Cultivados

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Quando uma misteriosa pestilência assola o planeta e extingue praticamente todos os recursos disponíveis, a civilização por pouco não chega ao fim. Uma fração sobrevivente consegue se manter pulsante e estável por décadas, mas para isso, escolhas tiveram de ser feitas e aceitas. Em “Cultivados”, a capacidade de adaptação e reinvenção da humanidade é explorada, em uma história sobre sobrevivência, ignorância e determinação.

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Prólogo

Oceano Atlântico, dias atuais.

Era uma tarde aprazível para os integrantes do navio pesqueiro da Domi. O mar estava tranquilo e propício para a coleta diária. O céu exibia uma tonalidade azul intensa, rara por aquela localidade, normalmente tempestuosa. Os homens do mar descansavam após o almoço, alguns em um breve cochilo, outros apostando em inúmeras partidas de carteado, todos eles aproveitando ao máximo a rara exposi-ção ao sol. Um dos marujos encontrava-se na proa do extenso e robusto navio, fitando o infinito, observando o horizonte com uma sensação nostálgica, lembrando dos tempos na Marinha. Saboreou aquele momento como se fosse a última vez que presenciaria o sol em meses, até o retorno à sua terra. Sentia a brisa em seu corpo parcialmente desnudo – vestia apenas uma surrada calça jeans escura -, volta e meia olhando para o mar aos seus pés. Ficou ali por vários minu-tos, devaneando introspectivamente, construindo conver-sas fictícias com pessoas que não conhecia. Sua mente já se encontrava a quilômetros de distância. Quando estava pres-tes a se juntar aos outros marinheiros no convés, percebeu algo estranho. Algumas dezenas de peixes começaram a sur-gir na superfície do oceano, todos mortos. Inquieto, ficou a

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observar o fenômeno, nunca presenciado antes durante sua longa vivência nos mares.

Chamou seus companheiros com um breve assovio de alerta. Em uma questão de segundos, todos que ali estavam se reuniram na proa do navio, para ficarem tão ou mais estupe-fatos quanto ele. Uma miríade de peixes começava a emergir de forma descontrolada, transformando o mar abaixo em um tapete de escamas interminável, numa amálgama de beleza e terror, com a magnificência solar a reluzir nos peixes e o cheiro fétido da podridão que infestava o lugar. Após alguns minu-tos, todo o mar estava enegrecido, os marinheiros inquietos e o navio a criar um caminho funesto por entre as toneladas de animais vertebrados que jaziam à sua frente. No entanto, o pânico apenas se instaurou na tripulação no momento em que outros animais começaram a surgir por entre os peixes. Vários moluscos se juntavam ao cemitério marítimo, tornando o horizonte irregular e onduloso, mas nada se comparava à desestruturação violenta causada pelas opulentas baleias, tubarões e golfinhos que infestavam o mar. O sinal de perigo soou no navio, e todos os marujos começaram com seus pro-cedimentos de emergência, preparando botes, enviando men-sagens a outros navios nas proximidades. O incrédulo mari-nheiro continuava estático perante a cena estarrecedora que presenciava. Era uma hecatombe da natureza, uma desgraça sem precedentes e que parecia haver atingido uma área de proporções inimagináveis – parecia até fantasioso. Indagou--se o que poderia ter causado tamanho disparate e lembrou-se de seus pensamentos de apenas alguns minutos atrás, quando aproveitava o sol como se fosse a última vez, e receava que de fato fosse.

Por entre os escassos espaços livres no mar, podia-se enxergar, àquele momento, uma coloração predominante-

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mente esverdeada, que o marujo constatou serem algas, apesar de aparentarem uma pastosidade estranha. Algum fenômeno deveria ter acometido os vegetais quando ainda submer-sos, pensou. Procurou por indícios de petróleo, ou algo que denotasse a ação humana naquela localidade, mas nada fora encontrado. Os peixes, que antes boiavam de um lado para o outro sem critério algum, agora pareciam presos ao mar, não se movendo individualmente, mas sim em grupo, como se fossem um único elemento, à exceção dos corpos maio-res - resultado das algas pastosas, que prendiam os seres que ali estavam. Como medida emergencial, o capitão ordenou o desligamento dos motores, até que pudessem encontrar uma solução viável, mas na velocidade em que se encontravam, demoraria a pararem. Temiam pelo o que houvesse abaixo da superfície, logo evitaram soltar a âncora. Imaginavam como sairiam dali; se teriam de, aos poucos, retirar os corpos maio-res do caminho – que não eram poucos -, se tentariam des-viar com cautela ou se abandonariam o navio com a ajuda de algum transporte aéreo. Os botes estavam sendo preparados, mas provavelmente seria um esforço inútil. Caso a substância pastosa parecesse tão densa como imaginava, não consegui-riam resistir nem por alguns quilômetros, sem contar que o odor àquele momento era repugnante.

O navio começava a perder velocidade, mas esta ainda não diferia muito de momentos atrás, quando os motores estavam em capacidade máxima - a força do monstro de aço conti-nuava impressionando. Apenas o silvo do imponente apito conseguia atenuar os gritos de desespero dos marujos. Era incontável o número de baleias que emergiam ao redor do navio, mas por sorte se mantinham longe o bastante para evi-tar quaisquer possíveis impactos. Um grupo de marinheiros se dirigiu até um dos botes salva-vidas e abandonou o navio,

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apesar do esforço de seus companheiros para não os deixa-rem. O homem do mar, cujas preocupações não mais diziam respeito ao seu cotidiano, observava tudo atônito e incrédulo, e só não se sentia mais perdido do que os insensatos que os deixavam para chafurdar no lamaçal mórbido abaixo deles. Caso a situação não fosse aterradora, com certeza ele estaria divagando sobre o contraste irônico da natureza naquele ins-tante: acima, os pássaros no céu azul, límpido e ensolarado, transparecendo uma vivacidade ímpar; abaixo, o inferno nos mares, um cardume fúnebre e podre, exalando morte e efe-meridade.

Os seis marujos desceram o bote, que encontrou dificul-dades em se manter estável na superfície, tanto pela veloci-dade em que o navio se encontrava, como pela imensa quanti-dade de animais que ali estavam. O rastro de água provocado pelo navio durava poucos segundos, com toneladas de pei-xes cobrindo as áreas livres logo em seguida. Abaixo do sol escaldante da tarde estavam os seis incautos homens, que não conseguiram remar naquele oceano perverso, tamanha a quantidade de corpos, preenchendo não apenas a superfície, mas impensáveis metros abaixo deles também. A catástrofe ambiental de proporções incomensuráveis era muito maior do que todos imaginavam. Os remos eram pouco úteis ali, tama-nha a dificuldade em manejá-los. Ao longe, o marinheiro os observava, imaginando o arrependimento de seus, agora, ex--companheiros. Em meio à balbúrdia desenfreada que parecia nunca cessar, ele continuava inapto a agir, consciente de que seriam inúteis os esforços ante aquele episódio sem prece-dentes. Para corroborar seus pensamentos pessimistas, pouco se surpreendeu quando um grupo de aves tombou no con-vés do navio, a poucos metros. Qualquer que fosse a moléstia que atingia a região, estava transcendendo os limites do mar.

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Como se não bastasse todo o ecossistema marítimo extinguir--se perante seus olhos, agora a morte o atacava pelos ares.

O odor do cardume apodrecido enojava os tripulantes, e não tardou para vários deles vomitarem em todos os can-tos. Em seguida, todos os temores se voltaram para a proa do navio, onde mais uma vez um silvo estridente ecoava. Estavam todos rigorosamente impotentes perante o cataclismo mari-nho a algumas centenas de metros à frente. A camada de pei-xes começava a crescer lentamente, ganhando altura de forma descomunal, por uma extensão de cerca de um quilômetro de largura. Não conseguiam definir as dimensões do aclive. Os peixes, presos às densas e irregulares algas, escorregavam len-tamente de volta à superfície, revelando que tal deformidade era na verdade um grupo de inúmeras outras baleias, todas mortas, porém não menos imponentes. Em poucos segundos, o navio estava prestes a se chocar com a montanha mamífera, e não havia nada a ser feito. Alguns tripulantes, prevendo um embate colossal entre os corpos, jogaram-se com seus coletes salva-vidas, em uma vã tentativa de sobrevivência. O choque estremeceu toda a estrutura do navio, causando tremulações fortes, com a parte frontal a cortar com violência as primeiras baleias do grupo, em um massacre póstumo, com toneladas de corpos mutilados. Ao avançar sobre o vasto grupo de cadáve-res, o navio ia se desestabilizando, pendendo lentamente para a direita, com os tripulantes a escorregar e procurar apoio em todos os lugares. O descamisado marujo se agarrava ao mastro, tentando se manter ereto, sem sucesso. Quanto mais forte era a oscilação, os marinheiros eram atirados ao pântano sangrento ali instaurado, esmagando alguns pela imponên-cia irredutível do navio, enquanto outros nadavam em meio ao sangue interminável. A carnificina atingia a todos. Tanto seres do mar quanto homens eram privados de suas vidas, e os

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sobreviventes daquele breve incidente não tardariam a serem esquecidos. Apesar dos esforços, o marujo não conseguiu resistir ao grande impacto do mastro no oceano, sendo arre-messado para as tripas que boiavam na superfície. Ele tentou com todas as forças encontrar alguma forma de escapar, mas tudo o que via ao seu redor era a morte e o nome Domi ins-crito no casco do navio que estava na iminência de afundar. Era um fim deplorável para os marujos, indistinguíveis ante ao trágico destino que lhes fora reservado.

Em um período de dois meses, foi praticamente impossível navegar no oceano. Os mares, infestados pela pastosidade pes-tilenta, liberavam inúmeras toxinas em plena atmosfera. Por maiores que fossem as tentativas, era inviável extrair quaisquer animais para consumo, além de inutilizar outras atividades marítimas, o que gerou uma grave crise na economia. Atur-dida, toda a casta de trabalhadores que tinha os mares como subsídio não mais via como contornar a situação. O abasteci-mento alimentar baseado na pesca se findou abruptamente, abalando o sistema financeiro em vários setores. Empresas se viram na iminência de reavaliar seus focos e estratégias, enquanto milhões de trabalhadores perdiam os empregos e o turismo entrava em colapso. Algumas semanas após o miste-rioso incidente, o efeito se alastrou para o além-mar, levando a calamidade para as áreas rurais. O solo petrificou, e todas as espécies vegetais começaram a esmorecer gradativamente. Fertilização era uma ideia obsoleta naquele novo mundo que surgia. Rebanhos definhavam, potencializando a escassez ali-mentícia; enquanto florestas inteiras apodreciam em sincro-nia, com folhas mortas a forrar o chão, extinguindo centenas de animais em um piscar de olhos. Com a diminuição agres-siva de vegetais marinhos e terrestres, a produção de oxigênio

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e dióxido de carbono iniciou um ciclo falho, não suportando o absurdo número de consumo. Todo o ecossistema do planeta começava a não ser mais autossustentável.

Após semanas de inferno na Terra, o que restou das flo-restas, campos e áreas rurais passou por um fenômeno iné-dito. Lentamente, uma crosta esverdeada foi recobrindo cada centímetro quadrado em todo o mundo. Tal crosta possuía, assim como em todos os eventos anteriores, um odor insu-portável, que inviabilizava ainda mais a aproximação de seres vivos e certamente o cultivo de vegetais. Acima da superfí-cie verde-musgo, crescia um tipo de penugem esbranquiçada, intrigando a comunidade cientifica e intensificando o apelo dos governos para o distanciamento dessas áreas. O êxodo rural ampliava a já imensa quantidade de pessoas nas cidades, assim como o número de mortos aumentava na mesma pro-porção. Tal fenômeno foi alcunhado pela mídia de “Crise da Laranja Podre”, dada a semelhança com a substância verde e branca das frutas apodrecidas.

A calamitosa progressão das enfermidades conduziu o mundo a uma aflição global sem precedentes. O desespero e despreparo dos governantes serviram apenas para consolidar a noção de que tudo estava fora de controle. Nenhuma decisão efetiva poderia ser tomada.

Nos centros urbanos, medidas de emergência foram aplica-das com austeridade devido à gravidade da situação. Foi proi-bida a utilização leviana de meios de transporte poluentes, em uma tentativa de prevenir um aumento ainda maior de gases nocivos na atmosfera, que até o momento era a maior causa de mortes, inviabilizando e lotando hospitais. As doenças respira-tórias eram um mal que as autoridades tentavam combater a todo custo. A falta de água levou o órgão vigente de proteção à humanidade a decretar a coibição da produção em massa de

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todos os produtos considerados supérfluos até o fim da crise, incluindo desde automóveis até bebidas em geral, além de ini-ciar um programa de racionamento de água quase ditatorial, fornecendo apenas uma determinada quantidade para cada pessoa. Somente alguns alimentos deveriam continuar no cul-tivo, e após um tempo apenas itens da cesta básica eram dispo-nibilizados. Ao contrário do temido, as corporações, cientes da calamidade, não contestaram nenhuma das privações instituí-das pelos governos, mas fizeram algo mais importante ainda: ajudaram os países a cessarem com as guerras.

Privada de elementos básicos para a sobrevivência, a humanidade abandonou guerras frívolas de proporções inter-nacionais. Com um embate avassalador envolvendo a todos, era irrelevante combater por idealismos ortodoxos. Os esfor-ços se concentravam em guerrear para se manter vivo naquele ambiente hostil, relutando ao ímpeto destrutivo da ameaça invisível. Constantemente, os cidadãos das grandes cidades digladiavam por itens de luxo, saqueando lojas e disputando a posse de alimentos; no entanto, os órgãos de proteção pública conseguiam manter o caos em um patamar aceitável, dado o contexto. Guerras civis eram constantes em todas as partes do planeta, mas a destruição provinda da indústria armamentista – e das grandes potências em busca do infindável imperia-lismo – havia cessado.

Estudiosos, pesquisadores e cientistas analisavam em vão inúmeros aspectos do planeta naquele momento, mas não chegavam a qualquer conclusão. Era quase impossível des-cobrir se o que denegria a vitalidade do planeta era prove-niente de causas naturais ou não. Com o passar do tempo, as toxinas liberadas na atmosfera provocaram uma espécie de chuva ácida que assolou grande parte do planeta, ampliando as mortes e aos poucos exaurindo a vida da Terra. As auto-

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ridades se viam em um impasse controverso, pois o número de cadáveres ultrapassava em muito a quantidade de locais para enterrá-los. Uma solução temporária foi transportar os milhares de corpos e despejá-los em terrenos baldios dis-tantes e lixões. A decisão polêmica remontou aos tempos do nazismo e dos campos de concentração, com protestos vee-mentes de cidadãos inconformados com o descaso público e com a banalização da morte. Ainda assim, à medida que a situação se agravava, ficava clara a impotência geral de lidar com tal idealismo; a imagem do grande número de mortos nas esquinas, amontoados especialmente em regiões carentes e esquecidas era muito mais chocante e expressiva do que um debate moral.

Com o planeta infestado pela praga imbatível, muitos diziam ser o fim não apenas da humanidade, mas de todas as formas de vida existentes na Terra.

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“Somos o corpo régio, o esplendor longevo!”

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CaPítulo Primeiro

De repente, ele se viu estatelado no chão, sendo arrastado pelos cabelos que aos poucos se desprendiam de sua cabeça. Sabia que não adiantava se debater, pois a dor, e o que viria a seguir, eram inevitáveis. Só lhe restava tentar apaziguar ao máximo o desconforto da situação atual, minimizando seus movimentos a fim de poupar as costas já machucadas por maus tratos anteriores. O chão, naquele corredor, era irregu-lar, metalizado e gélido. Reentrâncias podiam ser notadas no decorrer do caminho, demonstrando um uso prévio das pla-cas que constituíam o pavimento, tais como grades, portões e até latarias de automóveis. Além disso, sua aspereza denun-ciava maus tratos. Via-se que era uma superfície que há muito já servia como passarela ao homem. Com uma pancada na nuca, desmaiou.

Era a quinta vez que sentia a agulha penetrar em seu braço esquerdo aquele dia. Ou o que achava que ainda seria aquele dia, ele já não tinha tanta certeza. O enjoo o deixava quase inerte, e a sensação nauseante de quem acabou de se exce-der em uma refeição insistia em não cessar. Uma luz forte de coloração avermelhada, diante de seu rosto, chegava perto de exaurir seus sentidos, tamanha a irritação que causava em suas pupilas já cansadas. As injeções, nos últimos meses, tinham aumentado, tanto em aplicações quanto em dura-

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ção. Desde que se conhecia por gente, eram rápidas e quase indolores, porém agora sentia que o líquido que injetavam em suas veias era mais espesso e opaco, o que coincidia com as dores intermináveis e os importunos enjoos. Sempre foi benevolente quanto às aplicações, mas a partir do momento em que o exagero se tornou constante, passou a repudiá-las, causando irritação nos Cultivadores. Nas vezes em que as rejeitava, acontecia sempre o mesmo: era levado à força para a câmara de alimentação, sendo atado firmemente em pé a um pilar em forma de trapézio, colocado defronte a uma grande plataforma de intensa luminescência avermelhada e forçado a suportar o asqueroso líquido entrar em seu corpo durante intermináveis minutos.

Após as sessões quase torturantes, saía trôpego pelos cor-redores, praticamente sem ter controle sobre os movimentos. Não fossem os Cultivadores – ora inquisidores, ora proteto-res -, cambalearia sem rumo até definhar no piso gélido, alvo e brilhante daquela parte da Redoma, longe dos corredores anteriores. Ao cruzar por um de seus inúmeros corredores espelhados, percebera em seu reflexo como engordara. Seu rosto estava nitidamente mais inchado e seus braços já aper-tavam na camiseta límpida. O cabelo castanho parecia frágil, a pele condenada e seu olhar cansado, e a íris escura, a carre-gar um peso sofredor. Após percorrer alguns metros, foi con-duzido para dentro de sua Jaula com um leve empurrão que, devido às circunstâncias, parecia ter tido uma intensidade muito maior.

“Eles te forçaram de novo?”, perguntou uma pálida e ruiva mulher, cujo semblante carregava um desconhecido pesar, como se uma preocupação infundada a assolasse. Vestia uma roupa surrada, porém limpa, e se encontrava encolhida no canto do recinto, quase que acuada. O homem nada respon-

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deu, assentindo com o silêncio. Estancou em um dos can-tos da sala, inerte; preferia esperar calado que a náusea pas-sasse. “Sabe”, continuou a mulher, “na próxima vez é melhor os deixarmos aplicarem as doses. Pelo menos pouparemos energias. Quem sabe, eles nos poupem um pouco...”. Sua voz transparecia um misto de esperança desconsolada com um medo infantil. Possuía um ímpeto protetor, quase maternal, apesar de jamais ter tido quaisquer experiências assemelha-das. Sabia que, independentemente de reagirem, as injeções viriam em quantidades cada vez maiores. Já fazia um bom tempo desde que haviam sido privados de outras atividades, e mantidos praticamente o tempo todo dentro das Jaulas, lan-çados ao tédio e ao incerto. Poderiam ter corrido no Grande Pátio, como costumavam fazer, ou feito qualquer outra coisa que não fosse aquilo. “Leona”, disse finalmente o homem, “não sei por que fazem isto com a gente. Nunca desobede-cemos ou fizemos qualquer outra coisa que prejudicasse a Redoma. Simplesmente não entendo tudo isso.” Leona fitava o homem, como que descobrindo uma verdade óbvia, nunca antes percebida. Refletindo arduamente, acabou por con-cordar com ele. Após alguns instantes de silêncio, a porta da Jaula se abre lentamente e do corredor surge uma pequena e rechonchuda mulher, de semblante sereno e olhos cor de amêndoa. Seus cabelos pareciam maltratados a julgar pelo brilho fosco, embora pudessem ter tido um dourado radiante. Adentrando a saleta, convidou com sua voz macia: “Vamos, Leona?”, mas ela se encolheu em volta de seu corpo. “Leona, já passamos por isso inúmeras vezes. Você sabe que é mais fácil nos acompanhar o quanto antes.”, completou. O jaleco da mulher parecia comprovar uma posição de respeito nas repartições da Redoma. Não havia muitas as pessoas que eram vistas circulando com tais vestimentas pelos corredores das

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Jaulas. “Doutora”, disse o homem em um tom apaziguador, “dê alguns minutos a ela, garanto que se juntará a você”. Nenhum dos Cultivados sabia de fato o nome da Doutora, mas essa era a alcunha utilizada por todos. “Cale-se, Max, ou você se juntará a ela.”, bradou com austeridade, findando os delicados modos. Ela, em um rápido movimento, bateu na porta da Jaula com sua prancheta, e instantaneamente surgiu um mirrado e enrugado senhor, de feições intrigantes e estatura ainda mais modesta do que a da Doutora. Sem pestanejar, dirigiu-se cal-mamente a Leona, cujo olhar se esvaía em pavor e arrependi-mento por não ter obedecido de imediato. No entanto, o velho enfermeiro - a julgar pelo uniforme verde-claro que utilizava - nada fez senão pegá-la pelo braço. Algo nos trejeitos dele a assustava. Era alguém calmo e que aparentava fragilidade, no entanto ela sentia firmeza em seu toque. De alguma forma, ele sabia que Leona não ousaria se desvencilhar. Ela lançou um olhar pesaroso a Max, que permaneceu estático na Jaula – que se assemelhava a uma cela, no entanto sem grades. Era um quarto quase sem mobílias, construído especialmente para intensificar a sensação de isolamento e solidão. O único elo com os corredores era um pequeno vão na altura dos olhos, repleto de barras de aço.

Após um sono involuntário - pois desejava aguardar acor-dado por Leona -, Max despertou confuso, novamente sem ter noção alguma do tempo decorrido. Estava melhor dos enjoos, e a única sensação que o assolava era a fadiga. Não se movimentava há algum tempo, e sentia a necessidade de sair desse estado quase letárgico. Começou a correr em cír-culos na diminuta Jaula, e neste instante deu valor ao Grande Pátio. Se os Cultivadores o tivessem deixado correr ao ar livre, quem sabe se a sua forma física não estivesse melhor agora, pensava. No entanto, ainda poderia improvisar dentro de seu

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cubículo, refletiu tão logo iniciou as flexões. No momento em que começou a se cansar, a grade da Jaula se abriu e, trôpega, Leona reapareceu. Para a surpresa de Max, ela não aparentava qualquer sinal de maus tratos e tampouco quaisquer indícios de náuseas. Pelo contrário, havia algo nela que ele não con-seguia identificar; algo diferente, misterioso. Ele flagrou-se imobilizado, em estado quase catatônico por alguns instan-tes, até recobrar seus sentidos. O cabelo de Leona estava mais volumoso e exalava uma fragrância fresca e revigorante. Ela vestia uma camiseta branca, justa o suficiente para realçar suas curvas de um jeito que Max nunca havia reparado. Con-turbado, perguntou: “O que aconteceu? Eles te maltrataram? Você parece diferente.” Leona apenas o lembrou de que nada podia contar-lhe, assim como não pudera todas as outras vezes, pois necessitava protegê-lo. Se algo lhe acontecesse por sua culpa, dificilmente se perdoaria. Eram proibidos de dis-cutir o teor dos acontecimentos, mas conseguiam identificar quando o próximo sofria dos mesmos enfados – as marcas das injeções denunciavam, assim como as escoriações e todo tipo de anormalidade. Desconfortável com a inédita sensação, Max encolheu-se no canto da Jaula, fazendo o possível para adormecer o quanto antes e evaporar os devaneios obscuros de sua mente.

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