Cultura e literatura diálogos

152
Cultura e literatura diálogos

Transcript of Cultura e literatura diálogos

Page 1: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura diálogos

Page 2: Cultura e literatura diálogos

Copyright © 2008 by Valmir de Souza

coordenação gráfica Silvia Amstalden [tsa.design]

projeto gráfico, diagramação e ilustraçõesCatarina Bessell

revisão Joseli Magalhães Perezine

impressãoMaxprint Editora e Gráfica Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

08-09687 CDD-306

Índices para cátalogo sistemático:1. Cultura e literatura : Práticas : Política cultural 306

Souza, Valmir deCultura e literatura: diálogos / Valmir de Souza.

São Paulo: Ed. do Autor, 2008.

Bibliografia.

1. Arte 2. Cultura 3. Cultura - Brasil 4. Leitura 5. Literatura 6. Política Cultural I. Título.

[email protected]

Page 3: Cultura e literatura diálogos

Valmir de Souza

Cultura e literatura diálogos

Page 4: Cultura e literatura diálogos
Page 5: Cultura e literatura diálogos

6 Agradecimentos

8 Prefácio

Cultura 12 Estado geral da cultura e da arte 17 Em torno da idéia de cultura 22 O cenário globalizado 26 As crises contemporâneas e o papel da mídia 31 Cultura e desenvolvimento 39 A construção da cultura pública urbana 45 Visões do Brasil 48 O mal-estar no cotidiano: consumo e trabalho 52 Guarulhos no cenário metropolitano 61 Cultura e memória na cidade 65 São Paulo: diversidade cultural e discurso oficial 76 Patrimônio histórico e cidadania cultural

Literatura 88 Violência e resistência na literatura brasileira 98 Amor e ode na história e na literatura: Murilo Mendes112 Literatura e resistência115 A leitura no mundo contemporâneo123 A busca da linguagem perdida em Haikuazes127 Releituras poéticas do mundo em Folhas soltas130 A poética do reengajamento pela linguagem132 Imaginário e palavras das migrações134 A literatura como patrimônio cultural137 A literatura como prática cultural

141 Bibliografia Geral

Sumário

Page 6: Cultura e literatura diálogos

6 CULTURA E LITERATURA: DIÁLOGOS

A Joseli Magalhães Perezine, minha companheira, pelo apoio intelectual e incentivo para a produção e publicação desta obra, bem como pela revisão geral e aos meus filhos João e Fernando, pelas presenças constantes.

Ao Hamilton Faria, pela inspiração para vários textos sobre a questão cultural e com quem convivi no Instituto Pólis.

A toda a equipe do Instituto Pólis, com a qual tive a oportunidade de desenvolver e debater projetos de cultura, desenvolvimento e políticas culturais.

A todos que fizeram parte da coordenação do Fórum Intermunicipal de Cultura com quem troquei várias experiências no campo da cultura.

Ao Nilson Moulin e à equipe do Serviço Educativo do DPH, pele amizade e pela cooperação.

Ao Altair Moreira e aos agentes culturais do Departamento de Cultura de Santo André, pela oportunidade de trabalhar juntos.

A Ligia Chiappini Moraes Leite, minha orientadora de Mestrado e Doutorado, pelo apoio nas questões de políticas literárias e culturais.

À Olgária Matos, pela participação intensa nos debates filosóficos contemporâneos.

Aos professores e funcionários do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP), pelo apoio intelectual e humano.

Agradecimentos

Page 7: Cultura e literatura diálogos

7

À Cláudia Fernandes e funcionários da Biblioteca Municipal Monteiro Lobato, pelo empenho nos serviços culturais na cidade de Guarulhos.

Ao César Magalhães Borges pelas dicas de edição desta obra.Aos professores e alunos da UnG e da Unifig com quem pude debater questões culturais e literárias.

Aos diretores e funcionários do Sinpro-Guarulhos pelo apoio e amizade.

À Secretaria de Cultura de Guarulhos, pela possibilidade de desen-volver projetos de debates e palestras e aos seus funcionários pelo apoio técnico e cultural.

Ao FUNCULTURA (Fundo Municipal de Cultura) da cidade de Guarulhos, pelo financiamento desta obra.

A Silvia Amstalden, pelo cuidadoso trabalho de coordenação gráfica.

A Catarina Bessell, pelas ilustrações abstratamente concretas que ousou realizar.

Page 8: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos8

Este livro é uma coletânea de textos produzidos a partir de minha atuação como pesquisador em algumas instituições. Primeiramente o Instituto Pólis que, com uma equipe de pesquisadores empenha-da na reflexão e intervenção no cenário político, social, econômico e cultural, me proporcionou a oportunidade de pesquisar e desenvol-ver políticas culturais durante seis anos (1993-1999), juntamente com redes, fóruns, como o Comitê de Entidades Culturais de São Paulo (anos 1990) e o Fórum Intermunicipal de Cultura.

Juntamente com outros militantes e atores da cultura, organizei encontros, seminários e debates públicos, dos quais destaco “Cultura, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano”, realizado em Belo Horizonte/MG (1995); “Direitos Culturais e Direitos Humanos”, re-alizou-se Vitória/ES (1996); “Globalizações e Diversidade Cultural”, ocorreu em Brasília/DF (1997). Esses encontros procuravam incenti-var o fazer cultural em movimentos e em órgãos públicos de cultura, problematizando, inclusive, a relação tensa entre sociedade e governo no campo da cultura.

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde pesquisei para o Mestrado e o Doutorado, me deu apoio intelectual importante. A Secretaria de Cultura de São Paulo (DPH) e o Departamento de Cultura de Santo André foram instituições fundamentais para as reflexões e práticas culturais.

Coordenei, junto à Secretaria de Cultura de Guarulhos, vários seminários e ciclos de palestras e debates, como Literatura: a cultura da palavra, Literatura e resistência, Visões do Brasil, Diálogos em curso, Café filosófico, realizados na Biblioteca Monteiro Lobato.

Prefácio

Page 9: Cultura e literatura diálogos

9

Os artigos aqui reunidos refletem sobre questões do mundo con-temporâneo no que tange à cultura e à literatura, e originaram-se de encontros, palestras, conversas, leituras, debates sobre o fazer cultural em geral e sobre temas específicos que envolvem desde políticas cul-turais até reflexões sobre práticas artísticas em comunidades urbanas, incluindo-se artigos sobre a questão cultural nas cidades, patrimônio cultural, símbolos e memória, grafite, literatura, leitura e história.

Estes são, portanto, textos de circunstância e de reflexão escritos em momentos que impulsionaram meu pensar sobre esses temas, en-fim “textos de intervenção” na cena pública. Eles contêm colocações do momento em que foram produzidos, portanto podem estar supe-rados em relação ao Brasil atual, mas tentei na medida do possível fazer uma atualização dos mesmos, acompanhando Murilo Mendes: “Não sou meu sobrevivente, sou meu contemporâneo.”

Page 10: Cultura e literatura diálogos
Page 11: Cultura e literatura diálogos

Cultura

Page 12: Cultura e literatura diálogos

12

Num momento de intensa rotinização da desordem mundial, com todas as desigualdades e assimetrias sociais e regionais, escrever sobre cultura talvez possa parecer uma impertinência em relação ao drama da vida no planeta. O mundo hoje está mais interessado em uma arte da guerra do que na arte e cultura da paz, vivendo o paradoxo de uma situação de “arte sem arte” e “guerra sem guerra” (Zizek, 2003). Ousemos, assim, falar da necessidade da arte e de seus disparates no cenário contemporâneo da pseudocultura.

Estudar as questões relativas à cultura é de suma importância, já que no cenário atual ela abrange a vida de modo crucial. Cultura é termo de grande alcance e com nuances que precisariam ser explica-das. Deixamos aqui algumas indicações das práticas de cultura.

Nós queremos é a grande música, as maravilhas, nós queremos as delícias da humanidade, nós queremos a grande arte, nós queremos ouvir a bela mú-sica, nós queremos recriar em nossos ouvidos, na nossa sensibilidade, nos nossos olhos, na nossa fala, as coisas maiores que a humanidade fez. Não queremos migalhas.(José Américo Motta Pessanha)

Estado geral da cultura e da arte

Cultura e literatura: diálogos

Page 13: Cultura e literatura diálogos

13

A cultura está em evidência pelo menos há uns duzentos anos! Antes se sacava o revólver quando alguém pronunciava a palavra “cultura”, hoje se pensa no talão de cheque, em conta corrente, etc. Não é mais perigoso se falar em cultura, desde que se pague o devi-do pedágio. Cultura é o objeto do desejo com status, mas também uma mercadoria que rende dividendos. Partidos políticos valorizam a cultura, em geral, para sintonizarem-se com as questões contem-porâneas e não se sentirem fora de moda.

Cultura é uma palavra que virou senso comum, podendo dizer tudo e significar nada, servindo como colher para toda obra (Perrone-Moisés, 2007). Arte é uma palavra que remete ao universo “chique”, ganhando cada vez mais notoriedade pela mídia. Os dois termos hoje são a “menina dos olhos” e a galinha dos ovos de ouro daqueles que buscam dividendos monetários.

As falas e discursos sobre cultura e arte ainda reativam imagens e mitos já pensados no passado. Um elemento constante desses dis-cursos é o da arte/cultura como salvação das desgraças, misérias e doenças da humanidade. Artistas se esforçam por dinamizar sua arte a favor de um mundo melhor, o que é válido e legítimo do ponto de vista de seu fazer cultural e social. Mas essas práticas discursivas se assemelham àquelas do século XIX que pretendiam, na Inglaterra, substituir a religião, no caso, pela literatura (Eagleton, 1997: 23-73). Os contextos são diferentes, mas as medicações são as mesmas.

Por outro lado, vários autores, como Theodor W. Adorno (2000), dizem-se desiludidos com a possibilidade de a cultura clássica melho-rar ou redimir o ser humano, pois sabe-se que durante o Nazismo, enquanto judeus iam para as câmaras de gás dos campos de concen-tração, alemães cultos iam para as salas de concerto ouvir “música de câmara”. A pergunta difícil e pungente continua: como é possível ouvir lamentos e gritos de dor e ao mesmo tempo ouvir música eru-dita? Realmente, depois de Auschwitz até as bombas atuais, tudo ficou indiferente às questões da humanidade.

Num mundo em que o velho terror volta insistentemente e em que as formas de vida são cotidianamente demolidas, soa paradoxal pensar a cultura. A expressão “Tudo que é sólido se desmancha no

estado geral da Cultura e da arte

Page 14: Cultura e literatura diálogos

14 Cultura e literatura: diálogos

ar” (Berman, 1996) se atualiza na força de sua concretude, inclusive na desestabilização e liquidação geral de símbolos e de conceitos. O mundo contemporâneo se desfaz de forma absoluta sob o peso de uma moeda invisível. Essa era “flexível” inunda o pensamento com quinquilharias vendidas pelos moedeiros ilusionistas.

De qualquer maneira, a existência de discursos culturais que se contrapõem à indiferença social já é sinal de vida no planeta. Não é a cultura que salva, mas a construção de relações solidárias que só po-dem acontecer através da comunicação entre povos e pessoas contra o desânimo cínico vigente e a paralisia das imagens. Contra o mal-estar cotidiano, não são as ações piedosas que darão conta do recado, mas aquelas que têm interesse pela força de um pensamento atuante num cenário catastrófico como o nosso.

As representações elaboradas por grupos sociais “submetidos” pela lógica mercantilista passam por uma valorização das tradições culturais populares e modos de viver até obras de arte “refinadas”, abrangendo as representações pessoais (modo de vestir, objetos, gestos) e as visões de mundo indicativas de certo olhar para o fenômeno artístico e cultural.

A referência à cultura vem sendo cada vez mais comum, não só nos setores específicos que lidam com as artes, mas também nas áreas mais distintas da vida social. Por exemplo, a Igreja Católica criou, em 1982, o Conselho Pontifício de Cultura (Fé e Cultura). Vários projetos “sociais” incluem as atividades culturais como elemento importante no desenvolvimento de suas práticas. Artistas se mobilizam com suas artes para transformar o mundo, como por exemplo, a “Rede Mundial de Artistas em Aliança”.

A Unesco também vem percebendo o poder da cultura nas rela-ções locais e internacionais, tendo publicado uma obra importante in-titulada Nossa diversidade criadora (Cuéllar, 1997). Há também uma onda enorme de publicações e debates sobre o papel da cultura e da arte nas sociedades contemporâneas. Os movimentos sociais colocam questões sobre as relações entre cultura e barbárie, cultura e socieda-de, cultura e política, etc.

Já o olhar de alguns governos sobre as culturas e as artes tem tido o intuito de utilizá-las como instrumento político de eventos. Hoje,

Page 15: Cultura e literatura diálogos

15

tem-se avançado muito nas questões culturais, principalmente com as noções de “cultura viva” e “cultura de paz”. Há ainda aqueles que, num espectro iluminista, investem na cultura como instrumento de esclarecimento das massas. Por outro prisma, muitas empresas in-vestem nas artes para transformá-las num produto do mercado e, na seqüência, numa ferramenta de construção de marketing.

Ainda hoje o debate sobre cultura está marcado por uma visão economicista limitada pelo vetor “produtivo” da sociedade, isto é, a cultura estaria determinada de modo mecânico pelo econômico, mas como aponta Marshall Sahlins, não se pode esquecer que em algumas sociedades é o simbólico-cultural que estabelece as práticas econômicas da sociedade e não o inverso (Sahlins, 2003). Para esse autor, há grupos sociais em que a cultura se constitui em dimensão que ordena o espaço das vivências, e a arte faz parte da vida social não como uma dimensão, mas como um ordenador do social.

Há aqueles que consideram o município o lugar da “virtude” maior, isento das injunções de forças políticas, mas a ênfase no âm-bito local não significa que estejam só nessa instância os grandes problemas que rondam o planeta serão resolvidos, já que há um im-pacto muito forte do “estilo” econômico mundial sobre os ambientes locais, não se pode esquecer que a globalização democrática liberal leva ao povos colonizados, não só os benefícios mas também seus problemas (Klein, 2003).

A localidade, portanto, não é o lugar de resolução de todos os conflitos contemporâneos, mas é aí onde as pessoas vivem e enrai-zam suas memórias. Por exemplo, as mega-intervenções nas cidades (viadutos, vias expressas, aeroportos) impactam nos modos de vida de muita gente, fazendo com que se desloquem para regiões mais afastadas sem condições adequadas de infra-estrutura.

Num outro pólo, a cultura é vista com desconfiança pelos “do-nos do poder”. Sob os regimes militares, artistas, atores, poetas e grupos culturais se manifestaram publicamente, mostrando sua re-sistência e sua dinâmica. Tanto resistiram que ainda continuam suas lutas no cenário urbano, por exemplo, os movimentos de hip hop, de dança, teatro e outros grupamentos socioculturais.

estado geral da Cultura e da arte

Page 16: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos16

A reflexão sobre esse gesto comum, mas ao mesmo tempo complexo, tão necessária para nossa comunicação, que é a nossa linguagem cultural, é uma prática que não pode ser esquecida. O palavreado da mídia contamina todos os “poros do cotidiano”, dis-seminando um tipo de linguagem petrificada que se torna quase impossível despertar as massas “imersas de tal forma na sua posição apolítica consumista! E sacudi-las de seu “estado hipnótico” em re-lação ao consumo compulsivo (Zizek, 2003: 23).

Se a realidade se apresenta em sua forma bruta e sem agentes, deixando a descoberto as “vidas nuas” daqueles que não são admiti-dos como cidadãos (Agamben, 2002), contra isso manifestam-se as vozes que interagem no cenário social e cultural. Então, usar a lingua-gem da arte como um “ato político” (Zizek, 2003: 174) é o antídoto à contaminação da mídia nas expressões humanas. Esse ato político deve servir para causar outro impacto na surdez contemporânea.

Entre a guerra sem guerra e a paz perpétua do consumo, “reen-cantar o mundo” significa trazê-lo de novo para a dimensão do Real através de ações com as linguagens artísticas como cenários das so-ciabilidades sociais. Refazer o Real significa dar-lhe outras faces, não aquelas das desigualdades colocadas no mundo contemporâneo.

Amém.

Page 17: Cultura e literatura diálogos

17

O trabalho conceitual de cultura engloba uma enorme gama de fatores. Um dos modos que pode nos auxiliar a trabalhar com cultura é abor-dá-la através dos vetores que sustentam seus sentidos, isto é, linhas de força que impulsionam e fornecem bases a um fazer cultural que, junto com a arte, servem para estratégias mais amplas de luta simbólica.

As palavras cultura e arte têm a mesma raiz nas práticas de cuidar da terra. A palavra “arte” (do latim ars) tem a mesma origem da palavra “arar” a terra, assim como a palavra “cultura” (do latim cultus) traz a idéia de habitar e cultivar a terra, daí o termo colono também associar-se ao ato de cuidar de um território (Bosi, 1995: 11-13; Williams, 2006). Na longa história dessas palavras acontecem mudanças de sentido per-tinentes a cada época.

Em torno da idéia de cultura

O conceito de “cultura”, quando considerado no contexto amplo do desen-volvimento histórico, exerce uma forte pressão contra os termos limitados de todos os outros conceitos.(Raymond Williams)

eM torNo da idÉia de Cultura

Page 18: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos18

Durante a Idade Média, arte e cultura passam a ser consideradas atividades relacionadas a práticas eruditas principalmente da escrita e, depois da Renascença, as artes plásticas constituíram-se em cultivo exclusivo das elites.

Pesquisadores como Raymond Williams (1992), Michel de Certeau (1994) e Edgar Morin (1987) ampliaram o escopo dos es-tudos sobre a cultura, abrangendo os “modos de vida”, sem abando-nar as noções da escrita culta, e sua definição passa da produção à apropriação ou modos de usar. Traçaremos sumariamente algumas idéias-força em relação aos conceitos de cultura e a seguir posicio-naremos a cultura em perspectivas mais amplas.

Primeiramente, notamos que a Cultura já foi utilizada para legitimar a identidade de grupos oficiais, por exemplo, quando as marcas de uma cultura dominante se inscrevem no espaço físico e simbólico das cidades, que incluem desde nomes de ruas, monu-mentos, bandeiras, etc, instituídos pela ação do Estado.

Junto com a primeira tendência, houve uma articulação com a concepção de “Belas Artes” e “Belas Letras”, vindo esta desde o Iluminismo europeu que tentou organizar o mundo ocidental pela “escriturização” do mundo colonizado.

O fenômeno da cultura também se organizou como objeto de troca e venda, num mundo em que a mercadoria gera mais mercadoria e até o sonho virou peça mercantilizada. Esta é a forma por excelência neoli-beral de tratar a arte e as manifestações culturais que têm no excesso de informação na cidade e na mídia seu contraponto e complemento.

Num outro bloco, há um trabalho cultural de resistência de grupos e camadas expropriadas, como “reação” a processos mais amplos de imposição econômica, resistência considerada pelos “progressistas” como fator de atraso econômico. Essa concepção articula-se com a idéia de cultura como reinvenção do futuro, como “dimensão de projeto”. A própria expressão latina culturus/a traz a idéia de projeção para o futuro (Bosi, 1995: 16), e então co-necta-se a ação de provocação ao pensamento reflexivo e utópico. Nesse aspecto, a cultura projeta novos horizontes e aponta outros processos de recriação criativa interminável.

Page 19: Cultura e literatura diálogos

19

O ponto seguinte é o mais abrangente nas práticas contemporâne-as: é o da cultura de massa / indústria cultural / cultura popular. Nesse tópico é onde se expressam as contradições do fazer cultural. A divisão entre produção cultural (fatura sofisticada) e manifestação cultural fa-tura artesanal, vivências populares sem status de produto, aquilo que não atinge a “maioridade cultural” (Candido, 1999) é problemática, visto que as práticas culturais possuem raízes populares profundas e, portanto, essa divisão tem uma tonalidade artificial. (Bakhtin, 1992).

Para Marilena Chaui, a concepção de cultura popular, nos anos 1960/80, tinha um ponto de vista romântico, cultivando o sentimento de humanização das elites, visão esta ligada ao papel das vanguardas artísticas. Já no ponto de vista ilustrado, a razão vai ao povo para educar sua sensibilidade tosca, sendo este o papel das vanguardas po-líticas. Na perspectiva marxista, há luta de classes e, nesse conflito, a plebe é excluída (Chaui, 1986: 20 e 21).

Nos anos 1960, os Centros Populares de Cultura (CPC’s) tra-balharam com a idéia de que as transformações no Brasil só se dariam pela intervenção cultural de um projeto abrangente en-campado pelos intelectuais e artistas atuantes no sentido de levar o país a uma outra dimensão social que não fosse somente a da eco-nomia. (Ortiz, 2006). Alguns acreditam que o projeto de cultura nacional fracassou, porém o “naufrágio” dessa proposta, se alienou alguns, deu ânimo novo às gerações seguintes.

Alfredo Bosi divide as culturas esquematicamente em quatro partes: cultura universitária (acadêmicos) e cultura extra-universi-tária (criadores culturais), ambas pautadas e voltadas para a escrita; a indústria cultural (cultura de massa), voltada para o mercado de bens culturais; cultura popular, em geral vista como a prática não-letrada e atrasada (Bosi, 1995).

O autor aponta cruzamentos e interações entre as várias esferas da cultura. Assim como há uma intensa apropriação cultural pela cultura popular a partir da produção dos meios de comunicação de massa, pois a publicidade dissemina grande quantidade de imagens que são apropria-das pela população mais pobre, há também uma sofisticada reelaboração cultural nos projetos de grandes autores como nos casos de Homero,

eM torNo da idÉia de Cultura

Page 20: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos20

Dante, Shakespeare, Goethe, Rosa, Camões, Drummond, percebendo-se vasos comunicantes com práticas culturais dinâmicas e não estáticas.

Assim, a cultura contemporânea se reelabora no cruzamento das várias linguagens, de vários universos culturais, tendo como forma de composição a interculturalidade que pressupõe outras apropriações culturais operadas com o surgimento de “culturas híbridas” (Canclini, 1998). As interações entre mídia, cotidiano e cultura erudita causam um curto-circuito no campo das artes cotidianas (Certeau, 1994). O “homem comum” reinventa os materiais culturais de maneira ativa e não passiva, pois ele também manifesta interesse pela cultura e arte ainda que não faça parte do mundo de privilégios.

As relações de culturas de territórios distintos também aconte-cem em um mesmo espaço. Assim, a cultura brasileira é vista como uma cultura no plural: indígenas, negras, brasileiras, européias.

Vem se constatando cada vez mais uma desintegração e um efeito de dispersão conceitual e intelectual, pois no mundo pós-mo-derno ou plus-moderno, como assinala Bosi (1995: 358), há uma rarefação dos conceitos, incluindo o de cultura.

Por outro lado, a cultura se insere num campo maior de atuação hu-mana, já que, segundo Raymond Williams, “Todo projeto político é um projeto cultural”, como, por exemplo, o nacionalismo, assim também em outras esferas políticas, as instituições e formações culturais (Williams, 1992) que são os diversos grupos organizados no campo da cultura.

Nesse contexto, cabe assinalar que o diálogo entre culturas as-sume um grau maior de necessidade no sentido de desenvolver a interculturalidade como forma de cruzamentos, mais que produ-tivos, criativos. Isso já acontece em vários níveis: poder público e comunidades; arte e sociedade; entre as diversas artes; entre grupos geoculturais, etc (Coll, 2006). Como diz Michel de Certeau (1994): “É reencontrar a lei que, desde o surgimento da sexualidade, faz com que a gene da vida dependa de uma relação com o outro.”, já que, sem diálogo, não há criação cultural e artística, pois este “é o fundamento do pensamento criativo e da própria criação” (Bakhtin, 1992).

É preciso considerar os vários níveis de interculturalidade exis-tentes e as tensões presentes na relação entre culturas, em que a escuta

Page 21: Cultura e literatura diálogos

21

e a fala podem ser criativas na geração de outras realidades (Coll, 2006). E para construir essas relações cada um deve deixar o seu lugar para formar um espaço de cultura pública. É possível ter um outro mundo, inventando utopias não pensadas.

A educação e o desenvolvimento cultural são estimulados pelas novas tecnologias das artes. E nesse aspecto o ser humano não age pas-sivamente, ele transforma as mensagens. A experiência artístico-cultural ganha novos contornos como processo e trabalho que produz uma nova obra. Fazer artes como uma necessidade de se sentir vivo; nesse sentido, a vivência cultural é uma “experiência de vida” e se dá a partir de um território social da linguagem, englobando tanto o lugar próprio como o do outro, transformando-os em esfera da vida pública. É preciso trans-formar essa experiência em objeto de reflexão para que não se transfor-me em uma experiência “nua” que se dilui no vale-tudo pós-moderno.

Contra a razão cínica e a razão obscena que a todos nos envolve, a tarefa inadiável é a de desconectar o homem das amarras do consu-mo conspícuo, fazendo emergir a consciência política de humanida-de, não mais a política “institucionalizada”, mas a que crie um “estado de exceção” proposto por Benjamin (1985) em suas “Teses sobre o conceito de história” e estudado por Giorgio Agamben (2004).

eM torNo da idÉia de Cultura

Page 22: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos22

O texto-epígrafe de Carlos Drummond de Andrade realmente ante-cipa muito das discussões conceituais sobre o tema da Globalização e de suas marcas. Parafraseando Berthold Brecht, “questões de um leitor que vive e vê o que se passa ao derredor do mundo”: Quem fez a fábrica da coca-cola? Para que comer no MacDonalds? Por que fazer a logofagia, comendo as marcas? Quem fabrica o tênis nike?

A experiência de comer hambúguer prova que esse tipo de ali-mento causa graves problemas à saúde, mostra que a mundialização dessa gastronomia monocultural, com gosto padronizado, causa danos irreparáveis, não só ao organismo, mas também às culturas culinárias.

Esse episódio pode funcionar muito bem como imagem do mal-estar da globalização gastrocultural no sistema mcmundo. A diversidade de sabores que degustamos ao longo de nossa vida é fundamental para

Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório,Um nome... estranho. (...)Já não me convém o título de homem.Meu nome novo é coisa.Eu sou a coisa, coisamente.(Carlos Drummond de Andrade)

O cenário globalizado*

Page 23: Cultura e literatura diálogos

23

nosso estar bem e não só ao bem-estar no mundo. Há muitos interesses econômicos envolvidos na comercialização dessa comida rápida.

A “Era das Globalizações” levou rapidamente a uma “Era da Indeterminação” (Oliveira, 2007). Sabemos que o fenômeno da glo-balização não é novo enquanto processo econômico e cultural, tendo tido outros nomes como, por exemplo, o de colonização, pois a história mostra que os povos antigos expandiram seus reinos e seus modos de vida. A globalização opera junto com a cultura, e está articulada com a produção e a criação cultural, juntando os bens materiais e simbólicos.

A resistência feita pelos povos “conquistados”, mesmo não sen-do fenômeno visível é de grande importância para a sobrevivência cultural, ambiental e mesmo econômica de populações inteiras. As culturas de fora são reinterpretadas numa chave de resistência. Em grupo ou individualmente, os seres humanos reagem e questionam o tempo todo esse processo que desrespeita as diversas formas de vida, porque trabalha numa lógica produtivista e expansionista de um modelo pesadamente desumano.

É preciso lançar um olhar sobre a globalização que não seja de mão-única, pensando as apropriações feitas pelos “homens co-muns”, em relação a toda essa produção.

Sabemos que a globalização trabalha com estratégias de mer-cado, mas nem sempre seus “objetos” respondem de forma linear. Apostamos na criação e na invenção humana de fazer voltar seu potencial aos lugares instaurados por grupos e movimentos sociais de cultura (em sentido amplo).

Por outro lado, presenciamos ações mobilizadoras de grupos humanos em várias partes do planeta. Em que pese a “ingenuidade” dessas ações, elas compõem e propõem um cenário inovador e expec-tativas de mudança do atual estado de coisas. Essa antiglobalização no fundo pretende uma outra Globalização.

Hoje se fala em uma cultura global no contexto à qual as cul-turas locais deveriam ser “integradas” ou “incluídas” incondicio-nalmente, mas é importante pensar em termos de interação entre as diversas culturas, o termo é “interação” e não convivência “pa-cífica” equalizada pelo mercado.

o CeNário gloBaliZado

Page 24: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos24

As globalizações - social, econômica, política e cultural - estão presentes em todos os lugares e têm implicações muito importantes para se pensar os fazeres humanos nas diversas partes do planeta. Mas sabemos também que essas globalizações são uma herança de um tipo de modernidade que não realizou suas promessas porque estas não servem a todas as culturas e a todos os momentos. Também globaliza-se uma noção de história que se pretende universalizante e que busca atingir o “progresso” em todos os cantos do planeta.

Há uma mudança de padrões e de valores que tem afetado desde os pequenos núcleos até grandes conglomerados humanos, e isso traz outros “pareceres” sobre as questões da sobrevivência do ser humano, tanto material como espiritualmente. Os homens também recombi-nam seus valores culturais com os padrões produzidos pela mídia e por instituições em geral, formando uma “Terceira Cultura” ou, como quer Néstor García Canclini (1998), formando uma “cultura híbrida”. E até pelo uso de “sucatas” industriais para seus fazeres e objetivos. Mas isso também não é novo na história moderna.

As fronteiras e as culturas limitadas pelos Estados nacionais se en-contram em xeque. É preciso pensar a diversidade cultural nos termos das trocas culturais entre pessoas e grupos que têm se dado informal-mente e também em lugares organizados, como Encontros, Seminários, Cursos e outras atividades culturais. Isso vem se dando com muita in-tensidade no Brasil e exterior, eventos nos quais tem-se colocado a im-portância de se fortalecer o contato, o intercâmbio e as trocas das mais diferentes tendências da criação e da produção cultural. Por exemplo, na década de 1990, houve vários “Encontros Intermunicipais de Cultura” (EICs), organizados pelo Fórum Intermunicipal de Cultura. Nesses en-contros debatiam-se questões culturais que envolviam atores sociais e culturais tanto do poder público como da sociedade civil (movimentos sociais de cultura, artistas, grupos culturais etc).

Constata-se nesses encontros que há muito que ser feito, mas que no Brasil grupos e movimentos sociais de cultura já estão “fazendo falar os direitos culturais”. Isto é, já não há só “palavras de ordem” ou discursos da ordem, mas operações culturais que têm mobilizado milhares de pessoas para a discussão cultural e para a manifestação das “culturas livres”.

Page 25: Cultura e literatura diálogos

25

Momentos de encontro com o humano-cultural, em que as ex-periências e as vivências de pessoas e grupos buscam espaços sociais e públicos. Queremos é a grande arte para todos; como diz Pessanha, “nós queremos a grande música, nós queremos as delícias da huma-nidade, a grande arte, ouvir a bela música, as coisas maiores que a hu-manidade fez” (Revista Pólis, 1998), e não o lixo cultural distribuído pela mídia, isto é, o que há de pior nas práticas sociais.

Os fluxos culturais são fenômenos ousados do ponto de vista das trocas e são necessários para o melhoramento da crítica a um mundo pautado pela administração dos “andróides” ou pela manipulação das ações humanas em seus diversos campos. A intercomunicação cultural que estes fluxos proporcionam pode ser um acúmulo para efeito de re-lações interculturais, mas também podem trazer consigo a globalização das “migalhas culturais”, por exemplo, do lixo do cinema americano.

Esses movimentos são importantes para a discussão, com os mais variados atores sociais e culturais, de estratégias de ação para se re-fazer o percurso das diversas culturas existentes no Brasil e no mun-do. A diversidade cultural não deve se pautar pela “tolerância” liberal do novo, mas constitui-se em cenário de tensões do estar no mundo hoje, e não como uma ação de inércia sociocultural.

Nota* Texto elaborado por ocasião do III Encontro Intermunicipal de Cultura, “Globalização e diversidade cultural” (Brasília, 1997).

o CeNário gloBaliZado

Page 26: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos26

Vivemos agora na “Idade Mídia”, com os meios de comunicação cons-tituindo-se em ordenadores das práticas culturais. Corações e mentes estão povoados por imagens e sons inoculados pela televisão. Para se compreender as atuais realidades sensíveis é preciso atentar para os imaginários urbanos produzidos pelas tecnologias.

Estamos inseridos num momento histórico em que a cultu-ra milenar desembocou numa crise sem precedentes, num beco sem saída. Com raízes no Renascimento e no Iluminismo e, indo mais longe, no pensamento helênico e helenístico, o projeto cog-

Não [queremos] simplesmente a produção em série daquilo que simplesmente alimente grandes vendas, os hits, as faixas de sucesso, aquilo que simplesmente é o consumo, que eu quero porque todo mundo está pedindo e eu simplesmente sou o eco de um rebanho. Nós merecemos não ser tratados como rebanho. Não merecemos e não queremos ser massa, porque esse é um conceito fascista. (José Américo Mota Pessanha)

As crises contemporâneas e o papel da mídia*

Page 27: Cultura e literatura diálogos

27

nitivo da modernidade pretende a universalidade: ampliar os di-reitos, ampliar a cidadania cultural, ampliar a educação, enfim, pretende “iluminar” o mundo com as conquistas da humanidade do Ocidente. Essa pretensão de globalidade esbarra nas culturas locais, mas nunca é demais lembrar: o que é bom para europeus ou americanos, nem sempre é bom para os “outros” povos.

A crise paradigmática atual da “Civilização Ocidental” se espalha pelo mundo, e apresenta alguns pontos cruciais para reflexão. Essa crise sem precedentes em escala mundial faz pensar sobre as gran-des transformações na cultura planetária; as devastações ecológicas - mental, ambiental e social (Guattari, s/d) levam à desagregação social e ao solapamento de valores antes enraizados.

Os deslocamentos migratórios de grandes ondas humanas, não só dentro de seus próprios países mas generalizados, propiciam uma interpenetração cultural que leva consigo inúmeros conflitos relacio-nados à sobrevivência, à política e à cultura dentro de um mesmo território: o racismo encontra nesses espaços um lugar fértil para seu crescimento, assim como as ideologias totalitárias.

O velho capital continua manco, tentando com suas “fórmulas mágicas” resolver os estragos causados pelo próprio modelo econô-mico. A nova ordem mundial já nasceu velha. Junta-se a isso que o Welfare State se transformou num “Warfare” State, cada vez mais so-lapando as políticas sociais. Como diz Francisco de Oliveira (2000: 78), o estado atual de coisas promove a “anulação da fala”, fazendo da ação política um “zero à esquerda”.

As grandes narrativas tradicionais e políticas passam por um período de crise profunda, já que nenhuma pode responder aos di-lemas atuais da humanidade. Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, Liberalismo, Comunismo “Real” e Capitalismo, são narrativas que estão sendo repensadas em seus fundamentos e práticas. Por exem-plo, critica-se o fundamentalismo religioso oriental, mas não se pode esquecer que é o Fundamentalismo de Mercado, naturalizado como verdade, que promove essa crítica “cultural”.

No entanto, essa “encrenca” global se encaminha para um ponto até agora visto como “indeterminado”: as soluções apresen-

as Crises CoNteMPorÂNeas e o PaPel da MÍdia

Page 28: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos28

tadas não podem ser globais e nem localizadas, e também não se expressam mais pelo jargão “Pensar global e agir local” o qual já não produz mais efeito, pois virou só mais uma fórmula.

Há uma globalização cultural disseminada pelos meios de comu-nicação principalmente pelas mídias eletrônicas audiovisuais. A ima-gem hoje é um filão que está sendo explorado pelo Capital não só por-que traz lucros, mas junto com isso a “dominação cultural”. Por isso a França e a Comunidade Européia não aceitaram que se incluísse nos acordos comerciais do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) o item referente ao Audiovisual, pois desse modo Hollywood iria am-pliar sua influência na Europa e no mundo.

Eugênio Bucci (2008:34) afirma “... o que não aparece na TV não acontece de fato”, frase que resume muito de nossa condição midiática contemporânea, pois qualquer “ação provocadora” assi-milada pela TV perde a sua carga revolucionária.

A mídia, dentro desse contexto de crise planetária, necessita de uma reavaliação profunda e radical. Sabe-se muito bem que as imagens jogam um papel fundamental na implantação de modelos econômicos sobre territórios entendidos pelos “conquistadores” de imagens como tabula rasa. Observe-se que a palavra Mídia tem um curioso parentesco sonoro com Midas, o deus que transformava tudo em ouro. Antes tempo era dinheiro, hoje a imagem faz dinheiro.

A mídia se constitui em agente da maior importância para a dis-seminação de cultura e que, democratizada, pode vir a ser um grande fator de recomposição e de expressão de culturas, valores e estéticas locais. O caso da Índia em relação a este aspecto, é exemplar. Lá a produção visual é amplamente disseminada, o que faz com que os cidadãos produzam seus próprios filmes e imagens. A cultura dos meios de comunicação de massa, para que reflita a cultura local, deve ser menos massa e mais gente. Então as mudanças devem levar ao entrelaçamento das culturas humanas, abrindo possibilidades de transformação cultural através do uso radicalmente democrático dos meios de criação e produção de imagens e sons.

A televisão no Brasil pode exercer funções básicas para a di-namização cultural local. É preciso reforçar a ação dos Fóruns de

Page 29: Cultura e literatura diálogos

29

Democratização da Comunicação que tanto lutam para a elaboração de uma “lei da informação democrática”. Este projeto diz respeito exa-tamente à democratização da mídia no Brasil. Também é necessário pensar na socialização das novas mídias digitais que são elementos importantes na produção e divulgação de culturas.

Há a história de uma aldeia africana que fala de um vendedor que pretendia comercializar a TV naquele local e a recusa dos moradores que já tinham o “narrador” da tribo que os conheciam, e a televisão não os podia conhecer. Essa história nos indica que deve haver um esforço para que a mídia veicule as falas dos “narradores locais” - esse seria um bom sinal de democracia cultural: começar por aí pode levar a uma democracia radical no Brasil.

O que está em jogo agora não é só ideologia partidária, que-remos pão, palavras, imagens, poesia, enfim, queremos expressar a nossa vida cultural tanto no nível pessoal como no coletivo, sem as amarras ideológicas do mercado e do partido, já que essas dimen-sões ideológicas não devem ser o único arcabouço que explique e crie realidades de consumo. Enfim, é preciso reavaliar a dimensão da produção cultural nos contextos “sensíveis” de sua criação.

No Brasil, para reatar os laços da universalidade e da cultura local, precisamos passar por uma refundação das práticas sociais ligadas aos meios de comunicação de massa, dando a emissoras de rádio e TV um caráter democrático, mas também operando com comunicação comu-nitária que contemple os desejos e anseios das populações apartadas do campo cultural. Um exemplo triste aconteceu nos anos 1990, num bairro de Guarulhos chamado “Cidade Soberana” onde havia uma rá-dio comunitária numa pequena igreja. Essa emissora foi desativada por motivos desconhecidos. Agora um grupo de jovens “artivistas” está operando com projetos de comunicação popular na região.

Uma palavra sobre a questão da relação da mídia com a socie-dade de consumo, em que tudo se torna objeto de desejo da visão e as imagens se transformam em “mercadoria do olhar” (Eugênio Bucci, 2004). Hoje não são consumidos somente alimentos, objetos, coisas, mas também linguagens, símbolos, cultura, e há uma necessidade de ousar e dizer não ao rebaixamento cultural.

as Crises CoNteMPorÂNeas e o PaPel da MÍdia

Page 30: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos30

Mas não é a forma neoliberal que faz falar, sendo com isso tão autoritária como os totalitarismos do passado? Não seria o estilo ne-oliberal a forma fundamentalista por excelência? (Zizek, 2003). Na falta de regulação do modelo, a receita que nos é dada não é a do self made man ou “faça você mesmo”? A criatividade atual não seria orientada para as finalidades da venda? Já está constatado que cada momento da história tem inventado sua própria criatividade: esse pa-rece ser o momento que usa a inventividade como atividade voltada para o mercado, a única coisa sólida que existe no ar. Em tempos de “modernidade líquida”, tudo é hiperliquidificado.

Enfim, a linguagem uniformizante da mídia trucida as culturas pessoais e as criatividades coletivas, impondo padrões de consumo. A televisão amplifica fatos, dando-lhes a impressão de onipresença na sociedade. A linguagem midiática exige que falemos e ajamos de modo “equalizado”. Nada de resistências ou inconformismos.

O caminho deve estar aplainado para o “carro capital” passar, de preferência sem sinal fechado, sem controle social e sem nenhu-ma reclamação. Nossa “era dos extremos” está sendo marcada pela violência econômica, “o horror econômico”, nacionalismos fanáti-cos, e pelo cinismo individualista. Enfim, em época de turbocapita-lismo, o estado do mundo ainda não é favorável à arte e à cultura.

Nota* Este texto teve inspiração nas discussões com Hamilton Faria e com outros co-legas do Instituto Pólis.

Page 31: Cultura e literatura diálogos

31

A cultura é o ambiente do cidadão. Entende-se aqui cultura como os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores e simbólicos, as tradições e as crenças, incluindo-se aí a cultura “culta”. Ela é o que dá ao homem a capacidade de refletir sobre si mesmo, sobre o grupo do qual faz parte bem como sobre outros grupos, atribuindo dimensão ética aos indivíduos. Através dela efe-tuamos as trocas simbólicas e políticas.

Apesar de se constituir em um conjunto específico de valores de um grupo ou de um povo, a cultura fornece possibilidades de abertura para outros grupos num diálogo que propicia interações sociais. A cultura, como processo de criação e apropriação, propi-cia a “respiração” e a “conspiração” coletiva.

Conforme a “Declaração do México” (1986), “a cultura é o fundamento necessário para o desenvolvimento autêntico”. Hoje se

Nos dias de hoje tornou-se evidente o colapso das teorias de desenvolvi-mento apoiadas exclusivamente nos indicadores e resultados econômicos. O moderno pensamento deve ser pensado imerso num cenário complexo onde o desenvolvimento cultural ganhe sentido. (Hamilton Faria)

Cultura e desenvolvimento*

Cultura e deseNVolViMeNto

Page 32: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos32

busca uma qualidade de vida também cultural, pois a cultura é rele-vante na interação dos indivíduos com as comunidades. O desenvol-vimento cultural traz consigo a dimensão qualitativa da vida social e econômica, possibilitando ao ser humano a capacidade de aprender comunicar as suas experiências.

O desenvolvimento econômico tem se mostrado “manco” em vários lugares do mundo: a experiência humana se expressa numa dimensão que vai além da produção material, experiência esta que também se constitui na materialidade da vida. Faz-se necessário pen-sar noutro ritmo e numa nova dinâmica de vida social que possa pro-porcionar oportunidades de realização efetiva dos sentidos sociais, retomando o significado profundo do desenvolvimento ao propor no-vos modelos de vida em que a cultura seja o “ambiente do cidadão”.

Sabe-se que a “mundialização da economia” tem um movi-mento ambíguo. Por um lado aponta-se para as “fraturas sociais” e as conseqüentes produções de exclusão. Por outro, as apropriações coletivas e individuais colocam possibilidades de alguns avanços nas áreas de comunicação (Internet,TV, rádio...). No entanto, as “fraturas” são mais fortes do que os benefícios, pois no quadro das exclusões, aparecem as rupturas, as divisões, marginalizações, em suma, as grandes rachaduras sociais.

Na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) consta que “toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, a gozar das artes e a participar do progresso científico e dos benefícios que dele resultem”. Sabe-se, no entanto, que a apropriação e fruição das produções e criações culturais são feitas por uma parcela muito pequena da população.

No Brasil, tem havido cada vez mais uma criação cultural que ainda não foi medida. As comunidades estão produzindo culturas que não são reconhecidas pela imprensa e pela sociedade, ou que sofrem, ainda, enorme preconceito sociocultural por parte da visão dominante de cultura.

Em várias localidades, a cultura vem alcançando um lugar de destaque no plano de desenvolvimento, apesar de faltar a percep-

Page 33: Cultura e literatura diálogos

33

ção de que a cultura é um cenário mais amplo onde atuam as várias áreas e, por isso, a dificuldade de colocá-la em um lugar específico dentro da Ação Municipal.

Há, no entanto, alguns municípios que estão trabalhando com a questão da cultura como prioridade de governo e entendendo que ela é constitutiva das práticas sociais, tanto da sociedade civil como do poder público, deixando de se constituir numa área isolada e sem verba. Alguns municípios vêm tentando implementar uma gestão com eixos temáticos.

As práticas culturais provocam mudanças de valores dos cida-dãos, deslocando ou apontando o clientelismo, fisiologismo, nepo-tismo e patrimonialismo. Através da cultura são valorizadas práticas que busquem a ecologia humana, optando por relações de solidarie-dade, de cooperação, que priorizem e estimulem o debate, a gestão comum de espaços e orçamentos públicos, conferências, fóruns aber-tos à população etc.

As ações locais têm trabalhado com a idéia de desenvolvimento local que incorpora a cultura integrada às outras ações dos gover-nos e das sociedades civis, mostrando a importância dos Indicadores Culturais na consideração dos Indicadores Sociais e de Impacto Ambiental. Esses Indicadores Culturais podem desenhar um outro perfil dos habitantes detectando as “fraturas” sociais numa comuni-dade e apontando para soluções que recoloquem tradições perdidas em atuação conjunta com instrumentos da modernidade.

Assim, com os Relatórios de Impactos Sociais e Ambientais pode-se pensar nos Relatórios de Impactos Culturais numa determinada comunidade considerando os efeitos que certas atividades provocam nas culturas locais, assim como as influências de determinadas ati-vidades culturais sobre a vida social de uma região. Veja-se o caso de pesquisas feitas em vários lugares, por exemplo, o Diagnóstico Cultural da Cidade de Belo Horizonte é a “ponta do iceberg” no que se refere às pesquisas no campo da cultura.

A ação cultural local também aponta para a possibilidade de se estabelecerem programas de emprego e renda, tanto nos mo-

Cultura e deseNVolViMeNto

Page 34: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos34

dos tradicionais como em modos inovadores, inclusive abrindo caminhos para dar novos sentidos ao trabalho como uma ação voltada para o desenvolvimento pessoal e comunitário, servindo como estratégia para fortalecer e revigorar os laços de solidarie-dade dos mais “fracos”, num quadro de ação efetiva voltada para a cidadania local e global. Dar novos sentidos ao trabalho pode ser um caminho para colocar as ações culturais não só voltadas para as “razões de mercado”, mas contemplando outras razões (por exemplo, sociais, comunitárias, vivenciais etc.).

Já temos visto vários sinais de mudanças no cenário cultural dos municípios. Por exemplo, são eleitos candidatos a vereador en-gajados na questão da memória cultural das comunidades, assim como candidatos a prefeito eleitos com o apoio de movimentos sociais de cultura. Ainda que sejam casos esporádicos, eles sinali-zam para uma maior presença da cultura no campo da política e das políticas sociais.

O Brasil já possui uma ação ampla em relação à cultura, mas ainda há muitos movimentos sociais que não encontram espaço de manifestação de suas práticas culturais. Além disso, o poder públi-co muitas vezes está pautado por solicitações de “personalidades” que têm mais poder de influir no espaço público, enquanto os ci-dadãos comuns e movimentos sociais de cultura são considerados como de “segunda categoria”, isto é, infelizmente, continua valendo na vida social brasileira a expressão “Alguns são mais iguais do que outros”. O desenvolvimento de uma localidade deve estar pautado por ações que visem uma mudança voltada não só para a demo-cratização, mas também para a democracia cultural.

O direito ao desenvolvimento culturalA cultura deve ser entendida também como um direito do

cidadão a criar, experimentar, produzir, superar os conflitos e contribuir para o desenvolvimento humano das cidades (Chaui, Informativo do IEA/USP, 1995).

No sentido de garantir esse direito, os governos devem traba-lhar para implementar ações que criem espaço para a representa-

Page 35: Cultura e literatura diálogos

35

ção e a participação no fazer cultural e artístico, democratizando a cultura e operando com a democracia cultural, como já vem ocor-rendo em várias cidades no Brasil. Esse é um momento muito rico das culturas locais, apesar da pasteurização imposta pela globaliza-ção, com experiências, interações, novos olhares sobre a realidade social e o desenvolvimento das capacidades criadoras.

Para garantir o acesso ao fazer cultural, governos procuram dar à população das periferias o acesso a diversas linguagens cul-turais, permitindo que, através delas, se exercitem expressões de cidadania. Práticas culturais acontecem em centros comunitários e em espaços não-institucionais, fora dos “templos da cultura” (te-atros, cinemas, centros culturais). É nesse sentido que se procura servir à população com a melhor qualidade e, para isso, deve-se propiciar uma infra-estrutura cultural mínima que possa ser am-pliada para vários lugares da cidade.

Investir no Desenvolvimento Cultural do município é passar a perceber a cultura e as artes como elementos constitutivos da vida e não mero adorno da paisagem intocada da cidade. Levar música às praças, mais do que dar nova opção de diversão e ampliar o repertó-rio cultural da população, muda a vocação dos espaços, faz com que a cidade reestabeleça momentos de socialização através de contatos que estão se perdendo num mundo cada vez mais sem rosto.

Além do direito ao acesso à cultura, as políticas públicas de-vem se empenhar em possibilitar o direito à formação e à produção cultural da população, através de cursos, oficinas e experimentação com as mais variadas linguagens artísticas, procurando desenvol-ver uma ação cultural mais prolongada bem como buscando o re-finamento dos projetos de diversos grupos sociais.

A isso deve juntar-se o direito à participação nas ações e de-cisões culturais. Os espaços devem ser readequados para o uso da população e dos fazedores culturais como lugares de pesquisa e reflexão sobre as artes e as inovações tecnológicas contemporâne-as, dentro de um processo participativo em que as comunidades culturais sejam parceiras ativas e não meras observadoras da ges-tão pública de cultura.

Cultura e deseNVolViMeNto

Page 36: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos36

Abrem-se as possibilidades para o trabalho de ação cultural com novos grupos que se organizam na cidade (punk, hip hop, etc.), em uma dinâmica de escuta mútua, garantindo voz a todos os setores e artistas.

Na lista de direitos, deve ser agregado como fundamental o di-reito à memória. (Meneses in: Silva, 1999). Para garantir esse direito trabalha-se para a preservação da memória viva das comunidades de imigrantes, migrantes e outros grupos socioculturais. É necessário am-pliar os direitos culturais, abrindo espaços e incluindo esses direitos como vertentes importantes no imaginário social e cultural da cidade.

É nessa direção que a municipalidade precisa se empenhar, jun-tamente com a população, na melhoria da qualidade de vida cultural e na ampliação dos direitos humanos e culturais. Como afirma José Américo Motta Pessanha: “Nós queremos ser cidadãos com as nossas diferenças, com os nossos gostos diferenciados, mas altamente apu-rados, altamente aprofundados. Se gostamos de música popular, nós temos o direito de seguir na música popular, para usufruí-la naquilo que ela tem de melhor, naquilo que ela tem de maior, não no puro, barato e habitual consumismo.” (Revista Pólis, 1997).

A função da cultura no desenvolvimentoAqui propomos algumas indicações sobre ações do campo da

cultura, principalmente enfocando aquelas referentes às práticas de governos. Acontece que as ações governamentais trabalham pouco com as questões culturais. Com raras exceções, os governos em suas diversas esferas e órgãos colocam a cultura como assunto a ser tratado. Para o setor da cultura é destinado um percentual muito pequeno do orçamento geral que muitas vezes ainda é manipulado para favorecer alguns “ilustres” parlamentares que engordam suas “ilhas de riqueza” num país à míngua. A cultura, quando rende dividendos de imagem, é colocada na vitrine de lojas e administrações que utilizam artistas e poetas para seus objetivos.

Um governo socialmente responsável seria aquele que trabalha com a idéia de cultura como o elemento que perpassa todas as áreas, sem exceção, se constituindo no elemento estruturante das relações humanas e “oferecendo um senso diferente de crescimento e desen-

Page 37: Cultura e literatura diálogos

37

volvimento humanos” (Williams, 1979: 20). É evidente que há várias faces expressivas da cultura, incluindo a utilização da tecnologia para ampliar o raio de alcance de uma obra de arte, mas isso não invalida o fato de que a recepção da arte se dá pelo olhar local.

Este é um tema importante que deve ser levado em consideração por um governo democrático que procure desenvolver uma políti-ca cultural que contemple o fazer e as diversas expressões culturais regionais, considerando também o aspecto cultural nos projetos de desenvolvimento. Em geral, os especialistas do campo do desenvol-vimento internacional entendem que para melhorar o bem-estar de uma determinada população basta a aplicação de algumas técnicas econômicas universais (Kleyermeyer, 1992).

Aparentemente estamos saindo dessa “era da inocência”, na qual as pessoas achavam que a técnica puramente aplicada, sem considerações culturais e éticas, resolveria os problemas sociais da humanidade. Os te-óricos do desenvolvimento estão percebendo que a cultura não é o fator que impede o progresso, mas é este que solapa as expressões culturais. Para alguns especialistas, mesmo alguns marxistas, hoje a cultura tem conotações negativas, explicando os fracassos econômicos regionais.

Os colonizadores usaram sua racionalidade cartesiana para sub-meter os índios das Américas e, com um argumento religioso, im-punham suas aspirações econômicas. As culturas indígenas foram apagadas, sobrevivendo em nomes de bairros e ruas em tupi-guarani. Ainda hoje no Brasil se justifica o massacre de índios e de populações rurais devido ao fato de ocuparem áreas ricas do país.

Mas seria ingenuidade procurar uma “idade de ouro da Cultura”, já que ela é dinâmica e adquire funções específicas con-forme o tempo e a região. Todavia, dizer que a cultura está em constante mudança não significa que uma cultura pode ser troca-da por outra automaticamente. O desenvolvimento também é um processo com muitas variações e deve ser sustentável em relação às culturas locais, incluindo as rurais, de pequenas cidades, e também a dos grandes centros, a chamada cultura urbana.

Como em outros tempos, a economia e a política andam desco-ladas das culturas. Assim, as políticas beneficiam a poucos e empo-

Cultura e deseNVolViMeNto

Page 38: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos38

brecem muitos, levando o país a ampliar suas desigualdades sociais. É preciso pensar noutras formas de desenvolver as comunidades, en-tendendo esta ação como uma questão cultural que leve em conta as tradições e as formas de vida de um povo.

A cultura tem sido vista como um “fator externo” ao desenvol-vimento. A modernização traz consigo uma espécie de “limpeza cul-tural”, higienizando com a máquina o campo e a cidade, quebrando a espiritualidade, debilitando os laços de solidariedade, desarraigando o indivíduo das sociabilidades de seu meio.

As regiões que não participam da conexão ao sistema mundial de produção e consumo de mercadorias são consideradas atrasa-das e subdesenvolvidas e, portanto, não teriam nada a “contribuir” no desenvolvimento capitalista, e realmente não têm, pois traba-lham em outra lógica simbólico-cultural. Por exemplo, o Exército Zapatista no México tem suas bases “residuais” culturais que fo-ram esquecidas pelo governo oficial. Um guerrilheiro disse: “nós fomos esquecidos pelo governo mexicano”. Os índios mexicanos “buscam pelas armas o respeito à sua dignidade e cultura”, pois há uma discriminação constante contra a região de Chiapas.

Estes são alguns exemplos da perversidade do desenvolvimen-to sem a base cultural de uma comunidade. Como afirma Hamilton Faria: “O Desenvolvimento Cultural deve partir do reconhecimen-to deste cenário onde atores concretos se movimentam, constroem espaços públicos, mudam valores e o ‘olhar’ que se tem sobre a vida em sociedade.” (Faria, 1999: 21).

Não se trata aqui de propor um desenvolvimento social “adap-tado” às regiões, mas de transformar substancialmente a natureza do desenvolvimento global vigente.

Nota* Texto escrito a partir de debates sobre “desenvolvimento e cultura” nos anos 1990, no Instituto Pólis. Agradeço a Hamilton Faria pelas sugestões para este texto.

Page 39: Cultura e literatura diálogos

39

Vivemos mais do que uma época de rupturas, presenciamos uma rup-tura de épocas (Kurz, 1992), uma rachadura no edifício da moderni-dade. Momento de desterritorialização e desenraizamento humano com grandes deslocamentos migratórios.

A experiência da vida cotidiana no mundo atual é muito dinâmi-ca. Se, por um lado, há um confinamento cultural, por outro há uma gama enorme de experiências nas cidades, nas ruas, praças, espaços abertos, “vazios”, e também nos lugares fechados. Tem havido, porém, um retraimento do ser humano (Sennett, 1988), perdendo os espaços públicos pelas máquinas e pelas tecnologias do mundo industrial.

A construção da cultura pública urbana

Nós temos que sair da caverna algum dia. Nós temos que saber que as som-bras que estamos contemplando no fundo da caverna são sombras. Enquanto nós não soubermos que são sombras, nós vamos nos deliciar com elas, se elas nos distraem e nos entorpecem. (...) Nós merecemos uma outra coisa. ( José Américo Motta Pessanha)

a CoNstruÇÃo da Cultura PÚBliCa urBaNa

Page 40: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos40

As categorias de trabalho estão sendo constantemente questiona-das. Não se dá mais importância à experiência adquirida no exercício de uma função; a transmissão de uma bagagem cultural já não cum-pre mais papel de continuidade numa comunidade (Sennett, 2000). Os paradigmas, as relações e os modos de trabalho se transformam, apresentando outras possibilidades de ação humana. As referências das rotinas de encontros com outros trabalhadores e suas sociabilidades diárias são “quebradas”, sendo colocadas no lugar relações “flutuantes”: muda-se de emprego e de amigos como se muda de camisa. Ainda aí as pessoas refazem suas vidas, reconstruindo seus papéis tradicionais de pais, de irmãos, de profissionais. Enfim, os modos de organização do trabalho são reconstituídos pelos trabalhadores num mundo em que os “sentidos do trabalho” mudam constantemente (Antunes, 1999).

Nesse contexto, a cultura também ganha novas significações. Os trabalhadores da cultura e os “cidadãos comuns” também estão inseridos nesse processo acelerado de modificação social. Pensa-se, hoje, no desenvolvimento da economia da cultura em vários níveis: há a economia do saber, economia do lazer e do tempo livre que, sabe-se, não é tão livre assim. Isto é, entende-se hoje que o fazer cul-tural se configura como economia das relações sociais, da produção artística, da construção de projetos, e da elaboração intelectual, etc, se constituindo como política econômica dos símbolos. As empresas investem enormes quantias na construção da imagem para emplacar seus produtos, colocando a máquina do imaginário como desbrava-dor dos caminhos ásperos das realidades.

Outras apropriações culturais são operadas com o surgimento de “culturas híbridas” (Canclini, 1998): mídia, cotidiano e cultura erudita operam um curto-circuito no campo das artes do fazer co-tidiano. A formação/educação dos sentidos e o desenvolvimento cultural e humano são estimulados por novas tecnologias culturais, mas o ser humano não age passivamente, pois transforma as men-sagens de acordo com suas necessidades materiais e simbólicas. A experiência artístico-cultural ganha novos contornos como proces-so e como trabalho que produz uma obra. O fazer artístico se torna um modo e uma necessidade de se sentir vivo e, como vivência

Page 41: Cultura e literatura diálogos

41

cultural, é uma “experiência de vida” que se dá a partir de um terri-tório social da linguagem, englobando tanto o lugar próprio como o do outro, transformando-se em esfera da vida pública.

Atores socioculturais na esfera pública de cultura: sociedade e governosNota-se uma efervescência cultural nas cidades junto com uma

“ebulição clandestina”. Grupos e artistas estabelecidos, sindicatos, associações, entidades, produtores e fazedores de cultura atuam nas cidades de forma vigorosa, mostrando e desenvolvendo suas práti-cas de modo entusiasmado. De meros receptores de ações do Estado, tornam-se agentes culturais com voz própria e ganham autonomia das prefeituras. Há também uma mudança de perfil das gerações. O diálogo com o poder público se coloca na base de projetos e ações in-dependentes e não de demandas de balcões. Comunidades culturais, produtores sociais que atuam nas diversas linguagens artísticas colo-cam em cena seus propósitos e contradições com os governos locais. Mas também aquelas vozes “desorganizadas” se colocam no espaço público, num sinal de que a produção cultural pode ser exercida por todas as pessoas (Williams, 1992).

Há também os chamados “grupos emergentes”, isto é, novos atores culturais que produzem culturas urbanas, nas diversas áreas, em geral, considerados informais ou “anônimos”. Esse núcleos são heterogêneos, formados de maneira diferente. Por exemplo, os movimentos de hip hop (rap, grafite, break/street dance), rock, punks, sertanejos/caipiras que se organizam por redes interpessoais, crews e grupos para promo-ver ações e pressionar o poder público, revelando também as agruras de jovens e grupos “isolados” nos grandes centros urbanos. Alguns desses grupos, comumente, são vistos como desocupados e em conflitos entre si e com a lei, como por exemplo, grafiteiros x pichadores.

A experiência cultural desses novos atores é diferente do que vi-nha acontecendo e, por isso, é preciso uma nova mirada para poder relacionar as partes com o todo, isto é, ver, ao mesmo tempo, as ner-vuras das folhas das árvores e a floresta (Bosi, 2003).

a CoNstruÇÃo da Cultura PÚBliCa urBaNa

Page 42: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos42

O governo local tem por função clássica atender às demandas, colocando-se no cruzamento de injunções políticas locais. Hoje, os órgãos públicos de cultura estão se repensando em relação à questão cultural, notando a importância da cultura nos contextos urbanos, mas revendo seus projetos e suas funções culturais, buscando uma relação de parceria através de conversas com os diversos atores sociais da cidade. Por outro lado, os grupos também vislumbram a possibi-lidade de sobreviver sem as verbas públicas.

A política cultural nas cidades vem percebendo que novas ações culturais surgem e não querem passar mais pelo crivo da “gestão” de governos. As funções dos órgãos públicos devem ser de mediação (e não intervenção) através de agentes culturais, disponibilizando ser-vidores para as comunidades locais.

Algumas linhas podem ser desenvolvidas pelas Secretarias de Cultura:

1. Abrir espaços públicos para a ocupação pública dos espa-ços não–institucionais da cidade (ruas, muros, estádios, fábricas e frigoríficos abandonados, etc) que podem ser usados por artistas de diversas tendências.

2. Pesquisar as culturas da cidade, levantando indicadores culturais locais: revelação do inusitado, inesperado, através de Censos Culturais.

3. Fomentar a produção cultural local através de Fundos de Cultura. Já há muitas experiências no Brasil desse tipo de financia-mento, que investe nos projetos culturais a fundo perdido, como vem acontecendo com os Fundos de Cultura de várias cidades (Santo André, Guarulhos) e com o Fundo Nacional de Cultura.

4. Abrir diálogo com grupos emergentes de “arte anônima”, que não tem o sentido negativo de algo que não pertence a nin-guém, mas que pertence a grupos não reconhecidos e não con-sagrados. Altair Moreira, durante sua gestão cultural em Santo André, incentivou este tipo de ação cultural.

Quanto à relação governo e sociedade, algumas modalidades de mediação/interação entre as partes são desenvolvidas.

Uma delas é a dirigista que, como o nome já diz, dirige a produção e o fazer cultural da cidade do ponto de vista oficial. Se, por um lado,

Page 43: Cultura e literatura diálogos

43

a cultura é vista como belas artes, por outro, usa a cultura de massa (rodeios, axé, sertanejos), reempacotando estas práticas para faturar a visibilidade tão almejada pelos governantes. Também são encomen-dados eventos prét-à-porter, fazendo escolhas repetitivas de manifes-tações culturais digeríveis pela população. Esta modalidade é a mais tradicional, e se pauta por uma visão estreita do que seja cultura.

Uma outra forma de relação é a receptiva que atende de-mandas das diversas áreas artístico-culturais: músicos, artistas plásticos, grafiteiros, atores, etc. Aí se incluem “som, palco e luz” e “muro e tinta”. Nesta modalidade de interação pode-se tentar uma transformação das demandas no sentido de dar novos sentidos para a ação cultural na cidade, fazendo com que os movimentos entendam o significado de suas atitudes no contexto urbano.

Uma terceira modalidade de mediação é a paritária, ou par-ticipativa ou ainda da “cultura participada” (Ander-Egg, s/d), que pressupõe conceber e pensar juntos as práticas culturais dos diversos grupos. Este tipo de trabalho incentiva processos culturais, trabalha com uma concepção mais ampla de cultura (incluindo a culinária), estimula o fazer cultural da cidade através de debates, incentiva e apóia a auto-organização dos grupos sem interferir em suas defini-ções e projetos. Aqui a palavra é interação.

Esta última modalidade se traduz, em parte, através de mecanis-mos institucionais de participação, tais como: Conselhos, Comissões, Comitês, Fóruns, Conferências e Audiências. Mas estes mecanismos apresentam seus limites, sendo freqüentados por grupos e artistas “or-ganizados” da cidade. O desafio está em ampliar a participação para os chamados “desorganizados”, os cidadãos comuns. É importante incenti-var o máximo de pessoas a participar das vias institucionais que são uma conquista da comunidade cultural da cidade. Pode-se trabalhar também com Comissões de Dança, Grupos de Grafite, Punks, Rock, etc.

Com a emergência de novos atores sociais da cultura, como os movimentos e organizações culturais, fóruns de arte e de cultura contra a barbárie neoliberal, as cidades ganham novas significa-ções de sociabilidades e se constituem novos territórios culturais no espaço urbano. Esses movimentos sociais de cultura vêm traba-

a CoNstruÇÃo da Cultura PÚBliCa urBaNa

Page 44: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos44

lhando há algum tempo “por detrás dos planos”, e muitas vezes são vistos com desconfiança na cena cultural estabelecida.

Esses emergentes, vistos como outsiders da cultura, argumen-tam contra o uso da cultura como evento e mercadoria, como é o caso, em São Paulo, do movimento “Arte contra a barbárie” que diz em seu Manifesto: “É inaceitável a mercantilização imposta à cultura no país, na qual predomina uma política de eventos”. Mas é preciso ressaltar que a cultura, “grande negócio da direita” (Arantes, 2004: 224), foi incorporada como mercadoria-fetiche que esconde os in-teresses da nova economia.

Em outros lugares do Brasil, surgem variadas manifestações culturais, como o “Fórum de artistas e produtores culturais” de Florianópolis, o “Movimento dos sem palco” de Belo Horizonte, o “Dois mil em cena” de Salvador, o “Atitude de classe” do Rio de Janeiro, o “Fórum Intermunicipal de Cultura” (FIC) de âmbito na-cional junta os poderes locais e sociedade civil para debater políticas culturais. Em Guarulhos o Coletivo 308 atua de forma incisiva, regis-trando e interferindo no cenário da cidade, e o Grupo Brancaleone de Teat(r)o relaciona a política com a cultura. Tudo isso traz novas dinâmicas para o fazer cultural no Brasil e nas cidades, numa evi-dente demonstração de autonomia cultural e política.

As práticas de cultura na cidade tem tido a função, ou de dar visibilidade aos governos, ou como instrumento para atingir um fim exterior às dinâmicas sociais. Reconhece-se também que tem sido feito um esforço para ampliar a inclusão da cultura nos planos de governos locais, sem a faceta instrumental.

Enfim, as práticas de diálogo intercultural devem levar em conta os vários níveis de interações existentes no tecido social, pois as tensões na interação de pontos de vista diferentes, com a escuta e fala, podem levar a outros cenários culturais e sociais, com relações nas quais cada um dei-xa o seu lugar para formar um espaço público mais dinâmico e criativo.

Page 45: Cultura e literatura diálogos

45

Vários são os retratos do Brasil. Pensadores, poetas, artistas, produto-res de cultura e conhecimento, a mídia (impressa e visual) elaboram imagens consoantes ou dissonantes do país. São diversas as formas de pensar e dizer o Brasil. Há visões de um Brasil cordial e de um país violento, um lugar de ricos e de pobres, um país democrático e um au-toritário, enfim há uma gama muito grande de visões sobre o Brasil.

Os mitos que fundaram o Brasil ainda persistem no cotidiano da vida nacional? O Brasil é resultado de um “mal de origem”, ou de relações colocadas no mundo contemporâneo? Não podendo se desconectar do modelo vigente no mundo, o Brasil pode ter voz própria? Pode o Brasil contribuir para criar uma cultura vol-

Um mundo enfim ordenado,Uma pátria sem fronteiras,Sem leis e regulamentos, Uma terra sem bandeira, Sem igrejas nem quartéis,Sem dor, sem febre, sem ouro,Um jeito só de viver, mas nesse jeito a variedade, A multiplicidade toda Que há dentro de cada um. (Carlos Drummond de Andrade)

Visões do Brasil*

Visões do Brasil

Page 46: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos46

tada para a paz, inventando novas formas de ver e de interpretar o mundo? Qual pode ser a contribuição da cultura brasileira num momento de desestruturação geral?

Há um desejo de mais espaços para a conversação pública e para se pensar no sentido que adquirem os eventos que rondam o país inserido na “novíssima ordem mundial”. É preciso inventar novos mundos e também transformar este mundo.

Vários discursos que circulam no mundo contemporâneo, des-de os artísticos, passando pelos filosóficos, anarquistas, econômicos, cotidianos, públicos, até as práticas discursivas da política, produ-zem uma rede de dissonância em relação aos códigos dominantes. Eles se opõem de forma incisiva aos antivalores do mercado que tornam as relações humanas mais uma forma de mercadoria. Mas as modalidades que não encontram ressonância e eco na sociedade, exatamente por estarem na contracorrente das vozes “autorizadas” emergem teimosamente no cenário atual.

As “vozes dissonantes”, abafadas pelos ruídos institucionais tanto oficiais quanto extra-oficiais, é de importância vital para um pensa-mento contemporâneo resistente à lógica cultural do capitalismo. O senso comum diz que o pensamento crítico não é mais criativo, mas não é exatamente desse modo que as coisas acontecem. O pensamen-to vivo busca sempre dinâmicas novas que transformem os paradig-mas ritualizados pela repetição do pensamento conservador.

Não é mais possível olhar somente o já-visto, como se a humani-dade só inoculasse o vírus da barbárie. Não há dúvida que a barbárie da civilização continua sendo internalizada pelos mais diversos seto-res sociais, mas isso não quer dizer que seja aceitável o conformismo instituído silenciosamente no cotidiano.

A mídia coloca versões equivocadas sobre a realidade brasileira, para não dizer tendenciosas (Bucci, 2004). As suas verdades devem ser tomadas como universais e como as únicas “verdadeiras”. A lógica eco-nômica continua ainda selvagem como dantes. Só é possível sonhar os sonhos previstos e pré-agendados que podem se tornar pesadelos orga-nizados pela TV, pelas companhias de crédito e afins (Kehl, 2004). Este seria o único modo de existir. Resistir seria uma maneira de existir.

Page 47: Cultura e literatura diálogos

47

Contra as formas de globalização uniforme, a tarefa é “globalizar a resistência” para pensar o mundo tal como ele está, pois pensar já é uma forma de resistir. Nas conversações públicas, podemos inaugurar novos sentidos para a vida social, ampliando o universo cultural e a participação nas questões mais profundas de nosso tempo, praticando a utopia de um outro Brasil/mundo.

Assim, é preciso observar a importância do pensamento em momentos de transformação social e cultural, e provocar o debate sobre o Brasil. Além disso, pode-se refletir sobre o sentido da cultu-ra no Brasil da atualidade, incentivando a pesquisa sobre os temas inovadores e criando uma esfera de práticas culturais mais críticas e criativas no sentido de apresentar visões de um outro Brasil.

Nota* Texto para o Ciclo de Debates Visões do Brasil, realizado pela Secretaria de Cultura de Guarulhos, durante o ano de 2004. Local: Centro Educacional Adamastor. Organização: Sistema Municipal de Bibliotecas. Coordenação: Valmir de Souza. Palestrantes: Francisco de Oliveira, Ligia Chiappini, João Adolfo Hansen e Aziz Nacib Ab’Saber.

Visões do Brasil

Page 48: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos48

A nossa vida cotidiana está repleta de surpresas, armadilhas e sola-vancos que muitas vezes mudam totalmente o rumo de populações inteiras. Os impactos ambientais, psicológicos causados pelo excesso de expropriação ecológica e pelo excesso de carros velozes nas cida-des atropelam o andar do “homem comum”.

Pelos “poros do cotidiano” (Grupo Krisis, 2003) atravessam to-dos os vírus da vida contemporânea. Presencia-se o sufoco urbano

É um absurdo: a sociedade nunca foi tanto a sociedade-trabalho como nesta época em que o trabalho se faz supérfluo. Exatamente na sua fase terminal, o trabalho revela claramente seu poder totalitário, que não tolera outro deus ao seu lado. Até nos poros do cotidiano e nos íntimos da psique, o trabalho determina o pensar e o agir. Não se poupa nenhum esforço para prorrogar artificialmente a vida do deus-trabalho.(Grupo Krisis)

O mal-estar no cotidiano: consumo e trabalho*

Page 49: Cultura e literatura diálogos

49

dos jovens que, com a sensibilidade afetada e desorganizados coleti-vamente, vivem uma vida sem saída, deixando-se levar pelas promes-sas do consumismo ou de manipulações pedagógicas que o levarão ao endereço do paraíso. Mas o jovem desconfia dos milagreiros e se rebela diante das imposições.

A violência que assola o país e corrói qualquer perspectiva de mudança não se explica de forma redutora. Muitas vezes ela tem a ver com a busca do objeto do desejo, do tênis ao carro. A violência não é só do delinqüente, mas de toda a sociedade.

Há uma aparente estagnação e letargia política no ar. A rea-bilitação do cotidiano faz parte da revisão da vida em sua dimen-são sensível. A literatura e a arte fazem parte dessa retomada, pois instauram novas práticas cotidianas. Enfim, depois do “deserto do real” (Zizek, 2003), voltamos ao deserto do cotidiano? Temos fome do cotidiano e da vida não como ela é, mas também como pode deixar de ser o que é para ser vivida de outras formas, desfazendo a idéia de que o mundo às avessas e o avesso do mundo devem ser vividos como normalidades naturalizadas (Galeano, 1999).

O inferno instalado no cotidiano é uma realidade, mas pode-mos instaurar outras realidades a partir do diálogo e da convivên-cia, pois não se pode aceitar a alienação da vida cotidiana como se os agentes humanos fossem passivos consumidores dos dejetos da indústria midiática. Precisamos reaprender “como viver junto” no cotidiano com arte (Barthes, 2003).

No silêncio diário, há recusas da vida mecanizada vivida todos os dias nos grandes cenários da mídia, onde tudo se desmancha no ar rarefeito das cidades.

O bem-estar do consumo oculta o seu mal-estar. No entanto, bem-estar não quer dizer estar bem, pois já está mais que demonstra-do que não precisamos do supérfluo criado pela indústria de massa.

O ato de consumir faz parte da humanidade, mas o fenômeno mo-derno do consumismo de massa altera bastante essa noção. O consumo instalou uma ditadura invisível, forçando povos inteiros a uma desen-freada busca dos mesmos objetos de desejo globalizados. Mas o corpo resiste e conspira contra as informações vindas dos vários meios.

o Mal-estar No CotidiaNo: CoNsuMo e traBalho

Page 50: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos50

O templo do consumismo é o Shopping Center, lugar em que se estimula o ato de comprar, e que muitas vezes se transforma em lugar de encontro, mas o encontro marcado é com o objeto do desejo, seja ele o que for.

Nesses espaços, a mercadoria toma o lugar do homem. Carlos Drummond de Andrade, em “Eu, etiqueta”, mostra como todos têm de estar na moda, como o corpo precisa estar na moda, nem que seja para se perder a identidade em favor do consumo irrefreado estimu-lado pela publicidade (Severiano, 2007).

Os novos paradigmas do capitalismo não são novos, vêm vestidos com roupagens atualizadas do mesmo, numa reciclagem constante.

Já o mundo do trabalho vem ocupando um lugar central na vida das pessoas. Mas de que trabalho se trata? Quando se pensa em trabalho, se pensa em algo desgastante, estressante e sem sentido. O trabalho repetitivo impõe sua lógica anti-crítica, já que não propõe nenhuma atividade criadora e inovadora. O elogio do trabalho pelos donos da economia esconde e nega o “direito à preguiça”.

O estilo de vida do mundo do trabalho prega que devemos cada vez mais trabalhar para sobreviver, mas cada vez mais o trabalho tem um sentido “morto”. As classes-que-vivem-do-trabalho (Antunes, 1999) sobrevivem ao caos urbano e metropolitano.

Os sentidos do trabalho no mundo atual são dados em con-dições precárias, mas a “servidão voluntária” (La Boétie) encontra ressonância no medo de perder o emprego. O paradoxo está no fato de que se fala da crise do trabalho e ao mesmo tempo se busca intro-jetar a noção nas classes que dele dependem. Há os que pensam em abolir o trabalho, com razão, já que o trabalho mecânico está cada vez mais sendo substituído pela maquinaria.

O trabalho é mal pago e, ainda assim, todos o buscam devotada-mente. O trabalho é vigiado e todos participam dessa vigilância. Há uma “guerra civil do trabalho”1, guerra de interesses pessoais na qual todos estão envolvidos. Em todo o mundo pretende-se “flexibilizar” as leis trabalhistas, evidentemente com a conseqüente precarização das condições e relações humanas, a crescente corrosão da ética e o esgar-çamento da subjetividade. Como afirma Bob Black, “A degradação que

Page 51: Cultura e literatura diálogos

51

a maioria dos trabalhadores sofre no emprego é a soma de indignida-des variadas, que pode ser denominada ‘disciplina’.” (Black, 2006: 23).

Nos novos sentidos dados ao trabalho, pode-se dizer que este empobrece o homem e não o enobrece como queria Rui Barbosa. Paradoxalmente, o que se quer hoje é ter mais tempo livre para po-der trabalhar mais. É preciso inverter a equação: trabalhar menos e divertir mais. Como diz Grouxo Marx: “Trabalhadores de todo o mundo...relaxem”.

Mas a Dona Mais-valia e o Senhor Capital são tão sagazes e não dão sossego, pois transformaram o descanso em mais trabalho, pois mesmo a diversão tornou-se um trabalho que gera mais trabalho, fa-zendo com que o mundo virasse uma máquina que opera dia e noite.

Enfim, o trabalhador vive em constante estado de sítio engen-drado pelas novas formas assumidas pelo capital.

Italo Calvino traduz de forma singular, em texto memorável, o sentimento de nosso tempo. Diz o autor cubano-italiano:

- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (Calvino, 1999: 150)

Mesmo inundados pelas imagens infernais do cotidiano catastró-fico, a tarefa inadiável é abrir espaço para a reflexão sobre estes tempos sombrios. Viver juntos, sem ser tratados como rebanho e sem o narcisis-mo contemporâneo, é um desafio de um outro mundo neste mundo.

Notas* Texto escrito para o Café Filosófico em Guarulhos, realizado pela Secretaria de Cultura de Guarulhos, durante o ano de 2007. Local: Biblioteca Monteiro Lobato. Organização: Sistema Municipal de Bibliotecas. Coordenação: Valmir de Souza. Palestrantes: José Roberto Heloani, Felipe Ronner, Daniela Auad, Tatiana Savoia Landini, Henry Burnett.1 A expressão é de Iná Camargo Costa

o Mal-estar No CotidiaNo: CoNsuMo e traBalho

Page 52: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos52

As cidades são os espaços priorizados para habitação da imensa maioria da população mundial. O fenômeno industrial levou a uma urbanização acelerada e à configuração de megacidades com seus es-paços de comércio e circulação de mercadorias, e com uma acirrada mercantilização dos espaços urbanos em detrimento dos lugares de encontros e vivências coletivas.

Guarulhos no cenário metropolitano

Uma cidade sem portas, De casas sem armadilha, Um país de riso e glóriaComo nunca nenhum houve.(Carlos Drummond de Andrade)

Page 53: Cultura e literatura diálogos

53

O que se percebe hoje nas grandes cidades é conseqüência de um estilo de desenvolvimento que “economiciza” a vida em todas as suas dimensões, levando à segregação, violência, isolamento, amnésia social, anomia, fome, miséria e outros problemas sociais.

Dando sustentação a este estilo econômico, o projeto do chama-do “urbanismo de comunicação” entende que é preciso “rasgar” o te-cido urbano para a passagem de veículos e pessoas. Em contraponto, o “urbanismo histórico” se ocupa da construção da cidade enquanto espaço de encontro das pessoas, valorizando a comunicação huma-na. Por exemplo, um dos alvos prediletos das guerras são as cidades e suas referências e construções históricas, pois, sabe-se, demolin-do as obras de valor histórico e comunitário destrói-se a memória e imobiliza-se a identidade do adversário e desmoraliza suas forças.

Mas o que tem prevalecido nos grandes centros é o urbanismo de comunicação, como se nota com a presença maciça de veículos nas ruas, como uma verdadeira guerra contra os espaços de sociabi-lidade e simbólicos.

A cidade perdeu grande parte de seus lugares de sociabilidade, principalmente depois do avanço e penetração da televisão e pro-dutos afins. É preciso resgatar valores nas cidades que condigam às necessidades afetivas de sua população. Dizer que esse processo do crescimento das cidades é irreversível pode conduzir a um imobilis-mo mental e social geradores de mais conflitos do que de soluções para o “caos urbano”. É bem verdade que são gerados novos valores humanos no espaço social, mas também essa geração não é “espon-tânea”, pois faz parte de um esforço de sobrevivência cultural.

As metrópoles apresentam uma rica atividade cultural, tanto em espetáculos “organizados” como em eventos de periferias como expressões culturais “desorganizadas”. Há também um “confinamen-to cultural” muito forte nessas megacidades, nas quais “os indivídu-os se tornam um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o processo, espiritualida-de e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva” (Simmel, 1973). Em outras palavras,

guarulhos No CeNário MetroPolitaNo

Page 54: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos54

o ser humano se despersonaliza, vivendo em caixas, cápsula, bolha, enfim vivendo uma “síndrome de box”.

Antes de ser o espaço só da desconstrução do ser humano, a cidade deveria ser o lugar das representações simbólicas populares, da mobilização das formas humanizadas de vida.

Nesse cenário, o que significa para as “cidades satélites” ter uma identidade quando se situam ao lado de uma cidade como São Paulo? Os “subúrbios” vivem em “situação de fronteira”, com limites nebulosos, com a dificuldade de ter uma personalidade própria. A palavra “subúrbio” traz uma conotação do que está por baixo (sub) e, por extensão se associa à idéia do que é subvaloriza-do como um submundo.

As cidades da Grande São Paulo são deglutidas por ela, en-contrando assim dificuldades em ter suas próprias representações simbólicas, já que a imagem de cidades com fronteiras delimita-das está sendo implodida diariamente devido a esse processo de conurbação. A busca de uma “identidade urbana” (Santos, 2006) fica prejudicada pelas ações de governos que não se ocupam das identidades populares.

Isso é resultado de um estilo de vida industrial disseminado por todo o planeta. Acontece que este modelo de cidade não res-ponde mais aos dilemas atuais e está se transformando. As cidades estão se “desindustrializando”, pelo menos do ponto de vista da produção pesada.

O direito às artes e aos espaços culturais em Guarulhos1 Guarulhos vive o dilema de procurar uma cara própria estando

na região metropolitana. Atualmente, passa por uma mudança de seu perfil social e econômico com a desindustrialização, e busca novas vocações, também no campo das manifestações culturais. De cidade predominantemente industrial, passa a servir de “dormitó-rio” e desenvolver a área de serviços.

Page 55: Cultura e literatura diálogos

55

Com perfil heterogêneo, tem população de origem diversificada que trouxe uma herança cultural riquíssima (cantos, festas) que vai sendo esquecida com os ruídos urbanos, pois ouve-se mais aviões do que cantos do candomblé.

A cidade de Guarulhos vem passando por um momento de de-socultamento das políticas no mínimo viciadas por práticas de gru-pos tradicionais da cidade, vislumbrando-se possibilidades de operar de forma inovadora nas várias dimensões da vida social. A cultura, como dimensão de projeto, propicia, junto com as diversas práticas artísticas, a abertura para se pensar o impossível dos cenários utópi-cos, pois ela não é só mercadoria, mas processo dinâmico da vida.

Os debates culturais na cidade são importantes no sentido de si-nalizar que organizações da sociedade civil e poder público discutam os problemas da cidade, incluindo a cultura no cenário das questões econômicas, políticas e sociais. As culturas da cidade passaram a ser vistas de modo dinâmico, colocando as diversas identidades culturais em evidência juntamente com as culturas letradas: grupos e artistas saem de suas esferas para opinar e expor suas inquietações na cena urbana, mas também para desenvolver atividades independentes. Embora as artes eruditas sejam importantes para a educação cultural, elas não constituem a única referência para o entendimento da cultua criativa e viva de uma cidade.

Cultura não é só Bela Arte ou instrumento da mesmice artística. Além de direito humano fundamental, e por isso mesmo, cultura é um direito à provocação, criação, produção, fruição e, inclusive, ao ócio, e não só à produção.

No processo de migração para os grandes centros, as camadas populares sofrem fraturas imensas em suas vidas, tendo perdido refe-rências sociais, mas em suas festas e encontros reconstituem o tecido cultural nesses novos territórios culturais. Ainda que essas culturas tenham sido apagadas do mapa oficial, elas se movem e se refazem no tecido urbano, misturando-se com as culturas urbanas (forró, ca-poeira, hip hop, rock...), o que mostra que o pulso da cultura “ainda

guarulhos No CeNário MetroPolitaNo

Page 56: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos56

pulsa” pois é preciso inverter os sinais rotineiros da cidade e inaugu-rar outras visões e novos olhares, eis os desafios.

Ao longo da história, foi negada à grande parte da população de Guarulhos a ocupação de seu espaço, inclusive deixando-se por muito tempo de se investir em espaços públicos culturais dignos. E isso se evidencia na escassa infra-estrutura cultural para uma cidade como Guarulhos; ainda assim os atores sociais e culturais ocupam a cidade para o desenvolvimento de suas vidas nos mais variados aspectos.

Os equipamentos públicos da cidade exercem função simbólica para a população. Por exemplo, Teatro Nelson Rodrigues, Biblioteca Municipal Monteiro Lobato, Museu de Ciência, Espaço Permanente de Exposição no Lago dos Patos, Centro Municipal de Educação Adamastor, e mais recentemente os Pontos de Cultura. Alguns deles, reformados e reestruturados, tornam-se lugares onde se pode pesqui-sar e fruir as artes de modo mais adequado e confortável.

Esses e outros espaços públicos comparecem nas várias modalidades de atuação; cada um, à sua maneira, contribui para a cidadania cultural de produtores culturais e fruidores de cultura e da população em geral.

Os dados sobre Guarulhos mostram que a maioria da população de Guarulhos prefere fazer atividades domésticas em casa ou com pa-rentes, talvez devido à falta de espaços públicos de sociabilidade cultural (Toledo e Associados, 2000)2. Esses dados podem ser indicativo da falta de opções e áreas de lazer e de cultura na cidade, mas evidente que está associado ao estilo de vida contemporâneo também.

Então podemos apontar as possibilidades de ativação de espa-ços culturais. Sabemos que os espaços culturais da cidade exercem um papel importante no desenvolvimento da cultura, pois é neles que a população busca informações dos mais variados tipos e onde exerce seu direito à formação e fruição cultural. Nesses lugares, além de ver obras de arte, praticar a leitura, assistir a um espetáculo, pes-quisar sobre a cidade, as pessoas também se encontram para con-versar e debater sobre os mais diversos assuntos, transformando-os em pontos de sociabilidade.

Page 57: Cultura e literatura diálogos

57

Há também os espaços particulares (privados e coletivos), tendo como característica preponderante a diversidade. Há espaços culturais dedicados a preservar culturas de grupos que convivem na cidade, en-tidades que desenvolvem pesquisa sobre a região, grupos de cultura (teatro) que se organizaram e fundaram seus próprios espaços. Alguns mais recentes, outros mais enraizados e estruturados, esses lugares abrem cada vez mais suas portas a exposições de arte, shows musicais e espetáculos teatrais, e se tornam espaços públicos de cultura e lazer.

Artivistas da cultura viva e atuante na cidade3

Não é só de espaço que a cultura e as artes vivem, mas é preciso destacar o papel do criador e do fazedor de cultura. Artistas e agentes culturais se mobilizam para discutir e fazer suas artes. E isso é um passo importante na dinâmica cultural da cidade, quando artistas e poetas se unem contra a barbárie do mundo.

Os espaços, grupos e atores socioculturais têm como caracterís-tica preponderante a diversidade, dedicados a preservar e dinamizar culturas de grupos e artistas que convivem na cidade, entidades que desenvolvem pesquisa sobre a região, grupos de teatro, poesia e ar-tes que se organizaram e fundaram seus próprios espaços. Alguns mais recentes, outros mais enraizados e estruturados, abrem cada vez mais suas portas a exposições de arte, shows musicais, espetáculos / intervenções teatrais. Grupos como o Letraviva, Casa dos Cordéis, Grupo de Teat®o Brancaleone e outros de poesia e outras prosas, com vocações diferenciadas, trabalham no sentido de ampliar o leque de opções de interferências na cidade.

Nesse contexto, o SINPRO-Guarulhos se destaca com as “Noitadas Culturais”, trabalho que desenvolve atividades de inter-venção político-culturais, mostrando as possibilidades de um fazer artístico autônomo e interativo.

A cidade não pode ser “um cárcere privado”, mas espaço de criatividade aberta ao que vem de fora. É preciso que se pense com

guarulhos No CeNário MetroPolitaNo

Page 58: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos58

isso uma Política Cultural que trabalhe com o desenvolvimento da cultura local e que leve em consideração a situação atual das cida-des nas esferas das regiões macro-metropolitanas, propondo-se uma articulação intermunicipal. E a isso se junta a democracia política, cultural e econômica que é condição e valor básico para o exercício efetivo da Cidadania Cultural em todas as suas manifestações.

Duas tendências são de suma importância para a questão cultural. A primeira diz respeito à democratização da cultura como pólo impor-tante que permite a circulação e acesso de bens cultuais consagrados. A segunda se refere à democracia cultural (Ander-Egg, s/d) que possi-bilita a aventura ativa da criação de bens culturais, novos valores, novas informações, conhecimentos ocultados e latentes, outras atitudes, etc.

Enquanto a democratização da cultura se ancora no lema “cul-tura ao alcance de todos”, dando acesso a atividades promovidas pelo município, a democracia cultural enfatiza “a cultura realizada por to-dos” e considera importante não somente o acesso, mas a participa-ção na criação e nos processos culturais. O acesso e a oferta são dois termos que estão conectados com o princípio da democratização da cultura, menos do que com a democracia cultural.

Já em se tratando da Democracia Cultural, os projetos de inter-venção cultural vão desde a ebulição clandestina até a esfera pública. Nessa vertente, procura-se promover a ocupação do espaço público com projetos em várias áreas. Por exemplo, o grafite pretende ver a cidade como suporte ou cenário onde os atores interagem, se relacio-nando com as artes plásticas, literatura, teatro, com uma produção e uma apropriação rica de códigos culturais e urbanos. O papel da arte é visto como transformação social do espaço.

As duas tendências acima não devem ser vistas numa lógica de exclusão uma da outra, mas numa visão de complementariedade, po-dendo-se desenvolver uma política de cultura que comece com um e incorpore o outro, por não serem vertentes excludentes. Por exemplo: desenvolvimento da nucleação de grupos na ação cultural a partir da democratização da cultura.

Page 59: Cultura e literatura diálogos

59

A democracia cultural é um campo de debate que pode ampliar o debate cultural em Guarulhos, dialogando com todos os segmen-tos das artes e das culturas urbanas. Abrir uma discussão profun-da e de longo termo sobre o direito à cultura, o acesso às ofertas, a qualidade da produção oferecida à população, a apropriação de bens culturais, etc. Poderemos assim, usufruir dos bens materiais e espirituais produzidos pela cidade, socializando o “capital cultural” em suas diversas modalidades.

Além das ações culturais, faz-se necessário um mapeamento que tenha a função de difundir os espaços e grupos, para que se possa am-pliar os horizontes e as possibilidades para o público local e regional, fazendo com que a cidade se conheça e redescubra as potencialidades de sua vida cultural.

A cultura precisa de organizações, mas não de engessamento das ações culturais. Sem o “Ato político”4 (Zizek, 2003: 174-176) da demo-cracia política, cultural e econômica, condição básica para o exercício efetivo da cidadania em todas as suas manifestações, a cultura gira em falso nas demandas do mercado, seduzindo o público para a mesmi-ce. As rotinas da democracia liberal sobrevivem às custas de rituais desgastados. Falta uma ação político-cultural que dê conta de atores “insurgentes” na cena social.

Como afirma Hamilton Faria, “Agora já não basta o cidadão ter acesso à Cultura, mas há necessidade de promover processos de par-ticipação para que o cidadão seja agente da sua cultura, deflagrando um ato permanente de criação.” (Faria, 1993).

Mas as participações não ocorrem somente nos âmbitos dos go-vernos, mas também em processos autônomos da sociedade, numa ação política que desloque os valores da economia como dominantes sobre os fazeres humanos. Este desafio não é de um governo, mas de todos que desejam uma outra cidade e um outro mundo, sem as crônicas desigualdades sociais.

guarulhos No CeNário MetroPolitaNo

Page 60: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos60

Notas1 Esta parte foi publicada no Jornal Olho Vivo, no “Espaço aberto”, sob o título “O direito às artes em Guarulhos”, em 18 de novembro 2006, p. 11. 2 Pesquisa feita pela Toledo e Associados (2000): Reunião familiar - 19%, Ouvir música – 18%, Churrasco em casa – 18%, Nenhum tipo de lazer – 29% , Não pra-ticam nenhum esporte – 72%.3 Esta parte foi publicada no Jornal Olho Vivo, no “Espaço aberto”, sob o título “Artistas e cultura na vida da cidade”, em 19 de dezembro de 2006, p. 11. 4 O autor usa o termo em outro contexto, mas a expressão serve de apoio ao nosso intuito de reforçar a ação política como algo que diferencia a política cultural.

Page 61: Cultura e literatura diálogos

61

No mundo ultra-moderno, com sua amnésia generalizada e o desman-che das referências concretas e duradouras, a memória de tipo tradicio-nal, isto é, aquela dos lugares da memória, perde espaço na simboliza-ção do presente. Os grandes monumentos exercem papel de fantasmas do passado e perdem o peso de função de representação de uma classe, pois a velocidade dos centros urbanos não permite mais a ocupação do espaço urbano, fazendo arrefecer a participação na vida pública.

Hoje as percepções mudaram muito em relação ao conceito de memória. A subjetividade ganha importância no jogo de significa-ções do presente, o que desloca para o campo das práticas indivi-

Cultura e memória na cidade*

Toda memória é social. Tudo bem - mas por quê?Por pressupõe interlocu-ção. (...) A memória que nos interessa aqui é a memória coletiva – não o so-matório das memórias individuais, mas aquela que se fundamenta nas redes de interação, redes estruturadas e imbricadas em circuitos de comunicação.(Ulpiano Bezerra de Meneses)

Cultura e MeMória Na Cidade

Page 62: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos62

duais as questões pertinentes à lembrança e à recordação. Vive-se um tempo em que a “cultura da memória” sofre uma guinada para a subjetividade (Sarlo, 2007: 90-113).

A questão da memória deve ser vista no quadro mais amplo da cultura. Com a crise dos paradigmas narrativos e dos mitos fundado-res, está na hora de fazer uma revisão de nossos padrões conceituais, isto é, repensar o pensamento estabelecido sobre bases positivistas.

Num mundo em transformação, em que o homem convive com o horror econômico e com as questões do trabalho, o edifício da modernidade não pode sustentar suas promessas de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, pois nenhuma dessas promessas foram cumpridas pelos atores globais, gerando “efeitos colaterais” como a reação do “terror” oriental. Como questiona Slavoj Zizek (2003:172): “Toda referência aos direitos universais do homem como ‘pro-jeto inacabado’ a ser gradualmente estendido a todos os povos é uma quimera ideológica vã – e diante dessa perspectiva, temos, no Ocidente, o direito de condenar os excluídos quando usam todos os meios, inclusive o terror, para lutar contra sua exclusão?”

A memória social e a individual sofrem também as conseqü-ências do “turbocapitalismo”, pois o fenômeno não poupa nem o indivíduo nem o coletivo. A cultura da memória está em efervescên-cia, tema “nervoso” composto por um conjunto de tramas afetivas e sociais. Nas guerras ou guerrilhas atuais, os símbolos e as artes são alvos prioritários para tirar as referências sociais e desnorte-ar o inimigo. A crise de memória também se reflete na crise dos suportes, vivências, experiências, referências e conteúdos culturais nas cidades e as dimensões dessa crise são enormes, abrangendo a epistemologia, a economia, a técnica e a política (Meneses, 1999).

Sabemos que a memória humana é seletiva e voluntária, consti-tuindo-se da relação do mundo interior com o mundo exterior e, por-tanto, sendo uma construção social com base na apropriação e “relei-tura de vestígios” (Certeau, 1993). Ao se falar da memória fala-se sem o saber do esquecimento, pois quem lembra de algo “esquece” algo.

Na sociedade também trabalha-se com esses dados quando, ao se selecionar monumentos a serem preservados ou construídos,

Page 63: Cultura e literatura diálogos

63Cultura e MeMória Na Cidade

opera-se um “esquecimento” social. Como nos sonhos, nem todos os objetos se fixam nas lembranças psicossociais. As “escolhas” de ícones referenciais sinalizam para um olhar dirigido, com o intuito de inocular valores e sentidos culturais na cidade.

Onde está a memória cultural da cidade? A memória social se encontra em vários lugares e suportes, como no patrimônio cultural edificado - museus, arquivos, centros culturais, igrejas, monumentos; esculturas, estatuária pública e de cemitério; em documentos oficiais e administrativos – importantes para se conhecer a história da cidade; nos documentos e objetos pessoais; nas escritas na cidade: textos, gra-fites, poemas – rica mitologia urbana; nos nomes das ruas: autorida-des (cultura oficial), indígenas (cultura “oficializada”); nas culturas e festas populares – lembranças e memória oral; nas novas tecnologias: memória virtual e eletrônica; na televisão, rádios e outros meios.

As cidades são lugares onde as linguagens, evocações, sonhos, desejos, imagens, escrituras, pesam tanto quanto o espaço físico onde as pessoas moram (Calvino, 1990). Elas se constroem coletivamente, incessantemente, através de um intenso metabolismo cultural. Então, a cidade não é uma massa concreta homogênea, mas acontecimento cultural e cenário de um efeito imaginário.

Há espaços que são referenciais para uma cidade. Há outros que não foram construídos como referência, mas que se tornam simbólicos devido a um trabalho de apropriação por parte da população, como por exemplo, Shopping Centers, bares e lugares públicos que se tornam lugares de referência comuns. Esses marcos identificadores acabam por servir como ponto de referência nas instâncias urbanas. Há, portanto, uma mudança nos modos de representar a cidade e a urbanidade. Cada cidade tem seu estilo, reelaborando-se cotidianamente.

Sabemos também que o físico produz efeitos no simbólico e as representações afetam e guiam o uso social do espaço, modifican-do com isso a concepção deste mesmo espaço. É preciso simbolizar para demarcar um território imaginário ou real, pois evocam na cidade acontecimentos importantes.

A comunicação numa cidade polifônica se dá de vários mo-dos. Além dos espaços físicos construídos, os marcos naturais ser-

Page 64: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos64

vem como referência. As placas de entrada sinalizam os modos de uso do espaço pelos carros que entram num território. As narrati-vas são formas de demarcar um território e ajudam a conservar as “cidades invisíveis” (Calvino, 1990).

As intervenções e marcas deixadas pelos grafiteiros nos muros da cidade revelam as tensões e conflitos na ocupação do espaço vi-sual urbano, revelando ainda os modos de representar a cidade pelos grupos excluídos ou “desclassificados” pelos códigos dominantes da mídia. Quem anda pela cidade percebe a evocação e o uso que di-versos grupos culturais fazem do espaço urbano.

O hip-hop, com suas diversas linguagens, e o grafite especifi-camente, são um tipo de comunicação urbana que constrói novos marcos culturais, pois vê a cidade como cenário de atuação cultu-ral e artística. Comumente, esses movimentos não entram nos pla-nos de governo para as cidades. Em Barcelona, por exemplo, nos planos de revitalização, as atividades culturais são consideradas como capital urbano, com ênfase na infra-estrutura para as artes, incentivando a produção de bens e serviços artísticos, juntamente com a promoção do turismo cultural.

Então é preciso reconsiderar o papel das artes urbanas no es-paço social e concreto da cidade. Essas artes representam o estar no mundo urbano de forma dramática mas esse é o modo de estar des-ses artistas num espaço muitas vezes arredio ao fazer cultural. Abrir espaços para esses artivistas é um modo de reconhecer a presença de sujeitos que nunca foram aceitos como agentes e atores da cidade.

Notas* Texto elaborado a partir de palestra “Onde está a memória das cidades” durante o Seminário Guarulhos – Memória e futuro, patrimônio e gestão de documentos, realizado pela Secretaria de Cultura nos dias 17 e 18 de junho 2000.

Page 65: Cultura e literatura diálogos

65

Este texto propõe-se a delinear a história das políticas culturais desen-volvidas pelas diversas Administrações públicas na cidade de São Paulo, ao longo do tempo, focando a cultura pelo ponto de vista espetaculoso. Quando se fala em acesso à cultura, pensa-se cultura como show na praça, peça no teatro, enfim, focaliza-se a produção cultural inserida em um certo mercado, com clientes determinados em centros urbanos com suas características históricas. Nesse aspecto, uma certa camada da população organizada pode fruir a obra de arte em suas múltiplas lin-guagens (teatro, música, literatura, escultura, pintura, arquitetura, de-

São, São Paulo, meu amorSão, São Paulo, quanta dor.(Tom Zé)

São Paulo: diversidade cultural e discurso oficial*

sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

Page 66: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos66

sign, cinema, vídeo etc). Quem pode fruir uma obra é aquele que tem “preparo artístico”, mas não se leva em consideração um ingrediente fundamental nas políticas de cultura, que é a formação para as diversas áreas, entendida como “educação dos sentidos” para as artes.

Oferecer cultura para a população suscita duas questões: uma é sobre quê cultura; e outra é sobre qual populacão.

Não se pode ter a pretensão de querer impor uma visão de cultu-ra que não tenha ligação com a vida das pessoas, e pretender com isso garantir o direito à cultura. Apresentar eventos a preços populares é só um aspecto do direito à cultura e não garante o exercício da cultura como prática de cidadania.

A cidade exige hoje mais que acesso aos bens culturais a preços baixos, sintoma da mercantilização da arte, exige o reconhecimento das práticas “marginais” da cultura.

Levar uma cultura artística para os bairros periféricos não mostra mais que uma certa postura de predominância do centro sobre a periferia. Os periféricos têm e praticam suas várias cultu-ras. Não é uma questão de oposição pura e simples em relação ao centro da cidade, mas é preciso levar em conta que numa cidade como São Paulo encontram-se várias centralidades.

Assim, há grandes dificuldade para se implantar uma política cultural geral na cidade, pois seu perfil étnico e regional é muito heterogêneo. Há italianos, judeus, turcos, orientais, africanos; nor-destinos, sulistas, nortistas, interioranos etc.

Os projetos culturais se pautam pela cultura de evento, levando-se arte para a população, num movimento de irradiação de uma cul-tura erudita e mesmo de uma cultura popular. (Sempre faltou uma postura que pusesse em questão as linguagens da arte, de modo a se levar também o debate sobre a cultura.) Esse trabalho de difusão cultural, insuficiente numa política cultural para a cidade, tem sido uma constante na Gestão Pública de Cultura na cidade.

Em relação à memória da cidade procurou-se, ao longo do tempo, preservar uma memória tradicional contida nos vários monumentos que trazem consigo uma imagem equivocada da história e da cidade. De fato,

Page 67: Cultura e literatura diálogos

67sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

tem faltado uma política de cultura mais geral e mais aberta aos atores emergentes (imigrantes e migrantes internos) que foram se estabelecen-do nas periferias da cidade, trazendo consigo suas memórias e seus tra-ços de identidade muitas vezes erradicados de suas práticas grupais nos grandes centros. O poder público não tem dado a devida atenção para esse estrato social que foi se inserindo na vida da cidade e que hoje pode ser considerado quase a metade dos habitantes da cidade.

O resgate dessas memórias “migrantes” foi pouco incentivado nas administrações de antes de 1989. A marca de São Paulo como lugar de uma memória única, oficial, “paulistana”, está fadada à insustenta-bilidde social devido exatamente à presença de estratos que dão tonus muscular à tessitura urbana colocando em tela uma cidade subterrâ-nea, mas que irrompe no espaço social através de manifestações e ex-pressões de gestos desvalorizados pela ação cultural oficial (repentes, cantorias, culturas religiosas indígenas e afro-brasileiras etc).

Na cultura urbana de São Paulo, há um caldeirão cultural ma-nifesto pelas diversas etnias, cores e vozes que compõem o cenário social. Entretanto, no imaginário dominante a cidade é um “grande berço da cultura”, sendo reconhecidas como cultura aquelas práticas que adotam o ponto de vista das personagens históricas, isto é, a visão dos Bandeirantes.

O tecido cultural urbano é muito mais abrangente e rico do que imagina a política predominante na cidade. Impactar a cidade com grandes obras culturais (museus, centros culturais...) é uma maneira de ressuscitar os resíduos de uma cultura oficial e “higienizada”. Esta é a lógica que preside obras como os monumentos à Independência, o Museu Paulista e o Monumento à beira do Riacho do Ipiranga. Nessas duas obras, como em todo o Parque da Independência, com sua cons-trução simétrica e disciplinante da paisagem social, com uma lógi-ca de reta perversa e antinatureza, preservam-se valores no mínimo muito discutíveis em relação a uma possível “nação” brasileira.

Quem governa a cidade dirige suas ações para certos fins ur-banos, sociais e econômicos, mas não se pode esquecer que seus habitantes são oriundos de diversas regiões e nacionalidades, para

Page 68: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos68

os quais e com os quais a cidade deve ser pensada, respeitando-se a multiculturalidade e a polifonia política.

São Paulo tem tido poucos momentos de convivência das dife-renças no campo da cultura e da política. Com a política de espetá-culos não se estimulou a expressão dos diversos grupos sociais que compõem a paisagem cultural da cidade. Além disso, falta uma refle-xão sobre o que é o fazer cultural num espaço desagregador como é o espaço metropolitano.

O fato de se colocar à disposição da população um produto cul-tural como um produto mais barato ou gratuito, não muda a concep-ção de cultura como mercadoria. Não há dúvida de que há um gasto na feitura de um produto cultural, mas ele agrega e carrega valores humanos e urbanos que trabalham no nível simbólico. Ao se fazer e consumir cultura, quais as demandas simbólicas que estão em anda-mento? Quando alguém frui a obra de arte, tem o direito de fazer a crítica dessa arte. E isso tem de ser levado em consideração na elabo-ração de políticas de cultura.

A produção cultural também não pode ser pensada isolada-mente, havendo-se que se levar em conta a ecologia e o entorno das obras culturais, isto é, a sua relação com fatores sociais, ambientais, mentais e simbólicos para que a arte seja um ato de inventar, de pen-sar e de criar novas realidades e não só a repetição do mesmo.

Numa sociedade de consumo, a tendência é de a cultura ser vista como mais um ingrediente dos negócios, e se coloca um grave problema ao se considerá-la uma obra instrumentalizável que serve a fins eleitorais, partidários ou pessoais. A cultura, enquanto objeto social, pode e deve ser apropriada por todos, mas deve ser apropria-da por toda a população de uma cidade.

Tendo em vista os objetivos e limites deste artigo, vamos his-toriar uma parte da história cultural da cidade de São Paulo, sem pretensão de esgotar o tema, principalmente porque serão comen-tários restritos à Administração Pública da cultura, apontando-se algumas nuances dos projetos e políticas culturais desenvolvidos por várias gestões públicas da cultura na cidade.

Page 69: Cultura e literatura diálogos

69sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

Os anos heróicos (Gestão Mário de Andrade: 1936-38)Até os inícios de 1930, pouca coisa havia sido formulada ofi-

cialmente em relação às atividades culturais como um todo na cida-de de São Paulo, a não ser ações isoladas como construção de tea-tros e trabalhos eventuais. Sentia-se a necessidade da criação de um órgão público que incentivasse e divulgasse a cultura numa cidade que já tinha sido palco da Semana de Arte Moderna de 1922.

Mário de Andrade, Paulo Duarte e outros rapazes, pensando nas práticas culturais, fizeram com que o Prefeito Fabio Prado, em 1935, assinasse o Ato n. 861 (30.05.35), decretando a criação e or-ganização do Departamento de Cultura e Recreação, que teria por finalidade “estimular e desenvolver todas as iniciativas destinadas a favorecer o movimento educacional, artístico e cultural, e pôr, ao al-cance de todos, palestras e cursos populares de organização literária ou científica... enfim, tudo o que possa servir para o aperfeiçomento e extensão da cultura”. Para a época, este tipo de discussão era bas-tante avançado.

Mário de Andrade, quando Diretor desse Departamento, re-cebeu muitos ataques e sofreu incompreensões, mas conseguiu estabelecer o mínimo necessário em relação a uma formulação de política pública para a cultura, dando esse grande salto qualitativo e colocando a preocupação da Gestão Pública Municipal em rela-ção às questões culturais na cidade.

De 1938 até 1975, há pouco registro sobre a presença da Administração cultural nos espaços públicos da cidade, ainda que, nes-se ínterim, a cidade não tenha se estagnado culturalmente, pois os faze-dores de cultura dos vários campos continuavam com suas atividades.

O trabalho com a cultura em momento de crise (Gestão Sábato Magaldi: 1975-78)Após longos anos de ostracismo cultural, esboça-se, nos anos

1970, em plena Ditadura Militar, uma política cultural para a ci-dade. É nessa década que a “cultura” começa a emergir na pau-ta das políticas públicas. É quando o Departamento de Cultura se emancipa da Secretaria Municipal de Educação, formando a

Page 70: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos70

Secretaria Municipal de Cultura (SMC) com os seguintes órgãos: Conselho Municipal de Cultura; Gabinete do Secretário; Assessoria de Expansão Cultural; Depto. de Teatros; Depto. de Bibliotecas Públicas; Depto. de Bibliotecas Infantis e Depto. do Patrimônio Histórico. (“Folha da Tarde”, 28/12/74). Esta estrutura entra em vigor mais precisamente em 1975.

Nesta “segunda” fase, com Sábato Magaldi assumindo o cargo de Secretário Municipal de Cultura (nomeado pelo prefeito Olavo Setúbal), promovem-se várias ações para colocar a SMC em an-damento: reforma de teatros, aumento de frequência ao Teatro Municipal, preservação de monumentos históricos e artísticos e ampliação do serviço de bibliotecas.

Magaldi já tinha sido reconhecido por seu interesse pelas coisas da cultura. Foi dele também as idéias de “caixas-estantes” (“Sistema de circulação de livros pelos bairros,... instaladas em conjuntos ha-bitacionais da periferia”) e também o “carro-biblioteca” que percor-ria a periferia da cidade. (Registre-se que Mário de Andrade já tinha implementado esse tipo de atividade na cidade de São Paulo, mas foi interrompido com o tempo, idéias retomadas com maior fôlego durante a Gestão de Marilena Chaui – 1989-1992).

Mesmo num tempo de dificuldades políticas para os habitan-tes da cidade devido à Ditadura, com censura de apresentações públicas, Magaldi conseguiu fazer uma gestão considerada “pro-veitosa” (“Diário Popular”, 31/08/79), dando impulso ao teatro e abrindo espaços públicos para a população.

Enfim, o crítico de teatro redefiniu, depois de muito tempo, uma política cultural na SMC, merecendo, assim, um editorial da “Folha de São Paulo” (16/07/79) que finaliza elogiando a grande atuação na “democratização da cultura”. Considerando que “da década de 30 à de 70, foram construídas em São Paulo apenas 12 bibliotecas. Quase todas obedeceram ao princípio da monumen-talidade” (Mário Chamie, In: Caderno de Cultura – 1979-1982), o que deixa supor que depois da Gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura e Recreação, realizou-se pouca coisa em termos de Política Cultural na cidade. Apesar de limitado pe-

Page 71: Cultura e literatura diálogos

71sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

las circunstâncias da época, pelos problemas de infra-estrutura da Secretaria de Cultura e também pela visão cultural conservadora do governo municipal, pode-se considerar o trabalho de Sábato Magaldi como significativo para a cultura na cidade.

A periferia no discurso oficial (Mário Chamie: 1979-83)Na década de 1970, percebe-se que a gestão pública não consegue

dar conta dos problemas relacionados à cultura. Há uma precariedade de recursos financeiros destinados à SMC, principalmente, a partir de 1979, com a Gestão de Mário Chamie (nomeado pelo prefeito Reynaldo de Barros), que reclama de “cultura da escassez” Segundo editorial da “Folha de São Paulo”, “Não se trata de popularizar a ‘cultura erudita’, mas de abrir a possibilidade de participação do público marginalizado, por meio da ação de grupos itinerantes pelos teatros distritais e espaços da periferia, como quer o novo Secretário” (FSP, 03/09/79).

Começa a haver uma preocupação com as “margens” da cidade, criando-se então o Projeto Periferia. A idéia ainda era a de “distribuição do benefício cultural em escala sócio-comunitária e coletiva” (Caderno de Cultura - 1979-1982). Percebe-se, nesse projeto, uma variante da idéia de disseminação cultural a partir do Centro para os Bairros, mas que via a população co-participando dos serviços culturais.

Nesse período, verificam-se algumas melhorias e mudanças em relação à gestão anterior (Olavo Setúbal). As bibliotecas tornaram-se centros culturais, aos quais as pessoas poderiam ir para ler, mas também para ouvir música, assistir dança, teatro e cinema, e onde haveria deba-tes, palestras. Assim, esses espaços passaram a assumir um caráter mul-tidisciplinar, onde se realizam atividades, e não só eventos. Isso causou um deslocamento de caráter conceitual que deveria ter uma implicação mais profunda em termos de política cultural, mas que não teve.

Esses aspectos podem ser considerados positivos dentro de um contexto histórico inibidor de ações culturais mais avançadas, no en-tanto, ainda mantém-se uma atitude de favoritismo e de clientelismo em projetos culturais.

O problema principal dessas administrações é que elas não ul-trapassam o círculo de uma Ação Cultural voltada para a difusão dos

Page 72: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos72

bens culturais. De certa forma, o público era colocado numa relação de passividade com a cultura, não por ser considerado passivo em si mes-mo, mas pelo fato de que as políticas culturais, em última instância, não traziam um teor transformador das práticas sociais, ao contrário, procuravam manter o status quo. E essa postura faz toda a diferença quando se tem o propósito de provocar mudanças mais radicais e mais amplas na sociedade.

Um projeto cultural para a cidade (Camargo Guarnieri: 1984-85)Na primeira metade dos anos 1980, no Brasil, tinham sido reali-

zadas eleições para Governadores de Estado. A cidade de São Paulo, como Capital considerada “área de segurança nacional”, ainda não po-deria eleger seu prefeito pelas urnas. Mário Covas é nomeado prefeito pelo então eleito governador Franco Montoro. Nesse período começa a mobilização para a emenda constitucional para a realização de elei-ções diretas em todos os níveis de governo que, como se sabe, não foi aprovada pelo Congresso.

Na gestão Mario Covas (1984-85), com relação à cultura, começou-se a esboçar Um projeto cultural para a cidade de São Paulo. O então Secretário da Cultura, Gianfrancesco Guarnieri, postulava: “Um plano de atuação cultural no Município deve portanto reger-se a partir das relações entre a cultura e a cidadania, em todos os seus níveis (políticos, econômico, social, artístico...)”. (Boletim DPH, nº 1, 1985, p.7). Para a época, esta era considerada uma proposta audaciosa.

Gianfrancesco Guarnieri, no texto citado acima, critica a indústria cultural que, “identificada com o modelo brasileiro 64/84, agindo no sen-tido da padronização de valores e marginalizando a expressão cultural popular, desestimulando a pesquisa, desconsiderando as forças de resis-tência que a população teve de criar para enfrentar suas dificuldades”.

De fato, a indústria cultural do Brasil é um capítulo que está mal-resolvido, tanto no aspecto político como no aspecto cultural. Primeiro, porque a cultura de massa estaria devastando as expres-sões culturais locais, tornando-se mais indústria do que cultura.

Page 73: Cultura e literatura diálogos

73sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

A Secretaria Municipal de Cultura, nesse período, pretendia “atingir três objetivos básicos e combinados”:

“1) Promover uma reflexão, ao nível mais amplo possível, em toda a cidade, sobre as relações entre a cultura e a cidadania em São Paulo, nos últimos 30 anos, do ponto de vista da desagregação havida e do momento atual de uma sociedade em transformação.

2) Estimular o ressurgimento, a reorganização e a desmarginaliza-ção de produção e ampliação dos equipamentos culturais, e da existên-cia e estímulo à troca de valores, à experimentação, ao aprendizado.

3) Estimular e favorecer o paulistano na sua tarefa de resgatar sua própria cidadania, através do resgate de sua própria história.”(Um pro-jeto cultural para a cidade de São Paulo, In: Boletim DPH, nº 1, 1985)

Guarnieri pretendia descentralizar a cultura e a própria Secretaria, politizando o fazer cultural na cidade, colocando em prática o binômio participação/descentralização, principalmente na periferia, arte com o povo e não para o povo (valorização da cultura popular). Buscou tam-bém “estabelecer a ligação entre os artistas e essa cultura dos bairros, ainda desconhecida.” (“Estado de São Paulo”, 11/03/84).

Criou o Projeto “Cultura da Cidade”, que aproveitava a estrutura do antigo projeto “Periferia” e tinha como objetivo “proporcionar infra-estrutura mínima às produções artísticas alternativas, possibi-litando maior expressão cultural da população paulista.” (“Jornal da Bela Vista”, 6-14/09/84).

O secretário entendia que era preciso, desde o começo, trabalhar com a cidade como um todo (“Estado de São Paulo”, 11/01/84). Em par-te, isso foi realizado, mas recebeu várias críticas por seu “descaso” com projetos culturais (“Encontros de Escritores”, “Circuito Cultural” etc), com relação ao Teatro Municipal, e por “administrar a cultura politica-mente” (Mário Chamie, entrevista para “Visão”, 11/09/85).

A cultura sem projeto (Gestão: 1986-88)Na administração Jânio Quadros, vencedor das primeiras

eleições diretas em São Paulo, a Secretaria Municipal de Cultura passa a se compor com Esporte e Lazer, quando a tendência da

Page 74: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos74

Gestão Pública de Cultura era de desmembramento e autonomia das Secretarias e Órgãos Públicos de Cultura.

Ocupam o cargo de secretário de cultura três “amigos” pes-soais do prefeito: o primeiro faleceu logo depois de assumir e os outros eram empresários (Jorge Yunes e Renato Ferrari).

Nesse período a gestão cultural da cidade foi marcada pela inércia e pelo laissez-faire cultural. Sentia-se a presença persona-lista do Poder Executivo nas quase mil indicações diretas por parte do próprio prefeito no preenchimento de cargos de livre provi-mento em comissão. Enfim, uma administração sob o signo da disputa de cargos e poder, reativando as velhas práticas do clien-telismo e favoritismo.

ConcluindoCom esse pequeno histórico, pode-se observar que, no âmbito

da administração cultural pública, antes da Gestão de 1989-1992, muitos projetos tinham sido desenvolvidos. Desde 1975, a SMC vi-nha realizando e implementando ações de pesquisadores e produ-tores culturais. Há que se considerar que vários governos munici-pais desse período tinham postura política conservadora, apoiando os ditadores do momento. Não obstante isso, a Secretaria deixou o registro de algumas ações e atividades que permanecem até hoje devido ao fato de que as práticas culturais “transcendem” padrões políticos dominantes, mantendo certa autonomia em relação a par-tidos políticos e aos discursos oficiais.

Show ao ar livre, acesso mais barato ao Teatro Municipal, re-cuperação de alguns equipamentos históricos são ações que, apesar de sua “precariedade conceitual”, e até por isso mesmo, colocavam a necessidade de um trabalho mais aprofundado em relação às ma-nifestações culturais da cidade, levando em conta as atividades dos fazedores de cultura.

Mas a idéia de uma Política de Cultura estruturada sobre o con-ceito de Cidadania Cultural só viria a ser implantada pela Gestão de Luisa Erundina, com Marilena de Souza Chaui à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo. O enfrentamento foi grande quanto aos in-

Page 75: Cultura e literatura diálogos

75

Nota* Publicado primeiramente na Revista Pólis, Cidadania cultural em São Paulo, n. 28, 1997, Instituto Pólis, São Paulo.

sÃo Paulo: diVersidade Cultural e disCurso ofiCial

teresses estabelecidos e quanto aos conceitos consagrados de cultura. Inverter os sinais de uma cultura consagrada foi o grande desafio do período da prefeita Luisa Erundina, inserindo na pauta da cidade a questão da cidadania e dos direitos culturais.

Page 76: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos76

Ao longo de sua história, o Departamento Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria de Cultura de São Paulo atuou como “inven-tariador” da memória da cidade e também como “registrador” de obras públicas de artes, isto é, como carregador do andor dos bens culturais dos donos da cidade. Déa Ribeiro Fenelon (1992) ecoa a idéia de Walter Benjamin quando ela pensa “...na velha tradição que caracterizou a área do patrimônio histórico (...) em que os bens cul-turais foram sempre tratados como despojos no cortejo triunfal dos vencedores”. (Fenelon, 1992; Benjamin, 1985: 224).

A Política Cultural da Secretaria foi traduzida para as ques-tões de patrimônio histórico pelo DPH que passou a considerar “a diferença e a multiplicidade” como pontos básicos do direciona-mento proposto inicialmente e da orientação geral de um projeto democrático da cultura.

Em relação ao patrimônio cultural ter-se-ia que repensar a noção habitual e tradicional. Na definição de Fenelon, “Bens cultu-

Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um mo-numento da barbárie.(Walter Benjamin)

Patrimônio histórico e cidadania cultural*

Page 77: Cultura e literatura diálogos

77

rais não são apenas aqueles tradicionalmente considerados dignos de preservação, produzidos e definidos pelos vencedores de cada época. Ao contrário, são os frutos de todos os saberes, todas as memórias de experiências humanas(...) todos aqueles que brotam de escolhas e ações coletivas” (Fenelon, 1992).

Para que essa reelaboração conceitual dos bens culturais pu-desse ser realizada, o DPH desenvolveu projetos e implementou programas na cidade de São Paulo com a intenção de romper com o tradicionalismo e de resgatar a memória plural e múltipla da cidade como um todo. Como afirma Fenelon, “O princípio desdo-bra-se na garantia da informação, na possibilidade da produção, no acesso à fruição dos bens culturais e na participação relativas à política desenvolvida”.(Fenelon, 1992).

O DPH desenvolveu o tema-eixo “O Direito à Memória”, atra-vés de várias atividades que objetivavam implementar o “Projeto de Cidadania Cultural” em São Paulo, na Gestão de 1989-92.

É preciso observar que o Departamento não se restringiu aos trabalhos com tombamento e preservação de bens imóveis, reati-vando o CONPRESP, mas ampliou seu leque de ação para ativi-dades de pesquisa e de intervenção simbólica nas diversas áreas pertinentes ao patrimônio cultural da cidade.

Três áreas de atuacão do DPHApesar de o DPH ter desenvolvido um número enorme de ati-

vidades e ter publicado vários resultados de trabalhos (revistas, bole-tins, livros e vídeos) e devido à falta de espaço para descrever todos, será feito um registro/relato sobre dois programas e um projeto que propiciaram um outro olhar sobre a cidade, modificando visões pré-estabelecidas sobre o espaço urbano e histórico do Brasil. Essas ações estavam relacionadas com as Casas Históricas, o Serviço Educativo e o Projeto Pátria Amada Esquartejada.

Casas HistóricasA revitalização das chamadas Casas Históricas foi um ponto im-

portante para o DPH pelo fato de ter podido com isso refuncionali-

PatriMôNio históriCo e CidadaNia Cultural

Page 78: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos78

zar essas edificações dando-lhes inclusive novos usos e sentidos, para que elas pudessem ser utilizadas em atividades culturais. A Divisão de Preservação fez pesquisas e estudos para poder rever as funções desses lugares da memória.

O Solar da Marquesa de Santos foi restaurado e passou a dar lu-gar a eventos culturais diversos: exposições fotográficas, de móveis e objetos históricos, espetáculos de canto coral, realização de semi-nários, cursos, memórias e demonstração de vídeos sobre a cidade e o direito à memória. Foi produzido um vídeo sobre a restauração do referido Solar e do chamado Beco do Pinto.

A Casa n. 1 foi restaurada, passando a abrigar o Arquivo Histórico Municipal que mantém o acervo documental da admi-nistração da cidade de São Paulo abrangendo o período de 1554 até aproximadamente 1912.

Na Casa do Sertanista, foi instalada a Primeira Embaixada dos Povos da Floresta, através de acordo da SMC com a UNI (União das Nações Indígenas). Nesse lugar, os Xavantes instalaram uma Exposição sobre os modos de vida indígena. Essa Exposição foi visi-tada por escolas públicas, e moradores da região do Butantã puderam ver de perto como são feitos alguns rituais indígenas. De uma lógica colonial, a Casa do Sertanista passa a colocar em pauta exatamente a cultura daqueles que foram vítimas pelos Bandeirantes. Esses even-tos serviram para mostrar a cara dos índios para São Paulo e para o Brasil. O fato de os índios terem participado de algumas atividades do DPH é muito relevante e revelador de culturas que ainda subsis-tem de uma forma ou de outra.

Os índios participaram do “Projeto Pátria Amada Esquartejada”, no qual se inseriam as “Aulas Públicas”: a aula do Parque da Previdência, no Bairro do Butantã, Zona Oeste de São Paulo, teve como tema os índios. O fato de eles terem participado foi muito importante para os diversos grupos do Brasil e o trabalho do DPH abria esse canal funda-mental de expressão da cultura indígena, dando visibilidade aos pro-blemas que afetam essa população milenar da América do Sul. Como disse Ailton Krenak, em entrevista para a Revista Teoria e Debate (No. 7, 1989): “Você não preserva seres humanos, você os respeita”.

Page 79: Cultura e literatura diálogos

79

A Casa do Sítio da Ressaca foi cedida para abrigar o “Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro”. Esse é mais um exemplo de res-gate de culturas que foram marginalizadas por governos que não re-conhecem nelas formas dignas de expressão cultural a serem preser-vadas. Os negros têm uma história de torturas e prisões ao longo da história brasileira, mas que têm mantido suas tradições e costumes. O acervo tem um papel importante na preservação da memória e da história da população negra no Brasil. A instalação desse acervo teve a participação dos movimentos sociais de cultura afro-brasileira.

A conhecida Casa do Grito foi usada para se falar de um ou-tro ponto de vista da História: os monitores do Serviço Educativo, ao levarem os alunos para a visita da Casa, contavam histórias do Brasil, desmistificando a idéia de que aquele teria sido o lugar onde D. Pedro I teria dado o famoso “Grito do Ipiranga”.

Enfim, esses são alguns exemplos de redefinição do perfil e do uso das Casas Históricas do município de São Paulo, levando a efeito um contra-discurso no âmbito do simbólico, colocando a história “a contrapelo”. Essas Casas tiveram seus papéis mudados com a realização de cursos, eventos e exposições de documentos e materiais relacionados com a história e a memória da cidade.

Serviço EducativoHavia, na Secretaria de Cultura de São Paulo, uma atividade re-

lacionada à “Educação em Museu” e também um programa de visi-tação ao Centro da Cidade (Museu de Rua) pelo qual era prestado um serviço principalmente para as Escolas Particulares e algumas Públicas com condições de se locomover para o centro da cidade de ônibus, porém sem oferecer transporte gratuito às Escolas Públicas Municipais das regiões periféricas da cidade.

Na Gestão 1989-92, houve um trabalho imenso no sentido de mudar o perfil dessa atividade que passou a ser denominado Serviço Educativo, ampliando-o principalmente para a rede municipal com transporte gratuito e um Curso de Capacitação para os Professores da Rede Municipal com um trabalho interdisciplinar, colocando e discu-tindo questões referentes ao Patrimônio Histórico, às Artes Plásticas, à

PatriMôNio históriCo e CidadaNia Cultural

Page 80: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos80

História da Cidade, ao Urbanismo, ao Plano Diretor, à Literatura, ao es-tilo de vida na cidade, etc. Com esse Curso pretendia-se que o professor, antes de ir ao centro da cidade com os alunos, fizesse uma preparação na sala de aula para que os estudantes soubessem o que ia acontecer no passeio: enfim, era uma “viagem cultural e lúdica ao Centro da Pólis”.

A equipe do Serviço Educativo entendeu que uma das maneiras de ampliar o uso e ocupação do espaço urbano pela população seria oferecer um serviço com os vários aspectos sobre a cidade que tivesse um caráter multidisciplinar. Assim, os participantes poderiam discutir várias questões das disciplinas fora do espaço confinado da escola.

Pretendia-se com isso que o espaço público fosse apropriado pelos que foram excluídos da participação na cidade. Também o estudo da História deveria ser revisto e repensado a partir de uma visão não-oficial. Era necessário pensar os “novos” atores socioculturais, como o indíge-na, o negro, o pobre, a prostituta, o estudante etc. Professores e alunos podiam ampliar seus conhecimentos sobre a cidade, tendo um contato imediato com o espaço urbano e entender que a cidade pode ser espaço de todos. Percebeu-se a necessidade de reconstituir a memória a partir de padrões organizativos que não constavam dos livros de história.

Um dos pontos básicos do Serviço Educativo foi o de propiciar uma aproximação da “Periferia” com o “Centro” da Cidade na prática cultural, o que foi realizado quando crianças e adultos de bairros po-bres puderam ver e estudar in loco o Centro Histórico da Cidade. Com esse movimento de ida ao Centro ampliavam-se os horizontes dos alu-nos das Escolas Municipais e, por ser uma atividade intersecretarial, funcionou como uma ponte entre a Secretaria Municipal de Cultura e a Secretaria Municipal de Educação.

Esse serviço oferecia visitas monitoradas em dois roteiros. Um estava relacionado com o Centro da Cidade e o outro era realizado no Parque da Independência, este último de suma importância para se estudar a história do Brasil.

O roteiro do Centro Histórico da Cidade articulava-se com a no-ção de “Cidadania Cultural”. Além de se oferecer aos alunos e pro-fessores a oportunidade de transitar e conhecer o Centro Histórico, discutia-se também o significado da cidade histórica com seus mo-

Page 81: Cultura e literatura diálogos

81

numentos, e eram estudadas as concepções urbanísticas que acaba-ram por construir o tipo de cidade que temos hoje com todos os seus problemas de infra-estrutura, de transporte, de habitação etc.

De cima do Edifício Martinelli, podia-se fazer uma observação global da cidade. Ao descer para as ruas, eram contadas as histórias de pessoas e de grupos que as habitaram. Estudava-se o significado das ruas do Centro com suas igrejas e edificações antigas, juntamente com seus habitantes (índios e negros), mostravam-se as contradições das belas construções da antigüidade e da modernidade paulistana.

No Pátio do Colégio, podia-se entender o que foi feito com o espaço: as diversas obras que foram construídas e destruídas. Por exemplo, o prédio da Igreja e do Museu Anchieta é uma mera réplica. Dos fundos do Pátio do Colégio, olhava-se para a Várzea do Carmo a partir da qual a cidade tinha se expandido em direção à zona Leste.

Enfim, este passeio podia proporcionar um outro olhar sobre a Arquitetura e a História das construções do Centro da Cidade aos participantes do projeto, tanto crianças como adultos que nun-ca tinham visitado o local.

Já o roteiro do Parque da Independência incluía o Eixo Monumental, composto pelo Museu Paulista, jardins franceses, o Monumento à Independência, a Av. D. Pedro, a Casa do Grito e o Riacho do Ipiranga. O passeio pelo Parque propiciava uma reflexão sobre os símbolos da pátria ali “armazenados”. O prédio que abriga o atual Museu Paulista, semelhante a um “Palácio Real”, tinha sua história contada a partir de outros pontos de vista. A Casa do Grito provavelmente não existia na época em que D. Pedro teria passado por ali. O Riacho do Ipiranga sofreu um desvio para ficar mais perto do Monumento.

O quadro de Pedro Américo, “Independência ou Morte”, lo-calizado no “altar da pátria”, salão nobre do Museu, era analisado dentro de uma ótica de desconstrução, possibilitando uma viagem ao passado brasileiro sob outro prisma. O jardim, réplica nos trópi-cos dos “jardins franceses”, e localizado na frente do museu, refletia os valores de unidade, ordem e disciplina que orientariam a mon-tagem do altar da pátria. Esse trabalho com a natureza leva-nos a crer que “até a paisagem foi colonizada”. Tudo isso servia para

PatriMôNio históriCo e CidadaNia Cultural

Page 82: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos82

desmistificar a versão da história oficial, e para problematizar os chamados símbolos nacionais.

Além dessas monitorias no Centro Histórico e no Parque da Independência, a equipe do Serviço Educativo fez uma pesquisa es-pecífica com visitas a museus e recolhimento de material informa-tivo sobre as atividades em instituições da cidade, resultando dessa pesquisa um Guia de Museus e Instituições da Cidade de São Paulo dirigido a Professores e publicado pelo DPH em 1992. Esse Guia foi distribuído para escolas e entidades culturais da cidade e teve a função de colocar à disposição de professores informações sobre um número razoável de instituições que pudessem servir de apoio às aulas. O Guia devia servir para “tirar” alunos e professores da escola e colocá-los em contato direto com acervos históricos, científicos, artísticos e culturais da cidade. No encontro com professores, tanto da Rede Pública como da Rede Particular, percebia-se claramente que eles não tinham acesso às informações exatamente porque havia pouca divulgação dos serviços que instituições públicas e privadas prestam no sentido de ampliar as atividades extraclasse.

Em 1992, também foi publicada pelo DPH, uma coletânea in-titulada Textos e documentos para discussão com professores, cuja pesquisa foi elaborada pela equipe do Serviço Educativo. Essa cole-tânea era um material de apoio a professores e alunos que visitaram o Centro Histórico e o Parque da Independência, e se inseria nos debates sobre os 500 anos de “descobrimento” da América. Apesar das condições de trabalho inicialmente precárias, este trabalho foi de importância vital para a Ação Cultural na cidade de São Paulo.

O Serviço Educativo faz parte da Divisão de Iconografia e Museus do DPH, porém não estava incluído no Organograma Oficial da SMC, o que dificultava bastante a aquisição de material de trabalho e alo-cação de verba para se desenvolverem as atividades pertinentes a essa área. Para que funcionasse a contento, nesse período, o Serviço Educativo contou com várias Coordenações eficientes e uma equipe composta de funcionários, historiadores, pesquisadores e estagiários que dinamizou o trabalho de monitorias e de pesquisas quanto às Artes Plásticas, à História e ao Plano Diretor da Cidade de São Paulo.

Page 83: Cultura e literatura diálogos

83

Pátria Amada Esquartejada“Pátria Amada Esquartejada” foi um projeto localizado dentro

de um eixo maior, “500 anos, Caminhos da Memória, Trilhas do Futuro - 1492, 1792, 1922”, tendo como tema a Nação Brasileira. Esse projeto foi concretizado em duas atividades principais: Aulas Públicas e Visitas Monitoradas, e teve como produtos a publicação da Série Registros (n.15) e um vídeo de 32 minutos com depoimen-tos de participantes das referidas aulas.

A idéia de nação sempre foi vista de maneira bastante abstrata e distante da experiência humana (Registros, n. 15, p.7). Para um país como o nosso, com um alto índice de analfabetismo, a idéia de nação, com uma história iniciada na formação dos Estados Modernos (séculos XVII e XVIII), teria de ser repensada não exatamente nos moldes da tradição européia, mas no contexto de uma outra realidade social. Qual o significado então de nação para o trabalhador, o índio, a criança, o migrante, o idoso, a mulher e outros grupos “minoritários”? A intenção do projeto foi discutir, levantar questões, repensar valores que têm sido estimulados pelos símbolos nacionais (bandeiras, hinos etc).

O título “Pátria Amada Esquartejada” ligava-se à imagem do Tiradentes esquartejado e não desse herói visto por inteiro. Sabe-se que esse personagem histórico nunca aparece nas representações iconográficas partido e dividido, mas é retratado como estando “vivo”. Isso remetia à idéia do corpo da nação unida e sem conflitos; sabe-se também que Tiradentes, por outro lado, representou de um certo modo a resistência em relação a impostos cobrados pela Corte Portuguesa. Diante de nossa história oficial e do contexto social atu-al, fazia-se necessária uma releitura de alguns símbolos históricos nacionais, trabalhando diretamente com a população da cidade de São Paulo, verificando o que essa população pensava sobre o assun-to e o que ela desejava ver mudado na simbologia brasileira.

Foi nesse contexto que foram promovidas as chamadas “Aulas Públicas” e as Monitorias nas Exposições do Projeto.

As “Aulas Públicas” tinham um “formato de tv de rua”. Usou-se o chamado “caminhão-expressão” da TV Anhembi, com uma equipe técnica que coordenava as aulas em lugar público predeterminado

PatriMôNio históriCo e CidadaNia Cultural

Page 84: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos84

pela produção do evento. Depois de uma introdução ao tema e sobre o significado do evento, a apresentadora colocava a questão para o público sobre o que é ser brasileiro, e então era passado um vídeo sobre o tema da “aula” (Meninos de Rua, Idosos, Migrantes, Sem Terra, Índios, Negros, Trabalhadores). Essas aulas não tinham um caráter “escolar”. Era escolhido um palestrante, em geral ligado aos movimentos sociais específicos. Por exemplo, para falar sobre índios foi convidado Ailton Krenak, sobre Meninos de Rua, falou João de Deus, sobre Idosos, falou Lélia Abramo e assim por diante.

Além dessas aulas públicas, havia também as monitorias nas Exposições itinerantes (versão reduzida da Exposição Pátria Amada Esquartejada com imagens sobre o Brasil e suas múltiplas faces - “as caras do Brasil”). O kit completo dessa Exposição foi distribuído a escolas públicas e particulares, e a instituições cultu-rais que faziam solicitação para trabalhar com o material. Também foi instalada a versão integral da Exposição junto ao Monumento à Independência: nesse lugar a equipe do Serviço Educativo realizou monitorias com os alunos da rede pública de ensino e com grupos interessados em visitar a exposição.

Por este trabalho de “desconstrução” dos símbolos nacionais, este Projeto “mereceu” uma menção na imprensa. “O Estado de São Paulo” publicou, em Editorial do dia 23/04/92, uma crítica desta atividade, por-que, segundo o Jornal, ela pretendia “destruir todos os símbolos, toda a possibilidade de os brasileiros se aglutinarem”, além do mais a exposi-ção teria como objetivo “destruir tudo aquilo que pode dar sentido ao plebiscito cotidiano em que a Nação se constrói”. Evidente que o Jornal, dentro de uma perspectiva histórica conservadora, defendia valores bas-tante cristalizados que, segundo essa visão, estariam “em perigo”.

O projeto teve o mérito de propor novas leituras da história oficial e suscitar o debate de um tema que necessitava de revisões históricas. Um problema, apontado por muitos usuários, era relativo à linguagem utilizada nos cartazes considerada de difícil compreensão pelo cidadão “comum” e por alunos de escolas de 1ºe 2º Graus. O problema foi em parte contornado pelo trabalho de monitores que trabalharam com es-colas e grupos que visitavam a Exposição em vários lugares da cidade.

Page 85: Cultura e literatura diálogos

85

Outros projetos do DPHConsideramos que o DPH foi um dos mais ativos da Gestão

Cultural de 1989-92, e trouxe contribuições importantes para se re-pensar a história da cidade, apontou questões sobre preservação e tombamento que antes não tinham sido apontadas, principalmente quanto aos valores culturais de uma metrópole como São Paulo.

Nesse momento também foi realizado o Congresso Internacional de Patrimônio Histórico, em 1991, com o tema “O Direito à Memória”, com grande sucesso de público, um marco importante para pesquisa-dores e profissionais que atuam na área de preservação, da história e da memória social. Houve discussões sobre tombamentos, área parti-cularmente sensível devido aos interesses imobiliários envolvidos.

Foram desenvolvidos, através da atuação do Arquivo Histórico Municipal, projetos importantes na área de Arquivo, desde ativi-dades relacionadas à restauração e preservação de documentos em papel até inventários de documentos administrativos do município de São Paulo, investindo-se ainda em máquinas de reprodução de manuscritos por digitalização.

Um outro projeto muito importante esteve relacionado à Memória Oral, que trabalhava com a memória de trabalhadores aposentados da Fábrica de Cimento de Perus e com pessoas da favela de Heliópolis, uma das maiores da cidade.

Nos termos deste breve texto não seria possível desenvolver uma reflexão sobre todas as ações deste Departamento no período estudado. Mas fica aberto o caminho porque há muito para se desenvolver em pesquisas sobre o tema, aprofundando análises e fazendo também as possíveis críticas em relação aos projetos realizados por essa gestão.

Notas* Publicado primeiramente na Revista Pólis, Cidadania cultural em São Paulo, n. 28, 1997, Instituto Pólis, São Paulo.

PatriMôNio históriCo e CidadaNia Cultural

Page 86: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos86

Page 87: Cultura e literatura diálogos

87

Literatura

Page 88: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos88

Desde a arte paleolítica registra-se algum tipo de violência, come-çando com o Bisão sendo atacado, passando pela Idade Média e as Cruzadas até chegar aos campos de concentração nazistas e às guerras atuais e suas prisões de segurança máxima.

A violência é uma ação que simplesmente não considera o outro, numa relação em que retira a fala do outro. Ela não precisa ser ne-cessariamente de ordem física, também se manifesta em seu aspecto psicológico ou simbólico em formas sutis e quase imperceptíveis.

A barbárie foi interiorizada e está inserida nos interstícios da cul-tura. A história da humanidade é uma história de violência que se ma-nifesta abertamente ou de forma fechada. Em geral, a violência parte

Resistência é um conceito originalmente ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força, exte-rior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. (Alfredo Bosi)

Violência e resistência na literatura brasileira*

Page 89: Cultura e literatura diálogos

89

dos que obrigam outros a fazer alguma coisa, inclusive com o con-sentimento de grupos majoritários como foi o caso do Nazismo que, como afirma Murilo Mendes, “é a crueldade organizada” (Mendes, Discípulo de Emaús, In: PCP, 1994). Nesses casos de violentação do humano os limites simplesmente não existiram.

A violência perpassa instituições em vários momentos históricos, mas também tipos diferentes de entidades. A trajetória das religiões está eivada de episódios medonhos. A lista é longa: desde a crucifica-ção de Cristo, do modo como relatado, passando pela perseguição aos primeiros cristãos, as Cruzadas como reação violenta contra os “bárba-ros”, até a Inquisição que foi marcada pelo signo do terror e do medo.

Hoje a violência se disseminou e atinge todas as classes sociais e posições ideológicas. Temos, então, o terror do Estado, a maldade do-méstica e contra presos, enfim, violência generalizada que se espalha invisível pelos poros do cotidiano, além da crueldade simbólica difícil de se detectar, manifestando-se nos locais de trabalho de várias formas.

A violência também guarda forte parentesco com o medo. Medo da natureza, do outro, do desconhecido e de si mesmo, do contin-gente, do imprevisível que faz com que as reações sejam também violentas. A violência é inimiga da liberdade com autonomia, já que o império do medo leva aos impulsos para atacar o outro. Enfim, estamos acostumados com a desigualdade e indiferença social causa-das pelo horror econômico que afeta todos os campos da vida.

Veremos a seguir como a violência se insere na história e na literatura brasileira.

Cenas de violência e resistência na literaturaA crueldade encontra-se nos mais diversos registros literários.

Grande parte da cultura e das artes é construída de forma violenta, como indica Benjamin (1985). O bouquet da literatura e das artes exala o cheiro de fumaça.

A violência aparece na literatura de várias formas. Primeiro de forma explícita, quando é declarada por uma personagem ou um estado de coisas ou situação. Na literatura brasileira há muitos exemplos disso, desde as crueldades físicas praticadas no processo

ViolêNCia e resistêNCia Na literatura Brasileira

Page 90: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos90

de colonização até as imposições simbólicas praticadas pela reli-gião e reordenada pela literatura e pelas artes plásticas.

A presença da violência na cultura brasileira, muitas vezes é imperceptível a olho nu, mas os escritores registram também a resistência aos fenômenos da crueldade histórica.

Ao longo de nossa história literária a literatura brasileira vem registrando os atos bárbaros, tanto no campo dos romances, com suas representações ficcionais como na poesia.

A poesia tem sido árvore “frutífera” no registro da resistência aos modos de imposição de padrões civilizatórios. Por exemplo, nos poemas épicos “Canto do Guerreiro” e “Canto do Piaga”, Gonçalves Dias registra a catástrofe da colonização, encenando a dizimação dos índios. (“O que eles vem fazer? Vem conquistar seu povo.”)

Os exemplos no campo da ficção são muitos. Por exemplo, José de Alencar usa documentos históricos para produzir os romances Iracema e O Guarani, mostrando nessas obras o quão pesada foi a mão colonizadora, ainda que pintasse suas personagens com tinta leve, apontando que a mistura de culturas se deu de forma não tão pacífica. Machado de Assis, em crônica de 1888, conta o caso do proprietário de escravos que liberta o seu antes da Abolição oficial. Brás Cubas monta a cavalo no negrinho e esse mesmo negro depois, quando cresce, bate em outro. Em contos de Machado de Assis, a violência das aparências é muito forte, como em “O Espelho”, no qual a imagem elimina o homem. Já em “A causa secreta”, o mesmo autor mostra cenas de violência explícita contra homens e animais.

No modernismo, vários outros escritores fizeram da violência o tema de seus trabalhos, começando por Euclides da Cunha que pesquisou Canudos para descrever a brutalidade contra o sertanejo em Os sertões, no qual mostra o genocídio de má fama. Graciliano Ramos, em São Bernardo aponta as maldades praticadas em nome da propriedade privada da terra. Nesse romance Paulo Honório passa por cima de tudo e de todos para expropriar os outros de suas terras. Em Vidas Secas, do mesmo autor, evidencia-se o mandonismo e a violência do espaço sobre as personagens. Em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a migração para a grande cidade é as-

Page 91: Cultura e literatura diálogos

91

sombrada pelos mortos no meio do caminho. João Guimarães Rosa sintetizou muito da história da crueldade em Grande Sertão: Veredas em que representa conflitos brasileiros no sertão.

Já a poesia modernista, a partir de 22, se constituiu em forma de resistência e combate ao establishment ao deslocar os discursos oficiais e ao elaborar contra-relatos e contra-retratos da história ofi-cial. Vide, por exemplo, Oswald de Andrade com Poesia Pau-Brasil (História do Brasil) e Murilo Mendes com sua História do Brasil.

A violência moderna comparece claramente em Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, onde registra as barbaridades da guerra e seus impactos no Terceiro Mundo. Em outros poemas de forma não explícita, a violência subjaz nas camadas em que é difícil a visualização da exterioridade histórica devido ao seu alto grau de sub-jetividade. Mas na proposição de Theodor W. Adorno, quando o poe-ta fala de si também revela as fragmentações e rupturas da sociedade em que vive (In: Lima, 1975). Recentemente, Drummond mostra o domínio do ser humano pela mercadoria. Seu poema “Eu etiqueta” aponta como o econômico tomou conta do mundo subjetivo. Mais recentemente a prática do cordel como literatura fez surgir novos re-gistros sobre a história do ponto de vista popular (Curran, 2001).

Um corte de cena nos leva para a literatura urbana contemporâ-nea. O contista Rubem Fonseca adota a literatura brutalista (Alfredo Bosi), mostrando em seus contos a violência do bandido (“Feliz ano novo”) e a violência do executivo (“Passeio noturno – Parte I”), sinôni-mos do mesmo fenômeno. Dalton Trevisan, também contista, aponta para a violência e indiferença no cotidiano das grandes cidades, por exemplo, nos contos “Uma vela para Dario” e em “Cemitério de ele-fantes”, textos dos mais pungentes da literatura brasileira moderna.

Murilo Mendes e a colonização dos bárbarosMurilo Mendes (Juiz de Fora, 1901 - Portugal, 1975) publicou

História do Brasil, em 1932, inserida no contexto do primeiro mo-vimento modernista. Na linha de um Oswald de Andrade, retoma episódios históricos com uma veia satírica. São os consagrados poe-mas-piada da fase heróica do Modernismo Brasileiro.

ViolêNCia e resistêNCia Na literatura Brasileira

Page 92: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos92

Em História do Brasil, o poeta reelabora o passado do País an-corado no tempo presente com uma projeção para o futuro. Aqui então, percebemos que a compreensão do passado leva em conta o presente e, para compreender o presente, o passado não é desconsi-derado, numa oscilação pendular dialética. Mas a leitura do passado é feita a contrapelo, em sentido contrário, a fim de perceber um outro movimento da história, mais denso e problemático. Torna os episó-dios passados em acontecimentos com densidade no presente. A estes fatos o Autor dá um tratamento poético e dinâmico.

Na leveza e “superficialidade” de História do Brasil se percebem os “relatos de conspiração” que explicitam uma tomada de posição quanto aos oprimidos da história brasileira. A resistência poética se dá pela simpatia ao mais fraco, numa perspectiva clara, pois os acontecimentos reaparecem no relato que desvela a realidade histó-rica, fazendo falar o que foi apagado da história. A poesia aí produz uma visão de mundo a “contrapelo da história”. A sua versão entra na atmosfera de uma “História aberta”. (Gagnebin, in: Benjamin, 1985: 7-9). Neste sentido, o poeta exerceria a função do historiador mate-rialista que, parafraseando Walter Benjamin, faz “saltar pelos ares o continuum da história” (Benjamin, 1985: 231)

Uma das propostas básicas desse livro é desmontar os imagi-nários de fundação do Brasil. O livro não é só conjuntural como o próprio poeta gostaria, mas estrutural, isto é, remexe em estruturas profundas do ethos nacional, como podemos observar ao longo do “percurso histórico” traçado.

O livro é um forte instrumento de desfossilização do passado cul-tural e político e, ao promover essa operação, o autor atua com um olhar atento e inovador do intelectual que não é tradicional ao “aproveitar a sabedoria popular em suas obras” (Chaui, 1983: 15 e 16). No caso, o saber popular está relacionado a uma forma literária (“romance”) com-posta em redondilhas maiores. O modo descontraído com que trata o tema também aponta para um saber oriundo das camadas populares.

O que entra em jogo no livro é a representação do oprimido que toma a palavra. Sua poesia pode não se pretender popular, mas se torna popular no sentido de dar voz aos que não tinham como se

Page 93: Cultura e literatura diálogos

93

expressar. O fato de o poeta não se declarar popular não contradiz suas práticas poéticas. Vejamos o poema:

MARCHA FINAL DO GUARANI

Ninguém mais vive quieto na terra.Outros deuses povoam o paísAndo agora vestido de fraque,Pus no prego a gentil açoiaba.

O tacape enferruja num canto, A bengala não largo da mão.Sons agudos de inúbia não ouço,Na vitrola só tangos escuto.

Já não tarda o fim desta raça.Manitôs abandonam as tabas. Meus irmãos, azulemos pra Europa:

O inimigo já chega bufando,Na maloca já fogo tocaram...Ó desgraça! ó ruína! ó Rondon!”

(Mendes, 1993: 183)

Em História do Brasil, as soluções imaginárias do poeta, apa-rentemente no nível superficial da zombaria, se transformam numa crítica radical dos modos de se representar os eventos e persona-gens históricos do País. A simpatia do poeta pelos derrotados da história se dá em vários poemas.

No poema “Marcha final do guarani” patenteia-se a identificação do autor com os “esquecidos” da história, mas de forma que, ao abor-dar o habitante da terra antes do descobrimento - o indígena -, não o mostre de modo idealizado e sim pela via irônica própria dos moder-nistas. Observe-se que o tema indigenista não é um dos prediletos do poeta, havendo pouca referência aos índios em sua obra.

A tensão histórica é atualizada pelo poeta através da represen-tação da decadência da cultura nativa, representação esta realiza-da com base em diversas produções culturais (poemas, romances, música e documentos históricos), cruzadas num único poema. Isso denota a releitura produtiva feita pelo poeta dos modos de figurar um evento histórico de longa duração.

ViolêNCia e resistêNCia Na literatura Brasileira

Page 94: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos94

No poema estabelece-se um jogo de paródia satírica, com fortes referências a Gonçalves Dias (“O Canto do Piaga”), do qual produz pa-ródia, ao mesmo tempo que cita O Guarani, de José de Alencar, além da referência à música de Carlos Gomes. Aí o poeta retoma uma literatura romântica aparentemente sintonizada com um imaginário destituído de contradições históricas que, no entanto, constrói duas visões dis-tintas sobre o processo de colonização. Primeiro, a visão do massacre produzido pelas invasões no poema de Gonçalves Dias, com um olhar mais favorável aos primeiros habitantes da terra brasilis. Depois, a da assimilação do indígena pela cultura do colonizador presente em José de Alencar d’O Guarani, o que denota, no poeta modernista, um diálo-go intencional com os dois modos de representar a história do país.

Já o termo inicial no título, marcha, denota uma ação militar que, paradoxalmente, anuncia uma derrota, pois é “final”, o que já indica o tom irônico do poema. O termo marcha também está associado à música que cita o “canto” do poeta romântico, mas também remete à Marcha de Carlos Gomes e à Marchinha como estilo musical.

O gesto triunfante de uma marcha dá lugar ao evento da destrui-ção de povos colonizados. Não se opera aí, como ocorre no caso de Alencar, com a idealização do indígena. Esta postura “realística” faz parte de uma estratégia geral do livro, pois não se idealiza o margina-lizado que também não é totalmente vencido. Ao passar a voz lírica ao índio, o poeta também se inclui nesse procedimento, disfarçando-se nela, o que aponta para a empatia com os oprimidos já mencionada.

Os efeitos da catástrofe são anunciados de forma genérica e de modo solene logo no primeiro verso da primeira estrofe: “Ninguém mais vive quieto na terra.” Instaura-se uma inquietação nos habitantes da terra. Na seqüência, o poema indica a causa da perturbação e as mudanças operadas: primeiro pela entrada de nova fé como se deduz do segundo verso: “Outros deuses povoam o país”. Os “deuses”, por metonímia, se referem aos homens com armas de fogo, evidenciando-se uma releitura do Arcadismo, com alusão específica ao Caramuru de Santa Rita Durão. Indiretamente, estas divindades também indi-cam práticas politeístas em contraposição ao monoteísmo cristão.

Page 95: Cultura e literatura diálogos

95

A escolha deste ritmo no poema, então, remete a uma tradição literária que optou pela imagem de índio como símbolo nacional, mas esta escolha incide ainda na referência ao índio “cobarde” de “I-Juca-Pirama” - no trecho citado por Bandeira -, que não teria conseguido resistir aos outros povos indígenas.

O gesto do guarani do poema, assimilado pela cultura euro-péia, ao vestir o fraque tem uma correspondência no trabalho li-terário de vestir o assunto com a roupagem do soneto, um dos paradigmas literários da cultura parnasiana. Isto é, ao compor na forma soneto, o poeta, como o índio em sua mudança de roupa, também imita, ironicamente, a cultura européia.

Amarram-se, assim, as duas vestimentas, a roupa do branco no índio e a linguagem poética padrão. Aparecendo duas vezes em História do Brasil, o soneto, como forma fixa priorizada pela tradição literária, se faz pouco presente nas práticas modernistas da primei-ra safra. Apesar de esta espécie poética, em geral, ter uma estrutura complexa, este em particular trabalha com uma estrutura sintática simples e com métrica que se destaca do tradicional decassílabo. O que mostra um alinhamento relativo à perspectiva da construção lite-rária tradicional. Por exemplo, a partir do segundo verso da segunda estrofe, a inversão sintática – hipérbato simples – denota uma prática muito associada ao Parnasianismo, mas apesar da construção sintá-tica simples, a inversão pode ganhar um valor que está sugerido ao longo do poema: a inversão cultural do índio.

Vale aqui uma pequena comparação entre Murilo e outro autor do primeiro modernismo, Oswald de Andrade. O índio de Murilo é diferente, por exemplo, do índio do escritor paulista que seria uma atualização da figura romântica do nativo que fundamentaria a idéia de nação, não mais como figura subserviente, mas resistente à domi-nação cultural e política de uma Europa expansionista. Como assinala Vera Chalmer, “O índio histórico, derrotado pela expansão do capital comercial, pelo genocídio e pela escravidão, é alçado a resíduo cul-tural de resistência ao capital industrial moderno, nos anos vinte e trinta.” (Chalmers in: Chiappini, 2002: 110).

ViolêNCia e resistêNCia Na literatura Brasileira

Page 96: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos96

O índio de Murilo não se constituiria como figura de resistência a uma cultura dominante, mas seria assimilado dialeticamente pela cultura Ocidental. Como o de Oswald, o “índio de papel” no poema muriliano não seria mais o ser exótico, mas, a seu modo, teria digeri-do como um antropófago a forma literária e, através dela, sobrevivido literariamente. A luta desse índio, menos explícita que a do índio de Oswald, se dá dentro dos limites culturais impostos pelo colonizador. Não seria uma “descida antropofágica” à procura das “raízes étnicas e culturais” (Chalmers, in: Chiappini, 2002: 108), mas um diálogo com a cultura branca que, ambiguamente, também dá sustentação à formação cultural brasileira.

Ao desvelar o processo civilizatório instalado no Brasil, a produ-ção muriliana se aproxima da do Oswald “primitivista” de Pau Brasil e do Manifesto Antropófago, no que se refere à subversão da perspectiva do europeu sobre o País, (Chalmers, in: Chiappini, 2002: 107), mas se distingue do paulista, como se vê no soneto estudado, tanto no que se refere à imagem do índio como na forma de composição.

Assim, quanto ao aspecto da expressão, no caso do soneto de Murilo o combate é feito internamente ao poema, ao contrário de Oswald de Andrade que fez de sua “poesia-minuto” a arma de comba-te externa às estruturas arcaicas da sociedade da época, isto é, a partir de um ponto de vista “externo” às formas tradicionais.

Neste caso, a memória étnica é recobrada pelo viés da civilização, mas dentro de uma “forma ambígua”. Na situação de aporia final, em que há uma perda cultural, o poeta compensa pela atuação dentro da cultura incorporada. Assim, a opção pelo soneto, indica ainda outras possibilidades. Na forma do soneto, se dramatiza a tragédia da colo-nização, mas, como aponta Antonio Candido:

Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma da expressão). (Candido, 2000: 101)

O tom satírico, característico do livro, corrói, por dentro da for-ma, num movimento dialético, os modelos artísticos mais tradicionais,

Page 97: Cultura e literatura diálogos

97

ao mesmo tempo que, ao usá-los, realiza a sua preservação. Neste poe-ma, ao atuar por dentro da forma tradicional, o autor debate de modo tenso com esta forma de escrita. Assim, a roupagem da linguagem – “a forma de expressão” - se espelha na formalidade da linguagem tradi-cional, incorporando o seu conteúdo, a sua “substância”.

Enfim, o “olho armado” de Murilo, com sua dissonância parale-la ao modernismo, demonstra uma tensão entre forma tradicional e os efeitos de um processo cultural arrasador. Produz-se, assim, um “ruído”, atuando ironicamente por dentro da forma ao apontar que, no processo civilizador, houve um movimento de vitória e derrota parciais, visto que o oprimido usa de uma astúcia de sobrevivência ao se apropriar das “armas” culturais do colonizador.

O poema pode ser considerado uma síntese do tratamento que o poeta concede aos revoltosos em outros poemas do livro, por exem-plo, “Cantiga dos Palmares”, “Milagre de Antonio Conselheiro”, “O chicote de João Cândido”.

Na história podemos ver dois tipos de brutalidade contra o ser humano: uma é a brutalidade do vencedor, que se faz de for sutil; a outra é a “brutalidade” do vencido que muitas vezes é ex-posta explicitamente que no fundo é uma reação às forças brutas do dominador. Na literatura que abordamos vemos como estão registradas a violência do colonizador e seus efeitos.

Hoje a violência do Capital está espalhada pela sociedade de forma a jogar trabalhador contra trabalhador, amigo contra amigo, enfim os “iguais” se tornam desiguais na “guerra civil do trabalho” que vivemos no dia-a-dia.

Notas* O presente artigo faz parte de minha Tese de Doutorado intitulada Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa, defendida em 2006 na FFLCH/USP, publicado no livro Os sentidos da violência na história. Everaldo de Oliveira Andrade (org.). São Paulo: LCTE, 2007. O texto foi revisado para a presente publicação.

ViolêNCia e resistêNCia Na literatura Brasileira

Page 98: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos98

Este estudo busca exercitar e pensar as interações de literatura e his-tória. A história pode lidar com vários suportes e materiais, como fotografia, documentos, mapas etc. Um deles, que se constitui num dos mais produtivos e criativos, é a literatura. As relações entre his-tória e literatura são complexas, tanto na teoria quanto nas práticas, e há necessidade de se explicitar as possibilidades de trabalho entre as

...não se pode negar o caráter constante de coação e dependência estrita a que foram submetidos índios, negros e mestiços nas várias formas produti-vas das Américas portuguesa e espanhola.(Alfredo Bosi)

Amor e ode na história e na literatura: Murilo Mendes*

Page 99: Cultura e literatura diálogos

99

duas áreas, tarefa que precisa ir além de uma análise da literatura so-mente em seus aspectos formais para abrir uma perspectivação mais colada na produção imaginária dos eventos históricos. Para acertar os ponteiros da história e da literatura vamos analisar as possíveis relações entre esses campos e as interações possíveis.

Recentemente, Roger Chartier (2007:53), pesquisador renomado da área de história da leitura, declarou a importância da literatura para o entendimento da história, referindo-se especificamente à “forma de atração” do romance histórico que, se bem escrito, pode abranger um público amplo. Apesar de não abordarmos o gênero romance, vamos trabalhar com uma produção textual chamada “romance”, constituída por poemas satíricos de Murilo Mendes (1901-1975).

Os problemas quanto aos usos tanto do termo história como do termo literatura se referem ao estatuto de ambos os tipos de escrita. Em geral, são usos que se ligam a uma apropriação des-tes conceitos como “coisas” substancializadas, isto é, por este uso cada termo possuiria um grau de autonomia absoluto, uma origem essencial e, portanto, intocável por ambas as partes, fato que os pesquisadores vêm tentando superar.

Os historiadores, em seus estudos, utilizam a literatura como documento, registro ou ilustração de fatos passados, e a literatura vem despertando o interesse por ser considerada uma expressão que atribui outros sentidos aos eventos históricos.

No campo da história, as relações dos discursos literários e his-tóricos foram possibilitadas pela problematização epistemológica situada na diferença entre a “passeidade” - passado realmente acon-tecido - e a historiografia ou “a narrativa feita dele” operada pelo historiador, “a sua recriação sob a forma de uma versão plausível”. Juntamente a isso, firmou-se uma “convicção” de que os fatos pas-sados não podem ser mais recuperáveis na sua concretude, sendo eles mesmos representações. Já no campo literário, observamos que as pesquisas em literatura são amplas e diversas, e vêm propician-do um olhar interdisciplinar, com o cruzamento de visões sobre a história e a literatura, superando assim a investigação literária pautada por uma prática de análise somente sobre os elementos

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 100: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos100

intrínsecos da obra literária sem associação com a sua produção histórica. (Lemaire, 2000: 9-10).

Aqui não propomos uma divisão absoluta entre o discurso da história – tradicionalmente ligado aos fatos – e a literatura vista como produto único da imaginação, pois há uma infiltração mútua das duas formas de escrita: a ficção poética está eivada de elementos da história social e esta se representa, diretamente ou de forma oblíqua, no texto poético. A escrita da história trabalha com elementos e técnicas de fabulação da realidade, enquanto que a literatura ganha dimensões históricas (White, 1992; Gay, 1990).

No parecer de Ria Lemaire (2000: 10), as duas escritas são bas-tante assemelhadas: “Tanto a narração literária quanto a historiografia pressupõem um processo e estratégias de organização da realidade, uma procura de uma coerência imaginada baseada na descoberta de laços e nexos, de relações e conexões entre os dados fornecidos pelo passado.” (idem, ibidem). Ambas as escritas fazem uma reconfiguração do passado. A história, ainda segundo a autora (acima), promoveria um tipo de reconfiguração do passado “autorizada” pelas fontes e do-cumentação, e calcada numa metodologia científica, enquanto a lite-ratura “permite que o imaginário levante vôo mais livre e amplamente, que ele fuja, numa certa medida, aos condicionamentos impostos pela exigência da verificação pelas fontes.” (Lemaire, 2000: 11).

Indo mais além no que se refere às relações entre história e lite-ratura, Jacques Rancière (2005: 55-57) propõe a resolução da equação afirmando que a “soberania estética da literatura não é, portanto, o rei-no da ficção. É, ao contrário, um regime de indistinção tendencial entre a razão das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordena-ções da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social.” Buscando superar a divisão dos discursos das duas “histórias” (a da história e a da poesia), Rancière aborda a história como “sucessão empírica dos acontecimentos”, em contraponto ao universo literário e sua “necessidade da ordenação poética”. O autor aponta a possibilidade, devido à transformação estética, de a literatura e o testemunho históri-co atuarem no mesmo campo de sentido. Para ele, “A evolução estética transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficção pertencem a

Page 101: Cultura e literatura diálogos

101

um mesmo regime de sentido (...)” (Rancière, 2005: 55-57). O “diálogo” da literatura com a história, portanto, é uma operação de corte do texto com a história, visto que esta, de certo modo, já está no texto literário.

A relação entre os dois campos, por ser intrínseca, pode ser for-mulada como história/literatura, equação mais adequada para se pen-sar o texto literário no cenário que estamos propondo, pois o núcleo principal dessa interação não está só nas condições de produção do texto literário, nem nas relações externas com os fatos, nem na presen-ça destes na literatura, já que a poesia seria uma das formas de constru-ção de sentidos históricos não explicitados pelos fatos (Bosi, 2002).

Mas é preciso lembrar que o escritor constrói sua literatura ancora-do em parâmetros culturais definidos, ainda que suas fontes sejam ne-gadas ou eclipsadas por uma dicção marcadamente individual e que, na elaboração sígnica, os eventos sociais são ressignifcados, obtendo senti-dos não compartilhados por estudiosos da história, daí muito do conflito e da controvérsia relativa à primazia de um campo sobre outro.

Dois poemas do avesso em História do BrasilMurilo Mendes teve seus primeiros livros de poesia publicados

nos anos 1930: Poemas (1930) e História do Brasil (1932). A publi-cação desta última obra, ainda que depois da década de 1920, insere o poeta no contexto do primeiro momento modernista.

Nela, o passado do país é reelaborado com base nas práticas satíricas da poesia modernista, atualizando o passado de forma sin-gular, com uma reinterpretação da históira que se vincula a uma compreensão do presente, deixando-se perceber como a história ainda exerce papel fundamental nesses procedimentos poéticos.

O que pontuamos no estudo de Murilo Mendes é exatamente a sua tradução poética da história, pelo modo como articula tanto questões externas (voltadas para o passado), como questões de forma dos poemas produzidos com grande audácia poética.

Mas a sua interpretação do passado é feita por contraste, fazendo perceber, através do riso, um outro movimento da história, mais den-so e problemático, construindo outras significações aos acontecimen-tos fortes, através do tratamento poético dado à matéria histórica.

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 102: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos102

Na leveza de História do Brasil se percebe uma tomada de po-sição bastante clara na perspectiva adotada, desvelando o que se oculta ao longo da história e traduzindo no campo poético o “res-sentimento” social. A poesia, assim, produz uma visão de mundo contra o estabelecido pela história oficializada dos manuais, des-montando o imaginário histórico da vida nacional.

Nessa obra, as vozes estão articuladas no sentido de promover um ataque às estruturas sociais tanto do passado como do presen-te. O poeta, nesse livro, reage ao momento da Revolução de 30 e ao Governo Provisório, que teriam se esquecido de parte daqueles que apoiaram o movimento, isto é, operários e movimentos sociais (Fausto, 1985: 227-255).

Veremos a partir de agora o posicionamento poético do escritor em dois textos através dos quais “interfere” no campo da história. Estes per-tencem à série de poemas sobre as autoridades e se destacam pela sátira mordaz e pelo contraste com a historiografia mais tradicional da época.

Passemos à análise do primeiro desses textos, intitulado “Embarque do papagaio real”, um dos mais divertidos e ao mesmo tempo mais pungentes do livro. Nesse caso, faremos uma análise estrutural do po-ema, considerando-se que alguns fatos são amplamente conhecidos.

EMBARQUE DO PAPAGAIO REAL

Je suis pobre, pobre, pobre,Je m’en vai d’aqui.Esse tal de NapoleãoVem tomar conta da minha quinta, Vem tomar minhas pipas de vinho,Vem tomar meus p’rus, Meus frangos, Minhas galinhas d’Angola.Tô fraco, tô fraco, tô fraco.

Vou-me embora, vou-me embora,Vou chupar laranjas,Vou comer minhas papas,Vou gozar no Rio de pijama...Se Carlota minha mulher deixar.

(Mendes, 1993: 159)

Page 103: Cultura e literatura diálogos

103

O tema do poema, em tom jocoso, refere-se ao episódio da vinda da Família Real para o Brasil. No caso, D. João VI é ridicularizado ao narrar sua fuga de Portugal motivada pela invasão de Napoleão. Pelo título, o governante é colocado no nível de uma ave (“papagaio real”), metáfora que indica uma situação subalterna logo na saída de Portugal.

Essa mesma autoridade inicia o “relato” repetindo expressões, no caso da cultura francesa (“je suis”), tratando o invasor como “esse tal de Napoleão”. A expressão francesa “je suis” funciona como ironia, pois é exatamente o francês quem está perseguindo o português. Sabe-se que a França não queria somente pegar “as riquezas” de Portugal (quinta, vinho, p´rus, frangos, galinhas...), mas contava com um plano estraté-gico maior no contexto do “Bloqueio Continental” de Napoleão.

O poema está estruturado com base no recurso da figura da re-petição, figura esta que busca enfatizar algo e, no caso da poesia cô-mica, procura provocar o riso. Ao dar informações detalhadas sobre algo ou alguém provoca o efeito da amplificação e enfatiza algum traço que poderia ser mais fraco. Ao mesmo tempo ela chama a aten-ção do leitor para determinado objeto. O princípio da repetição se dá em vários planos: em relação ao tema, faz variações ao longo do livro, usando novos tons para a mesma matéria (Bérgson, 2001: 88).

Na primeira estrofe, já se evidencia o aspecto sonoro do po-ema que se traduz nos procedimentos do papagaio falante repe-tindo, no primeiro e último versos da estrofe, respectivamente, as expressões “je suis pobre” e “tô fraco”. Estes sintagmas repetidos produzem uma mistura enfática da onomatopéia, figura de sonori-dade que faz parte da configuração do poema que aproxima o som ao significado da coisa que o produz, o que evidencia a nivelação do Rei com o papagaio.

Esta criatividade poética coloca-se a serviço da estratégia de rebaixar a personagem histórica, e isto é alcançado de modo efi-ciente e eficaz ao integrar a voz do Rei a uma repetição do papa-gaio. Com isso, o uso do aparato verbal aproxima os dois pólos - o alto e o baixo -, colocando-os no mesmo plano.

Ainda no aspecto sonoro, há uma figura de repetição que se junta à onomatopéia e se distribui pelos versos: a anáfora. O esquema ana-

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 104: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos104

fórico é usado no sintagma verbal “vem tomar” e se desdobra nos ver-sos que começam com pronomes (“Je suis”, “Meus”, “minhas”), esque-ma que retorna na segunda estrofe (“vou-me embora”, “vou chupar...”) e reforça o movimento de fuga e de fragilidade. Essa debilidade do Rei tem a ver com a França que viria tomar seus bens. Esse movimento de “enfraquecimento” repercute na mistura de dois tipos de aves: o papagaio e a galinha d’Angola. Na primeira estrofe temos no primeiro verso: “Je suis pobre, pobre, pobre,”; e no último verso: “Tô fraco, tô fraco, tô fraco.” Isto é enfatizado quando o rei reproduz a língua fran-cesa, com a expressão “Je suis...”. Evidentemente que essas expressões trazem um tom irônico, já que a Família Real não era nada pobre, e adquirem função estruturante no ataque realizado pelo poema.

A repetição de palavras e expressões tem a função de realçar o ridículo, arma comum aos poetas satíricos (Skinner, 2002; Bérgson, 2001), com a reprodução da onomatopéia da “voz” do papagaio que não sabe falar, mas só repetir. Na repetição de expressões, do tipo: “je suis pobre, pobre, pobre” ecoam a onomatopéia das aves incorpora-das no texto; já “Vem tomar/ Vem tomar/ Vem tomar” são repetições anafóricas que enfatizam o ato da invasão do adversário. O repetir é idéia reforçada pela infantilização da personagem pela referência à cantiga infantil. Essa infantilização do Rei pode ser constatada pelo uso de pronomes possessivos (“minha quinta”, “minhas pipas” etc).

O poema se divide em duas estrofes, e essa divisão binária tem a ver com a transformação da ação das personagens. Por exemplo, as mudanças da pessoa verbal e do verbo “vir” para “ir” (ele vem para “eu vou”) indicam o movimento da invasão e da fuga. Veja-se que essa mudança se dá de uma estrofe para outra, sendo que as duas estrofes têm uma relação de causa e efeito, funcionando como seqü-ências de ação, isto é, na primeira temos o ato da invasão (Napoleão “vem tomar”), e na segunda o ato da fuga (“Vou-me embora”).

Na segunda estrofe, com a idéia de fuga, comparece a idéia da facilidade que seria encontrada no Brasil, como se aqui fosse uma espécie de “paraíso”, aliás, visão muito alimentada pelos relatos dos viajantes e muito comum na Europa. Também se enfatiza a idéia de que a Família Real não iria construir algo no Brasil, mas somente

Page 105: Cultura e literatura diálogos

105

usufruir dos bens naturais e “gozar no Rio de pijama...”. Mas, ao final, para retomar o tom de depreciamento, o governante precisa solicitar a autorização da mulher (“Se Carlota minha mulher dei-xar”), o que, para a época, soaria como sinal de fraqueza, já que o poder patriarcal era instituição social forte. Enfim, esse verso final arremata a falta de poder do “papagaio real”.

A figura da repetição leva à inversão que, ao colocar o mundo às avessas, tem a função de ridicularizar a imagem do poder. Por exemplo, o fato de a voz da autoridade ser emitida pela boca, ou melhor, pelo bico da ave, opera uma desierarquização do poder e uma inversão de papéis. Com isso, o escritor propõe a desestrutu-ração da ordem através da linguagem paródica, indo do tom sole-ne ao familiar, numa operação de transposição de um nível a outro com a intenção de degradar a personalidade histórica.

Na continuidade desse tom de deboche, vejamos um outro po-ema (“Pescaria”) pertencente à série de personalidades, e que trata agora de Dom Pedro I e do famoso “Grito da Independência”. Nesse caso, abordaremos as relações do poema com a pintura de Pedro Américo sobre a Independência, fazendo também referência ao “Hino Nacional”, bem como ao “Hino da Independência”.

A PESCARIA

Foi nas margens do Ipiranga,Em meio a uma pescaria. Sentindo-se mal, D. Pedro- Comera demais cuscuz –desaperta a barriguilhaE grita, roxo de raiva:“Ou me livro d’esta cólica Ou morro d’ua vez!”O príncipe se aliviou,Sai no caminho cantando:“Já me sinto independente.Safa! vi perto a morte!Vamos cair no fadinhoPra celebrar o sucesso.”A Tuna de Coimbra surgeCom as guitarras afiadas,

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 106: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos106

Mas as mulatas dengosasDo Club Flor do AbacateEntram, firmes, no maxixe,Abafam o fado com a voz,Levantam, sorrindo, as pernas... E a colônia brasileiraToma a direção da farra.

(Mendes, 1994: 164-165)

O poema acima retoma o episódio bastante conhecido pela his-toriografia, fazendo uma reinterpretação política do gesto imperial inculcado pelos programas educacionais através de seus manuais de história “pátria”. Faz-se aí um contraponto às várias formas de representação simbólica da história brasileira, entre elas a famosa tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo, bem como o Hino Nacional, que são produções mais ou menos referenciais, aceitas e até certo ponto reverenciadas por estudiosos e professores.

Veremos o que se passa no quadro e o que é “pintado” no po-ema referido. Passemos, então, a uma breve comparação entre as duas produções artísticas.

A tela de Pedro Américo1, pintada em Florença, na Itália, no pe-ríodo de 1886 a 1888, foi encomendada pelo governo de São Paulo para comemorar a Independência do Brasil, e se oferece como regis-tro referencial de um evento histórico que marcou a trajetória do im-pério brasileiro (Oliveira, 2002: 66). Em 1888, essa produção fez parte do rol de comemorações que vinham sendo engendradas durante o Império. O quadro tornou-se referência crucial na iconografia que aborda a independência, obscurecendo inclusive outras obras sobre o mesmo tema que vieram antes dele.

Essa imagem do artista paulista calou fundo no imaginário po-pular e também nas visões de intelectuais mais tradicionais do país, constituindo-se como parte integrante do patrimônio cultural nacio-nal e, como monumento público, jogou papel importante na con-figuração de uma determinada visão da história do Brasil. Os mo-numentos (documentos, estátuas, livros, etc) sempre “jogaram peso decisivo na configuração da memória nacional no século XIX, pois

Page 107: Cultura e literatura diálogos

107

expressavam a intenção deliberada, por parte de segmentos políti-cos definidos, de defender do movimento indeterminado da história fragmentos do passado reconstituídos por intermédio de abordagens e focos precisos” (Oliveira, 2002: 4). Por essas construções vemos a relação entre a política e a história nacional.

Como se sabe as comemorações do Grito do Ipiranga não tiveram início imediatamente após o dia 7 de setembro de 1822, pois a instituição do Dia da Independência só vai se dar em 1826 (Oliveira, 2002: 2).

Mas a imagem construída pelo artista traz equívocos históricos reconhecidos pelo próprio Pedro Américo que, em texto explicativo da composição de sua pintura, “O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”, afirma que não foram colocados na tela elementos e dados que poderiam comprometer a configuração do ato virtuoso do Imperador. Ainda segundo este autor, não se sabe ao certo se a “Casa do Grito” existia no período da Independência e se o Riacho do Ipiranga se localizava tão perto da Casa como aparece no quadro de Pedro Américo, a presença dos cavalos é duvidosa e também o uniforme utilizado pela Guarda Nacional não existia na época. Diz o autor ter se baseado em fontes orais e em crônicas sobre o ocorrido (In: Oliveira, 1999: 11-31).

Para dar a impressão de veracidade, o pintor realiza uma compac-tação imagética da história, reforçando o realismo histórico através dos detalhes a fim de promover uma visão idealista do evento, bem próprio do gênero da pintura histórica.

Além da pintura, o poeta cita outras produções simbólicas como, por exemplo, o Hino Nacional, significativo como elemento cultua-do da história nacional, composição esta que permaneceu depois da República, pois a “manipulação do imaginário coletivo” pelos posi-tivistas republicanos não conseguiu mudar o hino (Carvalho, 1990: 109 e 125). Só para relembrar, citemos os primeiros versos do refe-rido hino: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante / e o sol da liberdade em raios fúlgidos / brilhou no céu da pátria nesse instante” (grifo nosso).

O que acontece no poema? Qual é a visão que enforma o tex-to poético? A começar pelo título, vemos que o ato heróico do

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 108: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos108

Imperador é deslocado para o mundo comezinho da “pescaria”, prá-tica das mais corriqueiras. No poema, observa-se um rebaixamento do episódio consagrado pela concepção imperial, retratada no qua-dro com pomposidade.

A representação oficial da história é colocada ao rés do chão, ao deslocar a magnitude do evento para o que há de mais “intestinal”, isto é, a cólica de D. Pedro, que teria comido cuscuz. Este desloca-mento para as partes baixas reflete a intencionalidade do poeta no sentido de depreciar o poder instituído e uma certa visão sacralizante da história. Descrever e apelar para o nível baixo enfatiza o ponto de vista do poeta que busca mostrar o ridículo das “invenções” da história nacional, bem ao gosto da sátira popular que não poupa o mundo da “alta cultura”.

E essa sátira histórica realiza-se através do “desmanche” da figura imperial. Se a imagem do Imperador aparece estática, sobre o cavalo, como se fosse uma estátua eqüestre, na posição central e mais acima das outras personagens, o poema a pinta como humano que, ten-do necessidades vitais (comer e evacuar), não se configura de forma “dura” e paralisada como no quadro. Essa desestabilização da perso-nalidade histórica é fundamental no texto literário.

Na versão do poema, o “grito” teria sido dado por um desarranjo intestinal causado por um tipo de comida, situando a história impe-rial no nível mais baixo, isto é, o nível “excremental”. Aliás, o próprio Pedro Américo registra relato que afirma que D. Pedro realmente tivera um “incômodo gástrico” (In: Oliveira, 1999: 11-31), o que co-loca o texto literário mais de acordo com os fatos do que a pintura. Observe-se que após se livrar da cólica, o príncipe “Sai no caminho cantando: ‘Já me sinto independente’”, expressão essa que mostra a referência que o poeta faz ao “Hino da Independência” que D. Pedro teria composto no “calor da hora” (Infante, 2003: 262).

A proposta da autoridade é “cair no fadinho”, prática musical portuguesa, mas a controvérsia se instala, pois contra o fado, surge uma outra prática, o maxixe, repercutindo, assim, no campo da lin-guagem poética, as contradições políticas entre os dois países. A mú-sica popular do Brasil, o maxixe, vence o fado português, mostrando

Page 109: Cultura e literatura diálogos

109

a força brasileira contra as práticas portuguesas (Infante, 2003: 262) e mostrando a alegria das mulatas (“Levantam, sorrindo, as pernas”). Assim, para o poeta a independência se vincula também à questão cultural, aliás, bem dentro do espírito modernista de redescoberta do Brasil através da pesquisa estética e da busca da cultura popular. A sobreposição de uma cultura à outra se dá, nesse caso, pelo fato de as mulatas entrarem “firmes” no maxixe, abafando o fado português.

Mais uma vez o poeta desenvolve uma divisão binária do texto. Na primeira parte expõe o ato heróico do príncipe e seu ridículo, já na segunda mostra a contraposição no campo da cultura, já de-monstrado acima.

Nos versos finais do poema (“E a colônia brasileira/ Toma a direção da farra”) faz-se uma inversão do que foi anunciado no começo de forma grandiosa (“Foi nas margens do Ipiranga”), sugerindo que o ato inicial se transforma numa “farra”, indício de festa, mas também de descom-promisso das classes dirigentes em relação aos destinos do país. Nesse sentido, para o poeta, essa Independência não pode ser levada a sério.

A seriedade dos textos consagrados é tratada com deboche pelo escritor, o que denota um posicionamento ideológico na perspectiva as-sumidamente contra o establishment, pelo qual o poeta mostra as fissuras da elaboração de um dos “mitos fundadores” da história do país (Chaui, 2000: 9 e 10), realizando a iconoclastia do heroísmo imperial. Vale a pena ler o que o poeta, ainda em sua juventude, escreve sobre as personagens históricas do Brasil: “Geralmente, os heróis mais afamados são heróis de pacotilha; D. Pedro I, por exemplo, foi verdadeiro sultão; só cuidava das mulheres; desconhecia o seu país, julgando que o Brasil era uma sucursal da África.” (Murilo Mendes, apud Guimarães, 1993: 35).

No poema concretiza-se, assim, a luta simbólica contra o “mito de origem” presente no quadro e no hino que utilizam a informação histó-rica para montar um cenário heróico da nação. Nele produz-se, assim, um deslocamento para baixo no tratamento do episódio consagrado pela memória histórica e disseminado tanto pela tela de Pedro Américo quanto pelo Hino Nacional.

Nesse sentido, o trabalho com textos poéticos pode propor uma visão mais lúdica e mais crítica do país. Murilo Mendes, inconformista

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 110: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos110

com o estado de coisas de seu tempo e com uma visão histórica fossi-lizada, propõe uma dessacralização dos “grandes eventos” através de uma prática de desconstrução do passado de modo dinâmico.

A função da literatura estaria, então, na contramão das construções imaginárias realizadas em certos momentos históricos. Assim, podemos afirmar com Nicolau Sevcenko (2003: 29), que a ética da criação literária traria em seu interior mais o intuito de transformação do que a perma-nência do status quo. E por estar na ordem do desejável, essa criação estaria mais voltada para o devir do que para o estado atual das coisas.

Assim, pensar no passado deve nos levar a organizar os materiais historiográficos para nos orientarmos no presente, mas não de forma estática como se a história fosse uma imagem pertencente ao passado. Como afirma Schorske (2000: 13), “Podemos também ‘pensar com a história’ de outro modo, quando concebemos a história como processo. Então a história é dinâmica, ligando ou dissolvendo elementos estáti-cos num padrão narrativo de mudança.”

A literatura como produção histórica e social pode proporcionar uma visão mais dinâmica da realidade histórica. Para Sevcenko (2003: 29 e 30), a produção literária não estaria só pautada pela factualidade, mas voltar-se-ia para a esfera do vir-a-ser, o que a coloca numa di-mensão “transcendente” em relação à história. Esta, no entanto, apre-sentaria ao escritor os modos de significação em situações que ele não controla criando assim uma relação tensa entre os dois modos de re-presentar a história social. Em relação à ficção, esta teria a liberdade de narrar “sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.” Mas no contraponto ao culto dos fatos, a literatura manifestaria a dimensão utópica da linguagem, no sentido de projetar outras realidades possíveis, sem se subordinar às necessidades factuais do discurso histórico.

Como aponta Murilo Marcondes de Moura (1998: 180), “(...) a poesia, como expressão das mais arcaicas e densas da experiência hu-mana, pode formular, mesmo diante da tragédia mais clamorosa, uma resposta própria, isto é primária, e não apenas reagir de maneira cir-cunstancial ou secundária.”.

Page 111: Cultura e literatura diálogos

111

O texto literário não só reage aos fatos históricos, mas propõe novas visões sobre os acontecimentos, e não “se vale daquelas provas testemunhais que fornecem passaporte idôneo ao discurso historio-gráfico.” (Bosi, 1995: 179).

O olhar sobre a história pode ser reflexivo sem deixar de ser divertido, principalmente de um poeta que procurou desmistificar o fazer histórico e cultural hegemônicos. A literatura é, assim, um tipo de criatividade histórica contra o esquecimento cultural que vemos nas representações oficiais de nossa cultura.

Nota* O presente artigo faz parte de minha Tese de Doutorado intitulada Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa, defendida em 2006 na FFLCH/USP, publica-do na Revista Estudos Históricos, v.21, n.41, CPDOC/FGV/RJ, sob o título “História e literatura: uma relação de amor e ode em História do Brasil de Murilo Mendes”. 1 A tela pertence ao acervo do Museu Paulista.

aMor e ode Na história e Na literatura: Murilo MeNdes

Page 112: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos112

A cultura e a literatura vêm assumindo atualmente relevância nos debates nacionais e internacionais e, por isso, acentua-se a necessi-dade de conhecer melhor qual a função da arte literária nos mais diversos meios sociais. Faz-se necessário mostrar a importância que a literatura mais consagrada tem na sociedade, mas também acentuar que certos tipos de expressão social e cultural como o grafite, o rap e outras modalidades menos reconhecidas se constituem como vozes de comunidades silenciadas no meio urbano.

En la lucha de classesTodas las armas son buenasPiedras, noches, poemas.(Paulo Leminski)

Literatura e resistência*

Page 113: Cultura e literatura diálogos

113

Num universo cultural moldado pela cultura de massa ameri-canizada, e em que o sentimento da tragédia se abate sobre todos, a linguagem culturalmente uniformizada trucida as culturas e as criati-vidades coletivas, impondo padrões de consumo cultural. Essa lingua-gem homogeneizante exige que falemos de certos modos e tenhamos atitudes equalizadas frente ao mundo e eliminam as resistências e os inconformismos. O caminho deve ser flexibilizado para que o “carro capital” possa deslizar com todos os sinais abertos.

Nossa “era dos extremos” é marcada pela violência e pelo hor-ror econômico, por nacionalismos fanáticos e pelo cinismo indivi-dualista, tudo acontecendo aparentemente como se não houvesse nenhuma resistência. Tudo parece levar à perda das esperanças nesse cenário de “desordem unida”.

Mas a realidade não é uma coisa bruta, sem voz, sem cara e sem agentes, pois há muitas vozes dissonantes que interagem no cenário social e cultural, resistindo de vários modos, ora toman-do as ruas, ora produzindo a cultura invisível da resistência. Já durante a Ditadura no Brasil, o mundo da cultura foi que primei-ro se insurgiu para protestar e contradizer o regime (Herbert de Souza, In: Pólis, 1994: 84). Sabemos que a cultura e a arte podem proporcionar a desautomatização dos comportamentos, pois são elementos dinamizadores e provocadores das relações sociais.

Os bolsões de resistência cultural existem sob diversas formas. Às vezes, como manifestações explícitas de protesto em ações cole-tivas e individuais, outras vezes como forma dissimulada em rituais e cantorias populares. A obra de arte literária também manifesta conforme, ou desconforme, à época a sua insatisfação em relação às realidades impostas por grupos organizadores das informações na sociedade (Rádio, TV, Jornais).

Apresentar a literatura como fenômeno de resistência tanto so-cial como literária e cultural exige, de certo modo, uma atenção às relações sociais e culturais nela presentes em tensão constante (Bosi, 2002). Essa resistência se dá ao longo da história e na própria lite-ratura. O grande escritor não é um conformista com a situação de seu tempo, pois a poesia intui modificações que o “senso comum”

literatura e resistêNCia

Page 114: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos114

de um período histórico não percebe. Como diz Alfredo Bosi: “As obras-primas que resistiram à usura do tempo começaram resistindo às pressões uniformizantes do próprio tempo, ao passo que os puros espelhos da sua época não sobrevivem, a não ser como peças de infor-mação, às convenções que eles refletiram.” (Bosi, 2003: 405)

Mas não é só a grande literatura que desenvolve modos de resis-tência ao status quo. Essa resistência está presente nos mais diversos meios e formas sociais de discursos que devem ser entendidos como formas legítimas de intervenção cultural, tais como o grafite, os can-tos populares, a linguagem cotidiana etc.

A literatura protesta contra os regimes autoritários e, principal-mente, contra o mundo das mercadorias que transforma os seres hu-manos em objetos de compra e venda.

A linguagem literária resiste ao estado de coisa em que vive-mos, o qual não é nada favorável à arte.

Mas não se pode esquecer que a literatura não opera somente como instrumento de intervenção social ou política. Ela é isso, mas não só isso, pois elabora também um trabalho de “resistência interna”, isto é, a própria linguagem literária é uma das formas de resistência cultural na medida em que não se deixa interpretar de forma dócil. A literatura é um dos modos de reinterpretar o mundo através da arte da linguagem.

Existir é uma forma de resistir.

Nota* Texto escrito para o Seminário Literatura e resistência, projeto realizado pela Secretaria de Cultura de Guarulhos em 30 de agosto de 2003. Local: Biblioteca Monteiro Lobato. Organização: Sistema Municipal de Bibliotecas. Coordenação: Valmir de Souza. Palestrantes: Maria Elisa Cevasco, César Magalhães Borges, Ferréz e André du Rap.

Page 115: Cultura e literatura diálogos

115

Carlos Drummond de Andrade, em “Moda Literária”, de 1943, co-menta que o livro entra na moda, invocando-o como “objeto de comércio” e também de desejo. Nesse texto, o poeta mineiro vive a contradição de não se entregar ao consumo, ao mesmo tempo que deseja ser lido, propondo fazer um livro demodé, mas que finalmente um leitor, depois de muito tempo, o acharia numa estante e o poria de novo na moda. (Drummond, 1967: 606). O mundo da mercado-ria faz-se sentir no mundo do livro e da leitura. É nessa linha tênue que a cultura, ainda que procure se desvencilhar dos mecanismos de mercado, atua. Isto é, o mercado que a tudo define acaba por definir também a produção cultural. Ainda assim, a poesia e a literatura re-sistem ao imperativo de virar objeto de consumo.

A vitrine da livraria ostenta as últimas novidades. O livro tornou-se, princi-palmente, objeto de comércio. Como as gravatas e as malas, ele obedece às flutuações da moda, (...).(Carlos Drummond de Andrade)

A leitura no mundo contemporâneo*

a leitura No MuNdo CoNteMPorÂNeo

Page 116: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos116

A indústria cultural da leitura vem investindo em produção de livros e em divulgação. Mas pouco tem sido feito, em vista do que é necessário promover no campo literário. Por exemplo, o título de uma matéria institucional da Revista Panorama Editorial da Câmara Brasileira do Livro, “Quando a literatura vira notícia”, não deixa de ser sintomático quanto ao que se pretende em relação ao livro, e o que acaba por ser divulgada é a obra de sucesso. Como afirma o refe-rido artigo, “A imprensa, contudo, não dá conta de divulgar a maior parte dos lançamentos que chega ao mercado diariamente.” (Câmara Brasileira do Livro, 2006: 21).

No mundo industrializado, o objeto livro como suporte de tex-tos é reproduzido em alta escala e, ao mesmo tempo que se demo-cratiza, vira objeto de consumo como outro qualquer. Como aponta Marisa Lajolo, o livro passou da fase da tecelagem-artesanato em que se entrelaçam os sentidos, para a fase industrial, na qual o tecelão não domina mais todo o processo de feitura de uma obra (Lajolo, 2004: 105-106). Da indústria têxtil passou-se à indústria textual.

No campo da leitura e das produções culturais em geral é bas-tante evidente o fato de o leitor-“consumidor” cultivar um gosto “médio” de cultura. Evidentemente o best seller cobre bem essa de-manda, no entanto, esse tipo de literatura “de mercado” tem uma divulgação superior a qualquer produto de limpeza ou sabonete. Nas palavras de Beatriz Sarlo, “Como a dimensão simbólica das so-ciedades em que vivemos está organizada pelo mercado, os critérios são o êxito e o alinhamento com o senso comum dos consumido-res.” (Sarlo, 2007: 15). O que não se coaduna com esse sentimento comum corre risco de não ter êxito.

O apelo que a imagem (televisiva, jornalística ou de outro meio de comunicação) faz ao leitor pode ser uma armadilha, talvez uma “doce” armadilha, pois o cidadão pode passar a ler mais do que ver TV, ou pode simplesmente odiar ainda mais a leitura. Nada garante. O chamariz pode vincular imaginariamente o cidadão a uma cama-da social à qual ele não pertence, fazendo-o pensar que pertence a um “grupo seleto de leitores” ou a uma “maioria que está lendo tal livro”. Mas, se para boa parte da população o livro é o “sonho de

Page 117: Cultura e literatura diálogos

117

consumo”, para a grande maioria esse sonho não está ao alcance, já que ela vive à margem das possibilidades de sobrevivência digna e, também por isso, não pode sonhar.

A representação da leitura como algo pertencente a uma classe social e como signo de distinção social não é coisa nova. A icono-grafia sobre a leitura é imensa, veja-se, por exemplo, o livro de Roger Chartier sobre a “aventura do livro”, no qual o autor propõe que, em se tratando do afastamento das leituras por parte dos jovens, deve-se considerar a que tipo de leitura estamos nos referindo: aquelas feitas em escolas com legitimidade social ou aquelas que são extra-classe, isto é, aquelas consideradas como “objetos escritos de fraca legitimi-dade cultural” ou fora do “cânone escolar”. (Chartier, 1998: 104)

Essa literatura canônica carrega um conjunto de informações e modos de expressão das vivências humanas de forma a deslocar o modo rotineiro de comunicação. Evidente que a escola é um dos lu-gares de prática de leitura dos mais importantes, principalmente para as camadas mais pobres da população brasileira, apesar de não ser o único, o que nos coloca frente ao problema sobre o que ler.

A literatura “especializada”, isto é, o conjunto de textos seleciona-dos para fazer parte de um paideuma cultural é de suma importância para a prática de leitura, porém não esgota todas as possibilidades textuais literárias. A definição de Pound ajuda a entender essa noção de paideuma: “A organização do conhecimento de modo que o próxi-mo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar o mínimo de tempo com questões obsoletas”. (Pound apud Perrone-Moisés, 1998: 65).

Destecendo as armadilhas da leitura na escolaA linguagem e os produtos visuais da indústria cultural atra-

vessam todo o cotidiano das escolas, fazendo com que alunos e pro-fessores orientem suas falas e suas práticas pedagógicas por esses valores. A questão se complica quando a escola se deixa tomar por objetos da mídia, por se apresentarem como “mais democráticos” e passa a considerar a literatura como algo elitista (Chiappini, 2005: 271). Este é um engodo da cultura massificada na educação, já que a

a leitura No MuNdo CoNteMPorÂNeo

Page 118: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos118

escola deveria ser o lugar do encontro do livro com o pensamento. Como aponta Ligia Chiappini:

Alfredo Bosi costuma dizer, com razão, que exatamente porque a mídia toma grande parte do tempo de professores e alunos, que escutam rádio, vêem te-levisão, jogam videogame ou navegam em sites da Internet, compete à escola, mais do que nunca, preservar um espaço para a leitura, análise e interpre-tação dos clássicos da nossa literatura, formando leitores mais exigentes e mais competentes no uso da língua e no trato com as idéias e os valores. (Chiappini, 2005: 272).

A leitura está associada à “paciência do conceito” que é cultiva-da pelos homens “lentos”, pois seus conteúdos não são para serem consumidos em alta velocidade e, nesse contexto, a escola e o pro-fessor teriam a função de romper com as práticas da leitura rápida e com a “cadeia de alienações em que se insere a prática escolar da leitura no Brasil de hoje.” (Lajolo, 2004: 105).

Os métodos e os planos de leitura utilizados em sala de aula precisam ser revisados para que o jovem adira à leitura sem as cren-ças que perpassam o imaginário dos professores. Por exemplo, a idéia de que a literatura pode “salvar o mundo” ou “iluminar a hu-manidade”, já que a crise da “crença ideológica na informação pela leitura” perde fôlego no mundo da descrença e do cinismo (Certeau, 1994: 260-261).

Os professores não precisam de reciclagem nem de treinamento, mas de entendimento quanto ao seu papel de mediador de leitura. Se os professores não gostam de ler, como podem incentivar o hábito de leitura? Se a situação cultural dos professores é precária, como po-derão falar de acesso à cultura aos alunos? Se os professores não têm familiaridade com várias modalidades de texto, como promoverão a diversidade cultural da literatura? Como sugere Marisa Lajolo, “Um professor precisa gostar de ler, precisa ler muito, precisar envolver-se com o que lê.”(Lajolo, 2004: 108). Evidente que não se propõe aqui culpabilizar os professores pelos problemas relacionados aos deficits de leitura, tanto deles quanto dos alunos. Há, sim, necessidade de que se desenvolvam ações voltadas para as práticas de leitura dos profes-sores. Nesse aspecto, é preciso incentivar a formação do professor-

Page 119: Cultura e literatura diálogos

119

leitor, aquele que fará leituras em cursos de qualificação, e com acesso a outras linguagens artísticas que não só à literária.

O fato de a educação e a leitura ter se tornado um “meganegó-cio” não implica em dizer que os professores devem se pautar por essa lógica. Ao contrário, devem se colocar na “contramão da edu-cação como mera mercadoria” (Chiappini, 2005: 261). Não se trata aqui simplesmente de se colocar na contracorrente de atividades que disseminam o livro. Trata-se de problematizar o discurso fast food na educação, pois o mundo da cultura não pode ser pautado pela lógica de mercado e seus lucros exorbitantes.

A armadilha também pode estar em considerar a leitura dos best sellers, livros “produzidos” pela mídia, como uma leitura maléfica. São leituras de entretenimento, mas que não devem excluir qualquer pensamento crítico. Essa leitura não produz questionamento sobre os modos de vida, mas pode levar os estudantes a olhar para o objeto livro, o que já seria um ganho. A questão está no tipo de olhar que está sendo formado, muitas vezes petrificado pela medusa “mídia”. É preciso deslocar esse olhar cristalizado que não vê o que se passa no mundo, incentivando-se também a “leitura do mundo”.

Lendo a leituraOs professores, ao aceitarem os best-sellers em salas de aula,

devem apresentar Machado de Assis e Guimarães Rosa para que o aluno sinta as diferenças e possa comparar o uso vocabular, a pro-dução de idéias, o estilo, enfim o trabalho com a linguagem. Há um tipo de leitura que podemos chamar de emancipatória ou liberta-dora das amarras do discurso difuso na sociedade e há uma leitura que é só repetição do mesmo, um “já visto” perene que não mostra as armadilhas no cotidiano das leituras “agradáveis” e “leves” tipo Harry Potter ou Sabrina bem como das leituras paradidáticas na escola. A leitura, especialmente a leitura de poesia, exerce o papel fundamental de desconstrução dos imaginários midiáticos. Para desativarmos as arapucas armadas não podemos deixar de ler as marcas, os rastros e os sinais deixados ao longo dos caminhos da cultura contemporânea.

a leitura No MuNdo CoNteMPorÂNeo

Page 120: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos120

Comentando o afastamento dos jovens em relação à leitura, Chartier afirma:

O problema não é tanto o de considerar como não-leituras estas leituras sel-vagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão de mundo, as maneiras de sentir e de pensar. (Chartier, 1998: 104).

De qualquer modo, não devemos esquecer que não há receptor nem espectador passivo de TV ou de qualquer outro meio de comu-nicação de massa. Portanto não há o que temer quanto às leituras impostas ao mundo da cultura. Quanto à escola, pode exercer um papel de reelaboração dos materiais que circulam pela mídia que não seja o de mera reprodutora de valores do consumo imediato. O leitor “comum” não deixa de ler por entre o emaranhado de informações, destecendo as armadilhas colocadas no meio de seu caminho. Além disso, a leitura é que faz o sentido do texto e não as regulações de um mercado cultural, e o ato de ler não se restringe às formas e gêneros ditos literários, constituindo-se numa apropriação do leitor sobre um dado objeto cultural (Certeau, 1994: 59-273).

Como se sabe, não há só a leitura literária, há outras tipos de leitura que introduzem o leitor-educando no campo da cidadania. Para além de divulgador de livros de simples consumo, os projetos e cursos educativo-culturais direcionados aos trabalhadores da educa-ção devem incluir a leitura do próprio professor considerado como cultivador de leituras sólidas. Os professores teriam, então, uma base para não reproduzir práticas de pseudodiversidade embutidas nos livros didáticos com suas propostas de leituras fragmentadas, fazendo que os jovens sejam introduzidos no mundo da leitura de forma mais consistente. (Lajolo, 2004: 108).

A relação com o livro tomaria uma outro caminho, isto é, o da tensão entre o já dito e o que inaugura outros modos de dizer e pen-

Page 121: Cultura e literatura diálogos

121

sar. Como observa Marilena Chauí, citando Merleau-Ponty, sobre a relação autor-linguagem-leitor:

A leitura ‘é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de mi-nha palavra e a do autor’, a descoberta do poder da linguagem instituinte, ‘que aparece quando a linguagem instituída é privada de seu equilíbrio costumeiro, ordenando-se novamente para ensinar ao leitor o que este não sabia pensar ou dizer’. (Chaui, 1995: 316)

O conceito de leitura e os suportes textuais também têm sido modificados ao longo do tempo. Atualmente tem havido crescente interesse em relação à leitura nas várias modalidades. Quando se afir-ma que hoje se lê muito pouco, ignora-se o grande universo da leitura e os novos suportes (jornais, revistas, gibis, livros da moda, internet etc) presentes no dia-a-dia do “leitor concreto” que se move no co-tidiano dessas leituras não institucionalizadas pela escola, fazendo usos da cultura dos meios de comunicação que recusam a idéia de um leitor universal abstrato (Fraisse, 1997: 125).

Com a disseminação da informação por novos meios, parafrase-ando Certeau, a “leiturística” (que passe o neologismo), isto é, a leitura como produção a partir de informações disseminadas pela mídia, ain-da não está exaustivamente mapeada pelos estudos da linguagem.

ConcluindoA leitura deve estar associada ao desenvolvimento cultural do

indivíduo em suas mais diversas dimensões, não uma leitura como ato de consumo imediato, mas como ação-em-si e ao mesmo tempo reflexiva. Como afirma Luiz Percival Leme Britto, “Ler é uma ação intelectiva, através da qual os sujeitos, em função de sua experiência, conhecimentos e valores prévios, processam informação codificada em textos escritos.” (Britto, 1999: 84).

Enfim, as práticas de leitura não devem estar voltadas para uma leitura só de risos, como se pensava sobre a literatura de iní-cios do século XX como “riso da sociedade”, mas para a reflexão sobre o estar no mundo. No começo do século XXI, a leitura tem

a leitura No MuNdo CoNteMPorÂNeo

Page 122: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos122

a função transformadora de redimensionar a paisagem petrificada que ronda o cidadão em suas várias experiências e vivências.

Concluindo, a leitura no mundo contemporâneo deve passar por reavaliações constantes, bem como por revisões dos modos como se trabalha com a literatura considerada clássica, bem como com a dita subliteratura. Não se pode esquecer que a leitura dos livros em série tem a ver com um trabalho “morto” que, com suas repetições de con-teúdos e temas, só leva à mesmice da “pseudocultura contemporânea” que reproduz valores sem crítica e sem criatividade.

Contra esse estado de coisas catastrófico é que o trabalho do professor se coloca, nem apocalíptico, nem integrado, sem se ren-der aos apelos da imediatez.

Notas* Texto apresentado na VI Sessão de Comunicação do VII Seminário (“Mídia, Educação, Leitura”), dia 12/07/2007, no 16º Congresso de Leitura do Brasil, Unicamp – Campinas - SP. Artigo publicado na Revista Leitura: Teoria e prática, n. 50, junho de 2008.1 A expressão “pseudocultura contemporânea” é devida à Professora Scarlet Marton, cuja palestra, com o título de “A (pseudo) cultura contemporânea”, foi realizada na Biblioteca Municipal “Monteiro Lobato” de Guarulhos, durante o pro-jeto Diálogos em Curso coordenado pelo autor deste artigo, no dia 20 de agosto de 2005, às 14h. Nessa fala a Professora trata do “enorme descompasso que existe entre cultura e entretenimento”.

Page 123: Cultura e literatura diálogos

123

Descrever poesia é como tirar o sumo da fruta. Aqui espero não fazê-lo e dialogar com os poemas desse poeta paranaense de São Paulo e do mundo, Hamilton Faria, que ressoa em sua poética o lema de Mallarmé: mudar a língua equivale a mudar o mundo. Mas ele tam-bém “incendeia” ou resplandece o verbo, como Rimbaud.

Depois de Cidades do Ser, Encântaros e outros, o poeta “revolta” com esses Haikuazes, fazendo “quase” Haikais, mas que são plenos e to-

Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da lingua-gem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (Roland Barthes)

A busca da linguagem perdida em Haikuazes*

a BusCa da liNguageM Perdida eM haikuaZes

Page 124: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos124

tais. E nesse livro enfrenta os dilemas da linguagem poética quanto a ela mesma e quanto ao estado do mundo.

Na busca de uma linguagem adâmica de renomeação dos seres, o poeta se “afunda” na ingenuidade, como diz na “Reza” inicial: “Entre gênios e engenhos / Concede-me, ó Deus, / a pureza do ingênuo.”

O seu engenho poético engendra a busca de forma organizada, pen-sada no âmbito da pureza do dizer não estabelecido, “fora do poder”.

Sete são as divisões do livro. No primeiro destacamento da lingua-gem (Doze Fragmentos de haivida), o poeta comenta a vida e o tempo. Aí vemos: “uma vida viva / cabelos negros brancos / inauguro-os.”

E temos: “haitempo haivida / alegres frutas de infância / eu permaneci”. Eis o tom alegre do Haimilton diante do espetáculo da vida em desenvolvimento. Parafraseando Merleau-Ponty, diríamos que essa poesia precisava dessa vida.

A segunda p’arte do livro (Amares), destaca o amar no plural, traduzindo um tema nada banal para o poeta. Em “Perder-se” diz que não pode perder nunca: “Te perder sempre / Não posso / Te perder nunca”. O segundo verso se dirige ao primeiro e ao terceiro, o que mostra a articulação da linguagem, nada sendo desconectado.

Em “Sacral”, a consagração do amor - “Busca o sagrado / em tua ânsia / de amar o amado”. Em “Ânima”, o princípio feminino onírico se transforma em alma: “A minha alma / é uma mulher / que sonha”. E em “O casamento”, a união como singularidade infindável do ser: “Dádiva infinita / A escolha do par / para a vida ímpar”. As pequenas ressonâncias rímicas em “i” e em “ar” - infinita, par, ímpar - , sugerem o tom incisivo da declaração do amor e sua continuidade.

No terceiro gesto (Dom), em “Transcendência”, o poeta aden-tra os mistérios do viver, com a mística transcrita na ação poética: “Mistérios / abrem portas / à existência”.

Sente-se também o eco de uma das poetisas preferidas do poeta, Cecília Meireles, quando esta pergunta em “Retrato”: “Em que espe-lho ficou perdida / a minha face?”. Este eco está em “Pergunta”, onde se lê: “Espelho me confesse: / que sombra habita / minha face?”.

Em alguns momentos, a referência mística aflora claramente como em “Krishna” e “Daime”, textos-tradução de um estado espiritual de ser.

Page 125: Cultura e literatura diálogos

125

No quarto elemento (Crisálidas), em “O desvidente”: “Poetas no poder? / Não conseguem ver”. Sente-se aí a escuta política na poesia, e a dúvida não se resolve, pois fica no ar se são os poetas ou outros que não conseguem vê-los como “animal político”. Veja-se “O planejador”: “Vou fazer um plano / que devolva aos homens / o sentido do humano”.

Aí a questão humana se torna o centro da reflexão poética e mostra a inquietação com os sentidos da humanidade. Observa-se também a ação do poeta e artista que articula políticas de cultu-ra pública em vários níveis e planos. O texto traz nexos com a so-ciedade e com a política, mas dando um impulso criativo à lógica seca das relações de poder pautadas por interesses consagradores do já-dito e vivido. Eis a contribuição da poesia ao “mundo caduco” (Drummond): injetar ânimo nas águas paradas da cultura.

Na quinta flor (Florais), o mundo orgânico dialoga com o mundo “inseto”, em “Floral”, onde se lê: “Na floreira da cozinha / o gerânio espanta a aranha / que se avizinha”. Em “Contemplação”, mais uma pétala dessa parte-flor, “amar manacás” veste o desejo do poeta que prefere não trabalhar. Se em “Primaveril”, o aroma da flor e o riso dos guris se colorem da mesma substância, em “Primavera” o sentimento-amor adquire cheiro.

As referências do poeta são tecidas e escritas. A referência ao tecer o pano da “Rendeira” que constrói um mundo abre um nexo com o fazer poético que tece o texto-mundo. Já no título “Quintanares” se encontra o diálogo poético com outra referência de profunda simplicidade, Mário Quintana.

E, fechando o mundo-natureza-viva, “Outono” sintetiza o de-liciar-se com a memória e com o gosto-paladar, “Pitango-me”, di-zendo com isso: saborear a pitanga de forma a transformar-se em natureza, e ao mesmo tempo, lembra o vocábulo “tango” no meio da palavra. Claro que a síntese da linguagem traz uma capacidade de afirmação inusitada e a concentração, prática própria da poesia, não prende o verbo, ao contrário, abre possibilidades inauditas.

No sexto sentido do livro (Vita) o poeta contempla a passagem do tempo e o vislumbrar de novos horizontes e possibilidades de uma vida poética. “No espelho”: “Anos desfolham-se em rosto suave / Agora te

a BusCa da liNguageM Perdida eM haikuaZes

Page 126: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos126

entendo / beleza da idade”. O avançar dos anos não reduz a vida, mas amplia o olhar interior em novas descobertas do ser aqui e agora.

Na sétima visão (Hais) o texto “encurtece” sem deixar a densida-de de lado. Um dos que gostei, “Vida”: “Esta soma de cactos / Plena de águas!”. Em algo intratável no plural (“cactos”) com algo movente (“água”), está a vida. Outro poema que fala alto, “Sabedoria”: “O real mora / na utopia”. Aí está o segredo da poética do livro: que o real não é só o visível, mas mora no invisível. Como diz Murilo Mendes: “O invisível não é irreal, é o real que não é visto”.

Enfim, uma poética que propõe novos mundos e olhares revigo-rantes da vida. A lógica que preside a poética de Hamilton Faria é a do deslocamento da linha reta cartesiana, pois os valores da merca-doria como único horizonte de vida e morte, predominantes em nos-so cotidiano, são atacados poeticamente nesses textos que buscam o reencantamento do mundo, mas que também procuram a linguagem que esqueceu de nomear o maravilhamento das coisas.

A revitalização da linguagem acompanha o gesto inaugural do fazer poético, deslocando o olhar para que as coisas sejam vistas com ênfase criativa e não mais no ramerrão produtivista do mundo atual. Escrita poeticamente fecunda, a poesia desse poeta se renova a cada leitura, e em sua leveza carrega a densidade do pensamento. Essa palavra-cultura se coloca mais no universo das artes instituintes como possibilidade de reinvenção do estar e do ser no mundo. Um amém poético a esse livro.

Nota* Texto inédito.

Page 127: Cultura e literatura diálogos

127

A idéia de uma árvore de poesia é inusitada! As árvores são abrigos e também símbolos da vida. A gênese do poema está nas palavras da ár-vore. Árvore remete à vida orgânica que faz desabrochar seus botões.

César Magalhães Borges se apresenta como um “fazedor” da árvore do livro, e não só da árvore um livro. Mais do que poemas, faz o livro de poemas (acompanha seu livro na ante-sala da publi-cação), e cultiva o público de poesia com uma incansável tarefa de relação com ele. É um semeador fiel ao verbo poético. Enfim, um poeta que vive poesia e arboriza a palavra. Sua obra se chama exa-tamente Folhas soltas (poesia incidental) (2006). A capa já nos diz

Tudo aquilo que a nossa Civilização rejeita, pisa e mija em cima, Serve para a poesia.(Manoel de Barros)

Releituras poéticas do mundo em Folhas soltas

releituras PoÉtiCas do MuNdo eM folhas seCas

Page 128: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos128

algo sobre o que vamos encontrar ao abrir o livro. “Ramagem” com suas folhas avulsas que recompõem poeticamente os poemas.

Poemas esquecidos nas “gavetas do ontem” retornam quando atualizados pelo olhar do presente. Poemas escritos e guardados são fonte inesgotável para a vida do escritor. Recentemente foi encon-trado um baú cheio de poemas de Fernando Pessoa, com muitas surpresas e revelações. César resolve abrir o baú e colocar em pé de igualdade poemas “antigos” e recentes, mostrando que passado e presente convivem amistosamente no espaço poético.

No mundo do capital, a natureza da poesia é ser de oposição. Natureza morta ao vivo está em “Céu de acrílico”, que registra e la-menta contra a mesmice que nos cerca e contra tudo que nos ”pro-tege” da natureza. Flores de plástico e folhas de vidro não morrem, pois nunca nasceram, nem chegaram a viver. Leaves of grass or glass, folhas da relva ou de vidro.

A discursividade perdida pela poesia só visual é retomada nos textos de César na prática de uma poesia que busca reencontrar a unidade perdida do verbo.

Assim, seus poemas atacam vários nós da vida contemporânea. Destaquemos alguns momentos. Em “Uma carta” escrita só de meio (sem fim ou começo), o emissor (a) só pretende comunicar o amor de modo intransitivo. Em “Pictodrama”, há a releitura criativa de sinais de trânsito, numa recomposição de ícones à maneira da arte ready-made. Já “Mundo afora” registra a questão fundamental: “De que tipo é / a sua solidão?”. “Do lado de fora” assinala resistência contra o en-quadramento num mundo virtualmente administrado.

Além dos giros surrealísticos, o apuro da poesia se faz com linguagem leve, mas incisiva em textos de um poeta que leu e lê, releu e relê. É seguir, prosseguir nos interstícios e fendas de um “mundo caduco” que se quer consumado e consumido pelo fetiche da mercadoria pós-moderna.

Uma das novidades do poeta é um “Diário” produzido para os navegantes da obra. Não só um Diário de bordo, mas um Diálogo de bordo. Quem ler o livreto pode ter uma idéia da produção do livro e dos poemas. Mas não é uma receita para delimitar a leitura da

Page 129: Cultura e literatura diálogos

129

poesia. As leituras não precisam de receitas, quando boas, merecem ser refeitas. Talvez esse Diário ajude a desvendar a caixa-preta do vôo poético, ou não. Mas a poesia em pleno vôo resiste a qualquer plano de desvendamento mecânico de seus sentidos. Abrir a caixa de surpresa da Pandora poética pode nos revelar a nós mesmos.

Sabemos que a poesia é uma aventura com a palavra viva, com a palavra desaparecida e com a palavra que ainda vai existir. Ser poeta é impregnar o verbo de criatividade e de potência. Um poeta enfrenta o mundo das palavras e o mundo tal como está com as palavras. Contra a impotência diante do descalabro geral, a força poética entra em ação, retomando antigas maneiras e sonhos da voz que não se cala.

Num mundo sem musas e sem deuses, a palavra se insurge contra os paradigmas da barbárie que nos aflige a todos. A poesia assume uma forma política que foge ao controle, praticando uma liberdade de expressão que atua em outra sintonia.

Enfim, a liberdade livremente poética de um “fazedor” de poesia que revela segurança no terreno movediço do pós-moderno. O rein-cidental poeta volta ao lugar da poesia que, nas aporias atuais, abre seus poros e transita por caminhos, vias, vielas, becos, etc. É por aí.

Gostei.

Nota* Texto escrito como “Apresentação” ao livro Folhas Soltas (poesia incidental), de César Magalhães Borges. Guarulhos: Edição do autor, 2006.

Page 130: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos130

Volto a São Luís pela escrita de Joãozinho Ribeiro, que entende de coração as urgências da vida e da tradição lenta de uma cidade que se preserva em Paisagem feita de tempo (2006). O militante da cultura que tanto faz e abre caminhos, agora escreve a sua desleitura poética da cultura engendrada pelo tempo histórico e social dos que buscam eternizar a memória oficial. João está com os muitos, convive com muitos, seus outros tão seus próximos ainda pela palavra.

Mas o poeta também volta ao seu lugar, ou melhor, faz da sua cidade paisagem íntima, fundindo-se nela. Essa revisitação da vida em forma literária faz do livro o próprio poeta.

Já pela capa vemos o tempo na paisagem, “São” Azulejos de Luís. A presença do tempo marcada pelas pequenas ruínas nas flores azulejadas de verde. O título nos envia à temporalidade e à espacialidade vistas do ponto de vista poético. Ler esse livro é de enorme prazer em ver o registro da cultura marcando o olhar.

Confira Tudo que respira Conspira(Paulo Leminski)

A poética do reengajamento pela linguagem*

Page 131: Cultura e literatura diálogos

131

A memória silenciosa presente em versos como “Toda inquietude do silêncio / Tendo vez e voz / Nesta paisagem / Que eu crio e trans-formo / De fruto do meu corpo / E semente da minha crença / Em pés do meu destino” (p. 18). Neles o poeta revisa seu calendário, ainda que não seja operação fácil.

O livro percorre espaços-ruas das cidades dentro da cidade, mas também faz a trajetória do sujeito poético-cultural que é Joãozinho. A história da cidade se confunde com a do poeta-ser-histórico que convive com quem fez a história a contrapelo: bêbados, prostitutas, benzedeiras etc. O lirismo dos bêbados cheios de poesia e música de Isidoro Damasceno com sua “santa bebedeira” (p. 22). “No coração do Centro Histórico” projetos de moradia, ironia em relação ao des-norteio daqueles que viveram no centro da cidade, das cidades.

A visão do expurgo feito pelo trabalho das máquinas que tanto encantam as crianças, mas que é resultado de “projetos de moderni-zação” que apartam dos centros urbanos seus habitantes históricos. Assim se constata nos versos: “Até deparar com as garras / Dos tratores sangrando a terra / E soterrando os encantos / Da Praia do Boqueirão”. (p.43). A escuta política da poesia não cessa de operar.

O poeta se apropria da cidade que é sua e de todos. “Cidade és mi-nha paisagem / Feita de tempo e de mim / Feita de tudo que somos / E do que seremos, enfim.” (p.100). O poeta escuta a cidade invisível inscrita nos interstícios da memória, contra o “mundo caduco” (Drummond) da modernização, fazendo sua a resistência sociocultural dos excluídos.

Um livro feito de palavras, mas também de finas ilustrações de Érico Junqueira. Estas, de uma sensibilidade que nos leva à infância do ser Joãozinho e do ser de todos nós, brasileiros, com nossas memórias de pipa-papagaio-pandorga que leva ao sonho. A tia vendendo mingau de milho, uma chaminé, uma pessoa e uma fábrica, o gato Inocêncio na goiabeira, as duas “aranhas”, enfim cidades poéticas do ser, etc.

Enfim, Joãozinho continua a luta conspirando com sua poesia da vida.

Nota* Texto inédito.

a PoÉtiCa do reeNgaJaMeNto Pela liNguageM

Page 132: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos132

Nesta publicação, “De todos os lugares – histórias de migrantes” (1999), realizada no Museu de Santo André, são registradas as vozes que re-constituem a trajetória e o imaginário das migrações, ao mesmo tempo que fazem a recuperação da memória afetiva e coletiva de pessoas que participaram diretamente da diáspora no território brasileiro.

Já o título dado, “De todos os lugares – histórias de migrantes”, sinaliza para as várias origens dos relatos. Também estas histórias se constituem como História, não a oficial, mas a construída por atores sociais que reformulam pontos de vista com outros olhares sobre certos eventos históricos.

Santo André tornou-se, para os migrantes, um “porto” de referência. Eles se ligaram à cidade como se fosse deles: vieram de diversas regiões brasileiras para cá, direta ou indiretamente, passando antes por outros lugares (São Paulo, São Bernardo do Campo). De burro, pau de arara, vagões, trem, demorando dias e até meses, chegaram a São Paulo e adjacências. Tiveram que en-frentar o frio, a garoa, os mosquitos. Adaptações à nova situação eram uma imposição. Alguns não resistiram às viagens, outros não resistiram às adversidades dos locais aonde chegaram.

A perda de referência cultural e comunitária causou grande impacto na vida das pessoas que se deslocaram para outros lugares,

Imaginário e palavras das migrações*

Page 133: Cultura e literatura diálogos

133

fraturando suas vivências. As memórias das festas, dos encontros e das amizades se esvaziaram, mas foram reconstruídas em outros acontecimentos, por exemplo, através da música que desempenhou papel fundamental na inserção desses atores sociais nos novos con-textos urbanos. Em geral, a chegada nas cidades grandes provoca uma “anomia” (perda de identidade) naqueles que nela vão viver. Mas há um intenso esforço para enfrentar a realidade e reaprender para conviver com a nova situação. Perdem-se os sotaques, mas geram-se outros modos de expressão verbal. Diante destas ruptu-ras, esses agentes sociais reinventam suas experiências.

Essas “narrativas de chegada” são estruturantes na vida de seus autores, pois falam da vida subjetiva, trabalho, política, movimen-tos sindicais, sociais e culturais, etc.

Santo André, nesse contexto, passa a pertencer e a ser reconheci-da por essa população que passou a habitar nela. A cidade recebe e é recebida pelos que chegaram aqui. Freqüentar espaços culturais e as ruas se torna uma prática cultural importante. Com isso, Santo André passa a ser a cidade de direito e de fato de migrantes.

Estas lembranças, agora publicadas, se transformam em ele-mentos importantes para a história, auxiliando a entender as ori-gens e as trajetórias dos habitantes da cidade. Como material e fonte de estudos, deverá servir a pesquisadores, estudiosos e à po-pulação da cidade. Com essa ação, o Museu da cidade cumpre a função de preservar e respeitar a memória daqueles e daquelas que construíram e continuam construindo a cidade.

Com isso, Santo André, com todas as transformações ocorridas, continua sendo referência afetiva, política, histórica, cultural e social desses outsiders que se tornaram cidadãos dela.

Nota* Texto publicado como “Prefácio” ao livro “De todos os lugares – histórias de migrantes” (Museu de Santo André, Prefeitura de Santo André, 1999).

iMagiNário e PalaVra das MigraÇões

Page 134: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos134

A produção literária sempre esteve, de alguma forma, associada à ati-vidade humana, através da tradição oral, da narrativa, da poesia, da crônica, etc. Em qualquer um dos gêneros literários, dois elementos são indispensáveis: o escritor, ou o narrador – aquele que produz e “...retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros.”(Benjamin, 1985: 201) e o leitor ou ouvinte – aquele que incorpora as informações e conhecimentos apreendidos à sua própria experiência. Há, entre essas duas figuras, dois pontos em comum: a troca de experiências e o interesse em conservar aquilo que foi adquirido.

Assim, a literatura pode ser entendida como um patrimônio cultu-ral de uma dada comunidade a partir do momento em que é produzi-

A literatura como patrimônio cultural*

Page 135: Cultura e literatura diálogos

135

da, apropriada e reconhecida por ela, passando a ser um dos elementos da memória desse grupo social.

Essa memória está calcada em referências que o grupo mantém e reforça a cada dia. É sob a óptica do agora que conhecimentos, sabo-res, pessoas, objetos, paisagens são reconduzidos ao presente. Há um processo de reconstrução, onde o vivido recebe influências do grupo e do meio em que este se encontra. São referências significativas que ressurgem nesse momento de rememoração. Não é o passado que reaparece da mesma maneira como ele foi um dia, mas ele “...só deixa se fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.”(Benjamin, 1985: 224).

Na região do ABC, percebe-se uma cultura literária de porte ra-zoável. Escritores, de modo independente ou não, vêm produzindo obras de diversas cores e gêneros: poesia, romance, conto, crônica, diário, memória, etc. Isso não deixa de sinalizar para uma prática propriamente local, ainda que a região não apareça em todos como personagem principal, mas com certeza seus dilemas de identidade ressoam nas obras publicadas.

Um painel mais aprofundado sobre a literatura da região de-mandaria mais tempo e mais aprofundamento, porém num primeiro momento percebemos que a diversidade e a pluralidade é a marca mais acentuada. Estas produções levantam um leque de questões e de pontos para a discussão da estética da criação literária local que ten-siona as correntes mais globalizadas da produção cultural; também dinamizam o intercâmbio de informações e conhecimentos junto ao público que desconhece as potencialidades do fazer literário e suas relações com a história e memória local.

Para se estudar essa literatura “periférica” podem ser pensados os seguintes objetivos: incentivar a reflexão no sentido de se perceber que a produção literária da região pode ser um patrimônio cultural da comunidade em que ela está inserida; estimular o conhecimento da produção literária regional e suas diversas formas de apresentação.

Assim, pode-se levar em consideração os seguintes tópicos: re-lação da produção do escritor com o espaço e com o cotidiano da localidade; diversas formas da produção literária produzida no ABC;

a literatura CoMo PatriMôNio Cultural

Page 136: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos136

a produção literária regional (apropriação e reconhecimento desta como patrimônio cultural); as relações entre a produção literária e a memória social; a reconstrução do passado pela visão do presente; a importância de uma memória local em tempos de globalização; a edi-ção da literatura e da memória regional; gêneros literários e o registro da memória; a experiência e a vivência como fontes para a construção da memória; suportes e preservação da memória local; a memória produtiva e a memória seletiva; contaminação da metrópole sobre a memória regional; relações da literatura com a memória do trabalho; memória e ficção.

Entendemos que estes pontos, apesar de voltados para questões propriamente regionais, não deixam de dialogar com macro-situações presentes no mundo atual. Assim, impulsionar a cultura local tam-bém é abrir-se para o debate nacional, cultivando-se, assim, a árvore sem esquecer a floresta.

Nota* Texto publicado como “Introdução” ao livro Literatura e Memória (PMSA, 2000) e contou com a colaboração de Suzana Cecília Kleeb (ex-Gerente de Preservação da Memória de Santo André) e Altair José Moreira (ex- Secretário de Cultura, Esporte e Lazer de Santo André). Devo a Suzana as citações de Walter Benjamin.

Page 137: Cultura e literatura diálogos

137

Numa civilização cada vez mais visual como a nossa, o uso da palavra nos meios de comunicação e no cotidiano acaba por se restringir a uma relação mecânica com esse elemento básico da existência huma-na. A literatura, como exercício de invenção de novas realidades, não é somente um gesto da vida privada, mas se desenvolve nos espaços públicos através de movimentos poético-sociais, saraus, encontros, recitais, festivais e mostras que se realizam por todo o Brasil. Isso in-dica que a energia do fazer literário se nutre das relações e das ações culturais mais gerais.

A literatura em suas diversas formas - tradição oral, narrativa, poesia, crônica, conto – se constitui num modo de experiência cultu-

A literatura como prática cultural*

a literatura CoMo PrátiCa Cultural

Page 138: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos138

ral que dinamiza a vida social moderna e propicia trocas de experi-ências tanto de escritores como de leitores.

Um dos desafios do momento atual é ampliar a esfera pública de debates sobre práticas literárias e de leitura voltadas para o desenvol-vimento cultural nos municípios. As políticas públicas de cultura se defrontam com a forte presença da mídia televisiva que molda os esti-los de vida de grande parte da população, e a literatura joga um papel importante na formulação de instâncias de reflexão e imaginação para desenvolver suas potencialidades e criar novos horizontes culturais.

A poética da palavra está marcada pelas correntes culturais globalizadas, porém não se submete à lógica da mercantilização geral que submete a vida humana, pois os diálogos sociais estão permeados pela interculturalidade. A literatura não se limita ao quintal, pois o artista observa o mundo sem esquecer suas raízes.

Guarulhos já possui uma vida literária bastante diversa. A cidade conta com uma Academia de Letras e tem uma movimen-tação de poetas ativistas. Na cidade atuam escritores que se empe-nham em divulgar suas obras em escolas, grupos que se reúnem para fazer saraus, performances e apresentações espontâneas. Há, sim, uma organização literária bastante participativa e dinâmica, apesar de não haver editoras que dêem vazão às obras produzidas.

Nesse contexto, a literatura pode ser colocada como um dos ele-mentos fundamentais de uma política de cidadania cultural e, consi-derando que a cultura da palavra contribui para o exercício político da sociedade, a discussão de questões culturais e literárias de nosso tempo merece ser colocada na pauta pública, possibilitando pensar a realidade a partir da criação poética.

Assim pode-se abrir um debate sobre os seguintes temas: impor-tância da literatura hoje, leitura na metrópole, edição da literatura local, a experiência e a vivência de leituras nos grandes centros urba-nos, reflexão pública sobre a literatura, incentivo à organização e cir-culação de obras literárias, entre outros. Estes temas podem ampliar o espaço para o diálogo aberto sobre o fazer cultural na cidade e, a partir daí, construir projetos com os produtores culturais (escritores, grupos, agentes culturais), envolvendo os vários segmentos sociais

Page 139: Cultura e literatura diálogos

139

no processo cultural da cidade, fazendo com que a população possa conhecer e se apropriar da literatura como uma modalidade sociocul-tural de importância na vida urbana.

Podem ser pensados os seguintes tópicos: os relatos de trajetórias individuais, as relações com as editoras, as práticas de literatura e lei-tura na cidade, as histórias literárias de Guarulhos (saraus, grupos e movimentos poéticos), o escritor e a circulação da obra (o trabalho de divulgação); a Academia e suas relações com a literatura da cidade.

É possível também criar um “observatório” de ações culturais na ci-dade, propiciando o levantamento de propostas para uma política de lei-tura para o município e a participação da sociedade local nas definições de uma política cultural para a cidade. Uma ação cultural deste tipo deve ser pensada a longo prazo e como algo que se projeta para o futuro em seu sentido de utopia social e cultural, não se esgotando em si mesma.

Nota* Este texto escrito como “Introdução” à publicação Literatura: a cultura da pala-vra, organizada pelo autor e publicado pela Prefeitura de Guarulhos/Secretaria de Cultura, em 2003.

a literatura CoMo PrátiCa Cultural

Page 140: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos140

Page 141: Cultura e literatura diálogos

141BiBliografia geral

Bibliografia Geral

ADORNO, Theodor W. “Discurso sobre lírica e sociedade”. In: Luiz Costa Lima (org.) Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Edições Francisco Alves, 1975.

____________. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

____________e Horkheimer. Dialética do esclarecimento. (1947). Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

ANDER-EGG, Ezequiel. Política cultural a nivel municipal. Buenos Aires: Editorial Humanitas, s/d.

ANTUNES, Ricardo Os sentidos do trabalho. 5 ed. São Paulo: Boitempo, 1999.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. V. 1, Trad. Henrique Búrgio. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

____________. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

BARROS, César; ARAÚJO, Labanca Corrêa de (orgs.). Reabilitação urbana de centralidades metropolitanas: refle-xões e experiências na América Latina do século 21. Recife: Zoludesign, 2006.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São

Page 142: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos142

Paulo: Cultrix, 1989.

____________. Como viver junto. Simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BÉRGSON, Henri. O riso. Ensaio sobre a significação da comi-cidade. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BLACK, Bob. Grouxo-marxismo. Trad. Michele de Aguiar Vartuli. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006.

BORGES, César Magalhães. Folhas Soltas (poesia incidental). Guarulhos: Edição do Autor, 2006.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

____________. O ser e o tempo na poesia. 6 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

____________. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

____________. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideoló-gica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.

Page 143: Cultura e literatura diálogos

143

BRITTO, Luiz Percival Leme. “Leitura e política”. In: EVANGELISTA, Aracy Alves Martins (org.). A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 77-91.

BUCCI, Eugêncio e KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____________. Seis propostas para o próximo milênio. 2 ed. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. “Quando a literatura vira notícia”. Revista Panorama Editorial. São Paulo, ano 3, n. 25, p. 20-25, novembro 2006.

CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. São Paulo: Humanitas, 1999.

____________. Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e sociedade. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 4 ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994.

____________. A cultura no plural. Trad. Campinas: Papirus, 1995.

CHALMERS, Vera Maria. “O outro é um: o diagnóstico an-tropófago da cultura brasileira.” In: Ligia Chiappini e Maria

BiBliografia geral

Page 144: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos144

Stella Besciani (org.), Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao nave-gador. Trad. Reginaldo de Moraes. São Paulo: Editora da Unesp,1998.

____________. Entrevista “Roger Chartier. Nas entrelinhas do passado”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, ano 3, n. 28, outubro, 2007.

CHAUI, Marilena de Souza. Seminário. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.

____________. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense,1986.

____________.Convite à filosofia. São Paulo: Ática,1995.

____________.Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

CHIAPPINI, Ligia. Reinvenção da Catedral. São Paulo: Cortez, 2005.

COLL, Agustí Nicolau. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. 2 ed. São Paulo: Instituto Pólis, 2006.

CUÉLLAR, Javier Peres (org.). Nossa diversidade cultural. Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Trad. Alessandro Warley Candeas. Campinas/SP: Papyrus; Brasília: Unesco, 1997.

CUNHA, Maria Clementina da (org.) O Direito à Memória:

Page 145: Cultura e literatura diálogos

145

patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, (DPH), 1992.

CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: Edusp, 2001.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. (1967). Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra completa. Volume único. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra 3 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1988.

FARIA, Hamilton; SOUZA, Valmir de (org.). Experiências de Gestão Cultural Democrática. São Paulo, Revista Pólis, n. 12, Instituto Pólis, 1993.

____________.Projeto Cultural para um Governo Sustentável. São Paulo, Revista Pólis, n. 17, Instituto Pólis, 1994.

____________.Cultura, Política Pública e Desenvolvimento Humano. São Paulo, Revista Pólis, n. 22, Instituto Pólis, 1995.

FARIA, Hamilton e SOUZA, Valmir. Cidadania cultural em São Paulo. São Paulo, Revista Pólis, n. 28, Instituto Pólis, 1997.

____________. Desenvolver-se com arte. São Paulo, Revista Pólis, n. 33, Instituto Pólis, 1999.

BiBliografia geral

Page 146: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos146

____________. Haikuazes. São Paulo: Escrituras Editora, 2006.

FAUSTO, Boris. “A revolução de 30”. In: Carlos Guilherme Mota (org.). Brasil em perspectiva. 15 ed. São Paulo: Difel, 1985.

FRAISSE, Emmanuel (et alli). Representações e imagens da lei-tura. Trad. Osvaldo Biato. São Paulo: Ática, 1997.

FRIAS, Joana M. Tempo e negação em Murilo Mendes. 1998, 167 f. Tese (Doutorado em Letras), Faculdade de Letras, Universidade do Porto. Porto/Pt

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Walter Benjamin ou a história aberta”. Prefácio. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. Vol. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Trad. Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999.

GAY, Peter. O estilo na história. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. Trad. Heinz Dieterman. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003.

GUATTARI, Félix. Refundação das práticas sociais. Texto iné-dito, s/d.

GUIMARÃES, Júlio César Castañon. Territórios/ conjunções: poesia e prosa crítica de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

Page 147: Cultura e literatura diálogos

147

HELOANI, José Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado. História da manipulação psicológica no trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.

INFANTE, Ulisses. “‘O carioca passava a vida musicando’ ou o carioca Murilo Mendes e a música popular urbana”. Teresa Revista de literatura brasileira. São Paulo, n. 4/5, 2003.

KLEIN, Naomi. Cercas e janelas, na linha de frente do debate sobre globalização. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2003.

KLEYMEYER, Charles David (org.). La expression cultural y el desarollo de base. Virginia, EUA: Inter-American Foundation (IAF), 1992.

KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2004.

LEMAIRE, Ria e DE DECCA, Edgar Salvadori (org.). Pelas Margens. Outros caminhos da história e da litera-tura. Campinas/Porto Alegre: Ed. da Unicamp; Ed. da Universidade/UFRG, 2000.

MAGALDI, Cássia. “O público e o privado: propriedade e interesse cultural”. In: PEREIRA, Maria Clementina (org.). O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, São Paulo, DPH, 1992.

MENDES, Murilo. Poesia e prosa completa. Luciana Stegagno Picchio (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Page 148: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos148

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “A crise da memória, his-tória e documento: reflexões para um tempo de transforma-ções”. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.) Arquivos, patrimônio e memória – Trajetórias e perspectivas. São Paulo: Unesp/Fapesp, 1999.

____________. “Os paradoxos da memória”. In: MIRANDA, Danilo Santos de. (org.). Memória e cultura. A importância da memória na formação cultural humana. São Paulo: Edições SESC SP, 2007.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo I – Neurose. 7 ed. Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

MOURA, Murilo Marcondes de. Três poetas brasileiros e a se-gunda guerra mundial (Drummond, Cecília Meireles e Murilo Mendes). São Paulo, 1998. 192 f. Tese (Doutorado em Letras) - FFLCH/USP.

OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles e MATTOS, Claudia Valladão de. O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999.

OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. “O Museu Paulista da USP e a memória da Independência”. Cadernos CEDES, Dec. 2002, vol.22, n. 58, 2002. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v22n58/v22n58a05.pdf. Acesso: 24 abril 2008.

OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia. Os sentidos da democracia. 2 ed. Rio de Janeiro: Vozes/Fapesp, 2000.

OLIVEIRA, Francisco de; RIZEK, Cibele A era da indetermi-nação. São Paulo: Boitempo, 2007.

Page 149: Cultura e literatura diálogos

149

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

PAULICS, Verônica (org.). Dicas de ação municipal. São Paulo:, Revista Pólis, n. 54, Instituto Pólis, 2000.

PEREIRA, Maria Clementina (org.). O direito à memória. Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, São Paulo, DPH, 1992.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

____________. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacio-nalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.

RIBEIRO FILHO, João Batista. Paisagem feita de tempo. São Luís: 2006.

SAHLINS, Marshall. A razão prática. Trad. Sérgio Tadeu de Niemayer Lamarão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Identidade urbana e globali-zação. A formação dos múltiplos territórios em Guarulhos/SP. São Paulo: Annablume; Guarulhos: Sindicato dos Professores de Guarulhos, 2006.

SARLO, Beatriz. Tempo passado. Da cultura da memória à guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Page 150: Cultura e literatura diálogos

Cultura e literatura: diálogos150

SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

____________. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SEVERIANO, Maria de Fátima V. Nascisismo e publicidade. Uma análise psicossocial dos ideais de consumo na contem-poraneidade. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2007

SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: Otávio Guilherme Velho (org.) O fenômeno urbano. Trad. Sérgio Marques dos Reis. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

SKINNER, Quentin Hobbes e a teoria clássica do riso. Trad. Alessando Zir. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2002.

SOUZA, Valmir de. Murilo Mendes: da história satírica à me-mória contemplativa. São Paulo, 2006. 248 f. Tese (Doutorado em Letras) - DTLLC/FFLCH/USP.

____________. “Prefácio”. In: De todos os lugares – histórias de migrantes. Santo André: Prefeitura de Santo André, Museu de Santo André, 1999.

____________. “Introdução”. In: Literatura e Memória. Santo André, SP: Prefeitura de Santo André, Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, 2000.

____________. “Introdução”. In: Literatura: a cultura da pala-vra. Prefeitura de Guarulhos, Secretaria de Cultura, Sistema Municipal de Bibliotecas/Biblioteca Monteiro Lobato, 2003.

____________. “Apresentação.” In: César Magalhães Borges,

Page 151: Cultura e literatura diálogos

151

Folhas Soltas (poesia incidental). Guarulhos: Edição do Autor, 2006.

____________.“A leitura no contexto da pseudocultura con-temporânea.” In: Revista Leitura: Teoria e prática, Campinas, ALB, n. 50, p. 25-29, junho de 2008, Global.

WHITE, Hayden. Meta-História: A imaginação histórica do século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

____________. Cultura. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

ZIZEK, Slavoj. Bem-vindos ao deserto do Real. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

Webgrafia

<http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v22n58/v22n58a05.pdf.>

<http://www.krisis.org>

Page 152: Cultura e literatura diálogos

Este livro foi composto nas tipologias Minion Pro [Robert Slimbach - Adobe] e Myriad Pro [Robert Slimbach, Carol Twombly, Fred Brady, Christopher Slye - Adobe] e impresso em papel Reciclato 75 g/m² pela Maxprint editora e gráfica ltda.