Cultura e Imperialismo- Edward W. Said

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  • ParaEqbalAhmad

    A conquista da terra, que signica basicamente tom-la dos que possuemumacompleiodiferenteouumnarizumpoucomaisachatadodoqueonosso,noumacoisabonita,sevocolharbemdeperto.Oquearedimeapenasa ideia.Uma ideiapordetrsdela;noumacosentimental,masuma ideia; e uma crena altrusta na ideia algo que voc pode erigir, ecurvar-sediantedela,elheoferecerumsacrifcio...

    JosephConrad,Coraodastrevas

  • INTRODUO

    CercadecincoanosapsapublicaodeOrientalism[Orientalismo],em1978, comecei a reunir algumas ideias sobre a relaogeral entre cultura eimprio,asquaishaviamcadoclarasparamimquandoescreviaaquelelivro.O primeiro resultado foi uma srie de conferncias que ministrei emuniversidades dos Estados Unidos, do Canad e da Inglaterra em 1985 e1986. Essas conferncias formam o ncleo de minha argumentao napresenteobra,comaqualvenhomeocupandodesdeento.Muitosestudosde antropologia, histria e disciplinas de reas especcas tm elaboradoideiasqueapresenteiemOrientalismo,restritoaombitodoOrienteMdio.Assim, tambm tento aqui ampliar a argumentao do livro anterior, demodo a descrever um modelo mais geral de relaes entre o Ocidentemetropolitanomodernoeseusterritriosultramarinos.Em que consistem alguns dos materiais aqui utilizados e que no

    pertencemreadoOrienteMdio?Sotextoseuropeussobreafrica,andia, partes do Extremo Oriente, Austrlia e Caribe; considero essesdiscursos africanistas e indianistas, como foramchamados,parte integranteda tentativa europeiageral dedominarpovos e terrasdistantes, eportantorelacionadoscomasdescriesorientalistasdomundoislmico,bemcomocom as maneiras especcas pelas quais a Europa representa o Caribe, aIrlandaeoExtremoOriente.Oquehdemarcantenessesdiscursossoasguras retricas que encontramos constantemente em suas descries doOrientemisterioso,osesteretipossobreoespritoafricano(ouindiano,irlands,jamaicano,chins),asideiasdelevaracivilizaoapovosbrbarosouprimitivos,anooincomodamentefamiliardequesefazianecessriooaoitamento, amorteouum longo castigoquando eles se comportavammalouserebelavam,porqueemgeraloqueelesmelhorentendiameraafora ou a violncia; eles no eram como ns, e por isso deviam serdominados.Porm,emquasetodososlugaresdomundonoeuropeuachegadado

    homem branco gerou algum tipo de resistncia. O que deixei de fora emOrientalismo foi a reao ao domnio ocidental que culminou no grandemovimento de descolonizao em todo o Terceiro Mundo. Alm daresistnciaarmadaem locais todiversosquantoa Irlanda, a Indonsiae aArglia no sculoXIX, houve tambm um empenho considervel na

  • resistnciaculturalemquasetodasaspartes,comaarmaodeidentidadesnacionalistase,nombitopoltico,comacriaodeassociaesepartidoscomoobjetivocomumdaautodeterminaoedaindependncianacional.Ocontatoimperialnuncaconsistiunarelaoentreumativointrusoocidentalcontraumnativonoocidentalinerteoupassivo;semprehouvealgumtipode resistncia ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistnciaacaboupreponderando.Esses dois fatores um modelo geral de cultura imperial em mbito

    planetrio e uma experincia histrica de resistncia contra o imprio fazem com que este livro no seja apenas uma mera continuao deOrientalismo,mas uma tentativa de algo diverso.Em ambos os livros dounfaseaoquechamo,demodobastantegeral,cultura.Quandoempregootermo, ele signica duas coisas em particular. Primeiro, cultura designatodas aquelas prticas, como as artes de descrio, comunicao erepresentao, que tm relativa autonomia perante os campos econmico,socialepoltico,equeamideexistemsobformasestticas,sendooprazerumde seusprincipaisobjetivos. Incluem-sea,naturalmente, tantoo saberpopular sobre partes distantes do mundo quanto o conhecimentoespecializadodedisciplinascomoaetnograa,ahistoriograa,alologia,asociologia e a histria literria. Como meu enfoque exclusivo, aqui,concentra-senosimpriosocidentaismodernosdossculosXIX eXX, tratosobretudo de formas culturais, como o romance, que julgo terem sido deenorme importncia na formao das atitudes, referncias e experinciasimperiais.No digo que apenas o romance tenha sido importante, mas oconsidero comoo objeto esttico cujas ligaes com as sociedades emexpansoda Inglaterra edaFrana soparticularmente interessantes comotema de estudo. O prottipo do romance realista moderno RobinsonCruso,ecertamentenoporacasoqueeletratadeumeuropeuquecriaumfeudoparasimesmonumadistanteilhanoeuropeia.Acrticarecentetemseconcentradobastantenanarrativadeco,mas

    pouqussima ateno se presta a seu lugar na histria e no mundo doimprio.Osleitoresdestelivrologoperceberoqueanarrativacrucialparaminhaargumentao,sendominhatesebsicaadequeashistriasestonocernedaquiloquedizemosexploradoreseosromancistasacercadasregiesestranhasdomundo;elas tambmse tornamomtodousadopelospovoscolonizadosparaafirmarsuaidentidadeeaexistnciadeumahistriaprpriadeles. O principal objeto de disputa no imperialismo , evidentemente, aterra;masquandosetratavadequempossuaaterra,quemtinhaodireitodenela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e

  • quemagoraplanejaseufuturoessasquestesforampensadas,discutidaseat, por um tempo, decididas na narrativa. Como sugeriu um crtico, asprprias naesso narrativas. O poder de narrar, ou de impedir que seformem e surjam outras narrativas, muito importante para a cultura e oimperialismo, e constitui uma das principais conexes entre ambos. Maisimportante, as grandiosas narrativas de emancipao e esclarecimentomobilizarampovosdomundocolonialparaque seerguessemeacabassemcom a sujeio imperial; nesse processo, muitos europeus e americanostambmforaminstigadosporessashistriaseseusrespectivosprotagonistas,e tambm eles lutaram por novas narrativas de igualdade e solidariedadehumana.Emsegundo lugar, equase imperceptivelmente, a culturaumconceito

    queincluiumelementodeelevaoerenamento,oreservatriodomelhordecadasociedade,nosaberenopensamento,comodisseMatthewArnoldna dcada de 1860. Arnold achava que a cultura mitiga, se que noneutraliza por completo, a devastao de uma vida urbana moderna,agressiva,mercantil,embrutecedora.ApessoalDanteouShakespeareparaacompanhar omelhor do pensamento e do saber, e tambmpara ver a simesma,aseupovo,suasociedade,suastradiessobasmelhoresluzes.Como tempo, a cultura vem a ser associada,muitas vezes de forma agressiva, naoouaoEstado;issonosdiferenciadeles,quasesemprecomalgumgraudexenofobia.Acultura,nestesentido,umafontedeidentidade,ealisbastante combativa, como vemos em recentes retornos cultura e tradio. Esses retornos acompanham cdigos rigorosos de condutaintelectual e moral, que se opem permissividade associada a losoasrelativamente liberais comoomulticulturalismo e o hibridismo.No antigomundocolonial,essesretornosgeraramvriosfundamentalismosreligiososenacionalistas.Neste segundo sentido, a cultura uma espcie de teatro emque vrias

    causaspolticas e ideolgicas se empenhammutuamente.Longede serumplcidoreinoderenamentoapolneo,aculturapodeatserumcampodebatalha onde as causas se expem luz do dia e lutam entre si, deixandoclaro, por exemplo, que, dos estudantes americanos, franceses ou indianosensinados a lerseus clssicosnacionais antes de leremosoutros, espera-sequeamemepertenamdemaneiraleal,emuitasvezesacrtica,ssuasnaesetradies,enquantodenigremecombatemasdemais.Ora,oproblemacomessaideiadeculturaqueelafazcomqueapessoa

    no s venere sua cultura, mas tambm a veja como que divorciada, poistranscendente,domundocotidiano.Muitoshumanistasdeprossoso,em

  • virtudedisso,incapazesdeestabeleceraconexoentre,deumlado,alongaesrdida crueldade de prticas como a escravido, a opresso racial ecolonialista,odomnioimperiale,deoutro,apoesia,acoealosoadasociedade que adota tais prticas. Uma das difceis verdades que descobritrabalhando neste livro que pouqussimos, dentre os artistas ingleses oufranceses que admiro, questionaram a noo de raa submissa ouinferior, todominanteentre funcionriosquecolocavamessas ideiasemprtica, como coisa evidente, ao governarem a ndia ou a Arglia. Eramnoes amplamente aceitas, e ajudaram a propelir a aquisio imperial deterritriosnafricaaolongodetodoosculoXIX.PensandoemCarlyleouRuskin, ou mesmo em Dickens e Thackeray, a meu ver os crticos comfrequnciatmrelegadoasideiasdessesescritoressobreaexpansocolonial,asraasinferioresouosnegrosaumdepartamentomuitodiferentedodacultura, sendo esta a rea elevada de atividades a que eles realmentepertencemeemqueelaboraramsuasobrasrealmenteimportantes.Aculturaconcebidadessamaneirapodesetornarumacercadeproteo:

    deixeapolticanaportaantesdeentrar.Comoalgumquepassoutodaasuavidaprossionalensinandoliteratura,masquetambmsecriounomundocolonialanteriorSegundaGuerraMundial,pareceu-meumdesaonoveraculturadestamaneiraouseja,antissepticamenteisoladadesuasliaesmundanas , e sim como um campo de realizao extraordinariamentediversicado. Tomo os romances e outros livros aqui considerados comoobjetosdeanliseporque,emprimeirolugar,euosconsideroobrasdearteede conhecimento respeitveis e admirveis,queproporcionamprazer e soproveitosos paramim e paramuitos outros leitores. Em segundo lugar, odesaorelacion-losnoscomesseprazereesseproveito,mastambmcom o processo imperial de que fazem parte de maneira explcita einequvoca;mais do que condenar ou ignorar sua participaono que eraumarealidadeincontesteemsuassociedades,sugiroqueoqueaprendemossobreesseaspecto,atagoraignorado,naverdadeaprofundanossaleituraenossacompreensodessasobras.Vouexporbrevementeoquepenso,recorrendoadoisgrandesromances

    muito conhecidos.Great expectations [Grandes esperanas] (1861) deDickensbasicamenteumromancesobreaautoiluso,sobreasvstentativasdePipsetornarumcavalheirosemorduoesforoouaaristocrticafontede renda necessrios para tal papel. Logo cedo na vida, ele ajuda umcondenado, Abel Magwitch, que, aps ser deportado para a Austrlia,retribui seu jovem benfeitor com grandes somas de dinheiro; como oadvogadoenvolvidonocasonodiznadaaoentregarodinheiro,Pipacha

  • que foi obra de uma velha dama, miss Havisham.Magwitch depois voltaclandestinamente a Londres, sendo mal recebido por Pip, pois tudo nelerescendeadelinqunciaeaborrecimento.Nonal,porm,Pipsereconciliacom Magwitch e sua realidade; acaba reconhecendo Magwitch perseguido,presoemortalmentedoentecomoumaespciedepai,semonegar nem o rejeitar, embora Magwitch seja de fato inaceitvel, vindo daAustrlia,colniapenaldestinadareabilitao,masnoaorepatriamentodecriminososinglesesdegredados.A maioria das leituras, se no todas, dessa obra admirvel situa-a

    totalmentedentrodahistriametropolitanadacoinglesa,mas,ameuver,ela faz parte de uma histria mais abrangente e mais dinmica do que aoferecidaportaisinterpretaes.CoubeadoislivrosmaisrecentesdoqueodeDickensomagistralThefatalshore[Apraiafatal],deRobertHughes,eThe road toBotanyBay [A estradaparaBotanyBay], obradebrilhantereexodePaulCarterrevelarumavastahistriadeespeculaessobreaAustrlia e suas experincias, uma colnia branca como a Irlanda, ondepodemosverMagwitcheDickensnocomomerasrefernciascoincidentesnessahistria,esimcomoparticipantesdela,porintermdiodoromanceede uma experincia muito mais antiga e ampla entre a Inglaterra e seusterritriosultramarinos.A Austrlia foi fundada como colnia penal no nal do sculoXVIII,

    principalmente para que a Inglaterra pudesse deportar um excedentepopulacional indesejado e irredimvel de criminosos para um lugar,originalmentemapeadopelocapitoCook,que tambmfuncionassecomocolniasubstituindoaquelasquehaviamsidoperdidasnaAmrica.Abuscadelucro,aconstruodoimprioeaquiloqueHugheschamadeapartheidsocialgeraramaAustrliamoderna,aqual,napocaemquedespertoupelaprimeira vez o interesse de Dickens, na dcada de 1840 (emDavidCopperfield,WilkinsMicawbermigrafelizparal),jhaviasetornadoumasociedadedecertarentabilidadeeumaespciedesistemalivre,emqueostrabalhadores poderiam prosperar se entregues a si. No entanto, emMagwitch:

    Dickens reuniu vrias facetas do modo como os ingleses percebiam oscondenadosnaAustrliaaonaldodegredo.Podiamdarcertonavida,masdicilmentevoltariam,naaceporeal.Podiamexpiarseuscrimesemsentido tcnico e legal, mas o que sofriam por l marcava-os comoforasteirospermanentes.EnoentantoeleseramcapazesderedenoenquantopermanecessemnaAustrlia.1

  • AexploraofeitaporCarterdaquiloquechamoudehistriaespacialdaAustrlia oferece-nos outra verso dessa mesma experincia. Aquiexploradores, degredados, etngrafos, aventureiros em busca de lucro,soldados mapeiam o vasto continente relativamente vazio, cada qual numdiscurso que afasta, desloca ou incorpora os outros. Assim, Botany Bay antesdemaisnadaumdiscursoiluministadeviagemedescoberta,edepoisumconjuntodeviajantesqueescrevemsuasnarrativas(inclusiveCook),cujaspalavras,mapase intenesrenemosterritriosestranhoseosconvertemgradualmente num lar. Carter mostra que a proximidade entre aorganizaobenthamianadoespao(queresultounacidadedeMelbourne)e a aparente desordem da mata australiana resultou numa transformaootimista do espao social, que gerou um Paraso para os cavalheiros, umdenparaostrabalhadoresnadcadade1840.2OqueDickensconcebeparaPip, comoo cavalheiro londrinodeMagwitch, equivalegrossomodo aoque a benevolncia inglesa concebia para a Austrlia, um espao socialautorizandooutro.MasGreatexpectationsfoiescritosemqualquerpreocupaopelosrelatos

    australianos nativos, ao contrrio deHughes ouCarter, nem supunha ouprenunciava uma tradio literria australiana, que de fato veio a incluirposteriormente asobrasdeDavidMalouf,PeterCarey ePatrickWhite.AproibiodoretornodeMagwitchnospenal,mastambmimperial:ossditos podem ser levados a lugares como aAustrlia,masno se permiteque voltem ao espao metropolitano, que, como atesta toda a codickensiana, meticulosamentemapeado, representado, habitado por umahierarquia depersonagensmetropolitanas.Assim,porum lado, intrpretescomoHugheseCarterseestendemsobreapresenarelativamenteatenuadadaAustrlia na literatura britnica oitocentista, exprimindo a plenitude e aidentidade conquistada de uma histria australiana que se tornouindependentedahistriabritnicanosculoXX;mas,poroutro,umaleituraacurada deGreat expectations h de notar que, depois de expiada adelinquncia deMagwitch, depois que Pip reconhece redentoramente suadvidaparacomovelhocriminoso,amargamenterevitalizadoevingativo,oprprio rapaz entra em colapso e revive de duas maneiras explicitamentepositivas.ApareceumnovoPip,menosoprimidodoqueovelhoPippelofardodopassadosurgederelancesoba formadeummenino, tambmchamado Pip; e o velho Pip inicia uma nova carreira com seu amigo deinfnciaHerbertPocket, desta vezno comocavalheiroocioso,mas comoumativonegociantenoOriente,ondeasoutras colnias inglesasoferecemumaespciedenormalidadequeaAustrlianuncapoderiaoferecer.

  • Assim, mesmo quando Dickens resolve a diculdade com a Austrlia,surgeumaoutraestruturadeatitudeserefernciaparasugerirointercmbioimperialdaInglaterrapormeiodocomrcioedasviagensnoOriente.Emsua nova carreira como homem de negcios nas colnias, Pip no propriamenteumaguraexcepcional,vistoquequasetodososnegociantes,osparentesinstveiseosforasteirosatemorizantesdeDickensmantmumaligao bastante normal e segura com o imprio. Mas apenas em anosrecentes tais conexes assumiram importncia interpretativa. Uma novageraodecrticoseestudiososlhosdadescolonizaoemalgunscasos,benecirios (como minorias sexuais, religiosas e raciais) de avanos nosdireitos humanos em seus pases tem visto nesses grandes textos daliteraturaocidentalumslidointeressepeloqueeraconsideradoummundoinferior,povoadocomgenteinferior,decor,apresentadocomoseestivesseabertointervenodeoutrostantosRobinsonCruso.NonaldosculoXIX,oimpriojnoapenasumapresenanebulosa,

    nemseencarnanagura indesejadadocriminoso fugitivo,maspassaa seruma rea central de interessenas obras de autores comoConrad,Kipling,Gide e Loti.Nostromo (1904),deConradmeu segundoexemplo,situadonumarepblicadaAmricaCentral,independente(aocontrriodoscenrioscoloniaisafricanoseorientaisdesuasobrasanteriores)e,aomesmotempo, dominada por interesses externos, devido sua imensa jazida deprata.Paraumamericanocontemporneo,oaspectomaisatraentedaobraa prescincia de Conrad: ele antev a incontrolvel insatisfao e osdesmandos das repblicas latino-americanas (govern-las, diz ele citandoBolvar,comoararooceano),eassinalaamaneiraprpriadaAmricadoNorte de inuenciar as circunstncias de forma decisiva, ainda que quaseimperceptvel. Holroyd, o nancista de San Francisco que d respaldo aCharles Gould, proprietrio ingls da mina de So Tom, alerta seuprotegido:Noseremosarrastadosparanenhumgrandeproblemacomoinvestidores.Mesmoassim:

    Podemossentareolhar.Claro,algumdiainterviremos.Estamosfadadosaisso.Masnohpressa.Oprpriotempotevedeesperarnomaiorpasdetodo o universo de Deus. Estaremos ditando as regras para tudo indstria,comrcio,leis,jornalismo,arte,polticaereligio,docaboHornatSurithsSound,etambmmaisadiante,sealgoquevalerapenasurgirno poloNorte.E ento teremos tempo de tomar as ilhas e continentesdistantesda terra.Conduziremososnegciosdomundo,querelegosteouno.Omundonopodeevit-loenemns,imaginoeu.3

  • Boa parte da retrica da Nova Ordem Mundial promulgada pelogoverno americano desde o nal daGuerra Fria com seus autoelogiosdesbragados, seu franco triunfalismo, suas solenes declaraes deresponsabilidade podia ter sido rascunhada pelo Holroyd de Conrad:somososmelhores,estamosdestinadosaliderar,representamosaliberdadeeaordem,eassimpordiante.Nenhumamericanocouimuneaessaestruturade sentimentos, e no entanto raramente se reete na advertncia implcitacontidanasdescriesconradianasdeHolroydeGould,vistoquearetricadopodergeracommuitafacilidade,quandoexercidanumcenrioimperial,umailusodebenevolncia.Todavia,umaretricacujacaractersticamaisdanosa consiste em ter sido usada antes, no apenas antigamente (pelaEspanha e por Portugal), mas, com uma frequncia ensurdecedoramenterepetitiva no perodo moderno, por ingleses, franceses, belgas, japoneses,russose,agora,americanos.Noentanto,seriaincompletoleragrandeobradeConradsimplesmente

    comoumaprevisobemantecipadadoquevemosocorrernaAmricaLatinadosculoXX,comsuasriedeUnitedFruitCompanies,coronis,forasdelibertao e mercenrios nanciados pelos Estados Unidos. Conrad oprecursordasconcepesocidentaisdoTerceiroMundoqueencontramosnaobraderomancistastodiferentesquantoGrahamGreene,V.S.Naipaule Robert Stone, de tericos do imperialismo como Hannah Arendt e deautores de relatos de viagem, cineastas e polemistas cuja especialidadeconsisteemapresentaromundonoeuropeuaospblicoseuropeuenorte-americano,sejaparaanliseejulgamento,sejaparasatisfazerseugostopeloextico.Pois,severdadequeConradenxergaironicamenteoimperialismodos proprietrios ingleses e americanos da mina de prata de So Tom,condenadoporsuasambiespretensiosaseimpossveis,tambmverdadequeeleescrevecomohomemcujavisoocidentaldomundonoocidentalesttoarraigadaapontodeceg-loparaoutrashistrias,outrasculturaseoutrasaspiraes.TudooqueConradconsegueverummundototalmentedominadopeloOcidenteatlntico,ondetodaoposioaoOcidenteapenasconrmaopoder inquodoOcidente.OqueConradno consegue ver uma alternativa a essa cruel tautologia. Ele no podia entender que ndia,fricaeAmricadoSultambmpossuamvidaseculturascomidentidadesnototalmentecontroladaspelosreformadoreseimperialistasgringosdestemundo, nem se permitir acreditar que nem todos os movimentos anti-imperialistas de independncia eram corruptos e marionetes a soldo dossenhoresdeLondresouWashington.EssascruciaislimitaesdevisosoparteintegrantedeNostromo,tanto

  • quantoseuspersonagenseenredo.OromancedeConradencarnaamesmaarrogncia paternalista do imperialismo que objeto de seu escrnio empersonagenscomoGouldeHolroyd.Conradparecedizer:Ns,ocidentais,decidiremosquemumbomouummaunativo,porque todososnativospossuemexistnciasucienteemvirtudedenossoreconhecimento.Nsoscriamos, ns os ensinamos a falar e a pensar, e quando se revoltam elessimplesmenteconrmamnossasideiasarespeitodeles,comocrianastolas,enganadasporalgunsdeseussenhoresocidentais.isso,comefeito,oqueosamericanossentememrelaoaseusvizinhosdosul:queaindependncia desejvel para eles, desde que seja o tipo de independncia quensaprovamos.Qualqueroutracoisainaceitvele,pior,impensvel.Portanto, no paradoxal que Conrad fosse imperialista e anti-

    imperialista: progressista quando se tratava de apresentar com destemor epessimismo a corrupo autoconrmadora e autoenganosa do domnioultramarino;profundamentereacionrioquandosetratavadeconcederqueafrica ou aAmrica do Sul pudesse algumdia ter uma histria ou umaculturaindependentes,queosimperialistasabalaramviolentamente,maspelaqual foram,anal,derrotados.MasparaquenopensemosemConraddeforma condescendente, como criatura de seu prprio tempo, seriamelhorobservar que atitudes recentes emWashington e entre muitos polticos eintelectuais ocidentaisnodemonstramgrande avano em relao s ideiasconradianas. O que Conrad via como futilidade latente na lantropiaimperialistacujasintenesincluamideiascomotornaromundoseguropara a democracia o governo americano ainda incapaz de perceber,quando tenta implementar seus desejos em todo o planeta, sobretudo noOriente Mdio. Conrad pelo menos teve a coragem de ver que nenhumprojetodessesjamaisdeucertoporqueenvolvemosplanejadoresemmaisiluses de onipotncia e enganosa satisfao consigo prprios (como noVietn),eporque,devidosuaprprianatureza,falsificamasevidncias.Vale a pena ter tudo isso emmente se se pretender lerNostromo com

    algumaatenoaseusgrandespontosfortesesuaslimitaesintrnsecas.Onovo Estado independente de Sulaco, que surge no nal do romance, apenasumaversomaisreduzida,maisrmementecontroladaeintolerantedoEstadomaiordoqual ele se separou, eque agora veio adesbancar emriquezaeimportncia.Conradpermitequeoleitorvejaqueoimperialismoumsistema.Avidanumcamposubordinadodaexperinciamarcadapelasloucurasecesdocampodominante.Masoinversotambmverdadeiro,quandoaexperincianasociedadedominantevemadependeracriticamentedosnativoseseusterritrios,tidoscomoelementosnecessitandodamission

  • civilisatrice.Como quer que se leiaNostromo, o romance oferece uma viso

    profundamenteimplacvel,eliteralmentetornoupossvelavisoigualmentesevera das iluses imperialistas ocidentais emThe quiet American [Oamericanotranquilo],deGrahamGreene,ouAbendintheriver[Umacurvanorio],deV.S.Naipaul,romancesdelinhasmuitodiferentes.Hoje,depoisdoVietn, Ir,Filipinas,Arglia,Cuba,Nicargua, Iraque,poucos leitoresdiscordariam que justamente a inocncia entusiasmada de Pyle, apersonagemdeGreene,oudopadreHuismans,deNaipaul,paraosquaisosnativospodemsereducadosdentrodenossacivilizao,quevemacriaramatana, a subverso e a interminvel instabilidade das sociedadesprimitivas. Uma fria parecida permeia lmes comoSalvador, de OliverStone,Apocalypsenow,deFrancisFordCoppola,eMissing,deConstantinCosta-Gavras, nos quais agentes inescrupulosos daCIA e ociaisenlouquecidos pelo poder manipulam nativos e americanos bem-intencionados.Noentanto,todasessasobras,quetantodevemironiaanti-imperialista

    de Conrad emNostromo, sustentam que a fonte da ao e da vidasignicativa do mundo se encontra no Ocidente, cujos representantesparecem estar vontade para impor suas fantasias e lantropias numTerceiro Mundo retardado mental. Nessa viso, as regies distantes domundonopossuemvida,histriaouculturadignasdemeno,nenhumaindependncia ou identidade dignas de representao sem o Ocidente. Equando h algo para ser descrito, , seguindo Conrad, indizivelmentecorrupto, degenerado, irremedivel. Mas enquanto Conrad escreveuNostromo durante um perodo de entusiasmo imperialista europeulargamente incontestado, os romancistas e cineastas contemporneos queaprenderam to bem suas ironias zeram suas obrasdepois dadescolonizao,depois da reviso e da desconstruo da representaoocidentaldomundonoocidental,depoisdaobradeFrantzFanon,AmlcarCabral, C. L. R. James,Walter Rodney, depois dos romances e peas deChinua Achebe, Ngugi wa Thiongo, Wole Soyinka, Salman Rushdie,GabrielGarcaMrquez,emuitosoutros.Assim,Conrad transmitiusuas tendncias imperialistas residuais,embora

    seus herdeiros dicilmente tenham alguma desculpa que justique o vismuitasvezessutileirreetidodesuasobras.Noapenasumaquestodeocidentaisquenomostramsimpatiaoucompreensosucientedeculturasestrangeirasvistoque,anal,existemalgunsartistaseintelectuaisquedefato passaram para o outro lado Jean Genet, Basil Davidson, Albert

  • Memmi, Juan Goytisolo e outros. O que talvez seja mais pertinente adisposiopolticadelevarasrioasalternativasaoimperialismo,entreelasaexistncia de outras culturas e sociedades. Quer se acredite que a obraextraordinria de Conrad conrma as habituais suspeitas ocidentais emrelao AmricaLatina,frica esia, quer se vejam em romances comoNostromoeGreatexpectationsoscontornosgeraisdeumavisodemundoimperial assombrosamente duradoura, capaz de deformar as perspectivastanto do autor quanto do leitor:essasduasmaneiras de ler as alternativasreais parecem ultrapassadas. O mundo, hoje, no existe como espetculosobre o qual possamos alimentar pessimismo ou otimismo, sobre o qualnossostextospossamser interessantesoumaantes.Todasessas atitudessupem o exerccio de poder e de interesses. Na medida em que vemosConradcriticandoeaomesmotemporeproduzindoaideologiaimperialdesua poca, nessa mesma medida poderemos caracterizar nossas atitudespresentes:aprojeo,ouarecusa,davontadededominar,acapacidadedeprejudicar ou a energia para compreender e se comprometer com outrassociedades,tradiesehistrias.O mundo mudou desde Conrad e Dickens, e de uma maneira que

    surpreendeu,emuitasvezesalarmou,americanoseeuropeusmetropolitanos,queagoraenfrentamgrandescontingentespopulacionaisdeimigrantesnobrancosemseuprpriomeio,esedefrontamcomumrolimpressionantedevozesrecm-assumidaspedindoouvidosparasuasnarrativas.Atesedemeulivroqueessaspopulaesevozesjestoaquifazalgumtempo,graasaoprocessoglobalizadodesencadeadopeloimperialismomoderno;ignorarouminimizar a experincia sobreposta de ocidentais e orientais, ainterdependncia de terrenos culturais onde colonizador e colonizadocoexistiramecombateramumaooutropormeiodeprojees,assimcomode geograas, narrativas e histrias rivais, perder de vista o que h deessencialnomundodosltimoscemanos.Pelaprimeiravez,ahistriaeaculturadoimperialismopodemagoraser

    estudadas de maneira no monoltica, descompartimentalizada, semseparaes ou distines reducionistas. verdade que tem havido umairrupo desconcertante de discursos separatistas e chauvinistas, seja nandia, no Lbano ou na Iugoslvia, em proclamaes afrocntricas,islamocntricas ou eurocntricas; longe de invalidar a luta de libertaocontraoimprio,essasreduesdodiscursoculturalnaverdadecomprovamavalidadedeumaenergialiberacionistafundamentalqueanimaodesejodeserindependente,defalarlivrementeesemopesodadominaoinjusta.Anicamaneira de entender essa energia, porm, por vias histricas: da a

  • grandeamplitudehistricaegeogrcabuscadanestelivro.Emnossodesejodeserouvidos,muitasvezestendemosaesquecerqueomundoumlugarapinhado de gente, e que se todo mundo fosse insistir na pureza ouprioridaderadicaldesuaprpriavoz,tudooqueteramosseriaumalaridomedonho de uma disputa interminvel e uma confuso poltica sangrenta,cujoshorroresestocomeandoaapareceraquieali,noressurgimentodepolticas racistasnaEuropa,na cacofoniadediscusses sobre apolticadeidentidadeeopoliticamentecorretonosEstadosUnidos,eparafalardeminha parte do mundo a intolerncia do preconceito religioso epromessasilusriasdedespotismobismarckiano,laSaddamHusseineseusvriosparceiroseepgonosrabes.Por isso, extremamente revigorante e inspirador no s ler o prprio

    lado,porassimdizer,mastambmentenderdequemodoumgrandeartistacomoKipling (poucos forammais imperialistas e reacionrios do que ele)apresentou a ndia com tamanha habilidade, e como, ao fazer isso, seuromanceKimno s derivava de uma longahistria da perspectiva anglo-indiana, mas tambm, sua revelia, anunciava que essa perspectiva erainsustentvel,namedidaemqueinsistianacrenadequearealidadeindianademandava,eatsuplicava,umatutelabritnicaportempomaisoumenosindeterminado.Ograndearquivocultural, ameuver, encontra-se aliondeesto os investimentos intelectuais e estticos no domnio ultramarino. Sefssemosinglesesoufrancesesnadcadade1860,veramosesentiramosandiaeonortedafricacomumamescladefamiliaridadeedistncia,masnunca com a noo da soberania prpria deles. Em nossas narrativas,histrias, relatosdeviagemeexploraes,nossaconscincia seapresentariacomoaprincipalautoridade,umpontoativodeenergiacapazdedarsentidono s s atividades colonizadoras,mas tambm aos povos e s geograasexticas.Acimadetudo,nossasensaodepodermalimaginariaqueaquelesnativos, que pareciam subservientes ou taciturnamente refratrios, algumdiafossemcapazesdenosfazerdesistirdandiaoudaArglia.Oudedizerqualquer coisa que pudesse talvez contrariar, questionar ou perturbar odiscursovigente.Aculturadoimperialismonoerainvisvel,nemocultavaseusvnculose

    interessesmundanos.Humaclarezasucientenasgrandeslinhasculturaisparaqueenxerguemosasnotaesamideescrupulosasalifeitas,etambmparaquevejamosquenolhesfoiconcedidamuitaateno.Ofatodeagoraseremdetalinteresse,apontodelevarelaborao,porexemplo,desteedeoutros livros, consequncia menos de uma espcie de esprito vingativoretrospectivo do que umamaior necessidade de elos e conexes.Umadas

  • realizaesdoimperialismofoiaproximaromundo,eemboranesseprocessoa separao entre europeus e nativos tenha sido insidiosa efundamentalmente injusta, a maioria de ns deveria agora considerar aexperinciahistricadoimpriocomoalgopartilhadoemcomum.Atarefa,portanto, descrev-la enquanto relacionada com os indianose osbritnicos,osargelinoseosfranceses,osocidentaiseosafricanos,asiticos,latino-americanoseaustralianos,apesardoshorrores,doderramamentodesangue,daamarguravingativa.Meumtodoenfocaraomximopossvelalgumasobrasindividuais,l-

    lasinicialmentecomograndesfrutosdaimaginaocriativaouinterpretativa,edepoismostr-lascomopartedarelaoentreculturaeimprio.Nocreioque os escritores sejam mecanicamente determinados pela ideologia, pelaclasse ou pela histria econmica, mas acho que esto profundamenteligadoshistriadesuassociedades,moldandoemoldadosporessahistriae suas experincias sociais em diferentes graus. A cultura e suas formasestticas derivam da experincia histrica, o que , de fato, um dos temasprincipais deste livro. Conforme descobri ao escreverOrientalismo, no possvelapreenderaexperinciahistricaporlistasoucatlogos,epormaisqueagenteseesforce,semprecarodeforaalgunslivros,artigos,autoreseideias.Tenteiabordaroqueconsideroimportanteeessencial,admitindojde sadaque a seleo e a escolha conscientedeviamdeterminaroquez.Minha esperana que os leitores e crticos deste livro o utilizem paraaprofundar as linhas de pesquisa e argumentao sobre a experinciahistricadoimperialismoaquiesboadas.Aodiscutireanalisaroquedefatoconstituiumprocessoglobal,porvezes tivede sergenricoe sucinto;mastenhocertezadequeningumiaquererqueesselivrofosseaindamaior!Almdisso,existemvriosimpriosquenodiscuti;oaustro-hngaro,o

    russo, o otomano, o espanhol, o portugus. Essas omisses, porm, nopretendem sugerir que a dominao russa na sia Central e na EuropaOriental, o domnio de Istambul nomundo rabe, o de Portugal nas ex-colniasdeAngolaeMoambique,adominaoespanholanoPaccoenaAmrica Latina tenham sido benvolos (e portanto aceitveis) ou menosimperialistas. O que digo sobre a experincia imperial inglesa, francesa eamericanaqueelapossuiumacoerncianicaeumaimportnciaculturalespecial.AInglaterra,evidentemente,umaclasseimperialporsis,maior,mais grandiosa, mais imponente do que qualquer outra; por quase doissculos, a Frana esteve em rivalidade direta com ela. Como as narrativasdesempenhamumpapelnotvelnaatividadeimperial,nosurpreendequeaFrana e (sobretudo) a Inglaterra tenham uma tradio ininterrupta de

  • romances, sem paralelo nomundo.Os EstadosUnidos comearam comoimprio no sculoXIX, mas foi na segunda metade do sculoXX, aps adescolonizao dos imprios britnico e francs, que eles seguiramdiretamenteseusdoisgrandespredecessores.Hduasoutras razesparaenfocaresses trs imprios, como faoaqui.

    Uma delas que a ideia de domnio ultramarino saltando por cima deterritrios vizinhos at terras muito distantes possui um estatutoprivilegiadonessas trsculturas.Essa ideia temmuitoavercomprojees,seja na literatura, na geograa ou nas artes, e ela adquire uma presenacontnuapormeiodaexpanso,daadministrao,dos investimentosedoscompromissos efetivos. Portanto, existe algo de sistemtico na culturaimperialquenoevidenteemnenhumoutroimprioalmdobritnico,dofrancs e, demaneira diferente, do americano.Quando utilizo a expressouma estrutura de atitudes e referncias, nisso que estou pensando. Asegunda razo que foi nesses trs pases em cujas rbitas nasci, cresci eagora vivo. Embora me sinta em casa neles, continuo, como oriundo domundo rabe emuulmano, a ser algum que pertence tambm ao outrolado. Issome possibilitou, em certo sentido, viver nos dois lados e tentarintermedi-los.Em suma, este um livro sobre o passado e o presente, sobre ns e

    eles, e como todas essas coisas so vistas pelos vrios partidos, em geralopostoseseparados.Seumomento,porassimdizer,odoperodoapsaGuerra Fria, quando os Estados Unidos emergiram como a ltimasuperpotncia.VivernosEstadosUnidosdurante essa poca implica, paraum professor e intelectual com razes no mundo rabe, uma srie depreocupaesmuitoparticulares, todas inuindoneste livro, comode fatotminfluenciadotudooqueescrevidesdeOrientalismo.Primeiramente, uma sensao deprimente de que j vimos e ouvimos

    antes as atuais formulaes da poltica americana. Todo grande centrometropolitano que aspirou ao domnio mundial disse, e infelizmente fez,muitas dessas mesmas coisas. H sempre o apelo ao poder e ao interessenacionalquandoseconduzemosassuntosdepovosinferiores;homesmozelodestrutivoquandoascoisasficammeiorspidas,ouquandoosnativosserevoltam e repudiam um dirigente subserviente e impopular, que foraintroduzido e mantido no poder pela potncia imperial; h a declaraohorrivelmenteprevisvel deque ns somos excepcionais, no imperiais, equenorepetiremosoerrodaspotnciasanteriores,ressalvarotineiramenteseguidapelarepetiodomesmoerro,comoprovamasguerrasdoVietnedoGolfo.Piorainda,porm,temsidoacolaboraosurpreendente,mesmo

  • quemuitasvezespassiva,de intelectuais,artistase jornalistascujasposiesnoplanointernosoprogressistasecheiasdesentimentoslouvveis,masqueviramoopostoquandosetratadoquefeitonoestrangeiroemnomedeles.Minhaesperana(talvezilusria)queumahistriadaaventuraimperial,

    apresentadaemtermosculturais,possaserviraalgumanalidadeilustrativaeatdissuasria.Noentanto,seoimperialismoavanouimplacavelmentenossculosXIX eXX, o mesmo se deu com a resistncia a ele. Assim,metodologicamente,tentomostrarasduasforasemconjunto.Issodeformaalguma isenta de crticas os povos colonizados e lesados; como revelaqualquer levantamento dos estados ps-coloniais, as ditas e desditas donacionalismo,daquiloquesepodechamardeseparatismoenativismo,nemsempre compem uma histria edicante. Isso tambm tem de ser dito,quandomenos paramostrar que sempre existem alternativas a Idi Amin eSaddam Hussein. O imperialismo ocidental e o nacionalismo terceiro-mundista alimentam-se mutuamente, mas mesmo em seus piores aspectosno so monolticos nem deterministas. Ademais, a cultura tampouco monoltica, e no constitui monoplio exclusivo seja do Oriente ou doOcidente,depequenosgruposdehomensoumulheres.Contudo, a histria sombria e amide desalentadora.O que a atenua

    hojeemdia,aquieali,osurgimentodeumanovaconscinciaintelectualepoltica. Essa a segunda preocupao presente na elaborao deste livro.Pormaisquese lamentequeovelhocursodeestudoshumansticos tenhasido objeto de presses politizadas, sob a mira da chamada cultura dareclamao,detodosostiposdereivindicaesegregiamenteretumbantesafavor dos valores ocidentais, feministas, afrocntricos ouislamocntricos, as coisas hoje no se reduzem apenas a isso. Tome-secomo exemplo a extraordinria transformao nos estudos do OrienteMdio, os quais, quando escreviOrientalismo, ainda eram dominados porum esprito agressivamentemasculino e condescendente. Para citar apenasobras publicadas nos ltimos trs ou quatro anos Veiled sentiments[Sentimentos velados], de Lila Abu-Lughod;Women and gender in Islam[Mulheresesexonoislamismo],deLeilaAhmed;Womansbody,womansworld[Corpodemulher,mundodemulher],deFedwaMalti-Douglas4,ideiasmuitodiferentessobreoislamismo,osrabeseoOrienteMdiovmquestionando, e solapando em um grau considervel, o velho despotismo.Tais obras so feministas, mas no exclusivistas; mostram a diversidade ecomplexidade da experincia que opera sob os discursos totalizantes doorientalismo e do nacionalismo do Oriente Mdio (esmagadoramentemasculino); so livros sosticados tanto em termos intelectuais quanto

  • polticos, anados comomelhor rigor terico ehistrico, comprometidosmas no demaggicos, sensveis mas no piegas em relao experinciafeminina;porm,emboraescritosporestudiosascomdiferentesformaes,sotextosquedialogamecontribuemparaasituaopolticadasmulheresnoOrienteMdio.AoladodeTherhetoricofEnglishIndia[Aretricadandiainglesa],de

    SaraSuleri,eCriticalterrains[Terrenoscrticos],deLisaLowe,5essetipodeestudo revisionista temmodicado, se que no rompeupor completo, ageograa do Oriente Mdio e da ndia como domnios homogneos,entendidosdemaneirareducionista.Acabaram-seasoposiesbinriascarassatividadesnacionalistaseimperialistas.Emvezdisso,comeamosasentirqueavelhaautoridadenopodesersimplesmentesubstitudaporumanovaautoridade,masqueestosurgindonovosalinhamentosindependentementede fronteiras, tipos,naeseessncias,equesoessesnovosalinhamentosque agora provocam e contestam a noo fundamentalmente esttica deidentidade que constituiu o ncleo do pensamento cultural na era doimperialismo.Durante todo o contato entre os europeus e seus outros,iniciadosistematicamentequinhentosanosatrs,anicaideiaquequasenovariou foi a de que existe um ns e um eles, cada qual muito bemdenido, claro, intocavelmente autoevidente. Como discuto emOrientalismo,adivisoremontaconcepogregasobreosbrbaros,mas,independentemente de quem tenha criado esse tipo de pensamentoidentitrio, no sculoXIX ele havia se tornado a marca registrada dasculturasimperialistas,etambmdaquelasquetentavamresistirpenetraoeuropeia.Somos ainda os herdeiros desse estilo segundo o qual o indivduo

    denido pela nao, a qual, por sua vez, extrai sua autoridade de umatradio supostamente contnua. Nos Estados Unidos, essa preocupaocomaidentidadeculturalresultou,naturalmente,nadisputasobreoslivroseautoridadesqueconstituemanossatradio.Demodogeral,tentardizerqueesteouaquelelivro(ouno)partedenossatradioconstituiumdos exerccios mais debilitantes que se possam imaginar. Alm disso, seusexcessos so muito mais frequentes do que suas contribuies ao rigorhistrico.Quantoaisso,notenhoamenorpacinciacomaposiodequens devamos nos preocupar apenas ou principalmente com o que nosso, damesma forma comono posso compactuar composies queexigemqueosrabesleiamlivrosrabes,usemmtodosrabes,ecoisasdognero.ComocostumavadizerC.L.R.James,Beethovenpertencetantoaoscaribenhosquantoaosalemes,namedidaemquesuamsicaagorafazparte

  • daheranahumana.No entanto, a preocupao ideolgica com a identidade est

    compreensivelmente entrelaada com os interesses e programas de vriosgrupos nem todos de minorias oprimidas que desejam estabelecerprioridadesque reitam tais interesses.Comoboapartedeste livro faladoqueecomolerahistriarecente,aquiresumireimuitorapidamenteminhasideias.Antesquepossamosconcordarquantoaoselementosquecompemaidentidadeamericana,temosdeadmitirque,enquantosociedadedecolonosimigrantes que se imps sobre as runas de uma considervel presenaautctone,a identidadeamericanavariadademaisparachegaraconstituiralgounitrioehomogneo;naverdade,a lutaque se travaemseu interiorenvolve defensores de uma identidade unitria e os que veem o conjuntocomo uma totalidade complexa, mas no redutoramente unicada. Essaoposio supe duas perspectivas diferentes, duas historiograas diversas,umalinearedominadora,aoutracontrapontualemuitasvezesnmade.Minhatesequeapenasasegundaperspectivatemplenasensibilidade

    realidadedaexperinciahistrica.Empartedevidoaoimperialismo,todasasculturas estomutuamente imbricadas; nenhumapura enica, todas sohbridas, heterogneas, extremamente diferenciadas, sem qualquermonolitismo. Isso, a meu ver, vale tanto para os Estados Unidoscontemporneosquantoparaomundorabemoderno,ondeseapregoamrespectivamentetantoosperigosdonoamericanismoquantoasameaasao arabismo. O nacionalismo defensivo, reativo e at paranoicoinfelizmente se entrelaa com grande frequncia na prpria estruturaeducacional,emquecrianaseadolescentesaprendemavenerarecelebraraexclusividade desuas tradies (emgeral invejosamente, emdetrimentodasdemais).aessasformasacrticaseirracionaisdeeducaoereexoquesedirige este livro como um corretor, uma alternativa paciente, umapossibilidadefrancamenteexploratria.Aoescrev-lo,eumevalidoespaoutpico ainda proporcionado pela universidade, que, a meu ver, devepermanecercomoumlocalemqueseinvestigam,sediscutemesereetemessas questes vitais. Tornar-se um local para a imposio ou soluo dequestes polticas e sociais seria eliminar a funo da universidade etransform-lanumanexodequalquerpartidopolticoqueestejanopoder.No gostaria que me entendessem mal. Apesar de sua extraordinria

    diversidadecultural,osEstadosUnidosso,ecertamentecontinuaroaser,uma nao coesa. O mesmo vale para outros pases de lngua inglesa(Inglaterra,NovaZelndia,Austrlia,Canad)emesmoaFrana,queagorapossui um grande nmero de imigrantes. Grande parte do divisionismo

  • polmico e do debate polarizado, que para Arthur Schlesinger, emThedisuniting of America [A desunio dos Estados Unidos], atingemdanosamenteoestudodahistria,realmenteexiste,masnoprenunciaumadissoluodarepblica.6Demodogeral,melhorexplorarahistriadoquereprimi-la ou neg-la; o fato de que os Estados Unidos encerrem tantashistrias,muitasdelasagoraclamandoporateno,nodeveassustar,poismuitasdelasestoadesdesempre,e foiapartirdelasquedefatosecriouumasociedadeeumapolticaamericanas(eatumestilohistoriogrfico).Emoutraspalavras,oresultadodosatuaisdebatessobreomulticulturalismonose agurapropriamenteumalibanizao, e se essesdebates apontamumcaminho para transformaes polticas e mudanas na forma como seenxergamasmulheres,asminoriaseosimigrantesrecentes,nohporquetem-losnemtentarevit-los.Oqueprecisaserlembradoqueasnarrativasdeemancipaoeesclarecimentoemsuaformamaisvigorosatambmforamnarrativas deintegrao, no de separao, histrias de povos que tinhamsidoexcludosdogrupoprincipal,masqueagoraestavam lutandoporumlugar dentro dele. E se as velhas ideias habituais do grupo principal notinhamexibilidade ou generosidade suciente para admitir novos grupos,ento elas precisavam mudar, o que muito melhor do que repudiar osnovosgrupos.Altimaquestoaassinalarqueestaobraolivrodeumexilado.Por

    razes objetivas sobre as quais no tive controle, cresci como rabe comeducao ocidental. Desde minhas mais remotas lembranas, sentia quepertenciaaosdoismundos,semsertotalmentedeumoudeoutro.Durantetodaaminhavida,porm,aspartesdomundorabeaqueeuestavamaisvinculadotransformaram-seprofundamentedevidoguerraearevoltascivis,ousimplesmentedeixaramdeexistir.Eporlongosperodosdetempofuiumestrangeiro nos Estados Unidos, sobretudo quando estes entravam emguerraeseopunhamprofundamentesculturasesociedades(longedeserperfeitas)domundorabe.Noentanto,quandodigoexilado,nopensoemtristezasouprivaes.Pelocontrrio,pertencer,porassimdizer,aosdoislados da divisa imperial permite que os entendamos com mais facilidade.Almdisso,NovaYork, onde escrevi inteiramente este livro, sobmuitosaspectosacidadedoexlioporexcelncia;elatambmencerradentrodesiaestrutura maniquesta da cidade colonial descrita por Fanon. Talvez tudoissotenhaestimuladoosinteresseseinterpretaesaquipropostos,masessascircunstncias certamentemepermitiramsentir comosepertencesseamaisde uma histria e amais de um grupo. Agora, cabe ao leitor decidir se possvel considerar tal condio como uma alternativa de fato salutar

  • sensaonormaldepertenaaumanicaculturaedelealdadeaumanicanao.

    A tese deste livro foi apresentada primeiramente em vrias sries depalestras proferidas em universidades do Reino Unido, Estados Unidos eCanad entre 1985 e 1988. Sou profundamente grato por essasoportunidades aos docentes e alunos das universidades de Kent, CornellWestern Ontario, Toronto, Essex e, numa verso bem anterior, Chicago.Tambm apresentei verses posteriores de sees especcas deste livro,como palestras na Escola Internacional Yeats em Sligo, na UniversidadeOxford (como George Antonius Lecture em St. Antonys College), naUniversidadedeMinnesota,noKingsCollegedaUniversidadeCambridge,no Davis Center da Universidade Princeton, no Birkbeck College daUniversidadedeLondres,enaUniversidadedePortoRico.Meuscalorosose sinceros agradecimentos a Declan Kiberd, Seamus Deane, DerekHopwood,PeterNesselroth,TonyTanner,NatalieDavieseGayanPrakas,A.WaltonLitz,PeterHulme,DeirdreDavid,KenBates,TessaBlackstone,BernardSharrett,LynInnis,PeterMulford,GervasioLuisGarciaeMariadelos Angeles Castro, pelo convite e a hospedagem. Em 1989, senti-mehonrado com o convite para inaugurar a primeira Raymond WilliamsMemorialLectureemLondres;nessaocasio,faleisobreCamus,egraasaGrahamMartin e falecida JoyWilliams, foi uma experinciamemorvel.Nemprecisodizerquemuitaspartesdestelivroestoembebidasdasideiasedo exemplohumano emoral deRaymondWilliams, bomamigo e grandecrtico.Vali-me despudoradamente de vrias associaes intelectuais, polticas e

    culturais durante a elaboraodeste livro.Entre elas esto amigospessoaisntimos, que tambm so editores de revistas onde algumas destas pginasforampublicadasanteriormente:TomMitchell(deCriticalInquiry),RichardPoirier (deRaritan Review), Ben Sonnenberg (deGrand Street), A.Sivanandan(deRaceandClass),JoanneWypejewski(deTheNation)eKarlMiller(deTheLondonReviewofBooks).AgradeotambmaoseditoresdoTheGuardian(Londres)eaPaulKeegan,daPenguin,sobcujosauspciosexprimipelaprimeiravezalgumasdasideiasdolivro.Conteitambmcomaindulgncia,ahospitalidadeeascrticasdeoutrosamigos:DonaldMitchell,IbrahimAbu-Lughod,MasaoMiyoshi, JeanFranco,MarianneMcDonald,AnwarAbdel-Malek,EqbalAhmad,JonathanCuller,GayatriSpivak,HomiBhabha, Benita Parry e Barbara Harlow. Agrada-me especialmente

  • reconhecerobrilhoeaperspicciadevriosalunosmeusnaUniversidadeColumbia,aosquaisqualquerprofessorsesentiriaagradecido.Essesjovensestudiososecrticosmeconcederamobenefcioplenodeseusinteressantestrabalhos, agorapublicadosebastanteconhecidos:AnneMcClintock,RobNixon,SuvendiPerera,GauriViswanathaneTimBrennan.Ao preparar omanuscrito, contei como auxliomuito competente, sob

    vriasformas,deYumnaSiddiqi,AamirMufti,SusanLhota,DavidBeams,Paola di Robilant, Deborah Poole, Ana Dopico, Pierre Gagnier e KieranKennedy.ZainebIstrabadirealizouadifciltarefadedecifrarminhacaligraamedonhaede fazervrios rascunhoscomumahabilidadeeumapacinciaadmirveis. Em diferentes fases de preparao editorial, Frances Coady eCarmenCallil foramboas amigas e prestimosas leitoras do que eu tentavaapresentar.Devotambmregistrarmeusprofundosagradecimentoseminhaadmirao quase estupefata por Elisabeth Sifton: amiga de muitos anos,magncaeditora,crticaseveraesempresimptica.GeorgeAndreoufoideajudainfalvel,resolvendoosproblemasduranteoprocessodepublicao.AMariam,Wadie eNajla Said, que compartilharam como autor deste livrocircunstnciasmuitasvezesdifceis,minhagratidosincerapeloamoreapoioconstante.

  • 1.TERRITRIOSSOBREPOSTOS,HISTRIASENTRELAADAS

    Aordemdodiaeraosilncio,emanandoerodeandooassunto.Alguns dos silncios foram rompidos, outros mantidos porautoresqueviverameconviveramcomasestratgiascivilizatrias.Amim,oqueinteressasoasestratgiaspararompercomisso.

    ToniMorrison,Playinginthedark[Brincandonoescuro]

    Emoutraspalavras,ahistrianoumamquinadecalcular.Elase desdobra no esprito e na imaginao, e adquire corpo nasmltiplasrespostasdaculturadeumpovo,aqual,porsuavez,amediao innitamente sutil de realidades materiais, de fatoseconmicossubjacentes,desperasobjetividades.

    BasilDavidson,Africainmodernhistory[Africanahistriamoderna]

    IMPRIO,GEOGRAFIAECULTURA

    A invocao do passado constitui uma das estratgiasmais comuns nasinterpretaes do presente. O que inspira tais apelos no apenas adivergncia quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido essepassado,mas tambma incerteza se o passado de fato passado,morto eenterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas. Esseproblema alimenta discusses de toda espcie acerca de inuncias,responsabilidades e julgamentos, sobre realidades presentes e prioridadesfuturas.Emumdeseusprimeirosensaioscrticosmaisfamosos,T.S.Eliotaborda

    umaconstelaosimilardeproblemase,mesmosendoaocasioeoobjetivode seu ensaio quase que puramente estticos, possvel empregar suasformulaesparaesclareceroutroscamposdeexperincia.DizEliotqueo

  • poeta,evidentemente,umtalento individual,mas trabalhadentrodeumatradioquenopodesersimplesmenteherdada,tendodeserobtidacomgrandeesforo.Atradio,prossegueele,

    supe, em primeiro lugar, o sentido histrico, que podemos dizerpraticamenteindispensvelaqualquerumquecontinueaserpoetadepoisdos 25 anos de idade; e o sentido histrico supe uma percepo, noapenas do que passado do passado, como tambm daquilo quepermanecedele;osentidohistricolevaumhomemaescrevernoscomsuaprpriageraoentranhadaatamedula,masaindacomasensaodeque toda a literatura da Europa desde Homero, e dentro dela toda aliteratura de seu pas, possui uma existncia simultnea e compe umaordem simultnea. O sentido histrico, que um sentido tanto dointemporalquantodotemporal,edointemporaledotemporaljuntos,oquetornaumescritortradicional.E,aomesmotempo,oquetornaumescritorprofundamenteconscientedeseulugarnotempo,desuaprpriacontemporaneidade.Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu pleno

    significadosozinho.1

    A fora desses comentrios, penso eu, vale tambm para poetas quepensam criticamente e crticos com obras dedicadas a uma cuidadosaapreciaodoprocessopotico.Aideiaprincipalque,mesmoquesedevacompreenderinteiramenteaquilonopassadoquedefatojpassou,nohnenhuma maneira de isolar o passado do presente. Ambos se modelammutuamente, um inclui o outro e, no sentido totalmente ideal pretendidoporEliot,umcoexistecomooutro.OqueEliotprope,emsuma,umavisodatradioliterriaque,mesmorespeitandoasucessotemporal,node todo comandada por ela. Nem o passado, nem o presente, comotampoucoqualquerpoetaouartista,templenosignificadosozinho.Asnteseeliotianadopassado,presenteefuturo,porm,idealistae,sob

    importantesaspectos, funodesuaprpriahistriaparticular;2 ademais,sua concepo temporal no leva em conta a combatividade com que osindivduoseasinstituiesdecidemoqueeoquenotradio,oqueeo que no pertinente. Mas sua ideia central vlida: a maneira comoformulamosourepresentamosopassadomoldanossacompreensoenossasconcepesdopresente.Voudarumexemplo.DuranteaGuerradoGolfode1990-91,oconfrontoentreoIraqueeosEstadosUnidosfoiresultadodeduas histrias fundamentalmente opostas, cada qual usada pelo

  • establishment ocial do respectivo pas em benefcio prprio. Tal como concebida peloPartidoBaath iraquiano, a histria rabemoderna revela apromessa irrealizada da independncia rabe, promessa trada tanto peloOcidentequantoporumasriedeinimigosmaisrecentes,comoareaorabe e o sionismo. Assim, a sangrenta ocupao iraquiana do Kuwaitjusticava-se no s por razes bismarckianas, mas tambm porque seacreditava que os rabes deviam reparar os males cometidos contra eles earrancar do imperialismo uma das suas principais presas. Inversamente, naviso americana do passado, os Estados Unidos no eram uma potnciaimperial clssica, e sim justiceiros reparando males pelo mundo afora,perseguindo a tirania, defendendo a liberdade a qualquer custo e emqualquer lugar. Era inevitvel que, com a guerra, essas duas verses dopassadoseentrechocassem.AsideiasdeEliotacercadacomplexarelaoentreopassadoeopresente

    soparticularmentesugestivasnodebatesobreosentidodoimperialismo,palavraeideiahojetocontroversas,atalpontocarregadasdetodotipodequestes,dvidas,polmicasepremissasideolgicasquesetornadifcilusarotermo.Claroque,emcertamedida,odebateenvolvedeniesetentativasdedelimitaraprprianoo:foioimperialismoessencialmenteeconmico?Atonde se estendeu?Quais foramsuas causas?Era sistemtico?Quandoterminou(sequeterminou)?Arelaodosnomesquecontriburamparaadiscusso na Europa e nos Estados Unidos impressionante: Kautsky,Hilferding, Luxemburgo, Hobson, Lnin, Schumpeter, Arendt, Magdoff,PaulKennedy.E,nosltimosanos,obraspublicadasnosEstadosUnidos,comoTheriseand fallof thegreatpowers [Ascensoequedadasgrandespotncias], de Paul Kennedy, a histria revisionista deWilliam ApplemanWilliams,GabrielKolko,NoamChomsky,HowardZinneWalterLefeber,alm de explicaes e defesas eruditas da poltica americana como noimperialista, escritas por vrios estrategistas, tericos e estudiosos tudoissomantmmuitoacesaaquestodoimperialismoesuaaplicabilidade(ouno)aosEstadosUnidos,agrandepotnciadaatualidade.Esses luminares debateram questes em larga medida polticas e

    econmicas.Noentanto,pouqussimaateno tem sidodedicada aopapelprivilegiado,nomeuentender,daculturanaexperinciaimperialmoderna,equasenoselevaemcontaofatodequeaextraordinriaextensomundialdo imperialismo europeu clssico, do sculoXIX e comeo doXX, aindalanasombrasconsiderveissobrenossaprpriapoca.Emnossosdias,noexiste praticamente nenhum norte-americano, africano, europeu, latino-americano,indiano,caribenhoouaustralianoalistabemgrandeque

  • notenhasidoafetadopelosimpriosdopassado.Juntas,aGr-BretanhaeaFrana controlavam territrios imensos:Canad,Austrlia,NovaZelndia,ascolniasnaAmricadoNorteedoSul,oCaribe,grandesextensesnafrica,OrienteMdio,ExtremoOriente (aGr-Bretanha ainda conservarHongKongcomocolniaat1997)eatotalidadedosubcontinenteindianotodoselescaramsobodomnioinglsoufrancs,edepoisseliberaram;almdisso,osEstadosUnidos, aRssiaevriospaseseuropeusmenores,paranomencionaroJapoeaTurquia,tambmforampotnciasimperiaisduranteumaparteoutodoosculoXIX.Essetipodedomniooupossessolanouasbasesparaoque,agora,defatoummundointeiramenteglobal.As comunicaes eletrnicas, o alcance mundial do comrcio, dadisponibilidadedosrecursos,dasviagens,dasinformaessobreospadresclimticos e as mudanas ecolgicas unicaram at mesmo os locais maisremotosdomundo.Esseconjuntodepadresfoi,ameuver,possibilitadoeinauguradopelosimpriosmodernos.Ora,portemperamentoeposiolosca,soucontrrioconstruode

    vastos sistemas ou teorias totalizantes da histria humana. Mas devoreconhecerque, tendoestudadoe inclusivevividonos impriosmodernos,impressionam-meaexpansocontnuaeoinexorvelintegracionismoqueosconstituam. Seja emMarx ou em obras conservadoras como as de J. R.Seeley, ou em anlises modernas como as de D. K. Fieldhouse e C. C.Eldridge (cujo livroEnglands mission [Misso da Inglaterra] fundamental),3vemosqueoimpriobritnicofundiaeintegravaascoisasemsi, e junto comoutros imprios veio a unicar omundo.Masningum, ecertamentenoeu,capazdeverouapreenderemtodaasuaplenitudeessemundoimperial.Quandolemos,comohistoriadoresliterrioseculturais,odebateentreos

    historiadores contemporneos Patrick OBrien4 e Davis Huttenback (cujoimportantelivroMammonandthepursuitofempire[Mammoneaatividadeimperial]tentaquanticararentabilidadeefetivadosnegciosimperiais),5ouquando examinamos debates anteriores como a controvrsia Robinson-Gallagher,6ouaobradoseconomistasAndrGunderFrankeSamirAmin,da teoria da dependncia e da acumulao mundial,7 somos levados aperguntar o que signica tudo isso para as interpretaes, digamos, doromancevitoriano,dahistoriograafrancesa,dagrandeperaitalianaoudametafsica alem do mesmo perodo. Chegamos a um ponto em nossotrabalho em que nossos estudos nomais podem ignorar os imprios e ocontextoimperial.Falar,comoofazOBrien,dapropagandadeumimprioem expanso [que] criava, entre os que investiam alm de suas fronteiras,

  • iluses de segurana e falsas expectativas que aumentavam com os altoslucros8,naverdade,falardeumclimageradotantopeloimprioquantopelosromances,pelateoriaracialepelaespeculaogeogrca,peloconceitode identidade nacional e pela rotina urbana (ou rural). A expresso falsasexpectativasfazlembrarGreatexpectations[Grandesesperanas],investiamalmdesuasfronteiraslembraJosephSedleyeBeckySharp,criavailuseslembraIllusionsperdues[Ilusesperdidas]oscruzamentosentreculturaeimperialismosoirresistveis.difcilvincularessesdiversosmbitos,mostraroenvolvimentodacultura

    com os imprios em expanso, fazer observaes sobre as artes quepreservem suas caractersticas prprias e, aomesmo tempo, indiquem suasliaes,masdigoquedevemostentar,edevemossituaraartenocontextomundialconcreto.Estoemjogoterritriosepossesses,geograaepoder.Tudo na histria humana tem suas razes na terra, o que signica quedevemos pensar sobre a habitao, mas signica tambm que as pessoaspensaramemtermaisterritrios,eportantoprecisaramfazeralgoemrelaoaos habitantes nativos. Num nvel muito bsico, o imperialismo signicapensar, colonizar, controlar terrasqueno sonossas, que estodistantes,quesopossudasehabitadasporoutros.Porinmerasrazes,elasatraemalgumaspessoasemuitasvezestrazemumamisriaindescritvelparaoutras.Porm, em termos gerais, verdade que os historiadores literrios queestudamo grande poeta quinhentistaEdmundSpenser, por exemplo, noassociam seus sangrentos planos para a Irlanda, nos quais imaginou umexrcitobritnicoquepraticamenteexterminasseseushabitantesnativos,comsuas realizaes poticas ou com a histria do domnio britnico sobre aIrlanda,quepersisteaindahoje.Para os objetivos deste livro, concentrei-me nas disputas efetivas pelas

    terrasepelospovosdessasterras.Oquetenteifazerfoiumaespciedeexamegeogrcodaexperinciahistrica,tendoemmenteaideiadequeaterra,defato,umnicoemesmomundo,ondepraticamentenoexistemespaosvazios e inabitados. Assim como nenhum de ns est fora ou alm dageograa,damesma formanenhumdensest totalmenteausenteda lutapelageograa.Essalutacomplexaeinteressanteporquenoserestringeasoldados e canhes, abrangendo tambm ideias, formas, imagens erepresentaes.Muitagentenochamadomundoocidentaloumetropolitano,bemcomo

    seusparceirosdoTerceiroMundooudasex-colnias,concordaqueapocado grande imperialismo clssico, o qual atingiu seu clmax na era doimprio,segundoadescriodeEricHobsbawm,echegouaommaisou

  • menosformalcomodesmantelamentodasgrandesestruturascoloniaisapsaSegundaGuerraMundial, continua a exercer, deumaououtramaneira,umainunciaculturalconsidervelnopresente.Pelasmaisvariadasrazes,sente-se uma nova premncia de entender o que permaneceou nopermanece do passado, e essa premncia se introduz nas percepes dopresenteedofuturo.Nocentrodessaspercepes est algoquepoucosquestionam, a saber,

    queno sculoXIXumpoderiosemprecedentesemcomparaoaele,opoder de Roma, Espanha, Bagd ou Constantinopla era muitomenorestava concentrado na Gr-Bretanha e Frana, e depois em outros pasesocidentais (sobretudo os Estados Unidos). Esse sculo foi o apogeu daascenso do Ocidente, e o poderio ocidental possibilitou aos centrosmetropolitanosimperiaisaaquisioeacumulaodeterritriosesditosauma escala verdadeiramente assombrosa. Considere-se que, em 1800, aspotncias ocidentais reivindicavam55%,masna verdadedetinham35%dasuperfciedoglobo, e em1878essaproporoatingiu67%,numa taxadecrescimentodecercade220milquilmetrosquadradosporano.Em1914,ataxaanualhaviasubidoparavertiginosos620milquilmetrosquadrados,eaEuropa detinha um total aproximado de 85% do mundo, na forma decolnias, protetorados, dependncias, domnios ecommonwealths.9Nuncaexistiuemtodaahistriaumconjuntodecolniastogrande,sobdomnioto completo, com um poder to desigual em relao s metrpolesocidentais.Emdecorrnciadisso,armaWilliamMcNeillemThepursuitofpower[Abuscadepoder],comonuncaantes,omundofoiunicadonumsconjuntodeinteraes.10EnaprpriaEuropa,nonaldosculoXIX,nohaviapraticamentenenhumaspectodavidaquenofossetocadopelosfatos do imprio; as economias tinham avidez pormercados ultramarinos,matrias-primas, mo de obra barata e terras imensamente rentveis, e ossistemas de defesa e poltica exterior empenhavam-se cada vez mais namanuteno de vastas extenses de territrios distantes e grandescontingentes de povos subjugados. Quando as potncias ocidentais noestavam mergulhadas em uma disputa acirrada e s vezes implacvel pormaior nmero de colnias todos os imprios modernos, diz V. G.Kiernan,11imitavamunsaosoutros,estavamseesforandoparacolonizar,fazerlevantamentos,estudare,naturalmente,governarosterritriossobsuasjurisdies.Aexperinciaamericana,comomostraRichardvanAlstyneemTherising

    Americanempire[Onascenteimprioamericano],desdeoinciosefundouna ideia de umimperium um domnio, Estado ou soberania que se

  • expandiriaempopulaoeterritrio,eaumentariaemforaepoder.12Erapreciso reivindicare lutarpelaanexaodenovasreasao territrionorte-americano(oquefoifeitocomumxitoassombroso);haviapovosnativosadominar, exterminar e expulsar; depois, conforme a repblica iaenvelhecendoeseampliavaseupoderionohemisfrio,haviaterrasdistantesa considerar como vitais para os interesses americanos, objeto deintervenesedisputasporexemplo,Filipinas,Caribe,AmricaCentral,olitoralnortedafrica,partesdaEuropaedoOrienteMdio,Vietn,Coreia.Curiosamente, porm, to inuente foi o discurso que insistia no carterespecial, no altrusmo, no senso de oportunidade americanos que oimperialismo,comopalavraouideologia,rarasvezeseapenasrecentementeapareceunasexplicaesdacultura,polticaehistriadosEstadosUnidos.Masovnculoentreculturaepolticaimperialassombrosamentedireto.Apostura americana diante da grandeza americana, das hierarquias raciais,dosperigosdeoutrasrevolues(aRevoluoamericanasendoconsideradanica e de certa forma irrepetvel em qualquer outra parte do mundo)13permanece constante, ditando e obscurecendo as realidades do imprio,enquanto apologistas dos interesses americanos ultramarinos insistem nainocncia americana, praticando o bem, lutando pela liberdade. Pyle, oprotagonista deThe quietAmerican [O americano tranquilo], deGrahamGreene,encarnaessaformaoculturalcomimpiedosaexatido.Mas,paraoscidadosdaInglaterraeFranaoitocentistas,o imprioera

    um grande tema de ateno cultural sem que houvesse qualquerconstrangimento. As ndias britnicas e o norte da frica francsdesempenharamumpapelinestimvelnaimaginao,economia,vidapolticae trama social das sociedades britnica e francesa, e ao mencionar nomescomoDelacroix,EdmundBurke,Ruskin,Carlyle,JameseJohnStuartMill,Kipling, Balzac, Nerval, Flaubert ou Conrad, estaremos mapeando umngulominsculodeumarealidademuitomaisvastadoqueabarcamseustalentos coletivos,mesmo que imensos.Havia estudiosos, administradores,viajantes, comerciantes, parlamentares, exportadores, romancistas, tericos,especuladores,aventureiros,visionrios,poetas,priasedesajustadosdetodaespcie nas possesses estrangeiras dessas duas potncias imperiais, todoscontribuindo para formar uma realidade colonial no centro da vidametropolitana.Usareiotermoimperialismoparadesignaraprtica,ateoriaeasatitudes

    deumcentrometropolitanodominantegovernandoumterritriodistante;ocolonialismo, quase sempre uma consequncia do imperialismo, aimplantaodecolniasemterritriosdistantes.ComodizMichaelDoyle:

  • Oimprioumarelao,formalouinformal,emqueumEstadocontrolaa soberania poltica efetiva de outra sociedade poltica. Ele pode seralcanado pela fora, pela colaborao poltica, por dependnciaeconmica,socialoucultural.Oimperialismosimplesmenteoprocessoouapolticadeestabeleceroumanterumimprio.14

    Em nossa poca, o colonialismo direto se extinguiu em boa medida; oimperialismo,comoveremos,sobreviveondesempreexistiu,numaespciedeesfera cultural geral, bem como em determinadas prticas polticas,ideolgicas,econmicasesociais.Nemoimperialismo,nemocolonialismoumsimplesatodeacumulao

    e aquisio. Ambos so sustentados e talvez impelidos por potentesformaesideolgicasqueincluemanoodequecertosterritriosepovosprecisame implorampeladominao,bemcomo formasde conhecimentoliadas dominao:o vocabulrioda cultura imperialoitocentista clssicaest repleto de palavras e conceitos como raas servis ou inferiores,povos subordinados, dependncia, expanso e autoridade. E asideiassobreaculturaeramexplicitadas,reforadas,criticadasourejeitadasapartir das experincias imperiais. Quanto posio curiosa, mas talvezaceitvel, propagada um sculo atrs por J. R. Seeley, de que alguns dosimpriosultramarinosdaEuropa foramno incioestabelecidosdemaneiradesinteressada,elanoexplicadeformanenhuma,pormaisqueforcemosaimaginao,apersistncia,ocartersistemtico,aaquisioeaadministraometdicasdessesimprios,semfalardoaumentodeseupoderedesuamerapresena. Como disse David Landes emThe unbound Prometheus[Prometeudesacorrentado]:Adecisodealgumaspotnciaseuropeias [...]de montarplantations, isto , de tratar suas colnias comonegcios comcontinuidadeprpria, foiuma inovao fundamental, adespeitodoque sepossa pensar sobre os aspectos morais.15 esta a questo que aqui meinteressa: dado omovimento inicial, ainda que obscuro em suas origens emotivaes,daEuropaparaorestodomundonorumodoimperialismo,dequemaneira tal ideiaeprticaganhouocarterdensoesistemticodeumempreendimentocontnuo,oquesedeunasegundametadedosculoXIX?A primazia dos imprios britnico e francs no obscurece de forma

    alguma a expanso moderna realmente notvel da Espanha, Portugal,Holanda, Blgica, Alemanha, Itlia e, de outra maneira, da Rssia e dosEstadosUnidos.ARssia,porm,adquiriuseus territrios imperiaisquaseexclusivamenteporcontiguidade.Aocontrrioda InglaterraoudaFrana,que saltavam para outros continentes a milhares de quilmetros de suas

  • fronteiras,aRssiaiaengolindoqualquerterraoupovoqueestivessepertode seus limites, os quais, com isso, continuavam avanando cada vezmaisparao sul eo leste.Mas,nos casos ingls e francs, a simplesdistnciadeterritrios atraentes exigia a arregimentao de vastos interesses; e este ofoco que adoto aqui, em parte porque estou interessado em examinar oconjuntodeformasculturaiseestruturasdesentimentosassimproduzidas,emparteporqueodomnioultramarinoomundoondecrescieneleaindapermaneo.AcondiodesuperpotnciadaRssiaedosEstadosUnidos,usufruda por quasemeio sculo, deriva de histriasmuito diferentes e detrajetrias imperiais diversas. Existem muitas variedades de dominao ereao,masotemadestelivroaocidental,juntocomaresistnciaporelagerada.Naexpansodosgrandes impriosocidentais,o lucroeaperspectivade

    mais lucro foram, evidentemente, de enorme importncia, como provamamplamenteosatrativosdasespeciarias,acar,escravos,borracha,algodo,pio,estanho,ouroeprataaolongodossculos.Tambmhaviaainrcia,oinvestimento em negcios j existentes, a tradio e o mercado ou forasinstitucionaisquemantinhamosempreendimentosematividade.Mas,paraoimperialismoeo colonialismo,no s isso.Haviaumcomprometimentoporcausadolucro,equeiaalmdele,umcomprometimentonacirculaoerecirculaoconstantes,oqual,porumlado,permitiaquepessoasdecentesaceitassemaideiadequeterritriosdistanteserespectivospovosdeviamsersubjugadose,poroutro, revigoravaasenergiasmetropolitanas,demaneiraque essas pessoas decentes pudessempensar noimperium comoumdeverplanejado,quasemetafsico,degovernarpovossubordinados, inferioresoumenos avanados. No podemos esquecer que era mnima a resistnciadomstica a esses imprios, ainda que muitas vezes fossem fundados emantidos em condies adversas e at desvantajosas. Alm das imensasdiculdadesenfrentadaspeloscolonizadores,haviaaindaadisparidadefsica,tremendamente arriscada, entre um pequeno nmero de europeus a umaenorme distncia do lar e o nmero muito maior de autctones em seuterritrio natal.Na ndia, por exemplo, na dcada de 1930, meros 4milfuncionriospblicos ingleses,assistidospor60mil soldadose90milcivis(em sua maioria, homens de negcios e membros do clero) tinham seimpostoaumpasde300milhesdehabitantes.16Malconseguimosfazerideiada foradevontade,da autoconanae atda arrogncianecessriasparamantertalestadodecoisas,mas,comoveremosnostextosdeApassagetoIndia[Passagemparaandia]eKim,essasatitudestmumaimportnciapelo menos equivalente da mera quantidade de membros do servio

  • pblico ou das foras armadas, ou aos milhes de libras que a Inglaterraextraadandia.Poisoempreendimentoimperialdependedaideiadepossuirumimprio,

    como Conrad parece ter entendido com grande clareza, e numa culturafazem-sepreparativosde toda espciepara isso; a o imperialismo,por suavez,adquireumaespciedecoerncia, formaumconjuntodeexperincias,comapresenatantododominantequantododominadodentrodacultura.Comocolocoudemaneiraprecisaumestudiosomodernodoimperialismo:

    O imperialismomoderno consistiu num aglomerado de elementos, nemtodosdemesmopeso,quepodemser remontados a todas as pocasdahistria.Talvezsuascausasltimas,aoladodaguerra,encontrem-senotanto em necessidades materiais tangveis e sim nas difceis tenses desociedades distorcidas por divises de classe, reetindo-se em ideiasdistorcidasnamentedoshomens.17

    D.K.Fieldhouse,ilustrehistoriadorconservadordoimperialismo,dumaargutaindicaodonvelcrucialemqueastenses,desigualdadeseinjustiasdasociedademetropolitanaserefratavameseelaboravamnaculturaimperial:Abasedaautoridadeimperial,dizele,foiaatitudementaldocolono.Suaaceitao da subordinao fosse num sentido positivo de comungarinteresses com o Estado de origem, fosse pela incapacidade de conceberoutra alternativa deu durabilidade ao imprio.18 Fieldhouse estava sereferindo aos colonos brancos nasAmricas,mas sua argumentao comoumtodovaimaisalm:adurabilidadedoimpriofoisustentadaporambososlados,pelosdominantesepelosdistantesdominados,ecadaqual,porsuavez,tinhadessahistriacompartilhadaumlequedeinterpretaescomsuasperspectivas, sentidos histricos, emoes e tradies prprias. O que umintelectualargelinolembrahojedopassadocolonialdeseupasconcentra-serigorosamenteemfatostaiscomoosataquesmilitaresdaFranaaaldeiaseatorturadosprisioneirosduranteaguerradalibertao,ounaexultaopelaindependnciaem1962;jseucolegafrancs,quepodeterparticipadodosassuntos argelinos ou cuja famliamorava na Arglia, sentemgoa por terperdidoaArglia,eadotaumaatitudemaispositivaemrelaomissocolonizadorafrancesacomsuasescolas,ascidadesbelamenteplanejadas,avida amena e talvez tenha inclusive a sensao de que os comunistas ecriadoresdecasovieramatrapalhararelaoidlicaentrenseeles.Em largussima medida, a era do grande imperialismo oitocentista est

    encerrada: a Frana e a Inglaterra entregaram suas mais esplndidas

  • possessesapsaSegundaGuerraMundial,epotnciasmenorestambmsedeszeramdeseusextensosdomnios.Mas,evocandooutravezaspalavrasde T. S. Eliot, embora tal era possusse claramente uma identidade todaprpria,osignicadodopassadoimperialnoseencerraapenasdentrodela,tendoseintroduzidonarealidadedecentenasdemilhesdepessoas,ondesua existncia como memria coletiva e trama altamente conituosa decultura, ideologia e poltica ainda exerce enorme fora. Frantz Fanon diz:Devemos recusar categoricamente a situao a que os pases ocidentaisqueremnos condenar.O colonialismo e o imperialismonopagaram suascontas quando retiraram suas bandeiras e suas foras policiais de nossosterritrios.Durante sculos,os capitalistas (estrangeiros) se conduziramnomundosubdesenvolvidocomoverdadeiroscriminosos.19Temosdeavaliaranostalgia imperial,bemcomoodioeoressentimentoqueoimperialismodespertanosdominados,edevemostentarexaminardeformaabrangenteecuidadosa a cultura que alimentou o sentimento, a lgica e sobretudo aimaginaoimperialista.Edevemostambmtentarentenderahegemoniadaideologiaimperial,quenofinaldosculoXIXhaviaseentranhadototalmentenosassuntosdeculturascujosaspectosmenosdeplorveisaindacelebramos.Creioexistirhojeumagravssimacisoemnossaconscinciacrtica,que

    faz com que passemos um tempo enorme trabalhando as teorias estticas,por exemplo, deRuskin eCarlyle, sem dar ateno autoridade que suasideias simultaneamente conferiam subjugao de povos inferiores eterritrios coloniais. Para tomar outro exemplo, se no conseguirmoscompreendercomoogranderomancerealistaeuropeucumpriuumdeseusprincipais objetivos sustentando de maneira quase imperceptvel oconsentimento da sociedade com a expanso ultramarina, consentimentoparaoqual,naspalavrasdeJ.A.Hobson,asforasegostasqueorientamoImperialismo deviam utilizar as cores protetoras de [...] movimentosdesinteressados,20 como alantropia, a religio, a cincia e a arte,noentenderemos a importncia da cultura e suas ressonncias no imprio,naquelapocaeagora.Issonosignificalanarcrticassumriascontraaarteeaculturaeuropeias

    ou,demodomaisgeral,ocidentais,numacondenaoembloco.Deformaalguma. O que pretendo examinar a maneira pela qual os processosimperialistas ocorreram alm do plano das leis econmicas e das decisespolticas, e por predisposio, pela autoridade de formaes culturaisidenticveis,pelaconsolidaocontnuanaeducao,literatura,artesvisuaisemusicaismanifestaram-se emoutronvel degrande importncia, odaculturanacional,quetendemosaapresentarcomoalgoassptico,umcampo

  • demonumentos intelectuais imutveis, livredeliaesmundanas.WilliamBlakemuitofranconesseponto:OFundamentodoImprio,dizeleemsuasanotaesaosDiscourses[Discursos]deReynolds,aArteeaCincia.Retire-as ou Desgaste-as e No existir mais Imprio. O Imprio segue aArte,enovice-versa,comosupemosIngleses.21Assim, portanto, qual o vnculo entre a busca de objetivos nacionais

    imperiaiseaculturanacionalcomoumtodo?Orecentediscursointelectuale acadmico revelou uma tendncia a separ-las e dividi-las: inmerosestudiosos so especialistas; boa parte da ateno tida como especializadavolta-separatemasbastanteautnomos,porexemplo,oromancevitorianoindustrial,apolticacolonialfrancesanonortedafrica,eassimpordiante.Venho sustentando de longa data que a tendncia de disciplinas eespecializaes em se subdividir e proliferar contrria compreenso dotodo,quandosetratadocarter,dainterpretaoedireooutendnciadaexperincia cultural. Perder de vista ou ignorar o contexto nacional einternacional,digamos,das representaesqueDickens fezdoshomensdenegciosvitorianos,eenfocarapenasacoernciainternadeseuspapisnosromancesdoautorperderumaligaoessencialentresuacoeomundohistricodessaco.Ecompreenderessa ligaono signica reduziroudiminuirovalordosromancescomoobrasdearte:pelocontrrio,devidosuaconcretude,devidoasuascomplexasliaesaseuquadroreal,elessomaisinteressantesemaispreciososcomoobrasdearte.NocomeodeDombeyandson[Dombeyelho],Dickensquerressaltar

    aimportnciadonascimentodofilhoparaDombey:

    Aterraera feitaparaqueDombeyeFilhocomerciassem,eosolea luaeramfeitosparalhesdarluz.Riosemareseramformadosparasustentarseusnavios;osarco-rislhesprometiambomtempo;osventossopravamcontraou a favorde seusnegcios; as estrelas eosplanetasgiravamemsuasrbitasparamanterinvioladoumsistemaqueostinhacomocentro.Abreviaturas comuns assumiam novos signicados aos olhos dele, ereferiam-seexclusivamenteaosdois:A.D.noguardavanenhumarelaocomAnnoDomini,masqueriadizerAnnoDombeieFilho.22

    Como descrio da empa arrogante de Dombey, de sua desatenonarcisista,desuaatitudecoercitivacomolhorecm-nascido,evidenteoservio prestado por esse trecho. Mas tambm devemos perguntar comoDombeypodiapensarqueouniversoetodoodecursotemporalestavamasua disposio para que zesse seus negcios. Devemos ainda ver nesta

  • passagem que no ocupa nenhum lugar central no romance umpressuposto especco de um romancista britnico da dcada de 1840: asaber, como diz RaymondWilliams, esse foi o perodo decisivo em queestava se formando e se expressando a conscincia de uma nova fase dacivilizao. Mas ento por que Williams descreve esse tempotransformador,liberadoreameaador23semsereferir ndia,frica,aoOrienteMdioesia,vistoquefoiparaessasterrasqueavidabritnicaemtransformaoseexpandiueasocupou,comoindicaDickenstimidamente?Williams umgrande crtico; admiro-o e aprendimuito com sua obra,

    mas parece-me limitada sua concepo de que a literatura inglesa refere-seprincipalmente Inglaterra, ideia esta central para seus ensaios, bemcomopara os de inmeros estudiosos e crticos. Alm disso, os estudiosos queescrevem sobre romances tratam-nos de forma mais ou menos exclusiva(emboraWilliamsnoestejaentreeles).Esseshbitosparecemguiadosporumanoomuito forte, aindaque imprecisa,dequeasobras literrias soautnomas,aopassoque,comotentareimostraraolongodetodoestelivro,aprprialiteraturafazrefernciasconstantesasimesmacomopartcipe,dealguma forma, da expanso europeia no ultramar, assim criando o queWilliams chama de estruturas de sentimento que sustentam, elaboram econsolidamaprticaimperial.verdadequeDombeynoDickensnemaliteraturainglesaemsuatotalidade,masaformapelaqualDickensexpressaoegosmo de Dombey evoca, satiriza, mas em ltima anlise deriva dosdiscursos efetivos do livre-cambismo imperial, dos princpios comerciaisbritnicos e da convico inglesa quanto s oportunidades praticamenteilimitadasdeprosperidadecomercialnoexterior.No devemos estabelecer uma separao entre esses problemas e nossa

    compreensodoromanceoitocentista,damesmaformacomonodevemosisolaraliteraturadahistriaedasociedade.Asupostaautonomiadasobrasde arte acarreta uma espcie de separao que, a meu ver, impe umalimitaoindesejvel,aqualnodeformaalgumacolocadapelasprpriasobras. Todavia, abstive-me deliberadamente de apresentar uma teoriatotalmentearticuladadosvnculosentreliteraturaecultura,deumlado,eoimperialismodeoutro.Emvezdisso,esperoqueasconexesbrotemdeseuspontosexplcitosnosvriostextos,comocontextoabrangenteoimprioalipresente,paraquesejamestabelecidasasrelaes,paradesenvolv-las,elabor-las, ampli-las ou critic-las. Como nem a cultura nem oimperialismo so inertes, as conexes entre eles, enquanto experinciashistricas,sodinmicasecomplexas.Meuobjetivoprincipalnoseparar,esim estabelecer conexes, e estou interessado nisso pela grande razo

  • loscaemetodolgicadequeasformasculturaissohbridas,ambguas,impuras,echegouahoradeaanliseculturalvoltaravincularoestudoearealidadedelas.

    IMAGENSDOPASSADO,PURASEIMPURAS

    medidaqueosculoXXseaproximadeseum,cresceemquasetodoomundoumaconscinciadaslinhasentreculturas,asdivisesediferenasquenosnospermitemdiferenciarasculturas,comotambmnoshabilitamaver at que ponto as culturas so estruturas de autoridade e participaocriadas pelos homens, benvolas no que abrangem, incorporam e validam,menosbenvolasnoqueexcluemerebaixam.Em todas as culturas nacionalmente denidas, creio eu, existe uma

    aspirao soberania, inuncia e ao predomnio. Nesse aspecto, asculturas francesae inglesa, indianae japonesa rivalizam.Aomesmo tempo,paradoxalmente, nunca tivemos tanta conscincia da singular hibridez dasexperinciashistricaseculturais,desuapresenaemmuitasexperinciasesetoresamidecontraditrios,dofatodetransporemasfronteirasnacionais,dedesafiaremaaopolicialdosdogmassimplistasedopatriotismoufanista.Longe de serem algo unitrio, monoltico ou autnomo, as culturas, naverdade,mais adotam elementos estrangeiros, alteridades e diferenas doqueosexcluemconscientemente.Quem,na ndiaounaArgliadehoje,capazdejoeirarcomseguranaoelementobritnicooufrancsdopassadoentreasrealidadespresentes,equemnaInglaterraounaFranacapazdetraarumcrculontidoemtornodaLondresbritnicaoudaParisfrancesa,excluindooimpactodandiaedaArgliasobreessasduascidadesimperiais?No so questes nostalgicamente acadmicas ou tericas, pois, como

    uma ou duas rpidas digresses mostraro, elas possuem importantesconsequncias sociais e polticas. Londres e Paris contam com numerosaspopulaes vindas das ex-colnias, as quais, por sua vez, guardam fortesresduosdaculturainglesaefrancesaemsuavidacotidiana.Masissobvio.Vejamos,numexemplomais complexo, as conhecidasquestesda imagemda tradio ou da Antiguidade clssica grega como determinante daidentidade nacional. Estudos comoBlackAthena [Atena negra], deMartinBernal, eThe invention of tradition [A inveno da tradio], de EricHobsbawm e Terence Ranger, ressaltaram a extraordinria inuncia dapreocupaoatualcomasimagenspuras(eatexpurgadas)queelaboramosarespeito de um passado privilegiado e genealogicamente til, do qualexclumos elementos, vestgios e narrativas indesejveis. Assim, segundo

  • Bernal, de incio sabia-se que a civilizao grega tinha razes na culturaegpcia, semita e vrias outrasmeridionais e orientais,mas no decorrer dosculoXIX ela foi remodelada como uma cultura ariana, na qual foramocultasoueliminadasdemaneiraativasuasrazessemitaseafricanas.Comoosprpriosescritoresgregosreconheciamabertamenteopassadohbridodesuacultura,osllogoseuropeuscontraramohbitoideolgicodepassarporcimadessaspassagensembaraosas,semascomentar,emproldapurezatica.24 (Vale lembrar tambm que foi apenas no sculoXIX que oshistoriadoreseuropeusdasCruzadascomearamanomencionaraprticado canibalismo entre os cavaleiros francos, muito embora as crnicas doscruzadosdapocaserefiramsempejoaoconsumodecarnehumana.)Assimcomoa imagemdaGrcia, imagensdaautoridadeeuropeiaforam

    aliceradasemodeladasduranteosculoXIXeondefaz-lo,anosernafabricaoderituais,cerimniasetradies?TaloargumentoapresentadoporHobsbawm,RangereosoutroscolaboradoresdeInventionoftradition.Numapocaemqueos vnculos e asorganizaesmais antigasqueuneminternamente as sociedades pr-modernas estavam comeando a ceder, eaumentavam as presses sociais de administrar numerosos territriosultramarinosegrandeserecenteseleitoradosnacionais,aselitesdirigentesdaEuropa sentiram claramente a necessidade de projetar seu poder sobre opassado,dando-lheumahistriaeumalegitimidadequespodiamadvirdatradioedalongevidade.Assim,em1876,Vitriafoiproclamadaimperatrizdandia,eenviouseuvice-rei,lordeLytton,emvisitaatl,sendoaclamadoe celebrado em festas edarbarestradicionaispor todoopas,bemcomonumagrandeAssembleiaImperialemDelhi,comoseseugovernonofosse,acimadetudo,umaquestodepoderedecretounilateral,esimumcostumetradicional.25Criaram-se invenes semelhantes no lado oposto, ou seja, entre os

    nativos insurgentesemrelaoa seupassadopr-colonial, comonocasoda Arglia durante a Guerra da Independncia (1954-62), quando adescolonizao incentivou os argelinos e muulmanos a criar imagensdaquiloquejulgavamserantesdacolonizaofrancesa.Essaestratgiasefazpresentenaspalavrasdemuitospoetasliteratosnacionaisduranteaslutasdeindependncia ou libertao em outras partes do mundo colonial. Queroenfatizaropoderdemobilizaodasimagensetradiesapresentadaseseucarterctcioou,pelomenos,fantasiosamentetingidodecoresromnticas:Pense-senoqueYeatsfazcomopassadoirlands,comseusgigantescomoCuchulainegrandes solares,queoferecem lutanacionalistaalgopara seradmirado e revivido. Nos Estados nacionais ps-coloniais, evidente a

  • exibilidade de essncias tais como o esprito celta, a negritude ou oislamismo:elastmmuitoavercomosmanipuladoresnativos,quetambmasutilizamparaencobrirfaltas,corrupes,tiraniascontemporneas,eaindacom os contextos imperiais conituosos de onde surgiram, tendo seafiguradocomonecessriasnaquelemomento.Embora as colnias, em sua maioria, tenham conquistado a

    independncia,muitasatitudesimperiaisconcomitantesconquistacolonialainda persistem. Em 1910, o defensor francs do colonialismo JulesHarmanddizia:

    necessrio,pois,aceitarcomoprincpioepontodepartidaofatodequeexisteumahierarquiaderaasecivilizaes,equenspertencemosraae civilizao superior, reconhecendo ainda que a superioridade conferedireitos,mas, emcontrapartida, impeobrigaes estritas.A legitimaobsicadaconquistadepovosnativosaconvicodenossasuperioridade,nosimplesmentenossasuperioridademecnica,econmicaemilitar,masnossa superioridademoral.Nossadignidade sebaseianessaqualidade,eelafundanossodireitodedirigirorestodahumanidade.Opodermaterialapenasummeioparaessefim.26

    Como precursor da atual polmica sobre a superioridade da civilizaoocidental sobre as demais, o valor supremo das humanidades puramenteocidentais, tal como enaltecido por lsofos conservadores como AllanBloom, a inferioridade (e a ameaa) essencial donoocidental, tal comoapregoada pela campanha antinipnica, pelos orientalistas ideolgicos ecrticosdaregressonativanafricaesia,adeclaraodeHarmanddeumaantevisoassombrosa.Mais importante do que o prprio passado, portanto, sua inuncia

    sobre as atitudes culturais do presente. Por razes apenas em parteenraizadas na experincia imperial, as velhas divises entre colonizador ecolonizadoressurgiramnaquiloquemuitasvezesdenominadode relaoNorte-Sul,aqualtemacarretadoumaposturadefensiva,almdevriostiposdecombate retricoe ideolgicoeumahostilidade latentemuitocapazdedesencadear guerras devastadoras o que em alguns casos j ocorreu.Havermaneiras de conceber a experincia imperial sem recorrer a termoscompartimentalizados,deformaatransformarnossacompreensotantodopassadoquantodopresenteenossaatitudeemrelaoaofuturo?Devemos comear caracterizando as maneiras mais usuais com que as

    pessoas tratamomltiplo e complexo legadodo imperialismo,no apenas

  • aquelas que saram das colnias, mas tambm as que j estavam loriginalmente e l permaneceram, ou seja, os nativos. Muita gente naInglaterra provavelmente sente certo remorso ou pesar pela experinciaindiana de seu pas, mas h tambmmuita gente que sente saudades dosvelhosebonstempos,mesmoqueovalordessestempos,acausadeteremchegado ao m e as prprias atitudes dessas pessoas em relao aonacionalismonativosejamquestesvolteiseaindanoresolvidas.esteocaso sobretudoquando se tratade relaes raciais, como,porexemplo,nacrisequandodapublicaodeOsversossatnicos,deSalmanRushdie,easubsequentefatwa conclamando para a morte de Rushdie, decretada peloaiatolKhomeini.Mas,damesma forma,odebatenospasesdoTerceiroMundo sobre a

    prtica colonialista e a ideologia imperialista que lhe d respaldo extremamente aceso e diversicado. Inmeros grupos acreditam que aamargura e as humilhaes da experincia que praticamente os escravizoumesmo assim trouxeram benefcios ideias liberais, autoconscincianacionalebenstecnolgicosque,comotempo,parecemterdiminudoemmuitoocarterdesagradveldoimperialismo.Outraspessoasnaeraps-colonial reetiram retrospectivamente sobre o colonialismo para melhorentender as diculdades do presente em pases de independncia recente.Que existem problemas reais quanto ao rumo, democracia e aodesenvolvimento desses pases, comprova-o a perseguio do Estado aintelectuais que sustentam corajosamente suas ideias e prticas em mbitopblico Eqbal Ahmad e Faiz Ahmad Faiz no Paquisto, Ngugi waThiongonoQunia,Abdelrahman elMunif nomundo rabe, grandespensadores e artistas cujos sofrimentos no embotaram a intransigncia deseupensamentonematenuaramorigordeseuscastigos.Munif,Ngugi,Faizetodososoutrosparecidoscomelesnofaziamseno

    nutrirumdioirrestritoaocolonialismoimplantadoouaoimperialismoqueoacionava.Ironicamente,foramouvidosapenasemparte,tantonoOcidentequanto pelas autoridades governamentais de seus pases. Por um lado,sujeitavam-se a ser considerados por muitos intelectuais ocidentais comoJeremiasretrospectivosdenunciandoosmalesdeumcolonialismopassado,epor outro lado a ser tratados por seus governos na Arbia Saudita, noQunia ou no Paquisto como agentes de potncias estrangeiras quemereciamaprisoouoexlio.Atragdiadessaexperinciae,naverdade,deinmerasexperinciasps-coloniaisdecorredaslimitaesdesetentarlidarcomrelaesquesopolarizadas,radicalmentedesiguaiserememoradasdediferentes formas.Asesferas,ospontosde intensidade, asprioridadeseos

  • componentes no mundo metropolitano e no mundo ex-colonizadocoincidem apenas em parte. A pequena rea vista como campo comumatende,nesseponto,apenasaoquesepoderiachamarderetricadaculpa.Queroconsideraremprimeirolugarasrealidadesdoscamposintelectuais,

    tanto os concordantes quanto os divergentes, no discurso pblico ps-imperial, concentrando-me sobretudo naquilo que, em tal discurso, dorigem e estmulo retrica e s polticas da culpa. Assim, utilizando asperspectivas e os mtodos do que se poderia chamar de literaturacomparativado imperialismo, irei considerar como seria possvel ampliar ocampo de sobreposies dos aspectos comuns entre as sociedadesmetropolitanas e as ex-colonizadas, a partir de reavaliaes ou revises doconceitosobreasatitudesintelectuaisps-imperiais.Observandoasdiversasexperinciasemcontraponto,comoqueformandoumconjuntodehistriasentrelaadase sobrepostas, tentarei formularumaalternativaparaapolticada culpa e tambm para a poltica mais destrutiva do confronto e dahostilidade.Talvez isto d origem a um tipo de interpretao secularmaisinteressante, muito mais profcua do que as denncias do passado, oslamentospelomdessapocaouaindamaisprejudicialporserviolentaemuitomaisfcileatraenteahostilidadeentreasculturasocidentaisenoocidentais que leva ecloso de crises. O mundo pequeno einterdependentedemaisparadeixarmospassivamentequeelasocorram.

    DUASVISESEMCORAODASTREVAS

    Adominao e as injustias dopoder e da riqueza so fatosperenesdasociedade humana. Mas no quadro global de hoje pode-se tambminterpret-lasemrelaoao imperialismo, suahistriae suasnovas formas.As naes contemporneas da sia, Amrica Latina e frica sopoliticamente independentes, mas, sob muitos aspectos, continuam todominadasedependentesquantooeramnapocaemqueviviamgovernadasdiretamente pelas potncias europeias. Por um lado, isso decorre deferimentos que elas prprias se inigem, e crticos como V. S. Naipaulcostumam dizer:eles (todomundo sabe que eles signica os de cor, oscrioulos, os negros) so culpados de serem o que so, e no adianta carrepisando no legado do imperialismo. Por outro lado, culpararrasadoramente os europeus pelos infortnios do presente no umagrandealternativa.Oqueprecisamos examinar essasquestes comoumarededehistrias interdependentes: seria equivocado e absurdo reprimi-las,tileinteressanteentend-las.

  • Esta questo no complicada. Se, estando emOxford, Paris ouNovaYork,vocdisseraumrabeouafricanoqueele fazpartedeumaculturabasicamentedoenteouirrecupervel,noprovvelqueconsigaconvenc-lo. Mesmo que voc leve a melhor, ele no vai lhe conceder essa suasuperioridadedeessnciaouseudireitodedomin-lo,apesardesuariquezaepoderevidentes.Ahistriadessecontrapesovisvelemtodasascolniasem que os senhores brancos, no incio, no eram questionados e depoisacabaram sendo expulsos. Inversamente, os nativos vitoriosos logodescobriram que precisavam do Ocidente, e que a ideia de umaindependnciatotal era uma co nacionalista voltada sobretudo para aburguesia nacionalista, como diz Fanon, a qual, por sua vez, comfrequnciagovernavaosnovospasespormeiodeumatiraniaespoliadoraeempedernidaquefazialembrarossenhoresquehaviampartido.Eassim,nonaldo sculoXX, o ciclo imperial do sculoXIXparece se

    repetiremalgunsaspectos, emborahojenoexistanenhumgrandees