as suas intenções.

Desejosa dos fragmentos da realidade, sua pintura se conecta com as tendências da arte do século XX e valida no quadro sua própria materialidade plástica. ao trabalhar com os princípios que deram vida a colagem cubista e ao transitar pela expressividade informalista, a artista engenha um espaço que se contamina com a história, com técnicas e diversificadas poéticas. A experimentação com as possibilidades do papel se converte, em seu processo de criação, numa atividade pictórica que investiga os meios de expressão. chulam não utiliza o papel e o tecido isoladamente sobre a tela, mas os associa aos materiais convencionais da pintura e do desenho, obtendo novas soluções plásticas para o enriquecimento de sua produção. Vemos em sua trajetória que a técnica da colagem, um rico instrumento de experimentação, intensifica os contrastes cromáticos, afirma o fascínio pelas estruturas geométricas, fornece à composição texturas visuais e táteis e, principalmente, garante a realização de voos ousados no ofício da pintura,

Page 12: CRUZAMENTOS POÉTICOS: A COLAGEM NO 2316-6479

112

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479um campo sempre aberto às possibilidades e as potencialidades da matéria. É a

alquimia da matéria pictórica com preceitos simbólicos da memória que torna a pintura de regina chulam rigorosamente plástica.

Referências bibliográficas

arGan, Giulio carlo. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: companhia das Letras, 2010. p. 475.

______. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. tradução de Denise Bottmann e Frederico carotti. São Paulo: companhia das Letras, 1992. pp. 305, 542.

cHULaM. regina olivier. 2009. entrevista concedida a Jorge Luiz Mies, Domingos Martins, eS, 17 out. 2009.

KoSSoVitcH, Leon. a emancipação da cor. in: noVaeS, adauto (org.). et al. O olhar. São Paulo: companhia das Letras, 1988. p. 183-215.

MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum: diferenças e afinidades. Scielo. Curitiba, Vol. 19, out. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010444782011000300003&script=sci_arttext>. Acesso em: 25 mar. 2012.

PireS, Julie. inscrições contemporâneas: a palavra-imagem no projeto da visualidade pós-moderna. Arte & Ensaios. rio de Janeiro, nº 21, dez. 2010.

Século Diário. Vitória, 25 abr. 2007. Disponível em: <http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2007/abril/25/cadernoatracoes/cultura/03.asp>. Acesso em: 07 abr. 2010.

Minicurrículos

Jorge Luiz Mies é Bolsista caPeS, discente do Programa de Pós-Graduação em artes da Universidade Federal do espírito Santo (Mestrado em artes). Licenciado em artes Visuais pela mesma universidade em 2011. entre os anos 2009 e 2011 foi bolsista do Programa de iniciação Científica, sob a orientação da Profª Drª Angela Grando, pesquisando a produção pictórica da artista capixaba regina chulam.

angela Maria Grando Bezerra é Doutora em História da arte pela Universidade de Paris i – Sorbonne. Historiadora e crítica de arte. Professora associada do centro de artes da Universidade Federal do espírito Santo. coordenadora do Programa de Pós-Graduação em artes – PPGa. Membro da associação Brasileira de críticos de arte, Membro da associação nacional de Pesquisadores em artes Plásticas, Membro do comitê Brasileiro de História da arte.