Cultos Mistericos e Cristianismo em Tróia_ JOAO ALMEIDA_2012_ALMADAN

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39 RESUMO Breve historial da estação arqueológica romana de Tróia (Grândola, Setúbal), atendendo em particular à denominada “necrópole da Caldeira” e à relação entre as práticas funerárias tardias, os “cultos mistéricos” e a expansão do Cristianismo. O estudo aprofundado da documentação de campo da década de 1940, permitiu ao autor clarificar e precisar a área então escavada e enquadrar histórica e cronologicamente as incinerações e inumações efectuadas na necrópole, entre meados do século I e o século V d.C. PALAVRAS CHAVE: Época Romana; Tróia (Setúbal); Práticas funerárias; Necrópole; Cristianismo. ABSTRACT Brief history of the Roman archaeological site of Tróia (Grândola, Setúbal), referring mainly to the so-called “Necrópole da Caldeira” (Caldeira necropolis) and to the relationship between late funerary practices, “mystery” cults and the expansion of Christianity. A thorough study of field documents from the 1940s has allowed the author to clarify and detail the area excavated at the time and pinpoint, historically and chronologically, the cremations and inhumations at the necropolis between the middle of the 1st century and the 5th century AD. KEY WORDS: Roman times; Tróia (Setúbal); Funeral rites; Necropolis; Christianity. RÉSUMÉ Bref historique du site archéologique romain de Tróia (Grândola, Setúbal), prêtant en particulier attention à la dénommée “nécropole da Caldeira” et à la relation entre les pratiques funéraires tardives, les “cultes du mystère” et l’expansion du Christianisme. L’étude approfondie de la documentation de terrain de la décennie de 1940, a permis à l’auteur de clarifier et de préciser la zone alors fouillée et d’intégrer historiquement et chronologiquement les incinérations et inhumations effectuées dans la nécropole, entre la moitié du 1er siècle et le Vème siècle ap. J.C. MOTS CLÉS: Époque romaine; Tróia (Setúbal); Pratiques funéraires; Nécropole; Christianisme. Cultos Mistéricos e Cristianismo em Tróia uma perspectiva escatológica dos enterramentos tardios da Necrópole da Caldeira João Pedro Almeida I A estação arqueológica de Tróia (CNS- -0002), localizada no distrito de Setú- bal, concelho de Grândola, represen- tada na folha 465 da Carta Militar Portuguesa à escala 1: 25000, com as coordenadas X 134,2 / / Y 169,1, situa-se no extremo ocidental da Pe- nínsula Ibérica, na área da antiga província ro- mana da Lusitânia e do Conventus Pacencis (Fig. 1) (ALARCÃO 1988: 128-131). O sítio foi instalado numa pequena parcela da extensa península com o mesmo nome na margem es- querda do Rio Sado, a Sul da cidade de Setúbal, banhada a Sul pelo Oceano Atlântico, numa área conhecida como Costa da Galé, e a Norte pelo Rio Sado (Fig. 2). É uma área classificada como Monumento Nacional por decreto-lei datado de 16 de Junho de 1910, publicada no Diário do Governo n.º 136, de 23 de Junho de 1910, e considerada uma Zona Especial de Protecção segundo o Diário do Governo n.º 155, de 2 de Julho de 1968. Esta zona é relativamente pobre em termos geológicos, assentando na grande bacia ceno- zóica do Tejo-Sado, com elevada concentração sedimentar, traduzindo-se genericamente em areias fluviais e dunas. I Fundação para a Ciência e a Tecnologia / UNIARQ Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. [texto entregue para publicação em Julho de 2010, com revisão pontual em Abril de 2012] FIG. 1 Localização de Tróia. 0 150 km

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Cultos Mistericos e Cristianismo em Tróia

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RESUMO

Breve historial da estação arqueológica romana de Tróia(Grândola, Setúbal), atendendo em particular à denominada

“necrópole da Caldeira” e à relação entre as práticas funeráriastardias, os “cultos mistéricos” e a expansão do Cristianismo.

O estudo aprofundado da documentação de campo da décadade 1940, permitiu ao autor clarificar e precisar a área então

escavada e enquadrar histórica e cronologicamente asincinerações e inumações efectuadas na necrópole,

entre meados do século I e o século V d.C.

PALAVRAS CHAVE: Época Romana; Tróia (Setúbal); Práticas funerárias; Necrópole; Cristianismo.

ABSTRACT

Brief history of the Roman archaeological site of Tróia(Grândola, Setúbal), referring mainly to the so-called

“Necrópole da Caldeira” (Caldeira necropolis) and to therelationship between late funerary practices,

“mystery” cults and the expansion of Christianity.A thorough study of field documents from the 1940s has

allowed the author to clarify and detail the area excavated atthe time and pinpoint, historically and chronologically,

the cremations and inhumations at the necropolis between the middle of the 1st century and the 5th century AD.

KEY WORDS: Roman times; Tróia (Setúbal); Funeral rites; Necropolis; Christianity.

RÉSUMÉ

Bref historique du site archéologiqueromain de Tróia (Grândola, Setúbal),

prêtant en particulier attention à ladénommée “nécropole da Caldeira” et àla relation entre les pratiques funéraires

tardives, les “cultes du mystère” etl’expansion du Christianisme.

L’étude approfondie de ladocumentation de terrain de la décenniede 1940, a permis à l’auteur de clarifier

et de préciser la zone alors fouillée etd’intégrer historiquement et

chronologiquement les incinérations etinhumations effectuées dans la

nécropole, entre la moitié du 1er siècleet le Vème siècle ap. J.C.

MOTS CLÉS: Époque romaine; Tróia (Setúbal); Pratiques funéraires;

Nécropole; Christianisme.

Cultos Mistéricos e Cristianismo em Tróia

uma perspectivaescatológica dosenterramentos tardios da Necrópole da Caldeira

João Pedro Almeida I

Aestação arqueológica de Tróia (CNS--0002), localizada no distrito de Se tú -bal, concelho de Grândola, represen-

tada na folha 465 da Carta Militar Portuguesaà escala 1: 25000, com as coordenadas X 134,2 // Y 169,1, situa-se no extremo ocidental da Pe -nínsula Ibérica, na área da antiga província ro -mana da Lusitânia e do Conventus Pacencis(Fig. 1) (ALARCÃO 1988: 128-131). O sítio foiinstalado numa pequena parcela da extensape nínsula com o mesmo nome na margem es -querda do Rio Sado, a Sul da cidade de Setúbal, banhada a Sul pelo Oceano Atlântico,numa área conhecida como Costa da Galé, e a Norte pelo Rio Sado (Fig. 2). É uma áreaclassificada como Monumento Nacional por decreto-lei datado de 16 de Junho de 1910,publicada no Diário do Governo n.º 136, de 23 de Junho de 1910, e considerada umaZona Especial de Protecção segundo o Diário do Governo n.º 155, de 2 de Julho de 1968.Esta zona é relativamente pobre em termos geológicos, assentando na grande bacia ceno-zóica do Tejo-Sado, com elevada concentração sedimentar, traduzindo-se genericamenteem areias fluviais e dunas.

I Fundação para a Ciência e a Tecnologia / UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.[texto entregue para publicação em Julho de 2010, com revisão pontual em Abril de 2012]

FIG. 1 − Localização de Tróia. 0 150 km

CONCELOS 1897). Em 1895, José Leite de Vasconcelos, com a cola-boração de um funcionário do Museu Nacional de Arqueologia(MNA), Maximiano Apolinário, procedeu à escavação da conhecidasepultura de incineração de Galla, da qual conheceu a inscrição fune-

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Este tipo de solo arenoso e salino na nossaárea de estudo, do tipo Regossolos Psamiticosnão húmidos, revela-se pouco propício para aprática agrícola, suportando apenas a vegeta-ção nativa, que se caracteriza genericamentepor espécies de baixa envergadura do tipo ar -busto e manchas de pinhal que acompanhama extensão da península.

BREVE HISTORIAL

As primeiras referências conhecidas sobre osítio arqueológico de Tróia são feitas por Gas -par Barreiros e An -dré de Resende 1 ain-da no século XVI,mas as primeiras in -ter venções de que hánotícia são feitas sob o patrocínio da InfantaD. Maria I, depois de uma passagem pelo Sa -do em direcção à Herdade do Pinheiro (COS -TA 1933). Ainda hoje, o local onde a futurarainha passeou é conhecido pela Rua da Prin -cesa. Em 1850, inicia-se a primeira campanhada Sociedade Arqueológica Lusitana, um anodepois de ter sido constituída em Setúbal,ten do na figura do Padre Manuel da GamaXaro um dos seus principais promotores.Nes te ano começam as escavações sistemáti-cas, sob a protecção real de D. Fernando II eo patrocínio do primeiro Duque de Palmela.Esta Sociedade pretendia constituir um mu -seu público e promover um conjunto deacções culturais, através da constituição deuma biblioteca e de um plano editorial con-sistente, baseado nos seus trabalhos futuros.Teve, no entanto, um tempo de vida curto,entre 1849 e 1857, um ano após a última dasduas campanhas em Tróia. Destes trabalhosresultaram os Annaes da Sociedade Archeolo -gica Lusitana (SAL), publicados em três volu-mes onde, sucintamente, se descrevem algunsmateriais dispersos, assim como algumas das estruturas encontradas.Mesmo depois da extinção da SAL, e durante toda a segunda metadedo século XIX, vários monarcas se mostraram fascinados pelo sítio,inclusive D. Carlos I, que promoveu uma exploração no sítio (VAS -

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1 De antiquitatibusLusitaniae, IV - De

Caetobriga.

FIG. 2 − Pormenor da Carta Militar,folha 465, escala 1: 25 000.

FIG. 3 − Localização da sepultura de Galla,segundo COSTA (1924).

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Nos finais dos anos 60, já com a colaboração deD. Fernando de Almeida, Bandeira Ferreira, Fa -rinha dos Santos e José Luís de Matos identifi-cam uma construção de planta rectangular comnichos nas paredes destinados a conter urnas ci -nerárias, já publicada anteriormente por Maxi -miano APOLINÁRIO (1897: 157 e 160). Esta edi-ficação parece ter sido construída por cima deuma estrutura anterior, onde foram encontradasuma série de ânforas de fabrico lusitano do tipoDressel 14, dispostas verticalmente, o que levouos investigadores da equipa luso-francesa a inter-pretar esta estrutura mais antiga como um arma-zém de ânforas, entretanto desactivado (ÉTIEN-NE, MAKAROUN e MAYET 1994: 81). No finaldos anos 70 e durante as décadas seguintes, fo -ram escavadas algumas áreas onde se implanta-ram necrópoles tardias, sob a direcção de Antó -nio Cavaleiro Paixão, arqueólogo residente afec-to ao então Instituto Português do PatrimónioCultural (IPPC), mais tarde Instituto Portuguêsdo Património Arquitectónico (IPPAR): uma de -las situa-se na área que ainda hoje envolve a pare-de Norte do Columbário, sem que se conheçamaté hoje os resultados ou as conclusões destes tra-balhos. Outra zona das áreas funerárias identifi-cadas por D. Fernando de Almeida e A. C. Pai -xão encontra-se junto a uma estrutura de capta-

ção de água, onde se encontraram enterramentos cuja cobertura re -produz uma mensa de forma semicircular com uma depressão central(ALMEIDA, PAIXÃO e PAIXÃO 1978; ALARCÃO 1984), assim como astípicas mensae rectangulares, com paralelo na necrópole oriental deCórdova (SÁNCHEZ RAMOS 2007: 198-199, fig. 8), ou Cartagena(BERROCAL CAPPARÓS e LAIZ REVERTE 1995: 178), apenas para citaralguns exemplos. Recentemente, durante os anos 90, Tróia foi alvo deprospecções e intervenções nas áreas industriais e das termas, no âm -bito do projecto luso-francês da Exploração Arqueológica do Sado,cujos resultados foram entretanto publicados (ÉTIENNE, MAKAROUN

e MAYET 1994). Em 2004, sob a direcção de Álvaro Figueiredo, a áreade necrópole anteriormente escavada por A. C. Paixão na duna quecobre parcialmente a parede Norte do chamado Columbário foi alar-gada, revelando a continuidade deste espaço funerário em direcção aEste. Actualmente, os trabalhos são dirigidos por Inês Vaz Pinto, ar -queóloga contratada pela empresa privada que gere os terrenos ondese encontram as ruínas, e têm vindo a revelar novos dados sobre a di -nâmica da implantação do complexo industrial (PINTO, MAGALHÃES

e BRUM 2010).

rária (IRCP 1984, n.º 210; RIBEIRO 2002: 543, n.º 282) alguns anosantes, através de uma notícia no Século. Esta é a primeira referênciadevidamente documentada de um enterramento em Tróia e, segundoos dados disponíveis, situava-se no lado Norte da península, em opo-sição à necrópole da Caldeira, ou seja, junto ao rio (Fig. 3).No início do século XX, Inácio Marques da Costa publica uma sériede estudos recuperando grande parte das descrições feitas anterior-mente por outros autores, ao mesmo tempo que elabora algumas con-siderações sobre as estruturas que ainda se mantinham à vista. Destestrabalhos resulta a descrição de casas com dois pisos, com pinturas afresco e in clusive mosaicos nos pisos superiores, um baptisterium, en -tretanto des truído, referindo ainda a presença de um crismón nas pa -redes da basílica (Fig. 4), também hoje desaparecido (COSTA 1933:Est. III, fig. 27). Mais tarde, concretamente desde o final da décadade 40 até meados dos anos 60, as escavações estendem-se um poucopor zo nas não exploradas, sob a direcção de Manuel Heleno, que en -controu a maior necrópole associada ao complexo que se conhece atéhoje, uma parte do grande complexo industrial e, mais tarde, uma zo -na de banhos.

FIG. 4 − Representação de crismón na basílica cristã de Tróia, segundo COSTA (1933).

nesta área de vegetação mais densa, que, como veremos adiante, cor-responderá à última fase de escavação da necrópole, precisamenteonde se situam os enterramentos mais antigos, no interior de uma es -trutura construída para o efeito.A segunda fase da escavação parece ter-se iniciado depois de um hia-to de cinco anos, cujos motivos não se afiguram fáceis de compreen-der. A data constante no caderno de campo n.º 3 é de Maio de 1954,e só voltamos a encontrar registo de uma data em Agosto de 1955, nocaderno n.º 4, sendo que o último destes registos (caderno n.º 5) ape-nas refere o ano de 1955. Uma vez que o início da última fase da esca-vação já se encontra registado no caderno n.º 3, podemos afirmar quea fase em questão terá sido das campanhas mais curtas, acrescentan-do o facto de que estas intervenções devem ter decorrido em regimesazonal, sujeitas a condições meteorológicas favoráveis. Esta segundacampanha estendeu-se em direcção a NE e aparentemente não foiescavada até aos níveis mais antigos da necrópole. Identificaram-sevárias sepulturas tardias, que se situam na sua maioria nos séculos IV--V d.C., a uma cota superior àquela observada na primeira fase deescavação. É muito provável que a necrópole se estenda paralelamen-te à lagoa, ou seja, em direcção a Este, uma vez que a tendência dasintervenções não foi continuar em profundidade nesta segunda fase,mas sim alargar em direcção a Norte a primeira fase de escavação. Éassim que chegamos à área sob o pinhal e com vegetação mais densa,atingindo-se a maior potência estratigráfica da escavação – entre 5 a7 metros. Esta zona corresponde, num primeiro momento, às sepul-turas mais tardias, que continuam a surgir em cotas mais elevadas

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PROPOSTA DE LOCALIZAÇÃO E

LIMITES DA NECRÓPOLE DA CALDEIRA

É importante referir que a escavação da necrópole da Caldeira nãodeixou nenhum tipo de vestígio material que possa ajudar a localizara área escavada com precisão. É certo, porém, que a grande depressãono terreno que se observa quando chegamos ao sítio é genericamen-te aceite como a área onde se localizava a necrópole escavada por Ma -nuel Heleno (Figs. 5 e 6). Concordamos obviamente com esta evi-dência física. No entanto, a área intervencionada não se circunscreveapenas a esta zona, principalmente quando sabemos que grande par-te das sepulturas escavadas a Oeste desta perturbação no terreno esta-vam a uma cota superior, deixando muito poucos ou praticamentene nhuns vestígios de intervenção, especialmente se atendermos à mo -vimentação rápida dos terrenos que cobriram qualquer indício de in -tervenção. Felizmente, foi, apesar de tudo, produzida grande quanti-dade de informação gráfica, o que nos permite, dentro do possível, re -constituir a evolução das próprias intervenções. Assim, na planta 1(Fig. 7) estamos perante a primeira fase de escavação, decorrida sen-sivelmente entre os finais de 1948 e uma fase indeterminada do anode 1949, e que colocou a descoberto um número significativo de se -pulturas, que correspondem grosso modo às nossas Fases 1B, 1C, 2A,2B e 2C e, em número menos significativo, a alguns contextos daFase 2D (ALMEIDA 2008: 28). Esta primeira fase de escavação situou--se no limite da linha de praia a Sul e desenvolveu-se em direcção àvegetação de arbustos e pinhal (Fig. 8), embora não tenha penetrado

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FIG. 5 − Área da necrópole da Caldeira em Abril de 2010.

FOTO

:Joã

o Alm

eida.

FIG. 7 − Planta daprimeira fase de escavação,segundo Bandeira Ferreira, 1949(Arquivo Museu Nacional de Arqueologia).

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muito próximas da superfície. Num segundo momento, a escavaçãoé então desenvolvida em profundidade, revelando duas estruturas aSul e Este, que aparentemente cir-cundam uma área exclusivamenteocupada por contextos funerá-rios (Fig. 9). Depois de váriastentativas para identificar estaestrutura no terreno, é possí-vel que nenhuma destas seencontre preservada, so -bre tudo atendendo aosmateriais de construçãoque se encontram espa-lhados pela zona, reutili-zados nos dias de hoje co -mo estruturas de combustãoou de apoio à montagem de ten-das durante o período de festasconsagradas à N.ª Sr.ª de Tróia, e,embora se tenha identificado um pequenomu ro na zona, não parece corresponder às estruturasaqui referidas. No extremo Norte desta intervenção, foram aindapos tas a descoberto uma estrutura de captação de água e uma cister-na para armazenamento (Fig. 10), provavelmente relacionadas com amanutenção do espaço e o abastecimento de água para libações, comparalelo nas necrópoles de Córdova (VAQUERIZO GIL 2001: 157).

FIG. 6 − Ruínas deTróia, localização da

necrópole da Caldeira(IPPAR / GoogleEarth).

O SÉCULO III E A

ALTERAÇÃO DOS MODELOS VIGENTES

O estudo e a análise das inumações ditas tardias na necrópole da Cal -deira aconselham, em primeiro lugar, o seu enquadramento históri-co-cronológico, de forma a compreender e definir o ambiente em queestes enterramentos foram praticados, em oposição, por exemplo, aoAlto Império, onde o ritual praticado e os vestígios arqueológicos sãosubstancialmente diferentes. Embora a historiografia e a arqueologia tendam geralmente a fecharalguns períodos em datas de referência, não significa que, de um diapara o outro, uma civilização tenha acordado num período históricodiferente do anterior. De qualquer forma, o que define o termo ou ex -pressão “Antiguidade tardia / Baixo Império” é sobretudo a lenta mu -dança dos modelos políticos, económico-sociais e religiosos no Im -pério em torno dos meados do século III d.C., fruto da dificuldadeem controlar e gerir uma área extremamente vasta, sujeita a pressõesvárias, quer dentro do Império, quer junto às fronteiras, onde os ata-ques e incursões se tornam mais frequentes e difíceis de enfrentar.Esta instabilidade tem o seu expoente máximo em Março de 235,quan do Alexandre Severo é assassinado às mãos das suas próprias tro-pas. A partir deste episódio, e durante cerca de 50 anos, o Impériomergulha numa grave crise, sobejamente conhecida como a Crise doSéculo III, onde mais de duas dezenas de candidatos ao imperialatose enfrentaram e acabaram por desmembrar o Império Romano co -mo até então o conhecíamos.

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MANUEL HELENO E A

ESCAVAÇÃO DA NECRÓPOLE DA CALDEIRA

Ao contrário de outras áreas do sítio arqueológico de Tróia, a área on -de se implantou a necrópole situada a Sul do complexo industrial nãotinha sido alvo de intervenções até aos finais da década de 1940, se -gundo a informação de que dispomos hoje. A escavação em Tróia, emparticular na necrópole da Caldeira, fez-se com a presença intermi-tente de Manuel Heleno no terreno.Conhe cemos esta situação sobre-tudo pela correspondência 2 reme-tida por Jaime Rol dão e Ban deiraFerreira, os colaboradores que pas -sa ram a maior parte do tempo nolo cal. A es cavação propriamente dita era feita sob a ori entação destes,com mão-de-obra local, e, chegada a fase de registo fotográfico, erasolicitada a presença de Heleno, que aliás se encarregou da maior par-te dos registos e da memória descritiva dos contextos escavados fixa-da nos famosos cadernos de campo.O volume de in formação e a sobreposição de escavações em váriospontos do país fez com que Manuel Heleno acumulasse bastante in -formação, a maior parte dela inédita durante toda a sua vida. A reco-lha destes materiais no MNA permitiu assim que muitos destes sítiospossam agora ser estudados, tal como a necrópole da Caldeira, queaqui se apresenta.

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2 Epistolário de Manuel Heleno.Arquivo Museu Nacional

de Arqueologia.

FIG. 8 − Primeira fase da escavação da necrópole da Caldeira, s/d (Arquivo Museu Nacional de Arqueologia).

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duzidos por Cláudio, embora sem a expressão que vão atingir no sé -culo III d.C. no Ocidente Peninsular. Foi precisamente Aurelianoquem, numa tentativa de unir também o Império do ponto de vistareligioso, reforçou a importância da divindade Sol, Sol Invictus ouOriens, no panteão romano.

Resumidamente, podemos afirmar que as províncias nos dois extre-mos do Império se uniram cada uma sob um único governante, aOci dente o chamado Império Gálico, que incluía o territorium dasprovíncias na Hispânia, Gália, Britânia e parte da Germânia entre260 e 274 d.C., e a Oriente o Império Palmirense, onde se reuniramsob o mesmo governo as províncias do Egipto, Síria e Palestina entre260 e 273 d.C. O Império Romano perdeu assim momentaneamen-te o controlo absoluto sobre estas regiões, recuperando-o pouco de -pois sob o comando de Aureliano, em 274, o que valeu a este a atri-buição pelo Senado do título honorífico de Restitutor Orbis. Emboratenha recuperado o território do Império, as consequências destas re -beliões deixaram marcas profundas nos modelos anteriormente obser-vados. Certamente que ainda estará por explicar e identificar no regis-to arqueológico de sítios que dependem exclusivamente da bonançaeconómica e da livre circulação em larga escala – como é o caso deTróia – o verdadeiro impacto destas alterações. Como bem observou GONZÁLEZ VILLAESCUSA (2001: 141), o contex -to religioso desta fase conjuga os elementos arcaicos com o crescentehelenismo oriental, e até mesmo a anterior política imperial dos An -to ninos (138-180 d.C.) conferiu um apoio oficial cada vez maior aoscultos mistéricos e orientais, que já tinham sido reconhecidos e intro-

FIG. 9 − Necrópole da Caldeira, pormenorda planta A.5, s/d, segundo A. Luis Paiva

(Arquivo Museu Nacional de Arqueologia).

FIG. 10 − Cisterna, necrópole da Caldeira, s/d.(Arquivo Museu Nacional de Arqueologia).

Hoje, esta corrente inglesa de Cambridge é fortemente contestada efoi praticamente abandonada, devido sobretudo à sua visão redutora,que engloba uma vasta parte da mitologia clássica e pré-clássica numaúnica categoria, ignorando aspectos que as podem distinguir e confe-rir uma certa singularidade, inexistente nesta teoria. Para autores com -parativistas do século XX, a análise mitológica do Cristia nismo, atítulo de exemplo, chegou a ser, segundo MARTÍNEZ MAZA e ALVAR

(1997), uma amálgama de elementos mitraicos e outros cultos orien-tais, tais como: o ban que te ritual (antecedente da eucaristia), o tauro-bolium (como antecessor do baptismo), e a paixão e morte de Osíris(iden tificadas com a paixão e morte de Cristo), apenas citando algunsexemplos. Independentemente das semelhanças e dos processos de transferênciamitológica entre os cultos mistéricos e o Cristianismo, ou vice-versa, aconcepção filosófica e metafísica de uma vida além-morte reflecte-sena alteração do ritual funerário, sobretudo na ideia de manutenção docadáver, prática que, não sendono vidade nem mesmo na culturaro mana 3, foi comum nas civiliza-ções orientais, sempre com o mes-mo pa no de fundo, ou seja, a so -bre vivên cia do indivíduo e o seutriunfo sobre a morte. Mesmo coma in tro dução precoce – época clau dia na – e respectiva aceitação de cul-tos orientais por vários imperadores, como já ti vemos oportunidadede comentar, o ritual de inumação não se generalizou durante o AltoImpério, o que nos leva a questionar se esta tendência estará directa-mente relacionada com al gum culto em particular, ou se, por outrolado, é reflexo da época conturbada onde estas correntes filosóficas

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Esta medida atesta a importância que os cultos mistéricos adquirirame antecipa, de certa forma, a predisposição da consciência colectivaromana para um culto monoteísta. Ainda em termos religiosos, éimportante assinalar que o culto doméstico, de características mais in -timistas e pessoais, parece ganhar terreno em relação ao culto oficialdo imperador, típico do Alto Império.

MUDANÇA DE RITUAL FUNERÁRIO

E O SEU SIGNIFICADO

À semelhança do que se observa por todo o Império, a incineração éo ritual praticado na necrópole da Caldeira entre os meados do sécu-lo I da nossa Era e o início do século III, embora a partir dos finaisdo século II d.C.-início do século III d.C. se registem as primeirasinumações no local (ALMEIDA 2008: 11-114). Esta fase de transição,relativamente bem identificada no registo arqueológico, é extrema-mente interessante e importante para o estudo do mundo funerárioem Tróia, já que se trata precisamente do momento em que ambos osrituais convivem, observando-se a crescente adopção do ritual de inu-mação, em detrimento da incineração.Esta mudança reflecte sobretudo uma nova mentalidade do indivíduoe da sua abordagem perante a morte, que se prende acima de tudocom novos conceitos filosóficos e metafísicos, até então pouco disse-minados. A prática da inumação é muitas vezes atribuída de formageneralizada ao cristianismo primitivo, principalmente quando nãoexistem dados fiáveis e datantes que permitam um estudo aprofunda-do das necrópoles tardias. No entanto, as inumações do século III danecrópole da Caldeira não só mantêm os modelos arquitectónicos dasincinerações que lhes são contemporâneas (Fig. 11), como apresen-tam uma quantidade de espólio apreciável, em termos de quantidadee qualidade, se assim o podemos afirmar. A nossa convicção é que estaabordagem no sentido de manter o corpo físico, em oposição à suadestruição parcial (incinerações), prende-se sobretudo com uma cren-ça no pós-vida e na imortalidade do indivíduo, características doscha mados cultos orientais ou mistéricos, onde também se inclui oCristianismo. Como já tivemos oportunidade de comentar, os cultosmistéricos caracterizam-se sobretudo pela sua linha intimista e pes-soal, ao contrário do carácter público das antigas crenças romanas(GÓNZALEZ VILLAESCUSA 2001: 144) que, segundo CUMONT (1987:67-72), oferecem aos seus seguidores a esperança da imortalidadeescatológica, tratando-se assim de religiões de salvação. Esta correntedos chamados “dying and rising gods”, muito popular no início do sé -culo XX, sobretudo nos trabalhos de FRAZER (1922), defendia que osrituais religiosos que implicavam a morte e a ressurreição de uma di -vindade, estavam intimamente ligados à analogia do trajecto vida--mor te relacionado com a fertilidade dos campos e à mudança ocor-rida na Natureza, desde tempos imemoriais.

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3 Segundo Cícero e Plínio, a inumação foi o ritual de enterramento mais antigo em

Roma e, de acordo com a Lei dasXII Tábuas (século V a.C.), ambos

os rituais eram praticados em Roma.

FIG. 11 − Em cima: SEP. 37 (incineração); em baixo: SEP. 35 (inumação).Finais do séc. II - início do séc. III d.C.

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dade, sobretudo quando sabemos que a liturgia mitraica pressupõe aexistência de um ou mais sacerdotes que iniciam os novos seguidoresnesta doutrina (CUMONT 1903: 150-174). A difusão deste culto estágeralmente associada à presença de forças militares, partindo do prin-cípio que em algum momento tomaram contacto com esta realidadeno limes do Império, e, por outro lado, à presença de comerciantesque, através dos contactos com várias províncias, trouxeram em deter-minada altura uma nova crença que se generalizava um pouco portodo o Império. No caso de Tróia, será bastante difícil encontrar algu-ma validade na primeira hipótese, remetendo-nos assim com grandeprobabilidade para a chegada deste culto através da transmissão deideias ou de pessoas que lhe seriam afectas por força da máquinacomercial. Não é de descurar igualmente a hipótese de que esta mes-ma transmissão se possa ter efectuado por ou tras vias, uma vez que ocontacto com a capital da província foi uma constante.Certo é que o culto mitraico atinge durante o século III d.C. o seuauge, e encontra-se disseminado um pouco por todo o Império, mes-mo nos seus extremos, como é o caso de Tróia.Uma das características dos cultos mistéricos/orientais reside precisa-mente no seu secretismo e na ausência de elementos fora do contex-to habitual, nomeadamente a escultura e as aras votivas, quase sem-pre relacionadas com o próprio local de culto – mitreum. Inde pen -dentemente de não existir até à data uma evidência cabal da presença

proliferaram, tornando-se cada vez mais populares à medida que oscontactos com o Mediter râneo oriental amadureciam.

A EVIDÊNCIA MISTÉRICA EM TRÓIA

Em 1925, foi descoberto em Tróia um dos mais importantes vestígiosdo culto mitraico no território hoje português. Referimo-nos ao frag-mento de tríptico do qual apenas resta o último quadro, com a repre-sentação do banquete com Hélios, antes da sua ascensão apoteótica(Fig. 12). A presença deste ornamento parietal implica forçosamentea existência de um local de culto dedicado a Mitra, já que aquele pai-nel não tem outra função que não seja a de fazer parte de um templomitraico. Infelizmente, não se pode identificar com precisão o local,nem relacioná-lo estratigraficamente com a restante estação, embora,através da análise estilística do painel, pareça consensual que a suacronologia nos remete para o século III d.C. (GARCÍA Y BELLIDO

1949: n.º 398; MACIEL 1996: 128-131).Apesar da exposição e do contacto que a co munidade de Tróia teveseguramente com as transformações filosóficas da época e as novascorrentes religiosas, sobretudo devido à sua lo calização e vocaçãocomercial, foi necessário que existisse alguma receptividade e me ca -nismos legais que permitissem a introdução deste culto na comuni-

FIG. 12 − Fragmento original do tríptico mitraico fotografado em Tróia. Segundo COSTA (1933).

calmente oposta, aproximando-se neste caso dos modelos funerárioscristãos.Um dos melhores exemplos é o espólio da sepultura 22 (ALMEIDA

2008: 55-56), datada dos finais do século III-inícios do IV d.C. Estaextraordinária sepultura parece contrariar o típico enterramento cris-tão, por um lado, devido à sua orientação SE-NO, e, por outro, pelasumptuosidade do espólio recolhido (Fig. 13), pouco compatível coma humildade que caracteriza os enterramentos ditos cristãos.

O TRIUNFO DO CRISTIANISMO

Um dos temas mais interessantes da Antiguidade tardia é o da difu-são do Cristianismo e da sua implementação no Ocidente Peninsular.Apesar dos inúmeros vestígios deste culto e da abundância de fontes,sobretudo após a sua oficialização em 380 d.C. no Édito de Tessalónicapor Teodósio, não é de todo claro de que forma este chegou à Lusi -tânia. Mesmo antes do seu pleno reconhecimento oficial por parte doEstado, existiam já várias comunidades cristãs organizadas na Penín -sula Ibérica, como se depreende da análise das fontes mais antigasonde estas comunidades são referenciadas, como são os textos deIreneu de Lyon dos fi nais do sécu-lo II d.C. 4, e de Tertuliano no iní -cio do século III d.C. 5.Apesar destas referências, em certamedida exa gerando a importânciado Cristianismo na época (BLÁZ -QUEZ MARTÍNEZ 1978: 260), será ape nas no século IV, em 311 d.C.,através de édito do imperador Ga lé rio em Nico média, que o Cristia -nismo se torna uma religio licita (MARTÍNEZ TEJERA, no prelo: 109),concedendo liberdade de culto a todos os cristãos, após as grandesperseguições de Diocleciano e do próprio Galério, em 303 d.C. Seráa partir de 313 d.C. e da tolerância religiosa que visava o fim das per-seguições, sobretudo aos cristãos, do Édito de Milão proclamado porConstantino, que o ambiente religioso cristão conhece a sua estabili-dade definitiva, traduzida na sua difusão sem precedentes. Como já tivemos oportunidade de comentar, a noção de renascimen-to é uma das principais características dos cultos e religiões orientais,e, quando se trata de compreender o fenómeno cristão e a sua disse-minação, é fundamental a análise do seu contexto sócio-político. Emtermos muitos genéricos, a aceitação da figura de Cristo como o Mes -sias na cultura judaica abriu uma nova página na história das religiões,já que aquilo a que podemos chamar – sem nenhuma intenção pejo-rativa – de judeus dissidentes, abre caminho à implementação doCris tianismo propriamente dito. Significa isto que uma parte da co -munidade judia abraçou a figura de Cristo como o Messias, ao mes-mo tempo que outra não lhe reconheceu autoridade divina, dandocontinuidade à antiga tradição judaica.

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de cultos mistéricos em contexto funerário na necrópole da Caldeira,é absolutamente inegável a presença deste em Tróia.Ainda assim, é extremamente difícil e, portanto, muito subjectivoidentificar e reconhecer a influência dos cultos mistéricos no ritualfúnebre, principalmente quando lidamos com a ausência de elemen-tos que permitam uma associação directa a um ou mais cultos empar ticular, como sucede, por exemplo, na necrópole de Carmona, on -de Bendala Galán sugere que a conhecida Sepultura do Elefante re -flecte um culto a Ísis e Átis, datado da época do imperador Cláudio.Segundo este autor, é esse imperador que “[…] introduce sus fiestas enel calendario romano y abre a los ciudadanos las puertas de la participa-ción, a la vez que lima ciertas asperezas que repugnaban a los gustos desu pueblo […]” (BENDALA GALÁN 1976).Estes cultos em particular mantêm a sua popularidade (e populismo)durante muito tempo, inclusive durante todo o século III, altura emque outro culto oriental – o mitraísmo – foi amplamente praticado,como já tivemos oportunidade de comentar. É por isso incontornávelque o leque religioso romano absorveu grande parte das influênciasque encontrou nos limites orientais do Império, sendo que esta per-meabilidade não se estendeu ao Cristianismo, fortemente reprimidopela autoridade, uma vez que não reconhecia qualquer outra divin-dade e proclamava silenciosamente uma Teocracia Messiânica. Uma das revelações surpreendentes do estudo das inumações da ne -crópole da Caldeira prende-se com a orientação do cadáver, depois daanálise atenta dos cadernos de campo e das descrições das sepulturas.Apesar da dúvida e da fragilidade dos argumentos inerentes à inter-pretação das orientações funerárias, uma vez que se tratam em últimaanálise de propostas subjectivas, parece-nos plausível que existem doispadrões de enterramento nas inumações da necrópole da Caldeira. O primeiro refere-se às sepulturas que se situam nos finais do século II--primeira metade do século III d.C. até aos finais do século III d.C. eapresentam, na sua esmagadora maioria, uma orientação solar (?), ge -nericamente SE-NO (cabeça-pés). Quanto ao segundo padrão, cujasorientações são genericamente opostas às observadas anteriormente,surgem ainda na segunda metade do século III d.C., mas correspon-dem sobretudo às últimas inumações, datadas dos séculos IV e V d.C.Através desta análise, revela-se muito tentador distinguir estes dois pa -drões, sobretudo quando existe grande consensualidade quanto às ori -entações NO-SE corresponderem aos típicos padrões cristãos, orien -tando o indivíduo para Oriente. Entre estas fases, verifica-se uma co-existência dos dois padrões entre a segunda metade e o início do sécu-lo IV, embora, à medida que nos aproximamos do final do século III,as orientações NO-SE aumentem exponencialmente. Naturalmente que se torna difícil e por vezes perigoso estabelecer rela-ções intencionais entre uma determinada orientação e o seu significa-do, mas, neste conjunto de sepulturas, o padrão é por demais eviden -te e não parece ser possível fazer outra leitura que não esta, até por-que na fase seguinte as orientações conhecem uma configuração radi-

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4 Aduersus Haereses - Contra asHeresias I: X.

5 Aduersus Judaeos - Contra osJudeus VII.

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FIG. 13 − Parte do espólio da Sepultura 22.

FOTO

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eida.

0 3 cm0 3 cm

0 5 cm

0 5 cm

0 3 cm

Este é, porventura, um dos pilares filosóficos do Cris tianismo destafase, que justifica em larga medida as orientações funerárias O-E ouNO-SE, embora, como também já referimos, este argumento não se -rá totalmente estanque, sobretudo quando se conhecem enterramen-tos plenamente cristãos com outras orientações. Para além dos cons-trangimentos físicos do espaço, há que ter em conta a importânciaque o próprio culto dos mártires teve durante toda a história do Cris -tianismo e sobretudo nos séculos IV e V d.C. Neste sentido, a orien-tação baseada no modelo NO-SE poderia ser relegada para segundoplano, para dar lugar à proximidade de um sepulcro onde foi sepul-tado um mártir. Com os dados actualmente disponíveis, resultantesda área escavada, não parece ter existido uma sepultura de inumaçãona necrópole da Caldeira com estas características, o que sublinha ahomogeneidade das orientações mais tardias, não só nesta necrópole,mas um pouco por todo o sítio arqueológico, incluindo os enterra-mentos que reaproveitam áreas entretanto abandonadas, como cetá-rias, por exemplo (ver abaixo).A maior dificuldade reside precisamente na datação destes contextos,uma vez que o espólio é praticamente inexistente, impedindo assimuma datação afinada. Um dos principais problemas foi a fraca impor-tância atribuída pelos responsáveis da escavação aos elementos reco-lhidos na chamada área de frequentação da necrópole.Existe, de facto, uma quantidade apreciável de fragmentos de terrasigillata recolhida durante os trabalhos destas zonas exteriores, masnão é possível recuperar a sua estratigrafia, impedindo-nos assim dere lacionar estes materiais com os contextos funerários. As escavaçõesrecentes em Pupput, Tunísia (BEN ABED e GRIESHEIMER 2004), dão--nos uma ideia geral da importância do estudo deste material, permi-tindo assim afinar a cronologia da necrópole e identificar ritmos deutilização destes espaços, o que, infelizmente, será impossível de fazerno estudo da área escavada por Manuel Heleno na necrópole da Cal -deira. Este facto é ainda mais frustrante quando tentamos datar asinumações mais tardias, precisamente aquelas que menos – ou ne -

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Este fenónemo, observadonuma zo na específica – a provín-cia romana da Iudeae, mais tardeSyria-Palestina 6 –, é a bifurcaçãoobservada no tronco comum en -tre as duas religi ões, que mudarámais tarde toda a concepção filo-sófica e religiosa da Antiguidade.Não é objecto deste trabalho ten-tar compreender co mo evolui esta nova tendência religiosa, em bora omomento e a constante opressão ro mana sobre uma área muito sensí -vel à mu dança religiosa tenham seguramente despoletado uma ondade descontentamento e re volta, quando uma comunidade se vê ago-ra reduzida a uma província de uma força es tran geira. Este ambientefrágil e de mudança iminente foi um campo fértil para o triunfo doCristianismo, baseado na promessa de libertação da comunidade. Es -ta nova consciência religiosa faz parte do chamado Cristianismo pri-mitivo, rapidamente disseminado nesta área geográfica, assim comona Península Itálica, onde a linguagem moral passava pela salvação co -lectiva após a segunda vinda do Messias, ao contrário da missão teo -lógica de Paulo, onde a salvação individual es tava ao alcance de cadahomem. A individualidade e o afastamento da radical transformaçãosocial são geralmente relacionados com o facto de tornar o movi-mento “aceitável” ao estilo religioso mais lacónico das cidades gregas,para onde os missionários Paulinos se dirigiam (DAVIES 1999: 9-10)e a partir das quais se mesclou com outros movimentos até chegar atodo o Império. É importante sublinhar que a noção de um Dia do Julgamento –quando o indivíduo é pesado na balança moral de Deus – é simulta-neamente uma característica do universo religioso do Antigo Egiptoe dos cultos persas. Associada a esta noção existe uma franca preocu-pação com o corpo, durante a vida e nos rituais praticados, assim co -mo em manter a identidade do falecido (IDEM: 7). É esta forma deen carar a morte, transversal a variadíssimas culturas orientais, quesubsiste na cultura judaico-cristã da nossa Era e amadurece à medidaque o Cristianismo se implanta definitivamente no Império Romano.

O REGISTO ARQUEOLÓGICO

Seguindo o mesmo modelo de orientações anteriormente referido, asúltimas inumações da necrópole da Caldeira orientam-se, na suagran de maioria, num eixo NO-SE (cabeça-pés), colocando o indiví-duo orientado para Jerusalém ouOriente, onde, segundo a literatu-ra cristã, surgirá o Messias na suasegunda vinda terrena, no dia doJul gamento Fi nal 7.

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6 Segundo Estrabão (Geographialiv. XV-34-38, 40, 46), Iudaea foio nome da província romana que

englobava genericamente a área daGalileia e Samara entre os anos 6 e135 d.C., altura em que, após uma

rebelião, o imperador Adrianoalterou o nome para Syria-

Palestina, de forma a confirmar amemoria damnatio sobre os judeus.

7 “Tal como o relâmpago rasga o céudesde o oriente até ao ocidente, assim

será a vinda do Filho do Homem”(Mateus 24:27).

FIG. 14 − Sepultura 89: ânfora Keay 78 reutilizada (Arquivo Museu Nacional de Arqueologia).

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cristão no nosso território, é umase pultura de inumação implanta-da já depois do abandono de umedifício junto ao rio, com orien -tação genericamente O-E, cuja ca -beceira es tava decorada com trêscruzes páteas 8 pintadas a fresco(Fig. 15). Este vestígio remete-nosclaramente para uma cronologia pós-oficialização do Cristia nismo,so bretudo pela própria iconografia. É visível a tentativa de reproduziras letras do alfabeto grego alfa e ómega, tal como surgem associadasao crismón, mas apenas está pintada a letra maiúscula alfa por baixodos braços da cruz.Na necrópole da Caldeira, e na ausência de edifícios, este fenómenotraduz-se sobretudo na aproximação dos enterramentos entre si e,inclusive, na reutilização de sepulturas para enterramentos duplos,fruto talvez do aumento exponencial de população e da gestão do es -paço, uma vez que não conhecemos a totalidade da área consagrada ànecrópole. Como já tivemos oportunidade de comentar, a ausênciade espólio destas últimas fases é uma constante, e esta ausência mate-rial no depósito funerário foi aparentemente uma opção, uma vez queno contexto “cemitério” foram recolhidas várias lucernas tardias comrepresentação claramente cristã, assim como grande quantidade de

nhum – espólio apre sentam. Quer isto dizer que, sem métodos cien-tíficos actuais, tornamo-nos reféns de largos espectros cronológicos,ba seando-nos sobretudo no material anfórico reutilizado e converti-do em sarcófagos infantis (Fig. 14), e na tentativa de recuperar a suarelação com os enterramentos imediatamente anteriores, onde se con-seguiu estabelecer uma boa cronologia. No entanto, o cenário não étão mau como parece, já que a necrópole não foi escavada na sua tota-lidade e existe certamente um potencial enorme por explorar.À medida que nos aproximamos de épocas mais tardias, nomeada-mente a partir do século IV, assistimos a um fenómeno de contracçãodas cidades e a alterações no urbanismo, ao mesmo tempo que as ne -crópoles ocupam áreas abandonadas no seu interior e se aproximamcada vez mais de locais de culto – basílicas, túmulos de mártires, porexemplo –, convivendo assim com o mundo dos vivos, ao contráriodo que sucedia no Alto Império, mesmo com impedimentos legais(Codex Theodosianus XVI, 5,7,3, citado por DE MAN 2005: VI.III).A utilização destes espaços é por demais evidente no interior do com-plexo industrial de Tróia, principalmente junto da basílica, onde ointerior e exterior do edifício estão praticamente cobertos de enterra-mentos, mas também um pouco por toda a estação, onde algumas ce -tárias entretanto abandonadas e entulhadas receberam inumações noseu interior. Outro dos locais onde este fenómeno de contracção seobserva, porventura o mais espectacular vestígio inequivocamente

8 Esta representação iconográficafoi apresentada em Dezembro de

2010 no encontro “Leituras do SulCristão em Mértola”, por Inês Vaz

Pinto, Patricia Magalhães, Patricia Brum e o signatário e,

mais recentemente, em Abril 2012, no “1º Encontro de História de

Arte da Antiguidade da FCUNL”.

FIG. 15 − Cabeceira de sepultura decorada com três cruzes páteas pintadas a fresco.

FOTO

:Joã

o Alm

eida.

Embora este número seja reduzido, a sua explicação poderá dever-seà fraca importância atribuída a estes materiais pelos responsáveis pelaescavação, já que existem nas descrições dos cadernos de campo refe-rências a pregos no interior das sepulturas que não encontram corres-pondência no inventário do MNA.

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sigillata clara D, ambas totalmente ausente nos contextos funerários,sublinhando portanto a humildade inerente aos enterramentos cris-tãos. Mais uma vez não temos registo nem informação que nos per-mitam relacionar estes materiais recolhidos na área de frequentaçãocom o espaço envolvente e com as estruturas funerárias, cujo contri-buto para a datação desta fase seria sem dúvida muito útil. Há aindaa assinalar a presença de pregos em algumas sepulturas, provavelmen-te relacionados com a construção de um caixão de madeira.

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