Cuca entrevista gilberto gil

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CUCA entrevista Gilberto Gil Entrevista: Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE 1 . Matéria: Aline Carvalho 2 Às vésperas de comemorar dez anos de atividades, o Circuito Universitário de Cultura e Arte (CUCA da UNE ) tem buscado as raízes de sua história, que remonta aos Centros Populares de Cultura (CPC da UNE). Este movimento de coletivos estudantis teve um importante papel na década de 60, ao aproximar a produção cultural estudantil das principaís lutas sociais daquele período. Dentro deste mergulho, muitos dos atores que fizeram parte daquelas movimentações estão ainda hoje no cenário político e cultural, nos lembrando que o que pra gente é historia, pra eles é memória. Um dos principais articuladores da Tropicália nos anos 60 e ex-Ministro da Cultura, Gilberto Gil recebeu integrantes do CUCA para um bate papo sobre cultura, política, juventude e educação. Gil tem uma trajetória reconhecida – e, às vezes polêmica - no cenário cultural e político do país : No âmbito da Tropicália, foi considerado subversivo ao inserir temas cotidianos no debate político através de sua arte, e apoiou o uso de guitarras elétricas na musica brasileira - o que era considerado naquele momento uma ameaça à cultura nacional. Sua criação artística busca investigar as raízes da cultura brasileira, sempre permeadas pela critica social e refletindo as experiências pelas quais passava e ainda passa. Seus últimos trabalhos são fortemente marcados pelo dialogo entre a cultura tradicional e as novas tecnologias, e Gil parece às vezes ser incompreendido por estar a frente de seu tempo. Enquanto ministro (2003-2008), apoiou e difundiu o uso de software livres, o compartilhamento na internet e propôs reformas nas políticas culturais até então centralizadas na mão de grandes produtores, recebendo diversas criticas por mexer em estruturas que envolvem grandes interesses. Durante a sua gestão foi criado o “ Programa Cultura Viva ” e os “Pontos de Cultura”, uma rede de mais de três mil projetos culturais diversificados que recebem apoio do Ministério para desenvolverem suas ações de forma autônoma e protagonista. Nesta entrevista, Gil conta ter feito parte da diretoria do CPC de Salvador, o que desmistifica uma possível rixa histórica entre tropicalistas e a UNE. Ele fala sobre a fragmentação e pluralidade característica do povo brasileiro e da dificuldade de se decretar uma identidade nacional - desafio daquele momento que se coloca hoje novamente, em novos contextos. Para ele, o principal mérito do Ministério da Cultura foi a politização do debate sobre a cultura entre 1 http://www.cucadaune.blogspot.com/ 2 http://www.tropicaline.wordpress.com /

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CUCA entrevista Gilberto Gil

Entrevista: Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE1. Matéria: Aline Carvalho2

Às vésperas de comemorar dez anos de atividades, o Circuito Universitário de Cultura e Arte

(CUCA da UNE) tem buscado as raízes de sua história, que remonta aos Centros Populares de Cultura

(CPC da UNE). Este movimento de coletivos estudantis teve um importante papel na década de 60, ao

aproximar a produção cultural estudantil das principaís lutas sociais daquele período. Dentro deste

mergulho, muitos dos atores que fizeram parte daquelas movimentações estão ainda hoje no cenário político

e cultural, nos lembrando que o que pra gente é historia, pra eles é memória.

Um dos principais articuladores da Tropicália nos anos 60 e ex-Ministro da Cultura, Gilberto Gil

recebeu integrantes do CUCA para um bate papo sobre cultura, política, juventude e educação. Gil tem uma

trajetória reconhecida – e, às vezes polêmica - no cenário cultural e político do país : No âmbito da

Tropicália, foi considerado subversivo ao inserir temas cotidianos no debate político através de sua arte, e

apoiou o uso de guitarras elétricas na musica brasileira - o que era considerado naquele momento uma

ameaça à cultura nacional.

Sua criação artística busca investigar as raízes da cultura brasileira, sempre permeadas pela

critica social e refletindo as experiências pelas quais passava e ainda passa. Seus últimos trabalhos são

fortemente marcados pelo dialogo entre a cultura tradicional e as novas tecnologias, e Gil parece às vezes

ser incompreendido por estar a frente de seu tempo.

Enquanto ministro (2003-2008), apoiou e difundiu o uso de software livres, o compartilhamento na

internet e propôs reformas nas políticas culturais até então centralizadas na mão de grandes produtores,

recebendo diversas criticas por mexer em estruturas que envolvem grandes interesses. Durante a sua gestão

foi criado o “Programa Cultura Viva” e os “Pontos de Cultura”, uma rede de mais de três mil projetos

culturais diversificados que recebem apoio do Ministério para desenvolverem suas ações de forma

autônoma e protagonista.

Nesta entrevista, Gil conta ter feito parte da diretoria do CPC de Salvador, o que desmistifica uma

possível rixa histórica entre tropicalistas e a UNE. Ele fala sobre a fragmentação e pluralidade

característica do povo brasileiro e da dificuldade de se decretar uma identidade nacional - desafio daquele

momento que se coloca hoje novamente, em novos contextos. Para ele, o principal mérito do Ministério da

Cultura foi a politização do debate sobre a cultura entre diversos agentes sociais e o governo. Os Pontos de

Cultura são hoje um importante movimento social e cultural - do qual o CUCA faz parte - que conta com

uma participação ampla e protagonista por parte da juventude, atualizando estes debates.

No alto dos seus 68 anos, Gilberto Gil continua uma das figuras mais interessantes e irreverentes no

cenário cultural e político do país. Em sua produtora Gegê, no Rio de Janeiro, a entrevista teve mais cara

de bate-papo e quem começa perguntando é ele:

1 http://www.cucadaune.blogspot.com/ 2 http://www.tropicaline.wordpress.com /

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Gil: Qual é a avaliação que vocês tem hoje da representatividade do movimento estudantil? É

diferente, né, pois na minha época tinha uma linha auxiliar importante que era a luta

operaria, os estudantes tinham um papel muito protagonista naquela época. Evidentemente as

coisas são diferentes hoje pela própria institucionalidade, pelos vários segmentos

representativos, que já demonstram uma diferença daquele tempo. E o movimento estudantil

brasileiro era também o desdobramento natural de um movimento estudantil internacional,

que também hoje se modificou muito na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina.

Como é que é hoje?

CUCA: Sem duvidas, é um desafio. Naquela época o CPC fazia o “auto dos 99%” onde apenas 15

da população ingressava na universidade. Hoje a coisa ainda não mudou muito, apenas 10% da

juventude se encontra na universidade mesmo com outros recursos como o Prouni e o Reuni. Mas

parte de uma critica em ver que o mundo esta mais diversificado e as pautas especificas ganham

maior relevo e isso ao mesmo tempo gera um maior questionamento as entidades representativas. E

estas precisam atualizar suas agendas especificas. É a partir daí que algumas agendas surgem como

o CUCA, que busca pensar a produção de cultura e arte na universidade. Mas tem também a

Marcha M undial d as Mulheres , Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade, que

participa do Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE), da qual a UNE também faz parte... Ou

seja, as pautas se pluralizaram e de alguma forma também os movimentos. Mas naquela época

mesmo, tinha o CPC, que dava prioridade a politização através da cultura, e também a Tropicália,

que colocava o debate já de outra maneira, repensando também o papel da mulher na sociedade, por

exemplo.

CUCA: Como era essa relação entre a Tropicália e o CPC?

Gil: Era a própria atividade do movimento estudantil que propiciava a existência do CPC. Na Bahia

tinha, eu era da diretoria. Tom Zé atuava também, Torquato [Neto] e Capinam escreveram bastante

coisa, Caetano [Veloso] [artistas ligados à Tropicalia] colaborava mas não era da diretoria.

Tínhamos uma agenda de atividades e chegamos a criar uma escola de samba, chamava-se “Amigos

do CPC”. E ai, com a ditadura foram interrompida as atividades do CPC Salvador e, imagino, de

todos os outros também.

CUCA: Na década de 60, a gente, o CPC, pensava muito a “identidade nacional brasileira”

então tinha uma preocupação com a questão do “nacional popular”, a identidade. Mas Mario

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de Andrade la atras já sugeria uma “entidade universal brasileira”, colocando em outra

dimensão a própria condição do brasileiro. Como você essa questão da identidade hoje?

Gil: A identidade esta na multiplicidade das identidades, que une todos esses povos, toda essa gente.

Essa é uma questão política também, a democracia é isso. Admissão da diferença, a consagração

desse elemento. Lutar para igualdade toda a vez que a diferença nos oprime e lutar pela diferença

quando toda a igualdade nos homogeneíza. É a eleição desse conceito como fundamental para a

sobrevivência e o avanço da espécie humana e de todas as espécies. Eu elegeria esse conceito da

diferença como o elemento “unificador” da identidade. A identidade esta exatamente na

multiplicidade das identidades. Não existe um só povo, não existe um só modo de ver as coisas,

uma só dimensão étnica, cultural, política. A diversidade da o tom dessa compreensão

contemporânea sobre o que somos.

CUCA: Na entrevista para o livro Culturadigital.br, você coloca que “a partir do digital o

local é chamado para o universal”. Não é que agora as pequenas comunidades vão ser

reduzidas em função de um universal, é esse universal que vai ter a possibilidade de fazer fluir

o local, o regional. Então pra você qual é a dimensão hoje do brasileiro que se coloca no

universal a partir do digital?

Gil: Naquele instante haviam os fragmentos identitários, no caso do Brasil, os vários povos, as

varias gentes brasileiras, e precisava a partir disso criar uma identidade brasileira nacional. O

grande dilema era exatamente como se mover no sentido de, reconhecido esses fragmentos, colocá-

los todos num cesto e a partir daí decretar uma identidade brasileira constituída por estes

fragmentos. Esse foi um dilema, um desafio, e uma impossibilidade também. Os fragmentos são

fragmentos e vão continuar fragmentos. Ai vem a questão da diferença, um fragmento é diferente

do outro e tem que ser respeitado como tal, não se pode querer que um único traço identitário

hegemonize todas as diferenças e determine que sejam todos iguais. Esse foi o dilema da época, e

essa é a questão ainda hoje. Evoluímos, sem duvida alguma, para o reconhecimento dessa

identidade em suspensão, fragmentaria, não redutível a uma coisa só, como quis a filosofia, como

quis a política, como quis as confecções ideológicas que foram propostas. Ai a gente pergunta hoje

“o que identifica o Brasil?”. O que identifica o Brasil é uma serie enorme de traços específicos,

muitos deles semelhantes de outros povos, mas outros também especificamente brasileiros. E mais,

eu diria que a tendência hoje é que mesmo esses traços de uma “identidade brasileira” acabam

sendo também reivindicados pelo mundo.

CUCA: O ambiente da ditadura militar, que era muito inóspito, gerou por outro lado

movimentos, outras formas de fazer e pensar a cultura e a política. Isso nos faz pensar em

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como a historia é feita de processos e como o hoje um dia vai ser passado e também já foi

futuro. Como você acha que aquela geração da contracultura influencia ou dialoga com a

juventude de hoje?

Gil: Basta averiguar de forma muito clara que uma série de agentes daquela época sobreviveram e

estenderam seu trabalho, e consequentemente sua influência, pros tempos de hoje. Sem saudosismo,

não há motivo pra saudade porque ao que era vivo se deslocou no movimento do tempo e do espaço

e continua vivo, pela nova geração. A própria cultura digital é fruto da cultura hippie, em alguns

casos até fisicamente: o pessoal que experimentou o conceito de cultura digital, do

compartilhamento, da informação condensada e refragmentada o tempo todo através dos

computadores, etc, era a geração que experimentava LSD nos anos 60 e 70.

CUCA: O próprio Timothy Leary já dizia que “o computador é o LSD do século XXI”, se

referindo à “expansao da consciência” proporcionada pelo acido lisérgico. Para ele, que

escreveu sobre isso em 68, a maneira de ser ver e interagir com o mundo também é expandida

pelo computador...

Gil: É isso, os protocriadores das Apples, das Microsofts, das Dells, Ibms, passaram por ali. Os

meninos que inventaram o celular etc, foram o meninos que ousaram processos de expansão mental

orgânicos e artificiais e criaram essa cultura digital, que em alguns aspectos é diretamente fruto

daquele grande momento de expansão intelectual psicológica e ideológica que houve naquele

instante.

CUCA: A C ultura D igital foi uma das grandes ações que vimos nesse ultimo momento.

Analisando o fechamento desse ciclo, esse novo momento na cultura, a gente vem travando

muito esse debate de “juventude, cultura e política”, pois a juventude hoje é muito

protagonista. As atividades dos Pontos de Cultura mesmo, por exemplo, muitas são feitas por

jovens e para jovens. Como você avalia essa nova agenda política para a cultura proposta pelo

Ministério, em relação a esses três pilares?

Gil: Acho que o grande mérito do Ministério da Cultura foi politizar estas questões, uma atitude

geral que juntou vontades governamentais com anseios sociais e ativismos variados. Há um

convívio cada vez mais intenso de novidades, todo o progresso da ciência e tecnologia é abastecido

de invenções e criações o tempo todo. O grande avanço que temos hoje no Brasil é então esse

chamamento dos agentes construtores dessa nova realidade para sentarem-se a mesa e discutirem,

uma atitude nova no governo.

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CUCA: A gente teve, por exemplo, a experiencia das C onfer ê ncia s Nacionais de C ultura , onde

foram tirados vários indicativos para a política cultural atual. Talvez o papel da juventude,

nessa linha de pensamento, seja a possibilidade de construir marcos regulatórios pra que

algumas daquelas ideias possam se concretizar na nossa realidade atual, porque muitas vezes

a gente se pauta no passado e projeta pro futuro...

Gil: O tempo atual é que vai se incumbir de fazer essa atualização entre passado e futuro. O tempo

presente é onde essas duas coisas estão se dando permanentemente, e é nessa mesa que juntamos

passado e futuro. Você falou em marcos regulatórios, mas por outro lado, temos os marcos

“desregulatórios” (risos). A regulação necessária para reordenar processos em determinados

instantes pode, no instante seguinte, se tornar antiga, engessadora e demandar, portanto, um

elemento desregulador.

CUCA: Um marco regulatório que esta em discussão hoje é a revisão da Lei de Direito

Autoral no Brasil. Esse debate vem contrapondo um pouco a realidade de hoje, habituada ao

compartilhamento sem mediadores na rede e a geração daquela época, cuja criação artística

foi possível através da centralização da produção cultural, naquele momento. Como você vê

isso?

Gil: Pois é, foi uma das questões que foram trazidas pra cena. O ambiente digital, o ambiente

jovem, o ambiente da pluralidade do campo da invenção, o crescimento do protagonismo popular e

o desenvolvimento do papel dos setores populares nessa sociedade humana crescente, tudo isso

aponta pra uma revisão do que tenham sido os marcos regulatórios até então. Daqui pra frente é

preciso rever, é preciso todos um set novo de leis, uma necessidade de uma forma nova de criação

de marco legislativo e regulatório porque muita coisa que serviu ate aqui passa a não servir tanto

mais daqui em diante. Por exemplo, a própria questão do direito autoral, que desde sua criação até

hoje teve sua enfase na proteção do direito do autor, passa agora a criar uma nova ênfase necessária

no direito do consumidor, do fruidor do produto intelectual. E isso não é teoria, é pratica, você vê

por ai, por exemplo, as entidades de classe de jornalistas, reunidas recentemente para que se

contemplem o direito autoral do jornalista que é anônimo, criador de novos conteúdos, criados pelo

consumidor, pelo telespectador, pelo usuário do celular, pelo internauta, pelo blogueiro, pelo

twitteiro, etc. É uma fase desafiadora, onde os conceitos anteriores e as entidades autorais muito

bem configuradas e identificadas, não dão mais conta da realidade atual. A diversificação de usos é

a própria garantia do progresso técnico e cientifico. E para que este processo continue se dando de

forma conveniente e necessária o protagonismo deve sair das mãos dos laboratórios e cair nas mãos

do vulgo, do geral, das pessoas. Estes trabalhos só são possíveis com contribuições cada vez mais

múltiplas de cérebros, acervos, contribuições individuais, exemplos não faltam. Agora a

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colaboração é múltipla, todo mundo vem, todo mudo aplica, e o jornalismo é um exemplo concreto

disso. Antigamente era o jornal com seu corpo editorial que cuidava de fazer o jornal, hoje não, é o

blogueiro, o twitteiro, todo mundo contribui, todo mundo faz As agencias de noticia antigamente

eram autônomas, determinavam suas pautas editoriais. Hoje não, um jornal de SP, ou do RJ, vai

buscar a noticia feita pela associação de moradores da favela tal, a noticia sobre aquele território

especifico, sobre os fatos desenvolvidos naquele território, essa noticia esta muito mais próxima

daqueles que estão ali naquele território do que do editorial do jornal que tá la.

Volta aquela questão colocada no inicio: o local já esta no universal, não é que ele vai ser trazido

por um ato de escolha do global, ele já está la. A historia do mundo entrou na sua fase popular, é

de todos os povos, cada vez mais.

CUCA: A grande contribuição da Tropicália, nesse sentido, foi fazer política através do

comportamento, do convívio dessa diversidade, dessa criação múltipla. Como você a questão

estética do artista em relação ao conteúdo, que também pode ser social, político?

Gil: A pauta do artista é uma folha em branco. Ela é, ao mesmo tempo, assuntos, temas, ideias,

sentimentos, vontades, mas isso tudo no fundo é uma folha em branco. Na hora que ele se senta

para fazer a trilha para um filme, por exemplo: o filme tem o assunto tal, o diretor do filme quer

desdobrar o assunto em tais e tais modos narrativos, e você vai ter que fazer a musica. Então você

tem uma lista, uma pagina cheia, e a primeira coisa que a própria invenção obriga o artista a fazer é

limpar essa pagina, torná-la branca, vazia. E é desse vazio que vem a primeira letra, o primeiro som,

a primeira palavra, a primeira silaba. O presente diante do qual o artista se coloca tem o passado,

que é toda essa listagem de coisas, e tem o futuro, que é a intenção, uma folha em branco.

CUCA: E esse passado recente, como ministro, como influencia na sua criação artística hoje?

Gil: Houve um script, uma pagina que foi escrita durante o ministério: o que eu fiz e o que não fiz,

o que deu certo e o que não deu certo, o que foi compreendido e o que não foi compreendido, o que

eu compreendi e o que eu mesmo não compreendi.

CUCA: Seria como se tivesse que responder a uma expectativa? O próprio Augusto Boal

[teatrólogo brasileiro] falou bem no inicio da sua gestão em 2003, que todo “mundo tinha

planos, menos o Ministro”. E aí, a Heloísa Buarque de Hollanda [professora e pesquisadora da

UFRJ] responde “foi o primeiro Ministro que perguntou o que era cultura, os outros todos já

sabiam a resposta”.

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Gil: Exatamente. Essa foi uma das grandes perguntas do Ministério, uma das grandes contribuições

também, abrir o leque de novas interrogações. Porque a questão não é apenas responder os

problemas, mas saber quais são os problemas, fazer estas perguntas.

CUCA: E no campo da cultura e educação, como você enxerga a complementariedade entre

estes dois elementos?

Gil: Eu acho que essa é hoje uma das grandes questões. O que é educação? Quando a gente pensa

em educação, pensa em sala de aula. Mas educação também esta na sua mão [aponta para a

câmera], ta aqui no meu dedo apontado, está nessas novas interrogações. Quando Juca Ferreira

[atual Ministro da Cultura] assumiu o projeto “Axé na Bahia”, um projeto de educação para

meninos de rua, ele disse: “Trazer meninos da rua para a sala de aula, será? E se a gente

invertesse a história, levar a educação pra rua, que é onde os meninos estão? Estabelecer meios e

processos pelos quais eles se eduquem onde eles estão, sendo quem são, vivendo a vida que vivem”.

Foi aí que o projeto começou com uma nova visão pedagógica: os educadores foram para as ruas de

Salvador, aprender com esses meninos de rua, ser com eles, e juntos com eles intuir, inventar,

idealizar e concretizar. É nesse sentido que se da a questão cultural, é educação pra educar,

educação pra quem precisa de educação. Um índio precisa de um tipo de educação que é diferente

de um menino dos Jardins [bairro nobre de São Paulo]. Portanto, aí já são duas visões culturais que

vão determinar o que é a educação. A educação hoje esta em tudo, nos modos diferenciados do

existir cultural. Por exemplo, como alfabetizar uma criança, fazer ela se interessar pelo alfabeto,

pelas letras, pelos números, pelos embriões de ideias? É a dimensão cultural na qual ela se perceba

inserida que vai determinar o modo de educar. Então eu acho que essa relação de cultura e educação

é inseparável: não há possibilidade de avanços culturais sem educação e não há possibilidade de

avanços educacionais sem cultura. O estabelecimento dos modos de educar tem que privilegiar

cada vez mais os modos culturais diferenciados, as pessoas, os coletivos, os povos, as nações,

cada vez mais.

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