CTI [2008]. Situação Dos Detentos Indígenas No Mato Grosso Do Sul.

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CTI [2008]. Situação Dos Detentos Indígenas No Mato Grosso Do Sul.

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  • Todos os direitos reservados

    1a ed. - 2008 - 1.500 exemplares

    Centro de Trabalho Indigenista

    Situao dos Detentos Indgenas do Estado de Mato Grosso do Sul. 1a

    ed. - Braslia: CTI, 2008.

    60p.

    1. Direitos Humandos 2. Povos Indgenas 3. Mato Grosso do Sul

  • ndice

    Prefcio 5

    Apresentao 7

    Introduo: histrico, objetivos do projeto e sntese dos

    captulos11

    I Breve panorama das transformaes histricas no Mato

    Grosso do Sul15

    II Marcos Legais 23

    III- Situao criminal, processual e prisional dos detentos

    indgenas no Mato Grosso do Sul29

    IV- Recomendaes 51

    Concluso 55

    Bibliografia 57

    Siglrio 59

  • Prefcio

    Esta publicao tem um nico objetivo: apresentar para a opinio pblica dados e fatos sobre a gravssima situao social enfrentada pelos povos indgenas, em particular os Kaiow e Guarani no Mato Grosso do Sul. Os nmeros dos detentos destes povos, muito maiores do que quaisquer outros no Brasil, refletem o drama social vivido por eles e h

    tempos denunciado pelos especialistas e pela mdia nacional mas que, no entanto, parece no bastar para sensibilizar os poderes pblicos. Suicdios de adolescentes, alcoolismo, assassinatos de lideranas, explorao de mo-de-obra so os fatos sociais h pelo menos duas dcadas expostos pela mdia sobre os Kaiow e Guarani no Mato Grosso do Sul, uma populao de 43 mil ndios.

    Na raiz deste drama social, no cansam de enfatizar especialistas e lideranas indgenas, encontra-se a questo das terras Kaiow-Guarani. At meados da dcada de 1980, as terras disponveis pelo Estado brasileiro para aquela populao (20 mil poca, cerca de 2.500 famlias) perfaziam um total de 18.124 hectares, ou seja, cerca de sete hectares por famlia quando o mdulo mnimo do Incra era de 50 hectares.

    Passadas duas dcadas, este quadro s se agravou. O Estado brasileiro reconheceu, nos anos 1990, mais 21.275 hectares que esto na posse efetiva dos Kaiow e Guarani no Mato Grosso do Sul, mais que duplicando a rea disponvel. Porm a populao tambm mais que duplicou, anulando os efeitos positivos daquele acrscimo. Segundo dados da Funasa (2007), as reservas demarcadas pelo Servio de Proteo aos ndios (SPI) nos anos 1920 seguem abrigando 79% (33.306) da populao Kaiow e Guarani, sendo que 21.543 indgenas, ou 51% desse total, esto concentrados em apenas trs Terras Indgenas Dourados, Amambai e Caarap que somam 9.498 hectares de terra. Somente nestas trs Reservas Indgenas so 3.000 famlias que dispem to somente de trs hectares para, literalmente, sobreviverem.

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  • importante lembrar que no basta fazer a conta da necessidade de terras para os Kaiow e Guarani multiplicando o nmero de famlias pelo mdulo mnimo do Incra (o que daria cerca de 300 mil hectares, supondo uma famlia mdia composta por sete indivduos e um mdulo de 50 hectares). A Constituio brasileira estabelece (art. 231) que as terras reputadas indgenas devem levar em conta (...) as terras [pelos ndios] habitadas em carter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies. muito mais do que um simples mdulo mnimo que a Constituio, pois, estabelece. Segundo os estudos dos especialistas, so no mnimo 700 mil hectares as terras necessrias para que se cumpram os preceitos constitucionais no caso dos Kaiow e Guarani no Mato Grosso do Sul.

    Ocorre, porm, que na colonizao do sul do ento Estado do Mato Grosso vendeu-se Terras Indgenas a particulares, tratando-as como se devolutas fossem. Os adquirentes destas terras ou seus sucessores no admitem retorn-las aos seus verdadeiros donos quando o Estado brasileiro, via Funai, tenta reav-las; exigem, na Justia que os seus direitos adquiridos sejam reconhecidos e o judicirio, via de regra, os tm reconhecido, paralisando o processo administrativo de identificao daquelas terras e, com isso, aumentando o desespero dos

    ndios. a esta complexa situao jurdico-institucional que o Governo Federal, Estadual, o Congresso Nacional e a Assemblia Legislativa do Mato Grosso do Sul tm que responder para resolver o drama destes povos indgenas.

    Todos os especialistas da questo Kaiow-Guarani so unnimes em apontar a causa (a falta de terras) e a soluo (reconhecer suas terras tradicionais) para que esta parcela da populao brasileira com toda certeza a mais sofrida e vulnervel do pas possa se reorganizar e enfim obter um pouco de paz e almejar a dignidade que merecem.

    Gilberto AzanhaCoordenador Geral do CTI

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    Apresentao

    O Centro de Trabalho Indigenista realiza, desde 1979, atividades

    em defesa dos direitos territoriais e culturais dos povos indgenas no Brasil,

    com os quais tem uma vinculao direta baseada em parcerias de longo

    prazo. No Mato Grosso do Sul, os Programas Kaiow-Guarani e Terena

    representam hoje um precioso acmulo de experincias, significativo

    num estado com a segunda maior populao indgena no Pas, e onde

    ainda, depois de trs sculos de contato com a sociedade envolvente,

    persistem os conflitos fundirios, aprofundados com a implantao de

    modelos de agronegcio na regio nas ltimas dcadas.

    O CTI, como a maioria das organizaes indigenistas brasileiras,

    se engaja nas questes de importncia vital para a sobrevivncia dos

    povos indgenas no Brasil, procurando reverter a situao de injustia

    pela qual o Estado brasileiro responsvel. As atividades tm como

    metas imediatas influenciar as polticas pblicas nas regies onde

    vivem, participando nos processos de demarcao de terras, educao

    diferenciada, valorizao cultural, garantia das condies de sade das

    comunidades, fortalecimento das organizaes indgenas e, na medida

    do possvel, identificando outros problemas poucos conhecidos com

    profundidade, como por exemplo: a Situao dos Detentos Indgenas

    no Mato Grosso do Sul.

    Na questo dos detentos, o primeiro dado considerado de muita

    importncia para os antroplogos e indigenistas do CTI foi a inexistncia

    de informaes sistematizadas sobre este tema, tanto nos rgos

    pblicos em nvel estadual e nacional ou privados, quanto de natureza

    bibliogrfica. Tambm constatou-se a ausncia de orientaes por parte

    da Funai nas comunidades indgenas em relao aos procedimentos

    bsicos para a defesa de seus direitos e, sobretudo, a falta de ateno

    por parte do Estado.

    Procuramos ento a Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB)

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

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    para propor ao Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Populaes

    Indgenas (Neppi) e ao Ncleo de Pesquisa e Monografia Jurdica

    (Nupeju) uma parceira com o objetivo de realizar um levantamento no

    Mato Grasso do Sul acerca da populao carcerria indgena e, a partir

    dos resultados, mobilizarem-se as instituies pblicas, a sociedade

    civil, as comunidades indgenas e a populao em geral sobre este

    assunto to relevante para o exerccio pleno dos direitos dos povos

    indgenas no Brasil.

    A primeira fase do projeto teve como meta a identificao

    de instituies governamentais e da sociedade civil para recolher

    experincias referentes aos detentos e solicitar, atravs de ofcio aos

    rgos pblicos, autorizao para fotocopiar os processos envolvendo

    indivduos indgenas. Foi uma tarefa longa e complexa, devido aos

    empecilhos administrativos e, sobretudo, face inexistncia de um

    cadastro especfico dos processos envolvendo indgenas.

    Na segunda fase do projeto, a equipe multidisciplinar, formada

    por antroplogos, advogados, historiadores e indigenistas, responsveis

    pelas atividades de campo, concentrou as aes de levantamento

    nas regies com maior concentrao de comunidades indgenas e,

    portanto, com maior potencial de conflitos, resultantes da situao

    fundiria to conhecida nesta regio do estado. Instituies prisionais,

    delegacias, comunidades e organizaes indgenas e indigenistas

    foram visitadas, registrando depoimentos e informaes muito valiosas

    para o levantamento.

    Mediante reunies semanais da equipe executora do

    levantamento, e trimestrais com todos os profissionais envolvidos da

    UCDB, CTI e, em algumas delas, com representantes da Delegao da

    Unio Europia de Braslia, as atividades foram avaliadas de maneira

    minuciosa, procurando resolver as dificuldades enfrentadas em cada

    fase e aprimorando a metodologia nas aes de campo.

    A terceira e ltima fase do projeto consistiu na preparao de

    um dossi com todos os dados, experincias e relatrios parciais e na

    realizao do Seminrio Diagnstico; criao das condies para a

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    instalao de um software com os dados do levantamento para serem

    disponibilizados online s instituies interessadas; organizao de uma

    audincia pblica no Congresso Nacional em Braslia e elaborao de

    uma publicao com os resultados do levantamento sobre a Situao

    dos Detentos Indgenas no Mato Grosso do Sul.

    Em diversas oportunidades, com o intuito de apresentar a

    metodologia utilizada no levantamento e para a elaborao do

    diagnstico no Mato Grosso do Sul, membros da Coordenao do

    Projeto foram convidados a dialogar com outras iniciativas semelhantes

    em nvel nacional, como a pesquisa do Ministrio Pblico Federal em

    parceira com a Associao Brasileira de Antropologia ABA, sobre

    a situao dos detentos indgenas nos estados da Bahia, Amazonas,

    Sergipe e Roraima; e tambm o projeto da Ao Educativa sobre a

    Situao do Ensino Escolar e de Trabalho nos Crceres de Mulheres

    no Brasil. O presente trabalho visa, assim, contribuir para a discusso

    sobre os direitos dos detentos indgenas nas diferentes regies do Pas

    e, paralelamente, para a melhoria da situao dos presos em geral nos

    crceres no Brasil.

    Carlos MacedoCoordenador do Projeto

    Centro de Trabalho Indigenista CTIUniversidade Catlica Dom Bosco UCDB

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    Introduo

    Em 2005 e 2006, a pedido do Comit Internacional da Cruz

    Vermelha (CICV), o CTI realizou o levantamento dos detentos indgenas

    nos estados de Roraima, Rondnia e Mato Grosso do Sul. Deste

    levantamento, foram obtidas informaes a respeito da aguda anomia a

    que os detentos indgenas eram sistematicamente submetidos. Indicou-

    se a urgncia de conhecer melhor a situao processual dos detentos

    indgenas, escolhendo-se o Estado do Mato Grosso do Sul como piloto

    para tal diagnstico, dada a gravidade da situao ali observada. Neste

    estado, no ano de 2006, 119 indgenas encontravam-se em unidades

    prisionais, sendo que a maioria deles (68) estava na unidade prisional

    de Dourados (Agepen e DGPC, 2006).

    O projeto Situao dos Detentos Indgenas no Mato Grosso do

    Sul (MS), do qual a presente publicao fruto direto, foi proposto

    pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e executado em parceria com

    a Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB), atravs do Ncleo de

    Pesquisa e Monografia Jurdica (Nupeju) e Ncleo de Estudos e Pesquisas

    sobre Populaes Indgenas (Neppi), com apoio da Unio Europia -

    UE. Realizou-se o levantamento de dados prisionais e processuais sobre

    indgenas que estivessem sendo processados, presos provisoriamente

    ou no, ou que estivessem condenados irrecorrivelmente cumprindo

    pena. Treze municpios foram abrangidos, sendo seis deles onde existem

    estabelecimentos prisionais administrados pela Agncia Estadual de

    Administrao do Sistema Penitencirio (Agepen), a saber: Campo

    Grande, Aquidauana, Dourados, Trs Lagoas, Dois Irmos do Buriti

    e Corumb e os sete municpios onde os detentos esto em Cadeias

    Pblicas, administradas pela Polcia Civil, a saber: Terenos, So Gabriel

    do Oeste, Coxim, Miranda, Bonito, Bataguassu e Amambai.

    A pesquisa se estendeu por 16 meses (janeiro de 2007 a abril de

    2008), perodo no qual as equipes do projeto tiveram como interlocutores

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

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    os detentos indgenas, suas famlias, comunidades, organizaes e as

    autoridades envolvidas (Funai, Defensoria Pblica, Ministrio Pblico,

    Secretaria Estadual de Justia e Segurana Pblica e Poder Judicirio),

    assim como outros profissionais atuantes no tema.

    Esta ao visa consolidar informaes teis sobre os detentos

    indgenas de forma a garantir seus direitos nos julgamentos em aes

    criminais onde figurarem como rus e as garantias individuais na fase

    de execuo penal conforme a legislao brasileira: na aplicao da Lei

    6001 (o Estatuto do ndio) e a jurisprudncia correlata, a observncia

    da Constituio Federal no tocante principalmente ao artigo 231, o

    cumprimento da Conveno 169 da Organizao Internacional do

    Trabalho (OIT), um dos principais instrumentos internacionais que

    reconhece os direitos dos Povos Indgenas e Tribais, da qual o Brasil

    signatrio, tendo j ratificado e recepcionado, alm da observncia da

    Declarao sobre o Direito dos Povos Indgenas (DDPI), o mais novo

    documento das Naes Unidas que em seu texto reconhece e professa

    o direito livre-determinao dos Povos Indgenas. Alm disso, o

    objetivo permitir, posteriormente, a consolidao de um Sistema

    de Acompanhamento e Assessoramento aos Detentos Indgenas e s

    Comunidades e Organizaes Indgenas e a criao de mecanismos

    especiais para um procedimento diferenciado.

    Direcionados por tais preocupaes, um dos objetivos desta

    publicao1 problematizar a questo da violncia entre os povos

    indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul. Neste sentido, o Captulo

    I visa expor transformaes histricas e organizacionais que tiveram

    lugar entre estes povos e que esto diretamente ligadas ao incremento

    da violncia e ao processo de criminalizao sofrido pelos indgenas.

    1 Este documento foi realizado com a assistncia financeira da Unio Europia. Todavia, o seu contedo de responsabilidade exclusiva do Centro de Trabalho Indigenista e da Universidade Catlica Dom Bosco, no podendo, em caso algum, considerar-se que reflete a posio da Unio Europia.

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    O levantamento dos processos e o trabalho de campo revelaram um

    grande nmero de detentos indgenas nos presdios da regio sul de

    Mato Grosso do Sul, envolvendo praticamente todas as etnias presentes

    no Estado; contudo, elegemos o caso dos Kaiow e Guarani2 como

    plo exemplificador deste processo, tendo em vista o fato de ser muito

    elevado o nmero de indivduos destas etnias que se encontram presos

    e devido ainda gravssima situao social que os atinge. Alm disso,

    buscamos apresentar uma sntese dos marcos e pressupostos legais que

    devem orientar os operadores do direito e os indgenas em inquritos

    e julgamentos onde estes figurem como rus. No Captulo II tais

    orientaes podem ser consultadas.

    Um aspecto relevante do diagnstico a constatao da pouca

    garantia dos direitos nos julgamentos das aes criminais. Detectaram-se

    ainda o descumprimento das garantias individuais na fase de execuo

    penal, solapando direitos assegurados na legislao brasileira em geral

    e na legislao indigenista e, ainda, por Convenes e Declaraes de

    carter internacional, verificando-se, com isso, a violao dos direitos

    humanos. Os dados e apontamentos relativos situao prisional,

    criminal e processual dos detentos indgenas no Mato Grosso do Sul

    apresentada no Captulo III.

    No dia 08 de maio de 2008, na UCDB, em Campo Grande (MS),

    foi realizado um Seminrio onde foram apresentados os dados parciais

    da pesquisa. O Seminrio contou com a presena de sessenta e dois

    participantes, entre eles representantes do Ministrio Pblico Federal,

    Ministrio da Justia, Funai, Ordem dos Advogados do Brasil, Comit

    Internacional da Cruz Vermelha, Unio Europia, Associao Brasileira

    de Antropologia, advogados, indigenistas, lideranas indgenas, entre

    2 Os ndios Guarani, de lngua Tupi-Guarani, se dividem em trs grandes grupos: Kaiow, andeva e Mbya, conforme diferenas dialetais, de costumes e prticas rituais. No Estado do Mato do Grosso do Sul apenas os Kaiow e os andeva esto representados. Aqui utilizamos o termo Guarani para nos referirmos aos andeva, por tratar-se de uma auto-denominao.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

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    outros. Durante a manh teve lugar a apresentao das atividades

    realizadas e dos dados obtidos, e na parte da tarde os participantes

    dividiram-se em grupos de trabalho de discusso e formulao. O

    objetivo foi proporcionar o dilogo entre tais autoridades, de forma

    a propor medidas para garantir os direitos dos indgenas presos. O

    Seminrio pretendeu configurar um locus propcio ao surgimento

    de propostas para a alterao da legislao processual penal vigente

    e para a adequao de polticas pblicas, alm de sugestes para a

    consolidao do Sistema de Acompanhamento e Assessoramento aos

    Detentos Indgenas e s Comunidades e Associaes Indgenas. As

    recomendaes que surgiram so apresentadas no Captulo IV.

    Ao final, apontamos a necessidade de reviso dos processos,

    pois, como poder ser notado, a maioria dos detentos no teve acesso

    ao pleno direito de defesa e, neste sentido, no podemos afirmar que

    estejam cumprindo pena justamente. Gostaramos, no entanto, de que

    esta publicao servisse como instrumento de denncia da Situao

    dos Detentos Indgenas no Mato Grosso do Sul e de ampla defesa dos

    direitos indgenas. Aliado a isso, pretendemos contribuir para uma

    reflexo de maior acuidade sobre a oportunidade e em que situaes o

    Direito Positivo deve incrementar o Direito Consuetudinrio.

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    I Breve panorama das transformaes histricas no Mato Grosso do Sul

    No Estado do Mato Grosso do Sul encontra-se a segunda maior

    concentrao da populao indgena no Brasil, aproximadamente 58

    mil ndios, distribudos entre os povos Guarani, Terena, Kadiwu e

    Guat (Funasa, 2006). Se, por um lado, grande parte desta populao

    possui cidadania formal, com RG, CPF e Ttulo de Eleitor, por outro,

    sua condio apresenta-se marginalizada e a relao com sociedade

    brasileira marcada pelo racismo, isolamento e incompreenso.

    Em Dourados, principal plo regional do sul do estado, a plena

    cidadania da populao de origem indgena Kaiow e Guarani

    a questo mais grave a ser equacionada. Os problemas enfrentados

    por esta populao vo desde intensos conflitos fundirios: invases

    possessrias, altas taxas de densidade demogrfica, explorao ilegal

    de recursos naturais em suas terras e descumprimento de prazos de

    demarcao de terras, at condies sobremaneira precrias de sade

    e trabalho. A explorao da mo-de-obra indgena no regime de

    trabalho nos canaviais, tantas vezes denunciada por sua lgica funesta,

    somente uma das condies a que os ndios so hoje obrigados a

    se submeter para simplesmente continuarem sobrevivendo, visto que

    a terra disponvel ao plantio insuficiente e a assistncia produo

    agrcola nfima.

    O suicdio e as tentativas de suicdio to recorrentes nos ltimos anos

    entre os Kaiow e Guarani, as mortes de crianas indgenas por desnutrio

    e as elevadas taxas de criminalidade que afligem os ndios so umas das

    conseqncias da constante presso exercida sobre estas populaes por

    parte das diferentes frentes de expanso econmica na regio: um cenrio

    histrico de explorao, opresso e desrespeito diversidade por parte do

    poder pblico e da sociedade envolvente de maneira geral.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    16

    comum os Kaiow e os Guarani explicarem a situao atravs

    de expresses na prpria lngua. Teko pyahu entendido como o

    novo modo de ser e se refere aos comportamentos introduzidos nas

    ltimas dcadas, que no fazem parte do que consideram tradicional

    e cuja introduo leva ameaa do abandono do teko katu, o modo

    de ser correto, associado ao modo como viviam os antigos, cuja

    temporalidade associada abundncia e a vivncia harmnica. A

    situao de reserva em Dourados ainda interpretada como teko heta,

    modo de ser mltiplo, no qual as pessoas seguem orientaes diversas,

    gerando confuso e desentendimento. Muitas lideranas procuram

    escapar desta situao, buscando novas categorias de compreenso e

    enfrentamento do contexto histrico atual, em busca da construo de

    melhor convivncia enquanto comunidade. A seguir, apresentamos um

    breve panorama das transformaes histricas ocorridas nesta regio.

    No perodo anterior ocupao agropastoril, os Kaiow e os

    Guarani ocupavam uma faixa de terras de mais de 100 quilmetros de

    cada lado da fronteira do Brasil com o Paraguai, tendo como divisa o

    rio Apa ao norte e o rio Paran ao sul (Meli, Grnberg & Grnberg,

    1976). Era nessa vasta regio, que do lado brasileiro correspondia

    grande parte da serra de Maracaju, que a populao Kaiow e Guarani

    radicava suas parentelas, cujas aglomeraes formavam as aldeias,

    por eles denominadas de tekoha. O tekoha tinha tamanho varivel,

    dependendo do nmero de famlias extensas ou parentelas que reunia,

    pois cada parentela dispunha de uma poro de terra de uso exclusivo

    para o desenvolvimento de suas atividades produtivas e rituais. Era

    comum que os tekoha tambm estivessem inseridos em redes de

    alianas mais amplas, de carter poltico e, principalmente, religioso.

    Entre 1915 e 1928, o Governo Federal demarcou oito reduzidas

    e dispersas extenses de terra para ocupao pelos Kaiow e Guarani,

    perfazendo um total de apenas 18.124 hectares (ou 180 km2). A quase

    totalidade das aldeias ficava fora das reas demarcadas pelo Servio

    de Proteo aos ndios (SPI), rgo indigenista oficial na poca.3 Neste

    sentido, essas reservas constituram importante estratgia governamental

    de liberao de terras para a colonizao e conseqente submisso da

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    populao indgena aos projetos de ocupao e explorao dos recursos

    naturais por frentes no-indgenas. Ignorou-se, na sua implementao,

    os padres indgenas de relacionamento com o territrio e seus recursos

    naturais e, principalmente, a sua organizao social. A reserva passou a

    cumprir a funo poltica de liberar as terras para a especulao imobiliria

    e posterior ocupao agropecuria. Assim, a reserva se transformou

    em rea de acomodao para a populao de diversas comunidades.

    As principais reservas foram demarcadas prximas aos ento ncleos

    urbanos e hoje importantes cidades, como Dourados e Amambai.

    O sistema poltico instaurado na reserva enquanto rea de

    acomodao combina uma srie de prticas como: a) a tentativa de

    recolher a populao de diversas comunidades no espao fsico

    destinado a abrigar a populao indgena; b) a implantao nesse espao

    de programas econmicos voltados ao atendimento de demandas do

    mercado; c) a criao de escolas para que as crianas passem pelo

    processo de escolarizao e adquiram o domnio sobre a lngua e as

    maneiras de conduta da sociedade nacional; e d) a implantao da

    organizao poltica baseada na chefia do posto e na capitania. Estas

    aes serviam a um ideal de integrao e civilizao dos ndios que,

    neste sentido, fracassou, devido imensa capacidade de resistncia

    dessas culturas. Por outro lado, trouxe inmeros problemas para essas

    populaes, como os processos de criminalizao a que hoje esto

    submetidos. Vejamos.

    Na dcada de 1940 se encerra a renovao dos contratos de

    arrendamento das terras do sul do atual Mato Grosso do Sul, que

    beneficiavam a Companhia Mate Laranjeiras (Brand, 1997; Ferreira,

    2007). Isto d lugar a uma verdadeira corrida de pessoas interessadas

    em comprar terras na regio. A legislao em vigor considerava as terras

    3 Em 1910 foi criado o Servio de Proteo aos ndios e Trabalhadores Nacionais, alocado no Ministrio da Agricultura. Em 1918 passa a ser denominado Servio de Proteo aos ndios (SPI). Em dezembro de 1967, enquanto extinguia o SPI, o governo j esboava o Estatuto da Fundao Nacional do ndio (Funai), vinculando-a ao Ministrio do Interior.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    18

    pblicas como devolutas, sendo postas venda pelo antigo Estado do

    Mato Grosso, do qual fazia parte Mato Grosso do Sul antes da diviso

    poltica. Assim, as terras onde estavam localizadas as comunidades

    Kaiow e Guarani so vendidas a particulares, e muitas comunidades

    so foradas a deixar os locais de suas aldeias.

    demarcao das oito reservas com uma extenso to reduzida,

    bem como a sistemtica seguida pelo Estado do Mato Grosso na venda

    das terras, veio a se somar a chegada das fazendas agropecurias em

    1950 e, com elas, o desmatamento da regio. Com isso, os grupos que

    ainda viviam no interior das matas foram alcanados. Concludo o

    desmatamento, eram sistematicamente obrigados a abandonar as suas

    aldeias e se localizarem dentro das reservas demarcadas pelo SPI.

    Esse processo de confinamento se radicaliza a partir da

    dcada de 1970, com a chegada do plantio de soja e da conseqente

    mecanizao da atividade agrcola. Para o SPI, o papel reservado

    aos Guarani e Kaiow, nessa regio, seria o de mo-de-obra para

    os empreendimentos econmicos: primeiro na explorao da erva-

    mate, depois na implantao das fazendas agropecurias e, a partir

    da dcada de 1980, nas usinas de produo de acar e lcool. Nesse

    perodo so destrudas muitas aldeias refgio, localizadas nos fundos

    das fazendas. Hoje, aldeados em espaos exguos, esses ncleos ou

    aldeias, antes autnomas, encontram-se sobrepostos e geograficamente

    confinados e sem condies de manter sua organizao social interna,

    assentada em unidades familiares autnomas, com seus tekoharuvicha,

    que zelavam pela harmonia interna desses ncleos.

    O processo de retirada das comunidades dispersas por todo o

    imenso territrio de ocupao tradicional durou dcadas e est em

    curso at hoje. Esse processo implicou na disperso das famlias e na

    dissoluo dos vnculos de sociabilidade que cimentavam as relaes

    de muitas comunidades. O desafio maior decorrente do processo de

    perda territorial refere-se s dificuldades em adequar a sua organizao

    social a essa nova situao marcada pela superpopulao, sobreposio

    de famlias extensas e pelas transformaes de ordem econmica. Antes

    do estabelecimento das reservas, as divises polticas e os conflitos

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    entre parentelas aliadas que eventualmente no eram solucionados,

    tinham como desdobramento o estabelecimento de novos stios de

    residncia. Neste sentido, h duas conseqncias sobremaneira graves,

    decorrentes do confinamento: a impossibilidade de mudar de aldeia

    quando determinadas condies tornavam indesejvel a permanncia

    naquele local (h abundante informao na documentao sobre a

    estratgia indgena de deslocamento por ocasio de doenas, mortes

    de familiares, conflitos internos ou, simplesmente, desgaste da terra)

    e a convivncia, num espao cada vez menor, de pessoas que, pela

    lgica da organizao indgena, no poderiam estar to prximas

    espacialmente.

    Segundo dados da Funasa, as reservas demarcadas pelo SPI

    seguem abrigando cerca de 79% (33.306) da populao indgena

    Kaiow e Guarani, sendo que 21.543, ou seja, 51% desse total

    esto concentrados em trs Terras Indgenas, demarcadas pelo SPI -

    Dourados, Amambai e Caarap - que juntas atingem um total de 9.498

    hectares de terra. Essa excessiva proximidade de no-parentes, aliada

    impossibilidade de se distanciar em casos de doenas, mortes e

    problemas de relacionamento geram um profundo mal-estar e clima de

    tenso. A alta densidade populacional equivale a um aumento do risco

    de conflitos intra-tnicos no caso guarani. No h como desvincular

    os elevados ndices de violncia (inclusive suicdio), do processo de

    confinamento.

    Estes problemas so claramente destacados em alguns

    depoimentos. Os informantes falam dos muitos conflitos que decorrem

    diretamente das disputas em torno dos limites de lotes, cada vez mais

    espremidos, situao que se agrava quando esse outro, envolvido nas

    disputas, um no-parente.

    aqui, na aldeia, o aglomerado de pessoas (...), faz com

    que tenha mais conflito e, tambm, as famlias do ndio, o

    indgena, por mais que ele tenha um parentesco ele exige,

    tambm, a prpria condio dele, exige um espao pra ele

    viver (...).(ndio kaiow, Aldeia Boror, Terra Indgena

    Dourados, Fita n.08, p. 10).

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    20

    At a dcada de 1970 era comum o prprio rgo indigenista

    (SPI/Funai) assumir a conduo da aplicao das penas aos ndios que

    praticavam atos infracionais, como assassinatos e tentativas de homicdio.

    As lideranas indgenas entrevistadas se lembram das prises mantidas

    pelo SPI/Funai nas prprias reservas e dos casos nos quais os chefes

    de Postos enviavam o ru indgena para cumprir pena em outro Posto

    Indgena, sob a responsabilidade de outro chefe de Posto. Acontece que

    a partir da dcada de 1980 o rgo indigenista perde fora na regio e

    devido, entre outras coisas, falta de recursos humanos e financeiros,

    abandona por completo esta prtica. No podendo recorrer ao poder

    coercitivo do rgo indigenista, consolidou-se a prtica das lideranas

    indgenas recorrerem s autoridades policiais da cidade (polcias civil e

    militar) para resolverem os casos de prtica de delitos e mesmo conflitos

    internos entre faces rivais - trao caracterstico da organizao social

    guarani. Disto resultou um nmero crescente de ndios presos, fato ao

    que tudo indica agravado pelo aumento da violncia interna.

    De fato, os indgenas anunciam o aumento exacerbado da

    violncia nos ltimos anos, enquanto que suas lideranas expressam

    uma espcie de sentimento de impotncia quanto ao enfrentamento de

    tal problema. Em grande medida, isto devido ao fato de a reserva ser

    um ajuntamento artificial, inexistindo no sistema poltico interno uma

    pessoa ou instncia com legitimidade para representar o conjunto das

    parentelas reunidas na reserva. A dificuldade de dar conta do problema

    a partir de instrumentos da prpria organizao social leva a recorrer ao

    sistema policial e prisional, especialmente porque o rgo indigenista

    tambm abandonou esse papel.

    possvel notar ainda a perda gradativa da capacidade das

    comunidades aplicarem procedimentos preventivos, prticas coercitivas

    e de reparao de delitos, em decorrncia da situao de Reserva. Isto

    fica evidente pela importncia atribuda s figuras do chefe de Posto

    e do capito, instituies polticas criadas pelo SPI. Na reserva, os

    lderes das parentelas no relutam em procurar as autoridades como

    denominam o capito e o chefe de Posto mesmo para a resoluo

    de conflitos internos, cobrando delas o exerccio das atribuies

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    institucionais das quais esto investidas. No raro essa interveno

    complica ainda mais a convivncia interna, levando as pessoas a

    nutrirem sentimento de raiva, rancor e vingana, que esto na base de

    muitos dos crimes de violncia atualmente cometidos. Com isso, os

    ndios so obrigados a recorrerem ao direito positivo. Como podemos

    entrever no seguinte trecho:

    Vamos supor se tiver um caso de violentao sexual,

    a gente tenta resolver aqui dentro, com a organizao

    interna que a gente tem aqui, juntamente com os pais

    de ambos. Quando no tem acordo, assim, no caso, a a

    gente encaminha pra fora. Caso que a famlia, quando

    a fica na responsabilidade da famlia, pra buscar o frum,

    o conselho tutelar. Ento so esses dois que a gente pede

    para eles procurarem (ndio terena, cacique da Aldeia

    Brejo, T.I. Nioaque, fita n. 01 p.5).

    Mas recordam como, em tempos passados, muitos problemas

    eram resolvidos dentro das aldeias. Relatam que na poca do velho

    capito Ireno, grande liderana kaiow de Dourados:

    ele dava essa ateno com esse tratamento, que muitas

    coisas ele mesmo resolvia. Ele, dependendo, se fosse

    briga familiar, ele dava a uma tarefa, alguma coisa [...];

    o cara bater na mulher, sempre produzindo coisa pra

    comunidade de novo [...], tirava aquela troca n, e hoje

    j ta [...]. [Hoje], qualquer coisa mandam para delegacia,

    ou vai l para delegacia de mulheres, por fim fica s uma

    andana (...), ai fica no sei e de repente reincide de novo,

    fica reincidente (ndio kaiow, chefe de Posto da Aldeia

    Caarap, T.I. Caarap, fita 03, p. 2).

    Ainda com referncia aos processos internos de soluo dos

    problemas relativos violncia, h muitas prticas hoje cada vez

    mais raras. O banimento, transferncia para outras aldeias, parece ter

    sido a pena mais grave a ser imposta a algum, mas que atualmente

    impossvel de ser adotada: Ento, hoje, no tem mais, ningum tem

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    22

    mais outra aldeia a pra transferncia. Ento, o nico jeito vai pra cadeia,

    se for flagrante (ndio kaiow, chefe de Posto da Aldeia Caarap, Terra

    Indgena Caarap, fita 03, p. 2).

    Quando transferido para outra aldeia, o nico castigo (era) ele

    trabalhar l na outra aldeia, levava a famlia dele, mulher dele e ficava

    l. A pagava por l e ficava por l, tambm, e nunca mais voltava. O

    castigo dele era isso. (ndio kaiow, chefe de Posto da Aldeia Caarap,

    Terra Indgena Caarap, fita 03, p. 2). De fato, esta prtica mudou e

    efetivamente as comunidades no tm mais concordado em aceitar

    a transferncia de pessoas que cometeram algum tipo de crime, fato

    subjacente ao nmero elevado de indgenas sendo processados.

    Sobre tal acentuao, h diversos depoimentos que indicam a

    percepo indgena sobre o incremento dos processos de criminalizao:

    , por exemplo, esse povo quer que v ndio preso mesmo.

    Olha na cara da gente assim e j tem que ir preso. No

    tem esse negcio de no. Ento qualquer coisa, xadrez

    mesmo, no tem perdo. Se a gente no tem advogado vai

    mesmo [inaudvel] e tem um advogado l, que na hora, l,

    na hora do jri tem aquele negcio de advogado l que

    vem na hora, acompanha. (ndio kaiow, chefe de Posto

    da Aldeia Caarap, Terra Indgena Caarap, fita 03, p.13.)

    Mais grave ainda, os informantes reconhecem que, quando se

    trata de ndios, a polcia e a justia so mais rigorosas. Muita pessoa

    que no foi condenado ainda, j est trabalhando. S que no ndio

    no. Indio mais jogado, mais jogado que aqueles (ndio kaiow,

    detento da Cadeia Pblica de Caarap, fita 03, p.2).

    No entanto, o fato do ndio ser mais jogado no deve ser encarado

    com naturalidade. Pelo contrrio, temos a nossa disposio inmeros

    marcos legais cuja funo apontar a ilegalidade desta situao.

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    II - Marcos Legais

    O Superior Tribunal de Justia, atravs da Sumula 140, diz que

    compete Justia Comum Estadual processar e julgar crime em que o

    indgena figure como autor ou vtima. Se a incumbncia de processar

    e de julgar da Unidade Federativa, o mais indicado que esta se

    adeqe s necessidades especiais, que os operadores do direito tomem

    conhecimento, observem e apliquem com acuidade todos os direitos

    coletivos e individuais dos indgenas. Aqui visamos apresentar, em

    carter sinttico, os marcos legais que devem orientar os inquritos,

    processos e julgamento dos crimes.

    A Constituio Federal de 1988 consolida o marco da mudana

    de paradigma na poltica indigenista oficial brasileira, fornecendo

    os elementos norteadores do respeito diferena cultural dos povos

    indgenas. Dois artigos foram dedicados especificamente determinao

    dos direitos indgenas:

    Art. 231. So reconhecidos aos ndios sua organizao social,

    costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre

    as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-

    las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

    Art. 232. Os ndios, suas comunidades e organizaes so partes

    legtimas para ingressar em juzo em defesa de seus direitos e interesses,

    intervindo o Ministrio Pblico em todos os atos do processo.

    O Cdigo Civil (Lei n. 10.683/03), que em seu diploma anterior

    especificava a situao civil do indgena, em seu novo texto aprovado

    em 2003 deixa-a a cargo de Lei Especial que, neste caso, remete

    Lei 6001/73 - Estatuto do ndio. Notadamente anterior Constituio

    Federal de 1988, o Estatuto do ndio mostra-se no recepcionado em

    alguns aspectos, principalmente em seus dispositivos que tratam da

    antiga inteno do Estado em promover a integrao dos indgenas

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    24

    comunho nacional que, em funo disto, estabelece nveis de

    integrao para os ento chamados silvcolas os indgenas. O artigo

    231 da Constituio Federal coloca abaixo o uso destas categorias, com

    o reconhecimento do Estado como pluritnico, garantindo o direito

    destas populaes ao pleno exerccio de sua cultura.

    O Estatuto do ndio possui dois artigos que versam diretamente

    sobre a condio dos indgenas apenados:

    Art.56. No caso de condenao de ndio por infrao penal, a

    pena dever ser atenuada e na sua aplicao o juiz atender tambm

    ao grau de integrao do silvcola.

    Pargrafo nico. As penas de recluso e de deteno sero

    cumpridas, se possvel, em regime especial de semi-liberdade, no local

    de funcionamento do rgo federal de assistncia aos ndios mais

    prximo da habitao do condenado.

    Art.57. Ser tolerada aplicao, pelos grupos tribais, de acordo

    com as instituies prprias, de sanes penais ou disciplinares contra

    os seus membros, desde que no revistam carter cruel ou infamante,

    proibida em qualquer caso a pena de morte.

    O Cdigo Penal no trata diretamente do envolvimento de

    indgenas com ilcitos, contudo podemos destacar o artigo 21,

    considerado potencialmente pertinente a esta situao, embora tambm

    no a contemple adequadamente:

    Art. 21 O desconhecimento da lei inescusvel. O erro sobre

    a ilicitude do fato, se inevitvel, isenta de pena; se evitvel, poder

    diminu-la de um sexto a um tero.

    Pargrafo nico. Considera-se evitvel o erro se o agente atua ou

    se omite sem a conscincia da ilicitude do fato, quando lhe era possvel,

    nas circunstncias, ter ou atingir essa conscincia.

    E no mnimo vergonhoso que ainda venha sendo utilizado o

    artigo seguinte do Cdigo Penal Brasileiro / Decreto-Lei 2.848 de 07 de

    Dezembro de 1940 para tais casos:

    Inimputveis - Artigo 26: isento de pena o agente que, por doena

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    mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era ao

    tempo da ao ou da omisso, inteiramente incapaz de entender o carter

    ilcito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

    O Cdigo de Processo Penal tambm omisso em relao s situaes especficas de indgenas em crimes, limitando-se a tratar da

    situao do interrogatrio a cidado no-falante da lngua nacional, como se segue:

    Art. 193 Quando o acusado no falar a lngua nacional, o interrogatrio ser feito por intrprete.

    A Conveno n 169/OIT (Organizao Internacional do Trabalho /Conselho Administrativo da Repartio Internacional do Trabalho, Genebra, junho de 1989), homologada pelo governo brasileiro em 19.04.2003 atravs do Decreto n 5.051/03, traz seu texto alinhado com os preceitos constitucionais de garantia do direito ao exerccio da diferena cultural das etnias e torna-se um dos principais instrumentos orientadores da relao dos Estados independentes com povos indgenas e tribais. J em seu prembulo advoga:

    Reconhecendo as aspiraes desses povos a assumir o controle de suas prprias instituies e formas de vida e seu desenvolvimento

    econmico, e manter e fortalecer suas identidades, lnguas e religies, dentro do mbito dos Estados onde moram;

    Observando que em diversas partes do mundo esses povos no podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da populao dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas tm sofrido eroso freqentemente.

    Em seu artigo 4 dispe:

    Devero ser adotadas as medidas especiais que sejam necessrias para salvaguardar as pessoas, as instituies, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.

    Artigo 8

    1. Ao aplicar a legislao nacional aos povos interessados devero ser levados na devida considerao seus costumes ou seu

    direito consuetudinrio.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    26

    Artigo 9

    1. Na medida em que isso for compatvel com o sistema jurdico

    nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,

    devero ser respeitados os mtodos aos quais os povos interessados

    recorrem tradicionalmente para a represso dos delitos cometidos pelos

    seus membros.

    2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem

    sobre questes penais devero levar em conta os costumes dos povos

    mencionados a respeito do assunto.

    Ainda em seu Artigo 10, dispe mais especificamente sobre os

    indgenas apenados:

    1. Quando sanes penais sejam impostas pela legislao geral

    a membros dos povos mencionados, devero ser levadas em conta as

    suas caractersticas econmicas, sociais e culturais.

    2. Dever-se- dar preferncia a tipos de punio outros que

    o encarceramento.

    Artigo 12

    Os povos interessados devero ter proteo contra a violao de

    seus direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente,

    seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o

    respeito efetivo desses direitos. Devero ser adotadas medidas para

    garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer

    compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for

    necessrio, intrpretes ou outros meios eficazes.

    CRONOLOGIA / RECEPO

    OIT 169 27 de Junho de 1989;

    Vigncia Internacional: 05 de Setembro de 1991;

    Aprovao Nacional: Decreto Legislativo 143 de 20 de

    Junho de 2002;

    Ratificao: 25 de Julho de 2002;

    Vigncia Nacional: 25 de Julho de 2003;

    Promulgao: Decreto 5.051 de 19 de Abril de 2004;

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    Emenda Constitucional 45 de 08 de Dezembro de

    2004 Artigo 5, LXXVIII, 3.

    Outro importante instrumento na defesa dos direitos dos povos

    indgenas a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos

    Indgenas (DDPI), aprovada em Setembro de 2007. Ainda que seja um

    instrumento no vinculante, a DDPI um importante parmetro de ao

    para os Estados, na medida em que traz em seu bojo grandes avanos

    conceituais acerca dos direitos dos Povos Indgenas, principalmente na

    total transversalidade do direito de livre determinao, um dos pilares

    da Declarao. No que concerne s questes jurdicas, a Declarao

    esclarece os seguintes direitos:

    Artigo 08

    2. Os Estados estabelecero mecanismos eficazes para preveno

    e o ressarcimento de:

    a) todo ato que tenha por objeto ou conseqncia privar os povos

    e as pessoas indgenas de sua integridade como povos diferentes, ou de

    seus valores culturais, ou de sua identidade tnica.

    Artigo 13

    1. Os Povos Indgenas tm direito a revitalizar, utilizar, desenvolver

    e transmitir s geraes futuras suas histrias, idiomas, tradies orais,

    filosofias, sistemas de escrita e literaturas, e a atribuir nomes a suas

    comunidades, lugares e pessoas e a mant-los.

    2. Os Estados adotaro medidas eficazes para garantir a

    proteo desse direito e tambm para assegurar que os Povos Indgenas

    possam entender e fazer-se entender nas atuaes polticas, jurdicas e

    administrativas, proporcionando-lhes, quando necessrio, servios de

    interpretao ou outros meios adequados.

    Artigo 34

    Os Povos Indgenas tm direito a promover, desenvolver e manter suas

    estruturas institucionais e seus prprios costumes, espiritualidade, tradies,

    procedimentos, prticas e quando existam, costumes ou sistemas jurdicos,

    em conformidade com a normativa internacional de direitos humanos.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    28

    Artigo 35

    Os Povos Indgenas tm o direito de determinar as

    responsabilidades dos indivduos para com as suas comunidades.

    Artigo 40

    Os Povos Indgenas tm direito a procedimentos eqitativos

    e justos para a soluo das controvrsias com os Estados ou outras

    partes, e uma pronta deciso sobre essas controvrsias, assim como a

    uma reparao efetiva de toda violao de seus direitos individuais e

    coletivos. Nessas decises sero devidamente levados em considerao

    os costumes, tradies, normas e sistemas jurdicos dos Povos Indgenas

    interessados e as normas internacionais dos direitos humanos.

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    III - Situao Criminal, Processual e Prisional dos Detentos Indgenas no Mato Grosso do Sul

    Considerando-se os indgenas envolvidos em crimes comuns no

    estado do Mato Grosso do Sul, grande parte do problema enfrentado

    pelos Kaiow, Guarani e Terena est na fase inquisitiva. O Estado procede

    investigao policial, atravs de Inqurito Policial, onde feito o

    levantamento das provas material, formal, testemunhal e at pericial.

    Os levantamentos so efetuados pela Polcia Civil. Os indgenas que

    servem de informantes ou testemunhas ou que figuram como indiciados,

    na grande maioria das vezes, no dominam a lngua portuguesa. Alm

    disso, sentem-se intimidados diante dos procedimentos e pessoas que

    lhes so estranhos ao convvio.

    A maioria dos indgenas presos entrevistados desconhecia

    por completo a situao processual na qual estavam envolvidos e as

    prprias regras do sistema prisional. O nosso mundo jurdico lhes

    completamente estranho e incompreensvel. O mesmo desconhecimento

    era manifestado por seus familiares.

    Analisando as falas dos indgenas e o que consta nos processos

    analisados, percebe-se que as especificidades culturais e histricas so

    completamente ignoradas. So inmeros os problemas apontados: um

    primeiro diz respeito comunicao ou falta de compreenso da

    lngua e seus cdigos. Esse um problema grave que no superado

    apenas com a incluso de um simples tradutor. A fala de um informante

    indica bem esse problema:

    Quando eles prendem, , as pessoas, inclusive aqui eu

    tenho um tio meu, o problema dele est preso por caso

    de terra [...] s em Dourados sabe [...] aconteceu divisa

    de lote [...]. Ento foi questo de terra. S que ele no fala

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    30

    quase portugus. Ento, essa questo da traduo mesmo

    [...], do lingismo, tem necessidade de l dentro, algum

    ou algum advogado, especialista ou um outro algum (...),

    tradutor, pra explicar o que aconteceu realmente, o fato

    que aconteceu [...] pra poder a justia analisar. (ndio

    guarani, Aldeia Boror, Terra Indgena de Dourados, fita

    n.08, p. 3.)

    Outro problema relacionado s dificuldades de comunicao

    emerge no seguinte depoimento:

    Eu no acho justo, porque, se fosse feito alguma coisa

    nesse [inaudvel] (...), eu no estaria esquentando, mas o

    problema que eu estou aqui s por causa da quebra, que

    eu quebrei a intimao. Manda a intimao l e ningum

    entrega, ento eu no vim aqui pra assinar esse documento

    [inaudvel], que foi mandado l. por isso que eu estou

    aqui, eu no caia se eu tivesse assinado o documento, a

    intimao (ndio kaiow, detento da Cadeia Pblica de

    Caarap, fita n.03, p.5).

    As entrevistas com os detentos nos indicam a violao de seus

    direitos e garantias constitucionais diante da falta ou deficincia de

    assistncia jurdica. As provas colhidas, durante o Inqurito Policial e

    durante o processo penal, so parciais ou insuficientes; os testemunhos

    oferecidos pela acusao, muitas vezes, no so contestados pelos

    advogados ad hoc e a defesa nem sempre produz as provas que seriam

    necessrias. Os prprios indgenas reconhecem a falta de defesa: Cara

    l que tem ano, passa ano e advogado nem vai l [...] (Parente de

    detento kaiow na Penitenciria Mxima Harry Amorim Costa, em

    Dourados, Aldeia Boror, Terra Indgena de Dourados, fita n.05, p. 9.)

    O resultado que indgenas processados por delitos de

    homicdio, crime sujeito ao procedimento do Jri, devido defesa

    insuficiente acabam sendo pronunciados e, quando julgados por Jri

    Popular que desconhece seus modos de percepo e prticas sociais,

    so condenados.

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    Na fase processual, por falta de acompanhamento jurdico,

    muitos indgenas deixam de comparecer s audincias como

    testemunhas e, posteriormente, so processados por desobedincia

    ou conduzidos a juzo coercitivamente. Os indgenas processados, ao

    deixarem de comparecer, so declarados revis e acabam tendo suas

    prises decretadas preventivamente, ou seja, antes da condenao

    irrecorrvel. Prises preventivas poderiam ser evitadas se houvesse um

    acompanhamento jurdico prestado por profissionais comprometidos

    com a causa indgena.

    As testemunhas indgenas, na maioria das vezes, tm que ser

    dispensadas, devido a reiteradas faltas s audincias por no possurem

    condies financeiras para o deslocamento at a sede do juzo. Outras

    vezes sentem medo do formalismo, principalmente por saberem que

    estaro sob juramento, podendo ser condenadas por falso testemunho

    se omitirem ou faltarem com a verdade.

    Nas audincias criminais, h situaes em que o indgena no

    consegue dizer uma s palavra, por falta de orientao. Por ocasio

    da oitiva, o Procurador da Funai citado mas no comparece no dia,

    local e data, pois no tem como estar em vrias Comarcas ao mesmo

    tempo. O Juiz, na ausncia deste, nomeia o famoso Ad Hoc. Muitos

    deles, porm, nunca leram o Estatuto do ndio (Lei 6.001/73) ou a

    Conveno 169/OIT.

    Na esfera criminal, o prejuzo desta deficincia ainda maior

    quando o processo versa sobre delito de homicdio, visto que os

    testemunhos e provas com vcios no so contestados, o que fatalmente

    pode levar um inocente pronncia e, conseqentemente, Jri

    popular, o que contribui para a condenao com agravantes.

    Uma vez segregado da comunidade o ru preso vai gradativamente

    enfraquecendo os vnculos sociais que mantinha com a mesma e

    sua famlia tende a se dispersar. A maioria dos presos entrevistados

    nos presdios no recebia visitas e disto muito se ressentiam. O

    distanciamento das aldeias e as exigncias do prprio presdio dificultam

    que isto ocorra. A deteno implica em perder a famlia, o que um

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    32

    grave problema para povos em que a instituio da famlia a grande

    articuladora das funes sociais e liga-se sobremaneira a prpria noo

    de pessoa. Podemos entrever a dramaticidade da situao nas seguintes

    falas: No, no vem no. No vem, no vem a minha famlia, no

    veio nenhuma vez aqui... Eu preciso sabonete, preciso sabo pra lavar

    roupa. (ndio kaiow, detento da Cadeia Pblica de Caarap, fita n.03,

    p.4). E, ainda:

    Eu senti mais que a gente fica longe da famlia, fica perdido

    a, no sei como que t l fora. Minha preocupao

    somente s isso a, fica trancado a, sem fazer nada, todo

    o dia fica a na cela n, trancado que nem a mesma coisa:

    vocs fecham o galo sozinho a (...), isso a que eu me

    preocupo muito (ndio kaiow, detento da Cadeia Pblica

    de Caarap, fita n.03, p.11).

    Reclamam, tambm, das condies na carceragem:

    Tinha dezoito cada cela, dezoito cada cela, dormia que

    nem sardinha, num pode nem vira pra c, num pode nem

    vira pra l e tem que respeitar muito, tambm, as pessoas

    que , esto dormindo assim no cho, no pode pisar na

    coberta, no pode pisar no colcho, por seqncia pra

    voc entrar no banheiro pra tomar banho, por seqncia.

    Por exemplo, se a pessoa que dorme ali na beira da porta

    do banheiro, primeiro ele tem que levantar pra ir tomar

    ducha, pra ir tomar banho l e quando ele sai, e no pode

    apurar, tambm, no pode acelerar, (...) agora se voc

    d vontade muito de cagar a voc avisa ele a deixa (...),

    se voc est com dor de barriga l isso tem que avisar.

    (...) Ento, muito complicado, muito complicado pra

    pegar assim, pra pegar assim comida complicado [...]

    (ndio kaiow, detento da Cadeia Pblica de Caarap, fita

    n.03, p.11.)

    A pouca ateno sade patente: Ele precisa de consultar o

    mdico, essas coisas, s se t bem doente mesmo leva para consultar

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    (ndio kaiow, detento da Cadeia Pblica de Caarap, fita n.03, p.11.)

    Porm, os indgenas reivindicam principalmente o direito

    informao e o reconhecimento de sua diversidade nas condies

    de crcere:

    o Estado, o governo teria que ver um jeito de ter esses,

    esse espao para tratamento diferenciado pros indgenas,

    eu vejo mais no caso do indgena pouco escolarizado [...].

    (Com) pouco de informao, ele j consegue, ele entende

    e consegue sobreviver num meio de um, de um grupo de

    presos, , vamos dizer assim, com diversidade diferente

    l dentro (ndio kaiow, Aldeia Boror, Terra Indgena

    Dourados, fita n.08, p.7-8).

    E, aliado a isso, contestam a premncia do direito positivo face

    ao direito consuetudinrio:

    Eu acho que esse da tem que avanar [...] , inclusive

    com os agentes carcerrios, indgena que fala o idioma pra

    poder tambm repassar pra prpria famlia [...]. Fazer essa

    interlocuo l dentro [...] porque parente est assim, ele

    est precisando disso, ele est sentindo assim [...]. Ele teria

    uma melhor, vamos dizer assim, essa resocializao seria

    acho que mais vlido do que ele ser preso ai no meio de

    preso comum, numa penitenciria grande como no caso

    do Harry Amorim (ndio kaiow, Aldeia Boror, Terra

    Indgena Dourados, fita n.08, p. 9).

    Da pesquisa realizada sobre a fase processual: processos e guias

    de recolhimento que se encontram nas Varas Criminais do Estado, 149

    processos foram localizados de acordo com os dados fornecidos pela

    Agncia Estadual de Administrao do Sistema Penitencirio do MS -

    AGEPEN e pela Diretoria Geral da Polcia Civil - DGPC. Estes processos

    nos indicam os seguintes nmeros de detentos por unidades prisionais:

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    34

    Dourados 68

    Amambai 23

    Aquidauana 10

    Navira 04

    Ponta Por 04

    Trs Lagoas 04

    Caarap 03

    Campo Grande 01

    Rio Brilhante 01

    Botaguassu 01

    Da listagem total, 16 processos no foram analisados por serem

    segredo de justia (crimes sexuais envolvendo menor de idade), 12 por

    estarem arquivados e 6 por no serem rus indgenas. Num segundo

    levantamento, outros processos foram encontrados, o que resultou

    num total de 96 indgenas em 103 processos. Cumpre lembrar que

    h processos em que temos dois ou mais indgenas envolvidos, assim

    como alguns indgenas figuram em mais de um processo, por isso no

    h identidade numrica entre processos e indgenas.

    O Sistema de Monitoramento e Acompanhamento criado pelo

    CTI/UCDB (software) computa cada lanamento como um processo,

    por exemplo, existe um processo que tm 09 rus, o software apresenta

    como nove processos, pois foram acrescentados nove fichas, uma para

    cada ru.

    Quanto aos resultados obtidos na anlise dos processos

    pesquisados sobre a rubrica situao processual, todos eles j

    estavam em andamento, mas onde se l condenado, significa que

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    j o processo j terminou e, consequentemente, os indgenas j esto

    cumprindo pena. Fazendo a anlise das fichas encontramos rus com

    dupla condenao em um nico nmero de Guia de Recolhimento

    (GR). Para entender: quando a ao penal est em andamento o

    chamamos de processo, quando o ru condenado definitivamente

    aquele processo encaminhado Vara de Execuo penal e passa a

    ser chamado de Guia de Recolhimento. Quando o ru condenado

    por um novo crime a nova condenao se soma pena antiga, sendo

    assim um nico condenado pode ter duas condenaes, com um nico

    nmero de processo.

    Outro exemplo: como cada processo gera um nmero e uma ficha

    no sistema, aqueles que tiveram uma pluralidade de processos fazem

    com que haja discrepncia no resultado final, pois em um processo ele

    pode ter sido preso em flagrante e numa nova condenao ele pode ter

    sido preso provisoriamente. Caso tenhamos j condenaes definitivas,

    essas penas se somam e viram condenado em regime fechado, semi-

    aberto ou aberto.

    Neste sistema, tambm a tipificao do crime pode ultrapassar

    o nmero de casos analisados, pois se o agente num processo est

    sendo condenado a um estupro e um homicdio em concurso material

    de crimes, aparecem duas tipificaes. Assim como no caso de duas

    condenaes (processos diferentes) que depois de condenado se juntam

    em uma mesma GR. (exemplo: um ru foi condenado a 18 anos por

    estupro + homicdio [01 processo] e depois foi condenado por coao

    no curso do processo [outro processo], ao final virou uma GR com duas

    condenaes, mas trs tipificaes).

    Desta maneira, os resultados dos diferentes cruzamentos, quando

    comparados, resultam aparentemente incongruentes, pois podem

    ultrapassar ou no alcanar os nmeros de processos analisados. Para

    evitar confuses na leitura dos resultados da pesquisa por item, optamos

    por substituir os nmeros por porcentagens.

    Os resultados obtidos referentes ao levantamento realizado em

    103 processos relativos ao ano de 2006 so:

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    36

    !

    Situao Processual

    Condenado, em livramento condicional 04%

    Condenado, cumprindo pena no fechado 45%

    Condenado, cumprindo pena no aberto 06%

    Condenado, cumprindo pena no semi-aberto 12%

    Processado e preso provisoriamente 08%

    Processado e solto 10%

    Preso e aguardando jri 15%

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    Natureza da deteno

    No informado 04%

    Priso em Flagrante 63%

    Priso Preventiva 28%

    Proveniente de sentena condenatria 03%

    Priso Temporria 01%

    Outro 01%

    !

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    38

    Se foi reconhecido como indgena no processo

    Sim 97%

    No 03%

    !

    Se aparece como indgena pelo rgo responsvel pela priso

    Sim 97%

    No 03%

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    39!Tipificao do crime

    Art. 121 c.c art. 14, II do CP Tentativa de

    homicdio

    03%

    Art. 12 da Lei 6.368/76 ou art. 33 da lei 11.343/07

    Trfico de drogas

    11%

    Art. 14 da Lei 10.826/03 Porte ilegal de arma 01%

    Art. 121 Homicdio 37%

    Art. 129 Leso Corporal 04%

    Art. 147 Ameaa 01%

    Art. 155 Furto 03%

    Art. 157 Roubo 06%

    Art. 211 Ocultao de cadver 02%

    Art. 213 Estupro 16%

    Art. 214 Atentado violento ao pudor 07%

    Art. 213 ou Art.214 c.c art. 224 Crime sexual

    por presuno de violncia

    04%

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    40

    Art. 213 ou Art. 214 c.c Art. 226 Crime sexual

    com aumento de pena quando a vtima parente

    04%

    Art. 344 Falso testemunho 01%

    !

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    Acompanhamento

    Defensoria Pblica 67%

    FUNAI 22%

    Advogado Particular 09%

    Outro: Conselho Tutelar (adolescente) 02%

    Acompanhado por advogado nos interrogatrios

    No 06%

    Sim, na fase policial 06%

    Sim, ambas as fases 10%

    Sim, somente fase judicial 78%

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    42

    !

    Reincidente

    Sim 14%

    No 83%

    No informado 03%

    !

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    Testemunhas

    No indgenas 04%

    Indgenas 96%

    !

    Lugar do crime

    Comunidade do detento 78%

    Em outra comunidade 06%

    Na cidade 10%

    Outro local 05%

    No informado 01%

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    44 Vtima

    Mesma etnia 55%

    Etnias distintas 04%

    No indgenas 16%

    No informado 25%

    Obs.: h processos em que no h uma vtima (ex.: trfico de drogas)

    !

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    Relao das localidades

    R.I. Dourados - 58%, sendo:

    Jaguapiru 29%

    Boror 19%

    Aldeia Passo Piraju 10%

    T.I. Amambai

    Aldeia Amambai 14%

    T.I. Aldeia Limo Verde 05%

    T.I. Caarap

    Teyikue 06%

    T.I. Guyrarok 01%

    T.I. Taquaperi 05%

    T.I. Panambi 01%

    T.I. Nioaque

    Aldeia Brejo 01%

    T.I. anderu Marangatu

    Aldeia Pin Campestre 03%

    T.I. Kadiwu

    Aldeia Bodoquena 01%

    T.I. Cachoerinha

    Aldeia Morrinho 01%

    T.I. Ramada

    Posto Indgena Sassor 01%

    No informado 03%

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    46

    !

    H evidncias de bebidas alcolicas

    No 42%

    Autor alcoolizado 21%

    Vtima alcoolizada 01%

    Autor e vtima alcoolizados 36%

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    !

    Presena de intrprete ou outro meio eficaz para compreenso (Art. 12 da Conv. 169- OIT: Medidas devero ser tomadas para garantir que os membros desses povos possam

    compreender e se fazerem compreender em processos legais,

    proporcionando-lhes, se necessrio, intrpretes ou outros meios

    eficazes.)

    Sim 22%

    No 78%

    !

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    48

    Preferncia ao no encarceramento aparece na definio da pena. (Art. 10 da Conv.169: Dever-se- dar preferncia a tipos de punio que no o encarceramento.)

    Sim 01%

    No 99%

    !

    Se levou em conta as formas de punir que acontecem na comunidade (Art. 9 da Conv. 169-OIT: Desde que compatveis com o sistema jurdico nacional e com os direitos

    humanos internacionais reconhecidos, devero ser respeitadas

    as medidas a que tradicionalmente recorrem esses povos para

    punir delitos cometidos por seus membros. Nesses casos,

    autoridades e tribunais solicitados a se pronunciarem sobre

    questes penais devero levar em conta os costumes desses

    povos.)

    Sim 01%

    No 99%

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    49!

    Houve solicitao de percia?

    No 67%

    Sim, sendo:

    Psicolgica 17%

    Psiquitrica 04%

    Antropolgica 12%

    !

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    50

    H controvrsias quanto autoria do crime?

    Ru confessou 23%

    Ru confessou somente na fase policial 35%

    Ru confessou somente em juzo 06%

    Ru confessou em ambas a fases 31%

    Ru negou a autoria 05%

    !

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    IV- Recomendaes que visam a um maior conhecimento e aplicao dos Direitos Indgenas:

    Implementao de mini-cursos/reunies nas comunidades indgenas

    levando conhecimento sobre os direitos dos povos indgenas na

    rea penal.

    Os Direitos Indgenas devem ser tema das escolas indgenas. No

    caso dos Kaiow e Guarani tambm no Ara Vera (ensino mdio) e

    Teko Arandu (ensino superior).

    Criao de disciplina nos currculos das faculdades de direito que

    contemplem o Direito Indgena.

    Que as Universidades Pblicas e Privadas fomentem estgios

    com atendimento s comunidades indgenas, envolvendo,

    preferencialmente, os acadmicos indgenas.

    Necessidade da capacitao dos quadros administrativos regionais

    da Funai sobre os dispositivos contidos na Conveno 169 da OIT.

    Formao de equipes interdisciplinares com a presena de

    antroplogos que atuem na capacitao dos profissionais que

    trabalham em Delegacias de Polcia para um atendimento

    especializado aos indgenas.

    Capacitao dos profissionais que trabalham nos Juizados Especiais

    Criminais, Varas Criminais e Varas de Execuo Penal sobre os

    direitos indgenas, ou seja, as regras constantes no Estatuto do ndio

    e na Conveno 169 da OIT.

    Contratao e/ou formao de especialistas em direito indgena nas

    Defensorias Pblicas.

    Necessidade de que haja representantes indgenas nos Conselhos

    de Segurana Pblica municipais.

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    52

    Que na ficha de Vida Pregressa - documento preenchido nas

    Delegacias - tenha campos que contemplem a informao de ser o

    agente indgena e a qual etnia pertence.

    Destinao de um espao para detentos indgenas dentro dos

    estabelecimentos prisionais j existentes, seguindo o modelo da

    PHAC de Dourados.

    Estabelecer polticas pblicas que tenham como objetivo a

    reintegrao dos ex-detentos s suas comunidades de origem.

    Propostas de Alteraes Legislativas

    No interrogatrio, que seja garantido o acompanhamento de

    intrprete ou outro meio que permita ao indgena entender e se

    fazer entender.

    No interrogatrio de indgena que fale a lngua portuguesa, seja

    facultado a ele falar em seu prprio idioma, sendo-lhe garantida a

    presena de um intrprete.

    Nos processos em que houve a necessidade de acompanhamento

    de intrprete durante o interrogatrio, tambm haja intrprete

    durante os demais atos processuais, ou seja, durante as audincias

    para oitiva das testemunhas de defesa e acusao.

    No interrogatrio e na oitiva das testemunhas, que seja perguntado

    pelo juiz sobre a existncia ou no de aplicao de sano pela

    prpria comunidade do ru.

    Durante o interrogatrio, que seja perguntado se o preso tem

    dependentes e se assegure a forma de subsistncia deles em caso de

    condenao do ru.

    Em processos da competncia do Tribunal do Jri em que o ru ou

    a vtima seja indgena, que o corpo de jurados seja composto por

    representantes dos povos indgenas da mesma etnia do autor do fato

    e da vtima.

    Criao de dispositivo legal que reconhea a punio aplicada na

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    53

    aldeia como causa de extino de punibilidade.

    Criao de um dispositivo legal que descreva o regime de semi-

    liberdade previsto na Conveno 169 da OIT.

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    Concluso

    Os dados aqui apresentados iluminam, acima de tudo, a total des-etnizao dos indgenas nos inquritos, processos e na situao prisional. Os rgos responsveis no conseguem informar-nos sobre a que grupo pertencem os detentos indgenas, nem tampouco prover-lhes de um tratamento diferenciado e especfico, garantido por lei. Alm

    disso, latente o despreparo e descaso que os operadores do direito, seja qual for a instncia, demonstram para com os Direitos Indgenas estabelecidos em territrio nacional. E muito menos procuram refletir

    ou tomar em conta a natureza do Direito Consuetudinrio dos povos indgenas e se, a tempo, o Direito Positivo deve consider-lo ou no. A insuficincia de defesa, no entanto, o fato mais grave com que os

    acusados indgenas tm que se defrontar.

    O direito defesa o pressuposto bsico de qualquer procedimento judicial e se liga, mais amplamente, ao direito humano, seja qual for a filiao cultural do envolvido. Sem intrpretes, meio

    eficaz de comunicao e requerimento de percia antropolgica, os

    acusados indgenas no puderam acessar o direito plena defesa. Desta forma, minimamente prudente no atribuir contornos absolutos aos dados processuais disponveis, no sentido de que tais dados no nos permitem afirmar a culpabilidade do ru, nem tampouco a tipificao

    do crime. Cabe ao Ministrio Pblico e aos Procuradores da Funai questionarem tais processos e trabalharem, na medida do possvel, para sua nulidade.

    A problemtica se complexifica ainda mais quando nos voltamos

    para as prprias noes de culpabilidade envolvidas. Os operadores do direito tm o dever de atentarem para as noes de crime especficas de

    cada povo e reforar a autonomia destes sobre as formas de punio, como determina a Lei 6001. Nos crimes tipificados como estupro, para

    citar um exemplo, podem estar envolvidas percepes diversas e at incongruentes sobre iniciao sexual, casamento e parentesco. Nesse

  • Situao dos Detentos Indgenas no Estado do Mato Grosso do Sul

    56

    sentido, impor aos indgenas um sistema moral, criminal e prisional totalmente alheio aos seus costumes, usos e tradies, significa

    novamente vitim-los.

    Deveria ser igualmente considerada pelos operadores do direito a situao social interna nas denncias, quando feitas por membros da prpria comunidade indgena. No caso dos Kaiow, por exemplo, sabido que nas terras indgenas reservadas pelo SPI nos anos 1920 convivem famlias extensas e mesmo grupos locais que vieram de outras terras e que delas foram despejados ou desalojados no processo de colonizao do estado do Mato Grosso do Sul. So famlias ou grupos de famlias que esto fora de suas terras e so pressionadas pelas famlias locais a voltarem para as suas terras, para seus tekoha de origem. As rivalidades internas que este processo ocasiona foram potencializadas pelo crescimento demogrfico, gerando uma situao de anomia social

    grave, como a que se verifica hoje em Dourados e Amambai. Muitas das

    acusaes feitas por membros da comunidade tm esse pano de fundo como motivo e isto no nem de longe averiguado nos processos ou nas queixas-crimes.

    O desafio consiste em encontrar alternativas de dilogo e

    convivncia, que no s no agravem os problemas relativos organizao social indgena, mas que, ao contrrio, contribuam para diminuir a tenso interna e fortalecer as formas organizativas prprias de cada povo. Esse um aspecto da maior relevncia se tivermos em conta que, sob a tica indgena, o autor de delitos deve reparar os danos de seu ato e dessa forma ser reintegrado. importante no esquecer que as famlias extensas constituem, ainda hoje, a unidade social bsica, sendo difcil pensar alternativas de controle social fora das relaes de parentesco particulares a cada etnia. Cabe ao Estado negociar com as comunidades indgenas a viabilizao de sua harmonia social sem ter que lhes impor um sistema carcerrio como forma de resoluo dos problemas resultantes.

    Finalmente, eventuais propostas alternativas devem objetivar a participao indgena na soluo dos problemas que vivenciam, visando, sobretudo, ao fortalecimento de instncias de deciso prvia ao sistema judicial inseridas nas comunidades indgenas locais.

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    Siglrio

    ABA Associao Brasileira de Antropologia

    Agepen Agncia Estadual da Administrao do Sistema Penitencirio

    do MS

    CTI Centro de Trabalho Indigenista

    CICV Comit Internacional da Cruz Vermelha

    DDPI Declarao das Naes Unidas sobre o Direito dos Povos

    Indgenas

    DGPC Diretoria Gera da Polcia Civil

    Funai Fundao Nacional do ndio

    Funasa Fundao Nacional de Sade

    Incra Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    MS Estado do Mato Grosso do Sul

    Neppi Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Populaes Indgenas

    Nupeju Ncleo de Pesquisa e Monografia Jurdica

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    R.I. Reserva Indgena

    SPI Servio de Proteo aos ndios

    T.I. Terra Indgena

    UCDB Universidade Catlica Dom Bosco

    UE Unio Europia