CULTURA E RELIGIÃO · ALEX AUGUSTO DE SOUZA CULTURA E RELIGIÃO: TRAMAS E NARRATIVAS DO BARROCO...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ UEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ALEX AUGUSTO DE SOUZA CULTURA E RELIGIÃO: TRAMAS E NARRATIVAS DO BARROCO MINEIRO Maringá, 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ – UEM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ALEX AUGUSTO DE SOUZA

CULTURA E RELIGIÃO:

TRAMAS E NARRATIVAS DO BARROCO MINEIRO

Maringá, 2019

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ALEX AUGUSTO DE SOUZA

CULTURA E RELIGIÃO: TRAMAS E NARRATIVAS DO BARROCO MINEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em

Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá-UEM, como

requisito legal para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Profª Drª Wânia Rezende Silva.

Maringá, 2019

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)

Souza, Alex Augusto de

S729c Cultura e religião: tramas e narrativas do barroco mineiro / Alex Augusto de

Souza. -- Maringá, 2019.

120 f. : il. color., figs.

Orientadora: Profa. Dra. Wânia Rezende Silva. Dissertação (mestrado) -

Universidade Estadual de

Maringá, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2019.

1. Cultura. 2. Religião - Igreja Católica. 3. Movimento barroco - Minas Gerais

(Estado). Silva, Wânia Rezende, orient. II. Universidade Estadual de Maringá.

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

CDD 23.ed.306.6

Elaine Cristina Soares Lira – CRB 1202/9

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AGRADECIMENTOS

Em especial à orientadora dessa pesquisa, a Profª. Drª.Wânia Rezende Silva, pelas

colocações claras, objetivas e brilhantes, fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa,

além da paciência e atenção que teve durante a realização da mesma e o apoio essencial,

repassando com responsabilidade e competência o sentido da pesquisa científica, sem o qual

seria impossível o desenvolvimento que teve esse trabalho.

Ao Prof. Dr. Geovanio Edervaldo Rossato, por sua participação em minha banca de

qualificação, momento em que contribuiu significativamente com suas orientações para a reta

final desta pesquisa e também por ter aceito fazer parte de minha banca de defesa final,

deixando-me muito feliz com seu aceite e suas observações pertinentes, as quais foram

essenciais para a finalização dessa pesquisa.

À Profª Drª Eliane Sebeika Rapchan, a qual não pôde estar presente na banca de defesa

final, mas contribuiu de modo significativo para a finalização desta pesquisa, através de suas

orientações claras, objetivas e pertinentes em minha banca de qualificação.

Ao Prof. Dr. Maurício de Aquino, que prontamente aceitou meu convite para fazer

parte da minha banca de defesa final, deixando-me honrado com sua presença pelo brilhante

currículo que possui. Agradeço por todas as orientações realizadas na banca e, principalmente,

por sua importância em minha trajetória acadêmica, através de suas aulas durante minha

graduação em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná, nos anos de 2008 e

2009, 3º e 4º ano do curso, respectivamente.

Aos professores do Programa de Pós Graduação - Mestrado em Ciências Sociais da

Universidade Estadual de Maringá, PGC-UEM, que de alguma forma contribuíram para nossa

formação profissional.

Aos colegas do Curso do Mestrado em Ciências Sociais, principalmente àqueles que

deram o apoio necessário durante o decorrer do curso. Em especial à Márcia Souza, pelas

contribuições feitas, e também à minha grande amiga, Márcia Soares por toda a ajuda prestada

no decorrer da realização desta pesquisa.

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“Minas não é um Estado da Federação; é um estado de espírito”

Bueno de Rivera

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RESUMO

O objetivo principal da pesquisa que segue é identificar e analisar a participação da religião

católica na formação cultural e social da capitania de Minas Gerais no século XVIII, mostrando

o papel que o sagrado exerce em coletividade, por meio da Igreja, enquanto instituição social e

formadora de normas e valores, o que acabou por gerar o barroco mineiro, uma das maiores

expressões da arte e da cultura, não só no Brasil, mas no mundo. Neste contexto, a pesquisa

busca analisar a influência religiosa exercida pela Igreja Católica, no processo de identificação

da sociedade mineira com um catolicismo mais popular, principalmente durante o século XVIII,

período do auge do movimento Barroco nas Minas Gerais e época de grande efervescência na

referida capitania, que teve seu processo civilizador formado pelas mais diferentes classes

sociais, fato ocorrido devido, principalmente, à descoberta do ouro. Para a realização da

pesquisa recorreu-se à pesquisa bibliográfica em artigos, livros, teses e dissertações que

analisam a temática barroca e religiosa. Também foram feitas pesquisas sobre o tema em sites

e revistas eletrônicas pertencentes a instituições consagradas e que se voltam para o assunto em

pauta. Como parâmetro para compreender a formação de Minas Gerais, foi analisado, como

inspiração teórica, Norbert Elias, em suas concepções acerca do processo civilizador. Foi de

grande importância também minha viagem até a região de Ouro Preto, onde é possível encontrar

as marcas deixadas por toda a efervescência da religião católica no século XVIII.

Palavras-chave: Religião, Cultura, Minas Gerais, Barroco.

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ABSTRACT

The main objective of the research that follows is to identify and analyze the participation of

the Catholic religion in the cultural and social formation of the captaincy of Minas Gerais in

the eighteenth century, showing the role that the sacred plays collectively, through the Church,

as a social and formative institution. of norms and values, which eventually generated the

baroque mineiro, one of the greatest expressions of art and culture, not only in Brazil, but in the

world. In this context, the research seeks to analyze the religious influence exerted by the

Catholic Church, in the process of identifying mining society with a more popular Catholicism,

especially during the eighteenth century, the period of the Baroque movement in Minas Gerais

and the time of great effervescence in the referred captaincy, which had its civilizing process

formed by the most different social classes, a fact that occurred mainly due to the discovery of

gold. To carry out the research we resorted to bibliographic research in articles, books, theses

and dissertations that analyze the Baroque and religious theme. Research has also been done on

websites and electronic magazines belonging to established institutions that focus on the subject

at hand. As a parameter to understand the formation of Minas Gerais, Norbert Elias was

analyzed as a theoretical inspiration in his conceptions about the civilizing process. It was also

of great importance my trip to the region of Ouro Preto, where it is possible to find the marks

left by all the effervescence of the catholic religion in the eighteenth century.

Keywords: Religion, Culture, Minas Gerais, Baroque.

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Sumário

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1: BARROCO: DO VELHO PARA O NOVO MUNDO .............................. 16

1.1 O NASCIMENTO DO BARROCO ............................................................................... 16

1.2 UMA ARTE DIFERENCIADA ..................................................................................... 18

1.3 RELIGIÃO E ABSOLUTISMO: OS PRINCIPAIS REPRESENTANTES DO

BARROCO EUROPEU ........................................................................................................ 20

1.4 A CHEGADA DO BARROCO AO BRASIL ................................................................ 36

CAPÍTULO 2: BREVE DISCUSSÃO DA RELIGIOSIDADE NO BRASIL ................... 42

2.1. A CONTRARREFORMA CATÓLICA E O SURGIMENTO DA COMPANHIA DE

JESUS ................................................................................................................................... 42

2.2 A CHEGADA DOS JESUÍTAS AO BRASIL ............................................................... 44

2.3 CONFLITOS ENTRE JESUÍTAS E COLONOS .......................................................... 46

2.4 CATEQUIZAÇÃO, EXPLORAÇÃO E RIQUEZA ...................................................... 46

CAPÍTULO 3 - DAS MINAS ÀS GERAIS: TRAMAS E NARRATIVAS DO

BARROCO MINEIRO .......................................................................................................... 50

3.1 O PROCESSO DE FORMAÇÃO DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS ................. 50

3.2 AS PRINCIPAIS CIDADES MARCADAS PELO BARROCO ................................... 57

3.3 A ESTRADA REAL ....................................................................................................... 70

3.4 O COMÉRCIO NAS GERAIS DO SÉCULO XVIII ..................................................... 72

3.5 A RELIGIOSIDADE NA CAPITANIA DO OURO ..................................................... 75

3.6 AS IRMANDADES NA CAPITANIA MINEIRA ........................................................ 79

3.7 OS ARTUROS E A IRMANDADE DO ROSÁRIO ...................................................... 86

3.8 VIVÊNCIA DO SAGRADO .......................................................................................... 91

3.9 O BARROCO MINEIRO ............................................................................................... 93

3.10 PALAVRAS FINAIS ................................................................................................. 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 107

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 111

ANEXOS ............................................................................................................................... 114

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - CARAVAGGIO. A Vocação de S. Matheus, Capela Contarelli S. Luigi dei Francesi,

Roma ......................................................................................................................................... 21

Figura 2 - ANDREA POZZO. A Glória de Santo Inácio, afresco pintado no teto da igreja de

Santo Inácio, em Roma. ............................................................................................................ 22

Figura 3 -ARTEMÍSIA GENTILESCHI. Judite e sua Criada. Palácio Pitti, Florença. ........... 23

Figura 4 - CARRACI. Remo ladriarmenti. PalazzoMagnani, Bolonha ................................... 24

Figura 5 - GUIDO RENINI. A Aurora (afresco do teto), 1613. Casino Rospiglioso, Roma ... 24

Figura 6 - GUERCINO. A Aurora. Villa Ludovisi, Roma ....................................................... 25

Figura 7 - S.Pedro de Roma: interior (com tabernáculo de Bernini, 1624-33). ....................... 25

Figura 8 - FRANCESCO BORROMINI. Fachada de S. Carlo alleQuattroFontane, Roma 1165-

67. ............................................................................................................................................. 26

Figura 9 - GUARINO GUARINI. Cúpula da Capela de Santo Sudário, Catedral de Turim. 1668-

94 .............................................................................................................................................. 27

Figura 10 - EL GRECO. O Espólio (1579). Catedral de Toledo, Espanha. ............................ 29

Figura 11 - RUBENS. Jardim do Amor (1632-1634). Museu do Prado, Madri. ..................... 31

Figura 12 - HALS. Oficiais da Guarda Civil de Santo Adriano em Haarlem (1627). Museu

FransHals, Haarlem .................................................................................................................. 31

Figura 13 - REMBRANDT. O Cavaleiro Polaco (1655). Nova Iorque (Copyright). .............. 32

Figura 14 - VERMEER. A Carta. Rijksmuseum, Amsterdam. ................................................ 33

Figura 15 - Igreja construída no território dos Sete Povos das Missões RS. ............................ 39

Figura 16 - Fachada Principal da Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, construída

no século XIX. Fonte Martinez 2010. ...................................................................................... 40

Figura 17 - Fachada Secundária da Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, construída

no século XVIII. Fonte Martinez 2010. .................................................................................... 41

Figura 18 - Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, com fachada do século XIX e

ao fundo as torres do século XVIII. Fonte Martinez 2010. ...................................................... 41

Figura 19 - Processo de extração do ouro nas Gerais do século XVIII. Rugendas 1835 ....... 55

Figura 20 - Chafariz do Museu da Inconfidência, Ouro Preto – MG. Todo constituído em pedra

sabão, representa o estilo barroco. ............................................................................................ 58

Figura 21 - Vista da Igreja de São José, Ouro Preto-MG 05/01/19......................................... 59

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Figura 22 - Frente da Igreja de Nossa Senhora das Dores, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ............ 59

Figura 23 - Frente e lateral da Igreja de São Francisco de Paula, Ouro Preto-MG 05/01/19 ... 61

Figura 24 - Vista de Ouro Preto – MG, Janeiro de 2019. ......................................................... 62

Figura 25 - Frente da Igreja de São Pedro dos Clérigos, Mariana-MG, 07/01/19.................... 63

Figura 26 - Frente da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Mariana-MG, 07/01/19 ................ 64

Figura 27 - Vista de Mariana – MG, Janeiro de 2019 .............................................................. 65

Figura 28 - Igreja de São Francisco de Assis, São João Del Rei – MG. .................................. 68

Figura 29 - Negras de Tabuleiro, de Carlos Julião (Iconografia Biblioteca Nacional). .......... 74

Figura 30 - Imagem da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ... 80

Figura 31 - Imagem da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19 .......................... 80

Figura 32 - Imagens internas do altar e lateral da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Ouro

Preto-MG 06/01/19 ................................................................................................................... 86

Figura 33 - Leões de Essa, madeira de cedro-Aleijadinho 1787, Igreja de São Francisco de

Assis, Ouro Preto - MG ............................................................................................................ 99

Figura 34 - Réplica em gesso da imagem do Profeta Daniel, Museu da Inconfidência. A

escultura original feita por Aleijadinho está em Congonhas no Santuário Bom Jesus de

Matosinhos. ............................................................................................................................ 100

Figura 35 - Imagem de São Jorge, atribuída a Aleijadinho. Museu da Inconfidência ........... 101

Figura 36 - Pintura no teto da Igreja de São Francisco de Assis, atribuída a Mestre Ataíde, Ouro

Preto-MG ................................................................................................................................ 102

Figura 37 - Antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência, Ouro Preto-

MG 06/01/19 .......................................................................................................................... 114

Figura 38 - Nossa Senhora do Rosário-madeira de cedro policromada e dourada. Procedência

Paracatu-MG. Museu da Inconfidência .................................................................................. 114

Figura 39 - Imagem do altar da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ........... 115

Figura 40 - Imagem do altar da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ........... 116

Figura 41 - Pinturas no teto da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ............ 117

Figura 42 - Imagens laterais da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ........... 118

Figura 43 - Imagens do altar da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto-MG, 08/01/19

................................................................................................................................................ 119

Figura 44 - Altar da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto-MG, 08/01/19 ................ 120

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INTRODUÇÃO

A necessidade de entender a formação da Capitania de Minas Gerais e a influência que

a religião exerceu sob a mesma durante o período do Barroco mineiro, no século XVIII,

estabelece o objetivo deste trabalho. Para definir nossa problematização, serão colocados como

recortes principais os acontecimentos do século XVIII na região das Gerais, momento do auge

do movimento barroco em Minas e época de vivência de grandes artistas como Antônio

Francisco Lisboa, o Aleijadinho, um dos maiores representantes do barroco mineiro.

Para chegarmos aos acontecimentos de Minas Gerais no século XVIII, será necessário

um resgate das principais características do barroco e também da chegada da religião no

território brasileiro.

Para compreender a complexa dinâmica social que se forma nessa capitania no século

XVIII, é necessário recorrer à busca da religiosidade daquele ambiente social, pois este foi um

dos principais fatores que levaram ao seu desenvolvimento. Impregnado pelo campo do

sagrado, o homem das Gerais recria a trama barroca europeia através de elementos que só Minas

poderia lhe dar: a riqueza da simplicidade da região.

Nas palavras de Neves (2007), o barroco surgiu da contestação renascentista contra o

racionalismo e se tornou uma manifestação da cultura católica tridentina. Entre a segunda

metade do século XVI e a primeira do XVIII, difundiu-se na Europa neolatina, com restrições

na França, como estilo de vida, forma de se comunicar e expressão artística.

O termo "barroco" pode designar tanto um estilo artístico quanto literário, como um

período cronológico, ou certa mentalidade. Há controvérsias sobre a origem desse movimento,

pois, para uns adviria de uma denominação atribuída por artífices portugueses a um tipo de

pérola “irregular”, assinalada na França com o significado de “bizarro”, “extravagante" e, para

outros, resultaria da designação de uma das modalidades de silogismo, considerado sofístico.

As duas acepções apresentadas evidenciam sentido pejorativo e valorização negativa.

Os fatores presentes na fase de nascimento do barroco serão tema de discussão em um

primeiro momento nessa pesquisa. De início, a expressão "barroco" passou a designar o

conjunto de valores e significados que se manifestaram nas artes e também na literatura, entre

o classicismo renascentista e o neoclassicismo setecentista, ou entre o final do século XVI e o

início do XVIII, quando estudiosos europeus a resgataram, nos últimos anos do século XIX.

Para Neves (2007)

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Na perspectiva sócio-cultural, a manifestação barroca expressou a conjuntura

político-econômica do Antigo Regime, caracterizado pela centralização do

poder com o absolutismo monárquico e pela acumulação mercantil, que

expandiu da Europa para todos os continentes, quando a burguesia emergente

se associou, num pacto, com a nobreza, cujo poder declinava com a nascente

economia de mercado. (NEVES,2007,p.72)

Como expressão artística, o barroco mostrou-se mais preocupado com o seu tempo do

que com o passado, sem crise de identidade, por expressar uma percepção mais coletivista do

que individualista do mundo e, em relação à linearidade clássica da Renascença, o barroco se

configura por sua tortuosidade e ambiguidade, bem como de uma complicação do sentir e da

expressão que caracteriza uma nova fase, não só de criatividade artística e literária, mas também

de uma política barroca.

Levando mais de duzentos anos para chegar a Minas Gerais desde sua origem na

Europa, esse movimento agregou, no trajeto percorrido, elementos de diferentes origens. A

evolução da arquitetura mineira não aconteceu rapidamente. As construções em pedra sabão,

por exemplo, foram surgindo lentamente.

Diz Santos (2002) que “Enquanto isso, o que se usava mesmo era a taipa de pilão, um

processo tipicamente paulista. Mas não deu certo, por causa do terreno duro e pedregoso, pouco

favorável ao fornecimento de terras argilosas” (p.205).

Por fim, Minas Gerais se torna o centro de difusão do barroco brasileiro e com o passar

do tempo foram sendo harmonizadas as mais diferentes técnicas de construção e uma rica

decoração no interior das igrejas, sendo, como já dito, o ponto culminante dessa integração

entre arquitetura, escultura, talha e pintura nas Gerais. Tais traços aparecem a partir dos

trabalhos de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, claro, sem deixar de citar também outro

grande representante do barroco mineiro e um dos maiores pintores da época: Manuel da Costa

Ataíde, nascido em Mariana por volta de 1762 e falecido em 1830.

No primeiro capítulo, faz-se necessária uma análise do movimento barroco na Europa,

onde serão abordadas questões como o contexto histórico de sua formação, que tipo de estética

caracterizou essa arte na Europa, suas singularidades específicas em diferentes regiões, as

dúvidas e a criticidade de uma arte vista como fora do padrão, pois, segundo Vale (2016) a

maioria dos estudiosos adotam essa palavra como sendo de “origem francesa (barrueco),

sugerindo algo irregular ou imperfeito, como “uma pérola imperfeita”, exagerado,

extravagante, ridículo” (p.17). Lemos (2008), por sua vez, define o barroco como um

movimento inspirado na Contrarreforma Católica e coloca a origem da palavra como vinda do

espanhol e do português. A Reforma Protestante, que da Alemanha expandiu-se para muitos

outros países e que fará com que a Igreja Católica lance a Contrarreforma, está entre os

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principais acontecimentos do século XVI, que deu origem ao barroco, o qual tem sua formação

na Itália e de lá se espalha por outros países da Europa, até a chegada à América. Mostraremos

ainda que, seguindo o catolicismo português, o movimento barroco adentra o Brasil, sendo que

analisaremos de forma breve as principais regiões brasileiras que foram influenciadas por essa

arte até sua chegada em Minas Gerais no século XVIII, onde esse estilo adquire características

que o tornam diferenciado.

Como expressão cultural e artística, o barroco chegou ao Brasil no século XVII, época

em que na Europa esse estilo já havia sido abandonado. É fato que no Brasil ele também variou

de uma região à outra, e foi a presença do ouro que tornou seu campo mais glorioso, a região

das Gerais, pois, na localidade onde não houve o processo de mineração, encontramos trabalhos

mais modestos de artistas menos experientes.

Afirma Santos (2002):

O Barroco brasileiro é claramente associado à religião católica. Por todo o país,

são inúmeras as igrejas construídas segundo os princípios desse estilo. Mas, há

também muitos edifícios civis – como cadeias, câmaras municipais, moradias

de pessoas ilustres – e chafarizes que apresentam nítidas características

barrocas. (SANTOS, 2002, p.196).

No segundo capítulo se fará uma breve explicação da implantação da religião Católica

no Brasil, mostrando que a Coroa Portuguesa e a Igreja eram fortes aliados através do padroado,

união Estado e Igreja Católica, que conferia à Igreja poder para participar do processo de

colonização no Brasil. Para entendermos o contexto do sincretismo religioso que se fará

presente na sociedade colonial, analisaremos também, de maneira breve, a presença das

religiosidades africanas no Brasil. Essa análise se faz necessária para que possamos

compreender o quão grande foi a diversidade de crenças e tradições religiosas no referido

período, auge do barroco nas Gerais, o que fez com que o sagrado influenciasse de maneira

decisiva a identificação daquele povo, que fez parte da sociedade mineira dos setecentos.

As tradições religiosas dentro desse contexto se manifestaram de forma veemente,

como foi o caso da religiosidade em torno de São Gonçalo, que se tornou um santo de grande

devoção popular de diferentes grupos sociais, assim como a Virgem do Rosário representaria

principalmente as irmandades de negros nas Minas Gerais colonial. Tão fortes se fizeram as

crenças e devoções em torno de Nossa Senhora do Rosário, que as festas e tradições em sua

homenagem acabaram por ultrapassar a religiosidade do período colonial, sendo mantida até os

dias atuais pelos povos Arturos, como observaremos no terceiro capítulo dessa pesquisa.

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A presença dos padres jesuítas no Brasil também marcou o estilo barroco. No século

XVIII, enquanto em Minas Gerais desenvolvia-se um estilo barroco com formas e

características encontradas somente naquela região, no sul do país desenvolveram-se uma

arquitetura e uma escultura de caráter religioso, associadas ao trabalho da catequese que os

padres jesuítas realizavam com as populações indígenas. Diferente da região das minas, essas

construções jesuíticas do sul, muitas vezes, misturaram elementos da arquitetura românica e

barroca da Europa, que, diferente das Gerais, onde os artistas eram principalmente mestiços,

como o mestre Aleijadinho, no sul, muitos construtores eram de origem europeia.

No terceiro capítulo se fará uma análise da sociedade das Minas Gerais no auge do

barroco, incluindo a estética barroca mineira, suas tramas, narrativas e sua especificidade

naquela região. Analisaremos as principais cidades, as quais foram centros de difusão desta

cultura através da religiosidade, que caracterizou as artes com a influência de artistas que, com

uma sensibilidade única, transformaram o ambiente dos principais centros urbanos tomados

pelo barroco. Estas cidades representavam toda a dinâmica social da época, com diferentes

classes sociais e uma religiosidade de caráter popular, marcada, em um primeiro momento, pela

presença das Ordens Terceiras e Irmandades, que eram capazes de moldar estilos de vida,

formas de pensar e maneiras de seguir regras, como ocorreu em Minas Gerais, em grande parte

do século XVIII.

Para que possamos ter uma visão mais detalhada de todos esses acontecimentos que

envolveram Minas Gerais no século XVIII, se fará necessário entender, inicialmente, como se

deu o processo de formação dessa capitania. Nesse contexto, não podemos deixar de analisar,

mesmo que de forma breve, a participação das negras no comércio do ouro.

É nessa sociedade tão diversificada e rica de acontecimentos no período colonial, que

a trama barroca brasileira encontrou seu apogeu. Dentro das relações com o sagrado, o barroco

mineiro encontra sua essência. Foi através das tradições religiosas populares, como já dito,

envolvidas pelo surgimento de Ordens Terceiras e Irmandades, que financiaram as realizações

de grandes obras barrocas mineiras, que veio a luz a estética barroca mineira.

Tamanha a importância da presença das irmandades religiosas, que não há como

estudar a evolução social de Minas com suas peculiaridades, sua dinâmica própria e sua

influência no próprio comportamento social e político da coletividade mineira, sem fazer uma

análise destas organizações.

Foi também nessa capitania que viveu o maior artista do barroco brasileiro, Antônio

Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o qual merecerá uma análise especial dentro desta pesquisa,

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por tudo que representou, sendo quem era em uma época em que distinções de cor e classe

faziam toda a diferença na sociedade.

O início da carreira de Aleijadinho acabou sendo bem auspicioso, sendo, em um

primeiro momento, instruído sobre as artes da arquitetura por seu pai, Manuel Francisco Lisboa,

um arquiteto, carpinteiro e mestre de obras que veio de Portugal para o Brasil. Mais tarde,

quando foi atingido por uma doença degenerativa, Antônio Francisco, incapaz de trabalhar

sozinho, passou a contar com a ajuda de escravos, entre os quais podemos citar Maurício e

Agostinho, sendo que, principalmente o primeiro, acabou se revelando um ajudante talentoso e

inestimável do artista.

Nos lugares pelos quais passou, Aleijadinho deixou suas marcas, um grande exemplo

disso é a cidade de Congonhas, onde ele realizou duas obras primas, sendo uma série de seis

cenas em tamanho natural representando a Paixão de Cristo, esculpidas em madeira e abrigadas

em pequenas capelas ao longo da estrada que conduz ao santuário propriamente dito, e também

doze grandes estátuas em pedra-sabão, uma representação dos profetas do Antigo Testamento,

as quais se erguem como pequenas torres na balaustrada do terraço e nas escadas do santuário.

No total chegou a produzir, segundo Manguel (2001) “[...] 76 esculturas que devem ser

computadas entre as mais poderosas e dramáticas de seu tempo” (p.234).

As cenas da Paixão abrigadas nas assim chamadas capelas dos passos, ao longo

do caminho em zigue-zague, exigem que o visitante entre e as contemple num

cenário restrito e íntimo, como uma história sussurrada contada em particular

para o espectador. As capelas dos passos são estabelecidas ao longo de uma

linha narrativa, da Última Ceia à Crucificação; elas se desenrolam tanto no

tempo como no espaço, tanto no tempo da história de Cristo como no tempo

que o espectador leva para seguir da primeira até a última cena, como se

estivesse vendo uma magnífica procissão. O povo de Minas Gerais estava

acostumado a procissões grandiosas e coloridas organizadas pelas Ordens

Terceiras e pelas irmandades para celebrar os feriados religiosos e os

aniversários dos santos padroeiros. Essas procissões eram, entretanto, uma

parte essencial da vida na região. A essas procissões acrescentavam-se, durante

a Páscoa e o Natal, dramas sacros representando cenas da Bíblia que incluíam

aparições dos profetas a aconselhar o povo de Israel no Novo Mundo. Essas

aparições talvez tenham inspirado a obra dramática do Aleijadinho

(MANGUEL, 2001, p.234).

Além das obras barrocas marcadas pelas mãos do mestre Aleijadinho, veremos que

muitas cidades mineiras foram tomadas por esse ímpeto barroco, as quais, em sua maioria,

ficam na rota da Estrada Real, que atinge um total de 170 municípios. Com mais de 1630

quilômetros de extensão, essa estrada passa por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e sua

história surge em meados do século XVII, quando a Coroa Portuguesa decidiu oficializar os

caminhos para a passagem do ouro das Gerais até o Rio de Janeiro.

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Então, para a realização desta pesquisa, foram realizados trabalhos com os principais

referenciais bibliográficos sobre o tema, visitas em sites e revistas eletrônicas pertencentes a

instituições consagradas e respeitadas em relação ao assunto, bem como viagem realizada em

janeiro de 2019 na região de Ouro Preto, símbolo da história e da preservação do patrimônio e

da identidade cultural do século XVIII.

A pesquisa traz como contribuição às ciências sociais a análise da reprodução e

transformação das práticas culturais da sociedade mineira do século XVIII, seu processo de

formação e identificação com o catolicismo e suas relações com o sagrado.

CAPÍTULO 1: BARROCO: DO VELHO PARA O NOVO MUNDO

1.1 O NASCIMENTO DO BARROCO

Delimitar um período específico para a existência do barroco torna-se algo complexo

e difícil de ser feito, visto suas mais diferentes características, que acabam por torná-lo singular,

revelando diferentes expressões em cada local em que se desenvolveu.

Sobre o seu surgimento, torna-se imprescindível reconhecer a Itália como um dos

berços de sua origem. Santos (2002) coloca a Reforma Protestante como o marco inicial da

origem desse movimento, pois a Contrarreforma Católica, confirmada pelo Concílio de Trento

(1545 e 1563), buscará uma maneira tocante de atingir seus fiéis e, a partir daí, “a arte é vista

como um meio de propagar o catolicismo e ampliar sua influência” (p.103).

Mas, como dito, a Itália é considerada o lugar em que a expressão desse movimento

ganhou notoriedade ao desenvolver uma simetria singular, fazendo isso através da “quebra” de

um padrão, que até então era seguido pela arte através do Renascimento. Há, para alguns

autores, um questionamento, segundo o qual o barroco é a última fase do movimento

renascentista. Janson (2001) não só faz essa indagação, como ainda coloca outra possibilidade

ao afirmar que: “discute-se ainda se o barroco é a última fase do Renascimento ou se constituí

uma era distinta tanto do Renascimento como da época moderna” (p.715).

Para muitos, o barroco europeu foi antecedido pelo “maneirismo” e não pelo

Renascimento, mas, afinal, seria o maneirismo uma última fase do Renascimento? Digamos

que as obras desse período se diferem das características renascentistas, não caracterizando

ainda o barroco. Foi um período entre 1525/1530 que perdurou até 1600.

Sobre o termo "maneirismo", Neves (2007) nos diz que: “Esta denominação, com a

qual se pretendeu expressar sentido pejorativo, derivou-se do termo italiano manieri, que se

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traduz por “alteração do que é verdadeiro”, numa insinuação de que seria apenas uma imitação

do classicismo” (p.73).

Janson (2001) ainda afirma que:

Entre as várias tendências artísticas que se manifestaram após o Renascimento

Pleno, a do maneirismo é a mais discutida. Em alcance e significado, o termo

é ainda ambíguo: no sentido original, limitado e pejorativo, designava o estilo

de um grupo de pintores dos meados do século XVI, ativos em Roma e

Florença, que cultivaram uma arte conscientemente “artificial” e amaneirada,

derivada de algumas concepções de Rafael e Michelangelo (JANSON, 2001,

p.670).

Enfim, falar de uma arte que antecede o barroco não é algo de grande relevância para

este trabalho, visto que delimitar um período exato para sua origem e término na Europa não

vêm a ser uma necessidade nessa pesquisa, pois isso não romperá os laços indissociáveis que

construirão nosso objetivo principal, que é entender o que foi e quais as características da arte

barroca.

Quando passamos a tratar da origem da palavra "barroco", mais uma vez são apontados

questionamentos pelos autores. Segundo Vale (2016), a maioria dos estudiosos adotam essa

palavra como sendo de “origem francesa (barrueco), sugerindo algo irregular ou imperfeito,

como “uma pérola imperfeita”, exagerado, extravagante, ridículo” (p.17). Já Lemos (2008),

define o barroco como um movimento inspirado na Contrarreforma Católica e coloca a origem

da palavra como vinda do espanhol e do português.

O barroco foi inspirado na Contra-Reforma, movimento pelo qual a Igreja

Católica, apoiada no absolutismo, buscou repensar-se e reestruturar-se frente

aos avanços do protestantismo. O termo barroco vem do espanhol e do

português, significando em nosso idioma, entre outras coisas – segundo o

dicionário Raphael Bluteau, o mais antigo da língua – “a arte de fazer figuras

de barro” e “pérola tosca e desigual, que não é comprida nem redonda”.

Barroco é uma arte caracterizada pela teatralidade, pelo excesso e exuberância

de detalhes, pela passionalidade. O contraste entre claro e escuro, que

caracteriza as obras do período, seria um espelho do conflito entre

teocentrismo e antropocentrismo, ou seja, a fé em Deus e a dúvida com relação

a religião e as verdades estabelecidas, coexistindo num mesmo espaço e tempo

(LEMOS, 2008, p. 39/40).

Buscando então rever suas concepções, a Igreja Católica buscará, dentro do

movimento Barroco, resgatar suas concepções de fé. De diferentes formas, a arte desse estilo

estará ligada a religiosidade, abarcando características diferentes em cada região onde se

desenvolveu.

Suzy de Mello (1983) também se refere à origem da palavra como vinda do espanhol,

afirmando que “há uma concordância geral quanto à palavra barroco ter se originado do

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vocábulo espanhol “barrueco”, vindo do português arcaico e usado pelos joalheiros desde o

século XVI, para designar um tipo de pérola irregular e de formação defeituosa” (p.7).

O significado da palavra se liga perfeitamente a realização de sua arte, única em seu

modo de ser e se expressar. Periodizando a terminologia “Barroco” como um estilo que surge

após o Renascimento na Europa, este vai se caracterizar pela arte do exagero, que foge aos

padrões estéticos da época. Este estilo se pauta nos detalhes e foge do linear, do que é estético,

algo que não tem um estilo próprio, efetivo, marcado, muitas vezes, pela ambivalência.

O barroco entra em contradição com a arte renascentista europeia, pois esta buscava a

ordem e a disciplina, algo que se tornaria pejorativo na arte barroca. De acordo com Santos

(2002), o Renascimento foi característico da sociedade europeia, sendo uma busca em

revalorizar a cultura greco-romana, tendo seu auge entre 1300 e 1650. É interessante

observarmos que em seus períodos finais o barroco já mostrava suas características na Europa.

Na verdade, o Renascimento foi um momento da história muito mais amplo e

complexo do que o simples reviver da antiga cultura greco-romana. Ocorreram

nesse período muitos progressos e incontáveis realizações no campo das artes,

da literatura e das ciências, que superaram a herança clássica. O ideal do

humanismo foi sem dúvida o móvel desse progresso e tornou-se o próprio

espírito do Renascimento. Num sentido amplo, esse ideal pode ser entendido

como a valorização do homem e da natureza, em oposição ao divino e ao

sobrenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura da Idade Média

(SANTOS, 2002, p.78).

Assim como seria futuramente com o barroco, a Itália também foi o berço do

Renascimento. Diz Janson (2001) que, “graças a investigações recentes, ficamos conhecendo

melhor as circunstâncias especiais que ajudam a explicar a gênese do novo estilo, precisamente

em Florença e no início do século XV- o Quattrocento, para os italianos- e não em outro lugar

ou em outra época qualquer” (p. 573, 574).

Estas rápidas considerações sobre o Renascimento foram feitas para melhor explicar e

situar a arte barroca, mostrando por que ela quebraria a simetria que foi projetada durante o

período renascentista.

1.2 UMA ARTE DIFERENCIADA

Para Mello (1983), como a arte do barroco passa a indicar irregularidades,

extravagâncias e coisas bizarras, ela sempre foi colocada à margem, como sendo uma arte

inferior ao mundo renascentista, isso “por não respeitar as leis reguladoras que haviam sido

seguidas naquele grande período da cultura humana” (p.8).

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Bem sabemos que isso não é verdade, e sermos complacentes com tais informações é

o mesmo que renegarmos um dos períodos mais ricos e expressivos da história da arte, ainda

mais que, como já dito, o barroco tem a arte da ornamentação, daquilo que é singular, o que o

torna verdadeiramente único.

Mello (1983), ao citar Wolffin diz que “enquanto os artistas renascentistas visam a

linha e o desenho, os barrocos procuravam os pictóricos e as cores; os primeiros preferiram

tratar os planos e as superfícies, enquanto os outros se envolviam com a profundidade e os

volumes” (apud MELLO, 1983, p.9).

Fica nítido que os artistas barrocos pareciam saber claramente que eles estavam

desenvolvendo um novo tipo de arte que fugia dos padrões renascentistas, mas pareciam

realmente não se importar caso suas obras fossem refutadas, isso é claro e fácil de ser

constatado, pois como estamos percebendo, o que eles não queriam era permanecer estanques

com o estilo seguido pela lógica renascentista.

Dentro dessa perspectiva, Vale (2016), ao citar Sevcenko diz que:

O Barroco na Europa nasce buscando se diferenciar da experiência

renascentista, mais centrada no intelecto, optando por uma nova forma de

expressão, mais emocional e imaginativa, pois já se encontra em um momento

histórico próprio e diferente (apud VALE, 1998, p. 59-60).

Fazendo uso das palavras de Sevcenko, citadas por Vale, é nítido que o barroco se

situa em um momento histórico próprio e diferente, afinal, a Reforma Protestante, iniciada por

Martinho Lutero em 1517, mexe de maneira significativa com as estruturas da Igreja Católica,

o que faz com que a mesma saia de sua “zona de conforto” e dê início ao movimento da

Contrarreforma que, como já foi dito, é tida como o marco inicial do barroco.

Esta dinamicidade trazida por esse movimento da Igreja faz com que o divino volte a

ocupar um lugar confortável na cultura propagada pela religião, a qual havia sido questionada

e posta em segundo plano com o Renascimento e sua valorização do homem em detrimento de

Deus. A partir de então, os fiéis voltam a uma proximidade com o catolicismo, o que acontece

principalmente através da arte, o que faz com que a Igreja consiga um elo de ligação muito forte

com o divino. A fé volta a fazer parte da identidade religiosa das pessoas que se identificavam

como católicos; a arte trazia a religião mais próxima do fiel, como ocorrerá em Minas Gerais

no século XVIII.

Para Janson (2001):

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[...] este movimento dinâmico de auto-renovação dentro da Igreja Católica já

alcançara o seu propósito por volta de 1600: o protestantismo estava na

defensiva, alguns territórios importantes haviam sido recuperados para a fé

tradicional, e nem católicos e nem protestantes possuíam forças para alterar o

novo equilíbrio (JANSON, 2001, p.716).

As palavras de Janson deixam claro que, em pouco tempo, o barroco consegue atingir

seus objetivos, iniciando o século XVII como um movimento já consolidado. É indiscutível que

da Itália ele já havia se espalhado para as mais diversas regiões da Europa e, futuramente,

chegaria à América. Confirma-nos Santos (2002) que “A arte barroca originou-se na Itália, mas

não tardou a irradiar-se por outros países da Europa e a chegar também ao continente americano,

trazida pelos colonizadores portugueses e espanhóis” (p.103).

O que não podemos deixar de frisar é que o barroco não se desenvolveu de maneira

homogênea em todos os lugares, havendo diferenças em cada local, mas uma coisa foi

característica desse grande movimento por onde ele se difundiu, a quebra das tradições ocorreu

de maneira unânime em todas as regiões atingidas pelo barroco.

São essas essências que conferiram ao barroco este aspecto único e magnífico, o qual

estamos ressaltando. Ainda para Santos:

[...] Alguns princípios gerais podem ser indicados como caracterizadores dessa

concepção artística: as obras barrocas rompem o equilíbrio entre o sentimento

e a razão ou entre a arte e a ciência, que os artistas renascentistas procuraram

realizar de forma muito consciente; na arte barroca predominam as emoções e

não o racionalismo da arte renascentista (SANTOS, 2002, p.103).

Uma vez esclarecida a concordância da maioria dos autores sobre o fato de que a Itália

seja o berço do barroco, vamos observar de maneira breve como foi a representação de alguns

dos mais importantes artistas barrocos nesta região e também em outros lugares.

1.3 RELIGIÃO E ABSOLUTISMO: OS PRINCIPAIS REPRESENTANTES DO

BARROCO EUROPEU

Na Europa, o Barroco será representado principalmente pela religiosidade e temas

religiosos envolverão essa arte tão extravagante em suas formas de se apresentar. A sociedade

absolutista europeia da época havia se consolidado a partir de lentos processos de formação que

vinham desde a época do feudalismo medieval até por fim se formar a sociedade da corte.

Norbert Elias (1993), em seu livro O Processo Civilizador, não deixa de ressaltar as

lutas medievais que envolveram a nobreza, a Igreja e os príncipes seguidos logo depois também

da burguesia nos séculos XII e XIII, durante o processo de formação de um novo modelo de

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sociedade caracterizada pelo surgimento do Estado. Enfim, aos poucos foi se consolidando um

poder ditatorial, o absolutismo, coroado pelo surgimento do Renascimento e logo depois

representado pelos estilos barroco e rococó.

Nesse momento vamos nos ater ao Barroco, que se apresenta como elemento

primordial para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Com base no desenvolvimento e nos

principais representantes do Barroco europeu, faremos agora uma análise de alguns importantes

nomes desse movimento na Europa, buscando destacar ao menos uma de suas obras, as quais

foram de grande relevância na representação da arte barroca na região onde viveram.

Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1571–1610): Representando o campo da pintura,

atuou em Roma, entre outras cidades, sendo um grande represente do barroco, pintou

principalmente temas religiosos. Afirma Janson (2001) que Caravaggio “pintou várias telas

monumentais para a capela da Igreja de S. Luigi dei Francesi, entre elas A Vocação de S.

Mateus, obra extraordinária que está tão longe do maneirismo como do Renascimento pleno”

(p.717).

Figura 1 - CARAVAGGIO. A Vocação de S. Matheus, Capela

Contarelli S. Luigi dei Francesi, Roma

A obra retrata o momento em que Mateus é chamado por Jesus para segui-lo. Nessa

obra de grandes dimensões, Caravaggio combina um tema cristão com uma pintura de gênero,

que mostra uma cena da vida diária. A composição é realizada em torno de dois planos

paralelos, sendo que o superior é ocupado por uma janela coberta com um oleado (muito usado

antes do uso universal do vidro), e o inferior apresenta a cena propriamente dita, na qual Jesus

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chama Mateus para a evangelização. A posição dos pés de Jesus e de São Pedro é indicativa de

que eles já se encontram em direção à saída.

Andrea Pozzo (1642-1709): Foi um irmão jesuíta que trabalhou como arquiteto,

decorador, pintor e teórico da arte, sendo um dos artistas mais notáveis do período barroco.

Ficou conhecido principalmente por projetar obras de arte para a igreja de Santo Inácio em

Roma, onde a obra A Glória de Santo Inácio, pintada no teto da igreja de mesmo nome, é uma

de suas produções mais marcantes. Diz Santos (2002) que: “Essa obra impressiona pelo número

de figuras e pela ilusão – criada pela perspectiva – de que as paredes e colunas da igreja

continuam no teto, e de que este se abre para o céu, de onde santos e anjos convidam os homens

para a santidade” (p.106).

Figura 2 - ANDREA POZZO. A Glória de Santo Inácio, afresco pintado

no teto da igreja de Santo Inácio, em Roma.

Nessa obra, tudo o que parece voar sobre a cabeça de quem observa, foi pintado no

plano. O teto é todo decorado seguindo técnicas ilusionistas com o objetivo de trazer aos fiéis

uma visão do paraíso, no qual Santo Inácio de Loyola é glorificado por refletir a luz de Cristo

nos quatro cantos do planeta.

Artemísia Gentileschi (1593-1653): Foi uma pintora barroca italiana, nascida em

Roma, tornou-se uma das personalidades artísticas de maior destaque em seu tempo. A Em uma

época em que as mulheres não eram bem aceitas como personalidades artísticas, ela foi a

primeira a ocupar uma posição importante como relata Janson (2001): “Temas característicos

da sua pintura são Betsabé, o desventurado objeto da paixão obsessiva do Rei Davi, e Judite,

que salvou seu povo decapitando o general assírio Holofernes” (p.719).

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Janson (2001) ainda esclarece que a artista sofreu abuso aos quinze anos, por parte de

um professor que acabou sendo absolvido, isso teria gerado nela um grande trauma.

Ao longo de sua vida turbulenta, agitada e errante, a sua escolha de temas

sugere muitas vezes uma ambivalência recorrente em relação aos homens. Um

de seus primeiros trabalhos, singularmente inquietante, Judite e a sua Criada,

pode ser interpretado como imortalizando a coragem de Judite, mas talvez

também como um símbolo de castração, exprimindo o desejo de vingança

enraizado em Artemísia (JANSON, 2001, p.719).

Os acontecimentos que marcaram a vida de Artemísia não impediram que se tornasse

uma das maiores representantes do barroco em sua época, fazendo dela uma artista que carregou

uma singularidade excêntrica, mostrando a expressão desse movimento.

Figura 3 -ARTEMÍSIA GENTILESCHI. Judite e sua Criada. Palácio

Pitti, Florença.

Na obra, a artista exprime todo seu desejo de vingança por ter sido abusada com apenas

15 anos de idade tendo o agressor saído livre e sendo sua denúncia questionada abertamente.

Em sua representação vemos a cabeça de Holofernes em uma cesta segurada pela criada de

Judite após a mesma o ter decapitado.

Annibale Carracci (1560-1609): Nascido em Bolonha, iniciou seus aprendizados com

a família, tornando-se um reformador. Em suas melhores obras, conseguiu fundir vários

elementos, combinando estudos do vivo com o ressurgimento dos clássicos. Segundo Janson

(2001), o artista criou um estilo antimaneirista por volta de 1580. “Entre 1597 e 1604, produziu

a sua obra mais ambiciosa, o afresco do teto na galeria do Palácio Farnese, que em breve se

tornou quase tão famoso como os afrescos de Michelangelo e Rafael” (p.720).

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Figura 4 - CARRACI. Remo ladriarmenti. PalazzoMagnani, Bolonha

Esse famoso afresco retrata a fundação de Roma (1590/1592), faz parte de um ciclo

de autoria de Carraci, Ludovico e Agostino e fica na sala de honra de Lorenzo Magnani.

Guido Reni (1545-1642): Proeminente pintor do barroco italiano, fez parte da Galeria

Farnese, com destaque para sua obra "A Aurora", um afresco, mostrando Apolo no seu carro -

o Sol – dirigido por Aurora. Para Janson (2001) “este traçado imitando relevo parecia pouco

mais que um pálido reflexo da arte do Renascimento Pleno, não fora a brilhante e dramática luz

que lhe dá um ímpeto emocional que as figuras por si jamais poderiam alcançar” (p.721).

Figura 5 - GUIDO RENINI. A Aurora (afresco do teto), 1613. Casino Rospiglioso,

Roma

A função da obra é transmitir emoções ao mostrar Aurora, a deusa da madrugada, que

vem anunciar o novo dia e eliminar os sinais da noite escura. Em sua mão percebe-se muitas

flores e, logo atrás dela, um cupido com um archote aceso voa acima dos cavalos.

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Giovanni Francesco Barbieri, Guercino (1591-1666): Natural da região da Emília-

Romana, se destacou em Roma e Bolonha. "Guercino" é a palavra italiana para "estrábico",

apelido que lhe foi dado por conta de seu desvio ocular. Sua obra "A Aurora", de mesmo nome

da obra de Guido Reni, destaca-se em relação à de seu companheiro barroco, pois, de acordo

com Janson (2001), “Aqui, a perspectiva arquitetônica, combinada com o ilusionismo pictórico

de Correggio e a intensa luz e cor de Ticiano, convertem toda a superfície num espaço ilimitado”

(p.721).

Figura 6 - GUERCINO. A Aurora. Villa Ludovisi, Roma

Gian Lorenzo Bernini (1598-1680): Nascido em Nápoles, Itália, é considerado o maior

arquiteto-escultor do século. É autor das grandes colunas da Praça de São Pedro e do

baldaquino, cúpula sustentada por colunas retorcidas que estão sobre o Altar Maior da Basílica

de São Pedro no Vaticano, como afirma Janson (2001).

Figura 7 - S.Pedro de Roma: interior (com tabernáculo de Bernini, 1624-33).

Desde 1656, Bernini começou a estudar o arranjo da Piazza San Pietro, em Roma, uma

obra de importância fundamental, que foi apoiada pela plena colaboração do Papa Alexandre

VII, nascido Fábio Chigi. Neste trabalho, Bernini não estava livre para seguir sua criatividade

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e sua imaginação, pois a construção da praça era condicionada por uma série de elementos e

tudo tinha que ser considerado e colocado em relação com todos os outros problemas.

Francesco Borromini (1599-1667): Ainda jovem mudou-se para Milão com o intuito

de estudar arquitetura. Ao chegar a Roma (1619), mudou seu nome para Borromini e iniciou

seu ofício trabalhando para Carlo Maderno.

Diz Janson (2001) sobre Borromini que: “Gênio reservado e emocionalmente instável,

acabou por suicidar-se. O contraste entre os dois temperamentos ressaltaria das próprias obras,

mesmo sem o depoimento de testemunhas contemporâneas” (p.731).

Figura 8 - FRANCESCO BORROMINI. Fachada de S. Carlo alleQuattroFontane, Roma

1165-67.

Borromini iniciou seus trabalhos de desenho da planta da casa conventual San Carlo

Alle Quattro Fontane em 1634. O pequeno claustro de dois pisos, construído entre 1635 e 1636,

apresenta uma revolucionária dinâmica plástica, introduzida pelos ângulos convexos das

esquinas que definem uma forma octogonal irregular. Os remates das colunas do piso térreo

alternam arcos com entablamentos retos, enquanto no piso superior um entablamento une todas

as colunas. Sendo oncluídas a ala conventual e o claustro em 1638, procede-se então à

construção da Igreja e do corpo, virado para a rua Delle Quattro Fontane que continha a sacristia

e o coro.

Camilo Guarino Guarini (1624-1683): Nascido em Módena, Itália, foi um arquiteto do

barroco italiano. Atuou em Turim e também em outros locais como a Sicília, França e Portugal.

Foi também escritor, matemático e era frade. Diz Janson (2001) que “se o traçado de

Borrominni sugere por vezes uma síntese do gótico e Renascimento, é Guarini quem dá o passo

seguinte e decisivo" (p.737).

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Figura 9 - GUARINO GUARINI. Cúpula da Capela de Santo Sudário, Catedral de Turim.

1668-94

A catedral de Turim foi construída no século XV, na área em que situava-se a Igreja

Cristã dedicada a São Salvador, Santa Maria de Dompno e a São João Batista, sendo construída

em um estilo florentino renascentista.

Falamos de alguns dos principais nomes do barroco italiano, sendo que, claramente,

houve a existência de inúmeros outros que contribuíram de forma considerável para o

desenvolvimento desse movimento em outras partes da Europa, mas que não trataremos aqui

em virtude de que o barroco na Europa não se constitui nosso objeto principal, mas sim o

brasileiro, em específico o das Minas Gerais.

Como já foi mencionado nesta pesquisa, na Europa, o barroco é conhecido como o

movimento da Contrarreforma Católica, no entanto, ele não foi somente a arte da religião, mas,

na sociedade europeia, foi também a arte do absolutismo, que se consolida depois do período

renascentista.

Afirma Neves que:

Na perspectiva sócio-cultural, a manifestação barroca expressou a conjuntura

político-econômica do Antigo Regime, caracterizada pela centralização do

poder com o absolutismo monárquico e pela acumulação mercantil, que

expandiu da Europa para todos os continentes, quando a burguesia emergente

se associou, num pacto, com a nobreza, cujo poder declinava com a nascente

economia de mercado. (NEVES, 2007, p.72).

Através dos governos absolutistas e da religião Católica, o movimento barroco da Itália

se espalharia para outras regiões da Europa, chegando à América, algo que discutiremos em

breve.

Representando em especial a arte da religiosidade, a concepção básica das igrejas

barrocas estarão presentes, principalmente, na arquitetura que, segundo Mello (1983), “[...]

tinha que atender às normas de maior contenção e austeridade determinadas pelo Concílio de

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Trento bem como alterar certas disposições nos templos para reforçar os preceitos litúrgicos

que a Contrarreforma então considerava fundamentais” (p.35).

Destacou-se nessa época uma preferência pelas coberturas em abóbadas, o que

facilitava o direcionamento da luz para os focos desejados e, quando pintadas, davam a ilusão

do infinito, com perspectiva de maior gosto para à época. Funcionando como elementos de

transição entre diferentes níveis, estarão as volutas, que passam a ser uma característica nas

fachadas barrocas. Como dito, a Itália é tida como o berço do nascimento da arte barroca, mas

de lá ela se espalharia mundo afora e em cada país essa arte ganharia uma feição nacional.

Na Espanha, a originalidade do barroco encontra-se na arquitetura, principalmente nas

decorações em relevo dos edifícios civis e religiosos, pois, na religião, a arte barroca se faz

sentir de forma imensurável em qualquer lugar onde tenha se desenvolvido.

Na pintura, destaca-se o realismo e a seguridade da técnica de pintar. Para Janson

(2001), a pintura recebe influências do barroco italiano. Afirma ele que:

[...] a pintura barroca espanhola não pode ser compreendida sem algum

conhecimento das manifestações artísticas na Itália e nos Países Baixos.

Durante o século XVI, no auge de seu poder político e econômico, a Espanha

produziu grandes santos e escritores, mas nenhum artista plástico de primeira

grandeza. Nem sequer El Greco serviu de estímulo ao talento nacional. O

estímulo veio antes de Caravaggio (embora não saibamos exatamente como foi

importado) e da pintura flamenga. Pouco depois de Aertsen e seus

contemporâneos terem estabelecido o gênero da natureza-morta, os mestres

espanhóis começaram a desenvolver a suas próprias versões (JANSON, 2001,

p.766).

As obras de El Greco (1541-1614) trazem uma característica singular de sua pintura,

que é a verticalidade das figuras. El Greco nasceu na ilha de Creta, foi para Roma em 1570 e

em 1577, após uma breve temporada em Madri, partiu para Toledo, onde se instalou

definitivamente. Velázquez é outro destaque do barroco espanhol, que ficou famoso por pintar

os rostos da nacionalidade espanhola. O artista também representou as camadas populares,

como diz Santos (2002): “além de retratar as pessoas da corte espanhola do século XVII,

Velázquez (1599-1660) procurou registrar em seus quadros também os tipos populares de seu

país, documentando o dia-a-dia do povo espanhol num dado momento da história” (p.111).

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Figura 10 - EL GRECO. O Espólio (1579). Catedral de Toledo, Espanha.

Sua obra Oespólio, também chamada Desnudamento de Cristo, El Greco adorna a

sacristia da Catedral de Toledo, chamando a atenção pela mancha vermelha na túnica de Jesus.

A obra apresenta elementos reais e abstratos, onde percebemos uma grande quantidade de

pessoas em torno de Jesus, tendo algumas apenas a cabeça visível.

Nos Países Baixos, o destaque barroco foi principalmente na pintura. Na Holanda

houve uma grande variedade de mestres e estilos. Devemos recordar que, no contexto histórico

da época, a Holanda era um país jovem. Antes de sua formação como país, a Holanda fazia

parte de um conjunto de dezessete províncias, denominado Países Baixos. Apesar de

desfrutarem de certa autonomia, essas províncias estavam sob o domínio do Sacro Império

Romano Germânico. Em 1555, o imperador Carlos V do Sacro Império, renunciou a posse dos

Países Baixos em favor de seu filho, Filipe seria coroado rei da Espanha no ano seguinte, com

o título de Filipe II, o que gerou um desagrado nos habitantes dos Países Baixos, dando início

a um conflito em 1563.

No curso desse conflito, as províncias que formavam os Países Baixo se dividiram. As

dez províncias do sul, que eram tradicionalmente católicas, pois obedeciam regras e princípios

do catolicismo fervoroso, através de doações, principalmente de terras, que representavam a

maior riqueza na época, desistiram da luta e negociaram com Filipe II, mantendo-se sob o

domínio da Espanha; essa região, mais tarde, formaria a Bélgica. Já as províncias protestantes

do norte, insistiram na separação e constituíram, em 1579, a República das Províncias Unidas

dos Países Baixos, ou simplesmente Holanda, que já nasce um país forte, estando entre as

maiores potências comerciais de fins do século XVI.

Para Janson (2001), “a jovem nação estava orgulhosa de sua liberdade, conseguida a

tanto custo” (p.748).

Nesse país, a pintura desenvolve uma tendência mais descritiva, entrando em cena

temas que representavam a vida cotidiana e social. Não podemos nos esquecer de que, em um

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país protestante, a arte religiosa era proibida, o que fez com que tenha acontecido uma

democratização da arte e trabalhos realizados com minucioso realismo.

Embora os laços culturais com Flandres permanecessem fortes, vários fatores

estimularam o rápido desenvolvimento de tradições artísticas holandesas. Ao

contrário de Flandres, onde toda atividade artística irradiou de Antuérpia, a

Holanda teve várias escolas locais florescentes. Além de Amsterdam, capital

do comércio, encontramos grupos importantes de pintores em Haarlem,

Utrecht, Leyden, Delft e outras cidades. A Holanda era uma nação de

mercadores, lavradores e marinheiros, e a sua religião, a fé protestante

reformada; por isso, os artistas holandeses não se beneficiaram das grandes

encomendas públicas do Estado e da Igreja que eram correntes em todo o

mundo católico. Embora as autoridades municipais e os órgãos cívicos

protegessem até certo ponto as artes, as suas necessidades eram limitadas, de

modo que o colecionar particular se tornou o suporte principal do pintor

(JANSON, 2001, p.748).

Percebemos nas palavras de Janson, que na Holanda o barroco teve de se adaptar à

vivência do país. Por ser protestante e não católico, os artistas barrocos não se voltaram às obras

de arte que caracterizaram esse movimento em outros países, tendo na religião católica e no

Estado absolutista o amparo para seu desenvolvimento. Mas isso não quer dizer que houve um

abandono da arte barroca, muito pelo contrário, pois o desejo da burguesia por quadros era tão

grande que, segundo Janson (2001), “o país inteiro parecia tomado de uma espécie de mania de

colecionar” (p.748).

Não podemos deixar de lembrar que o barroco veio para a Holanda de Antuérpia,

através das obras de Rubens, o qual mencionaremos logo mais, e de Roma pelo contato com

Caravaggio e seus discípulos.

Vamos, a seguir, citar alguns nomes que se destacaram no barroco dos Países Baixos.

Peter Paul Rubens (1577-1640): Foi um pintor flamengo do estilo barroco, proponente

de um estilo extravagante que enfatizava movimento, cor e sensualidade. Buscando sempre um

colorido em suas telas, utilizava-se de muitas cores quentes como o vermelho, verde e amarelo.

Também se notabilizou por criar cenas que sugerem um intenso movimento a partir de linhas

contorcidas dos corpos e das pregas das roupas.

Para Santos (2002), “uma de suas obras mais coloridas é o Jardim do Amor. Trata-se

de uma cena em que a realidade e a alegoria se fundem” (p.112).

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Figura 11 - RUBENS. Jardim do Amor (1632-1634). Museu do Prado, Madri.

Quando a obra foi pintada por Rubens, ele já havia passado dos cinquenta anos, se

casara pouco tempo antes, em segundas núpcias, com a bela Hélene Fourment. Com esta de

encontro ao peito, como se estivessem dançando, o artista retrata-se à esquerda da tela, em

frente de um portal ao gosto maneirista. Na parte superior, do extremo oposto, aparece,

cavalgando um golfinho, uma deusa de cujos seios brota água, símbolo do amor e da fertilidade.

Os pequenos cupidos aludem à força do amor, trazendo flores e pombas, outros símbolos de

Vênus.

Frans Hals (1582-1666): Foi um pintor neerlandês que ficou famoso por retratar a

sociedade dos Países Baixos segundo uma estética naturalista, sendo considerado o grande

retratista de Haarlem. Diz Santos (2002) que, em “Oficiais da Guarda Civil de Santo Adriano

em Haarlem, a iluminação é trabalhada de tal forma que torna mais clara toda a composição”

(p.113).

Figura 12 - HALS. Oficiais da Guarda Civil de Santo Adriano em Haarlem (1627). Museu

FransHals, Haarlem

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A obra de Frans Hals passou por uma evolução no domínio do uso da luz e da sombra.

De início, predominam os contrastes muito fortes; depois surgem os tons suavemente

graduados; por fim, um equilíbrio seguro da iluminação.

Rembrandt (1606-1669): Foi um pintor holandês, considerado um dos maiores nomes

da arte europeia. Como afirma Janson (2001) “o maior gênio da arte holandesa, sofreu também

no começo de sua carreira influência indireta de Caravaggio” (p.752). Ele ainda diz que nos

seus últimos anos, o autor adaptou muitas vezes, a seu modo, composições e ideias pictóricas

do Renascimento setentrional, como acontece na obra "O Cavaleiro Polaco".

Figura 13 - REMBRANDT. O Cavaleiro Polaco (1655). Nova Iorque (Copyright).

A obra representa um homem viajando à cavalo através de uma paisagem sombria,

mostrando um ar de mistério em uma pintura de fundo inacabada

Johannes Vermeer (1632-1675): Foi um pintor holandês que trabalhava os tons em

plena claridade, buscando temas da vida burguesa da Holanda seiscentista. Afirma Janson

(2001) que: “Vermeer, ao contrário de seus antecessores, vê a realidade como um mosaico de

superfície colorida - ou, talvez mais exatamente, ele transforma a realidade em um mosaico

quando a transpõe para a tela” (p.765).

Analisando A Carta, de Vermeer, Janson diz ainda que “vemos A Carta como uma

“janela” de perspectiva e também como um plano, um “campo” composto de outros menores”

(p.765). A obra representa uma cena doméstica a ocupar a parte central e os objetos

representavam uma forte simbologia.

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Figura 14 - VERMEER. A Carta. Rijksmuseum, Amsterdam.

A obra foi planejada como sendo um tríptico, onde a cena doméstica ocupa a parte

central. Através da porta aberta, vê-se uma sala, onde se encontram uma senhora e sua criada,

próximas a uma lareira. Segundo alguns historiadores de arte trata-se de parte do interior da

própria casa do artista.

Mesmo nos Países Baixos, apesar de, no caso da Holanda, essa não ter uma ligação

direta com a Igreja Católica, não houve impedimentos para que lá o barroco também

expressasse sua singularidade através de um delineamento que nos mostra a amplitude do

alcance desse movimento.

Falamos de alguns importantes países europeus em que o barroco exerceu uma

influência de modo considerável. Mas e Portugal? Será que o país luso também teve uma

expressividade alcançada nas obras barrocas?

O século XVII foi um momento de grande destaque do barroco europeu, momento que

culminou toda sua efervescência, porém, quando analisamos Portugal, o país vivia, nessa época,

um estado de crise, visto a perda de importantes entrepostos comerciais e a morte de D.

Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir no ano de 1578, em fins do século XVI.

Para Portugal o período de 1580 até 1640, quando esteve submetido ao poder da Coroa

espanhola, foi um dos momentos mais difíceis para a nação lusa. Dentro desse contexto o

barroco dificilmente teria todo esplendor e êxtase que alcançaram os demais países europeus.

No que diz respeito ao desenvolvimento do barroco em Portugal, este se destacará com

maior viés na literatura do que nas artes, sendo um dos grandes nomes o padre Antônio Vieira,

com seus “Sermões”, escritos em estilo conceptista. Grande destaque do barroco português,

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Vieira esteve empenhado não só em fazer da linguagem o conduto de uma determinada

mensagem, mas também em transformá-la na sensibilidade barroca.

Diz Ávila sobre Vieira que:

O mais artista dos prosadores barrocos de língua portuguesa, Antônio Vieira

contraditou-se curiosamente e à sua própria arte quando, num de seus

celebrados sermões – o da sexagésima-, apostrofou do púlpito da Capela Real

em Lisboa o estilo da oratória sagrada de seu tempo. Essa peça, encomiada

sistematicamente pela crítica tradicional como exemplo e modelo daquilo que

alguns entendem como índole classicizante da linguagem vieiriana, deve ser

tomada ao contrário como paradigma que realmente o é da grande cristalização

da prosa barroca, da mesma planitude de expressão a que atingiram, pela via

da criação ficcional ou satírica, um cervantes ou um huevedo (ÁVILA,1971,

p.63/64).

Ainda de acordo com Ávila (1971), as análises das obras de Vieira permitem concluir

que o seu discurso guarda fidelidade aos padrões do barroco de composição. Além do mais, seu

procedimento discursivo está sempre exemplarmente ajustado à proposição dialética.

Padre Vieira, com sua sensibilidade acurada, sintetizou de maneira íntima a

representação do sagrado no Barroco através de seus sermões que trazem a essência desse estilo.

De Portugal, Vieira virá ao Brasil, onde sua atuação se destacará através de sua

representatividade, como veremos.

Porém, também é importante frisar que a citada “arte chã” fez parte, principalmente,

da arquitetura jesuíticas. Essa arte tinha uma influência clássica e buscava demonstrar a

simplicidade, funcionalidade e proporcionalidade das formas, o que chamava a atenção por seu

aspecto.

Trazendo um novo contexto artístico na Europa, ao romper com as características

primordiais do Renascimento, o barroco mostrou toda sua dinamicidade. Da Itália, onde se faz

o berço de sua origem, o estilo se espalha para os demais países da Europa e futuramente sairia

até mesmo desse continente, como veremos logo mais.

Uma importante observação é feita por José Antonio Maravall (1997) em seu livro A

Cultura do Barroco, pois, nos lembra ele que o movimento floresce em meio a uma Europa

conturbada, intensamente conflitiva. Em sua definição do barroco, o autor diz que “em resumo,

o Barroco é simplesmente o conjunto de meios culturais de tipos muito variados, reunidos e

articulados para operar adequadamente com os homens, [...]” (p.120).

Então, percebemos claramente que, mesmo o barroco tendo nascido dentro desse

continente “conturbado”, como disse Maravall, ele se refazia a cada momento em que chegava

a uma diferente região europeia. No desenvolvimento da pintura barroca, uma de suas

características primordiais foi o desenvolvimento dos recursos ilusionistas, como vimos nos

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principais artistas que neste trabalho foram citados, que, representado principalmente em

paredes e tetos, tinha por finalidade ampliar o espaço, dando uma impressão de uma maior

amplitude; claro que tudo isso voltado à essência religiosa.

Diz Mello que:

Assim para as grandes pinturas com perspectivas arquitetônicas, executadas

nas imponentes abóbodas ou nas longas naves das igrejas, há nítida preferência

para as cenas bíblicas e as vidas dos santos, que são representados sempre em

meio a uma verdadeira multidão de anjos ou cercados de inúmeras figuras

ligadas à sua vida ou à sua glorificação final (MELLO, 1983, p.65).

As palavras de Mello confirmam que a estética barroca europeia desenvolveu-se

principalmente dentro da arte religiosa, apesar de, como anteriormente citado, o movimento

ganhar feições próprias em cada local, e em alguns deles, como na Holanda, região dos Países

Baixos influenciada pelo protestantismo, ele se desenvolver fora do âmbito do catolicismo, não

é possível deixar de reconhecer que a religião Católica foi a essência desse estilo.

O movimento traz uma arte que apresenta características bastante detalhistas,

dramáticas e expressivas e que buscam mexer com o emocional. É um estilo ousado, que trouxe

em suas pinturas características realistas, as quais buscaram envolver de maneira profunda o

olhar do espectador. Com isso, o barroco adquire uma consistência ideológica, com uma práxis

própria, o que faz definir seu estilo incontestável com um eixo objetivo sedimentado em um

projeto de ação.

Sendo também a arte do absolutismo, principalmente nos países protestantes, citando

a pintura, pode-se afirmar que havia uma preferência por retratos e imagens representando reis

e a nobreza do Antigo Regime. Nessa época os retratos de grupo também encontraram grande

popularidade, sobre os quais nos afirma Mello (1983) que: “nos países mais católicos ocorrem

ainda retratos de autoridades religiosas e, nos palácios, grandes cenas da mitologia clássica”

(p.65).

Para Maravall (1997), “essa preocupação com o conhecimento, o domínio e a

manipulação dos comportamentos humanos conduzia a uma identificação entre eles e os

costumes, entre a conduta e a moral” (p.124).

Arte única, o barroco lançou seus encantamentos mundo afora. Seus elementos

caracterizavam-se por uma íntima ligação com a própria solução arquitetônica das obras, o que

enriqueceu suas características confirmadas no estilo de muitas igrejas e também palácios que

conservam o esplendor dessa arte, o que consolida seu vigor e expressão cultural com essa

profusão de detalhes, ostentação e opulência material.

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Falando da escultura barroca, Mello (1983) diz que esta possuía característica

fundamental que facilita seu entendimento. Afirma ela que “a primeira e mais importante dessas

características é, justamente, a de sua onipresença, que é óbvia pelo diversificado uso de

elementos escultórios” (p.77).

O barroco marcou o momento de transição para uma nova sociedade que se formava

na Europa, trouxe uma cultura que configurou diferentes modos de comportamento e

fundamentação ideológica, expressando um novo estado da arte e dos sentimentos que visava

ser complacente com seus expectadores.

Diz Maravall que:

[...] Sob este ponto de vista temos de considerar a cultura a que chamamos

barroca, uma cultura incrementada para reduzir não apenas a inquietação

religiosa – como tantas vezes disse -, mas toda insegurança produzida como

consequência do longo período de mudanças que as sociedades do Ocidente

europeu vinham conhecendo havia alguns séculos (MARAVALL, 1997,

p.152).

1.4 A CHEGADA DO BARROCO AO BRASIL

O barroco foi uma arte que deixou sua essência no continente europeu e se espalhou

pelo mundo. No século XVIII a Europa já tinha adentrado na chamada arte do rococó, que

segundo Santos (2002) “teve início na França, no século XVIII, difundindo-se a seguir por toda

a Europa”, essa arte era requintada, aristocrática e convencional e “se preocupou em expressar

apenas sentimentos agradáveis e que procurou dominar a técnica de uma execução perfeita”.

Quando então a Europa já estava vivendo essa fase chamada Rococó, no Brasil o barroco vivia

seu período de opulência, quando em Minas Gerais no século XVIII, ele encontra seu auge. Sua

chegada até as Minas, no entanto marca uma forte mudança em suas características.

Como observou Lemos, em Minas Gerais o barroco sofreria a influência de três raças:

índios, negros e portugueses marcariam esse estilo no ambiente colonial mineiro. Na Espanha,

a convivência de tradições religiosas e culturais distintas como os judeus, os muçulmanos e os

cristãos, fizeram com que houvesse uma multifacetação do barroco. Nas Gerais, artistas

destaque expressarão toda uma identidade cultural que caracterizará a capitania no século

XVIII, constituindo uma brasilidade no qual os valores aqui adquiridos rompem com as

características que marcaram esse estilo na Europa, principalmente pela presença e expressão

dos negros e mulatos, maiores representantes do barroco local.

O barroco levou duzentos anos para chegar a Minas. No caminho, agregou

elementos de diferentes origens e depois continuou a incorporar contribuições.

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Estas vieram dos índios que viviam ali e dos que foram levados pelos paulistas,

daqueles africanos de diversas etnias que vieram como escravos para trabalhar

nas minas e dos portugueses, incluindo alguns arabizados, outros judeus

convertidos à força (LEMOS, 2008, p.41).

A influência negra foi tão significativa na capitania do ouro se fazendo notar nos

domínios da arte, da música e da literatura. O canal de expressão das manifestações negras nas

Gerais se fizeram através da Igreja, sendo que na religiosidade portuguesa mesclaram-se

tradições africanas, que enriqueceram de forma significativa o barroco mineiro.

A efervescência da sociedade do ouro fez brotar em Minas Gerais, no século XVIII,

características que tornam a capitania o símbolo da riqueza e do poder da Coroa Portuguesa em

território brasileiro. A exploração aurífera faz com que nessa região se crie condições para um

notável desenvolvimento cultural, que teve, principalmente na arte religiosa, o desenvolvimento

do barroco mineiro. Nas Gerais foi forte a presença de irmandades e ordens terceiras de

iniciativa dos próprios fiéis, visto a proibição de clérigos na capitania por uma política restritiva

da Coroa Portuguesa.

O papel do sagrado tem influência significativa no barroco mineiro. Entre as tradições

do catolicismo, os negros incorporaram duas tradições de sua terra, sendo as mais expressivas

desenvolvidas em Minas, o congado e também o reinado. No Nordeste, apesar da consolidação

barroca, também no século XVIII, a arquitetura das principais cidades já começa a ganhar novas

formas a partir de meados do século XVII. É o caso de Salvador, primeira capital do Brasil, de

onde saíam todas as riquezas para Portugal.

Ali, a arte barroca começa a mostrar sua feição, claro que voltada principalmente às

produções religiosas. O estilo traz formas mais elegantes e uma decoração mais requintada para

a cidade. A profusão dos detalhes, a ostentação e a opulência material se expressarão nos

elementos integrantes dessa cultura. No jogo da dramaticidade é impossível não perceber esse

inegável fascínio exercido pela arte barroca brasileira.

Santos (2002) ainda nos afirma que não só Salvador conheceu essa arte, mas também

são exemplos da arquitetura barroca a igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, “cujas obras

começaram em 1728, segundo projeto de Manuel Ferreira Jácome, mas só foram concluídas em

1782” (p.192). Ainda falando do Recife, podemos destacar a Capela Dourada, da Ordem

Terceira de São Francisco de Assis, que segundo Mello (1983) “é considerada por Germain

Bazin, um dos mais belos exemplos de talha barroca no Brasil, juntamente com o mosteiro de

São Bento, do Rio” (p.94).

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Em João Pessoa, na Paraíba, destaca-se o convento Francisco de Santo Antônio, um

conjunto arquitetônico que começou a ser construído ainda no século XVII e teve seu fim em

1730. Já no Rio de Janeiro o destaque do barroco é ainda maior, isso devido a sua proximidade

com Minas Gerais o que faz com que o Rio se torne o grande centro de embarque do ouro rumo

à metrópole. No Rio de Janeiro, estão entre suas mais destacadas produções a igreja da Ordem

Terceira do Carmo, a igreja de São Francisco de Paula e a igreja de Santa Cruz dos Militares.

É claro que muitas outras construções são destaque no Rio, como o Mosteiro de São Bento,

cujo a construção levou um século, tendo se iniciado em 1617, e também a igreja de Nossa

Senhora da Glória do Outeiro. Situada em uma pequena colina, onde antes existia um mosteiro,

foi construída em torno de 1720. Nela, de acordo com Mello (1983) “o movimento barroco dos

planos das paredes é completado pelas amplas abóbodas e pelos arcos duplos, em fino trabalho

de cantaria” (p.99).

Faz-se também importante destacar que a arte barroca no Rio de Janeiro assume

características de transição para um estilo já neoclássico, onde as igrejas têm,

predominantemente, plantas de nave única com capela-mor profunda e há várias igrejas que

mostram a transição do barroco e do rococó para o gosto já neoclássico.

Já em São Paulo não se encontram muitas construções barrocas. A explicação é que os

bandeirantes preferiam fundar vilas em Minas Gerais, devido a efervescência do ouro no século

XVIII, e enquanto isso São Paulo vivia um verdadeiro processo de estagnação, que dura

praticamente todo o ciclo do ouro nas Gerais. Dentre as poucas construções barrocas, podemos

destacar a igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, localizada no largo São

Francisco.

Ainda em São Paulo, se destaca a igreja de Nossa Senhora da Luz, que começou a ser

construída por volta de 1600 e teve seu conjunto formado pela igreja e convento inaugurado em

1774, recebendo o nome de Recolhimento da Luz e numa das partes do prédio que dá para um

pátio interno quadrangular, foi instalado o Museu da Arte Sacra de São Paulo.

Seguindo com a análise em São Paulo e analisando a pintura barroca podemos citar frei

Jesuíno do Monte Carmelo (1764/1818), o qual suas obras caracterizam-se pela realização leve

e simples com temas voltados para a religiosidade. Afirma Santos (2002) que frei Jesuíno

realizou importantes pinturas “para a igreja do Carmo, na cidade de Itu”.

Quando falamos da região Sul do Brasil não encontramos muitas marcas da

característica de uma estética barroca brasileira, pois a pequena quantidade de material

encontrado mostra que é nítida a escassez de pesquisas que visam estudar a temática barroca

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nessa região. Ainda assim se faz importante citar os Sete Povos das Missões, no interior do Rio

Grande do Sul. Sobre esse território afirma Mello (1983) que:

“[...] segundo Lúcio Costa, eram conjuntos com excelentes critérios de

urbanização, e as ruínas da igreja de São Miguel, projetada pelo jesuíta italiano

Primoli e construída pelos indígenas, mostram sua inspiração no modelo

clássico de II Gesù, sendo semelhante à Catedral de Buenos Aires” (MELLO,

1983, p.104).

Figura 15 - Igreja construída no território dos Sete Povos das Missões RS.

Hoje as marcas da arquitetura da época se constituem como um importante patrimônio

histórico e cultural que ainda resplandecem as luzes de um tempo, fazendo com que a memória

de uma sociedade possa permanecer viva. Ainda sobre a região sul, Martinez (2011), ao analisar

Etzel, nos mostra que este coloca certa inferioridade do barroco do sul em relação às zonas

mineradoras.

Lembramos ainda os estudos clássicos de Eduardo Etzel que distinguem

diferenças significativas entre a arte e a arquitetura das zonas mineradoras

avaliadas pelo autor como “complexa e rica” e aquelas consideradas menos

“esplendorosa” configurada em Goiás (Goiás Velho), Santa Catarina (São

Francisco do Sul), Paraná (Paranaguá, Antonina, Morretes etc.) e São Paulo

(MARTINEZ, 2011, p.3).

Ainda de acordo com a autora, seria necessário um estudo investigativo mais profundo

para um melhor entendimento de suas características. Em seus estudos sobre o patrimônio

religioso do Paraná, Martinez debruça-se sobre a arquitetura barroca presente na igreja de São

Sebastião do Porto de Cima, que se localiza próximo ao município de Morretes. Segundo ela,

essa igreja foi construída em 1779. “Margeada pelo rio Nhundiaquara e a seis quilômetros da

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sede do município de Morretes, a ermida é contornada também por montanhas cobertas por

matas verdes de vários matizes”. Essa mesma igreja tem uma nova fachada levantada na década

de 1840, com elementos mais singelos que a primeira construção.

Diz Martinez (2011) que essa região também recebeu a visita do viajante francês August

de Saint-Hilaire na década de 1820 e que este ficou impressionado com toda a exuberância da

natureza local.

É encantadora a vista que podemos descortinar à saída do lugarejo, se olharmos

para trás. Vemos a montanha coberta de matas que acabamos de atravessar, no

sopé da serra fica o aglomerado de casinhas do lugarejo, rodeadas de árvores

copadas, e diante delas o rio Cubatão (hoje Nhundiaquara), que é bastante largo

e desliza celeremente sobre um leito coberto de seixos (MARTINEZ, 2011,

p.6).

Nesse local, o barroco, mesmo que de forma singela, deixou seu registro. Em um lugar,

como observou Saint-Hilaire, com uma exuberante natureza, a marca do catolicismo também

acompanha a estética barroca. Quem hoje se aventurar pela região da capital paranaense poderá

observar a beleza das formas que ainda permanecem da beleza barroca preservada nas

proximidades da cidade de Morretes.

A seguir, as imagens feitas por Martinez registram a exuberância da Igreja de São

Sebastião do Porto de Cima.

Figura 16 - Fachada Principal da Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, construída

no século XIX. Fonte Martinez 2010.

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Figura 17 - Fachada Secundária da Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, construída

no século XVIII. Fonte Martinez 2010.

Figura 18 - Igreja de São Sebastião de Porto de Cima/Paraná, com fachada do século XIX e

ao fundo as torres do século XVIII. Fonte Martinez 2010.

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As imagens registradas acima pertencem à Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez,

professora adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina –UEL.

Buscou-se fundamentar neste capítulo, o conceito do que vem a ser o Barroco. As

transformações que esse movimento passou desde que surgiu na Península Itália, percorrendo

os países europeus até sua chegada no Brasil, só mostram como ele é uma arte que se renova,

que cria sua identidade junto com a adaptação da cultural local. No Brasil isso não foi diferente,

como continuaremos a ver.

CAPÍTULO 2: BREVE DISCUSSÃO DA RELIGIOSIDADE NO BRASIL

O Brasil está entre os maiores países católicos do mundo e compreender um pouco de

como se deu o processo de implantação de toda essa religiosidade em território brasileiro se faz

de grande importância para entender o próprio contexto histórico das Gerais no século XVIII.

Faz-se necessário ressaltarmos também que não foi somente o catolicismo que marcou presença

em nosso território no período colonial. Através da miscigenação, primeiro dos brancos com os

índios, em seguida com os negros trazidos da África para o trabalho escravo e depois também

com a presença dos judeus cristãos novos, nosso país terá grande efervescência religiosa, como

veremos.

Não há dúvidas de que a presença da religião exerceu forte influência na formação do

povo brasileiro, que tem um elo muito grande com o sagrado, como observou DaMatta (1986)

“Nós, brasileiros, temos intimidade com certos santos patrões; do mesmo modo que temos

como guias certos orixás ou espíritos do além, que são nossos protetores”. O autor também

observa um espaço demarcado pelo sagrado que tem a função de preparar o indivíduo para um

“outro mundo”, o qual todos devem estar preparados e é aí que entra o papel das religiões e sua

influência sobre a sociedade de maneira a ser esse elo entre a vida terrena e a vida em outro

plano. Analisar a presença da religião e como a mesma se implantou em território americano,

fazendo do catolicismo uma das marcas do povo brasileiro, é o que veremos no decorrer deste

capítulo.

2.1. A CONTRARREFORMA CATÓLICA E O SURGIMENTO DA COMPANHIA DE

JESUS

É inegável que durante o período medieval a Igreja Católica foi a mais importante

instituição, a qual teve o monopólio espiritual e cultural da sociedade principalmente na Europa

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Ocidental. Paulo Evaristo Arns (1981), ao falar sobre o tema “Igreja”, diz que “a palavra é

tradução do latim ecclesia, que, por sua vez, transmite o conteúdo do termo hebraico qahal ou

qehal, significando o ato de reunião ou também a própria comunidade reunida.” Reunir e

controlar um grande número de pessoas sob a fé cristã é objetivo da Igreja católica desde o seu

nascimento.

Ressalta-se aqui, rapidamente, que em 1517 a Igreja Católica sofre uma grande crise

com a Reforma Protestante de Martinho Lutero, monge e teólogo católico, de origem espanhola,

que vem julgar o comportamento do alto clero católico na época. Ele não concordava com certos

“abusos” cometidos pela alta hierarquia da igreja, como, por exemplo, vendas de relíquias para

que o fiel recebesse a indulgência para alcançar a salvação eterna. É nesse contexto de crise que

a Igreja Católica buscará redefinir suas bases através da Contra Reforma Católica e é aí que se

formará a Companhia de Jesus ou Ordem dos Jesuítas, que terá papel primordial na implantação

da religiosidade no Brasil.

Portelli (1947), ao citar Gramsci diz que:

A Contrarreforma esterilizou este pulular de forças populares: a Companhia de

Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária,

com caráter repressivo e “diplomático”, que assinalou – com o seus nascimento

– o endurecimento do organismo católico (PORTELLI, 1984, p. 85).

Afetada com a Reforma Protestante, a Igreja Católica passa a reagir com a

Contrarreforma Católica. O Concílio de Trento em 1545 e 1563 coordenou e orientou o

movimento da Contrarreforma, com representantes da Igreja Católica de toda a Europa. Uma

das Ordens mais importantes no movimento foi a Companhia de Jesus ou Ordem dos Jesuítas,

fundada em 1534 por Inácio de Loyola, ex-soldado espanhol, que estudou teologia em Paris.

Bresciani (1999), ao analisar os escritos do Pe. Simão Rodrigues sobre “As origens da

Companhia de Jesus”, relata que o que diz Pe. Simão sobre Inácio de Loyola:

Depois de renunciar as ilusões da vida que levava, consagrou-se totalmente ao

serviço do Senhor e sempre conservou um ardente desejo de salvar almas.

Escolhido desde o seio materno para ser pedra angular desse novo edifício, a

Providência quis exercitá-lo continuamente em muitos e duros trabalhos, pois

“pedras lavradas a golpe de martelo são colocadas num lugar próprio por um

perito na arte” (BRESCIANI, 1999, p.14).

De acordo com Assunção (2003), nascido em 1491, Inácio de Loyola era filho de Beltrão

Yanez de Oñaz y Loyola e de Marina Saez de Licona, famílias nobres na Espanha. “Órfão aos

16 anos, foi enviado para a corte espanhola para completar os seus estudos, num momento

conturbado de repressão e expulsão dos mouros e judeus da península Ibérica” (p.4). Inácio de

Loyola serviu no exército onde acabou sendo gravemente ferido em uma guerra francesa. Foi

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quando, após estar à beira da morte, ele leu a vida de Cristo e dos santos, o que o fez converter-

se de maneira radical ao catolicismo. Foi diante desses acontecimentos que Loyola buscou a

base da formação da Companhia de Jesus, que é fundada em 1534, através dos votos de pobreza,

castidade e obediência ao papa. Em 1540 a Companhia de Jesus é aprovada por uma ordem da

Igreja Católica, dada pelo Papa Paulo III e, futuramente, em 1599, se tornaria famoso seu

método chamado de Ratio Studiorum.

Segundo Henrique Rosa (1954), a primeira forma de legislação da companhia antes do

Ratio Studiorum, foi o chamado Livrinho dos Exercícios Espirituais, livro esse que dá origem

à Companhia de Jesus e que foi escrito pelo próprio fundador da ordem, Inácio de Loyola. Era

um livro para ser meditado e praticado, considerado um verdadeiro regulamento de vida. No

mesmo ano de 1540, quando a Companhia foi aprovada pela Igreja Católica, por iniciativa de

D. João III, os inacianos foram convidados para Portugal. Por intermédio de Inácio de Loyola,

foram enviados para o país luso Navarro Francisco Xavier e o português Simão Rodrigues,

sendo o primeiro enviado para a Índia já em 1541.

Simão Rodrigues foi o grande responsável pela instalação da Ordem em Portugal. A

princípio, viajaria com Francisco Xavier para o Oriente, mas acabou ficando retido em Portugal

para a realização de outros serviços da Companhia de Jesus, se tornando o grande favorito do

rei D. João III, que o escolheu como responsável por espalhar os preceitos da religião Católica

entre os índios das novas terras portuguesas na América. Diante dos acontecimentos, Loyola

decidiu que o Pe. Simão Rodrigues partiria para as novas terras na América, assim que o Padre

Martinho de Santa Cruz retornasse de seus trabalhos em Roma. No entanto, um acontecimento

inesperado muda aquilo que já havia sido decidido: o Pe. Martinho vem a falecer e se torna

indispensável a presença de Simão Rodrigues em Portugal. A partir desses acontecimentos é

nomeado o novo chefe da missão dos Jesuítas em território brasileiro, o Padre Manuel da

Nóbrega, o qual partiria com os companheiros: Pe.João Aspilcueta Navarro, Leonardo Nunes,

Antônio Pires os irmãos leigos Vicente Rodrigues e Diogo Jácomo.

2.2 A CHEGADA DOS JESUÍTAS AO BRASIL

Foi junto ao início do Governo Geral, com Tomé de Sousa em 1549, que teve início a

história da presença do Cristianismo no território brasileiro. Nesse momento, a cultura dos

povos indígenas que aqui viviam passa a ser transformada para sempre e a religiosidade passará

a se impor a qualquer custo, fazendo parte do processo de colonização. A presença da Igreja

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em território americano fazia parte da própria esfera administrativa da Coroa, pois através do

padroado a Igreja e o governo português, mantinham laços tradicionais de longa data:

Em Portugal o padroado era uma tradição bem antiga, nascia nos tempos da

reconquista: no dia 15 de março de 1319, a “Ordem de Cristo” é formada com

os antigos fundos da riquíssima Ordem dos Templários. Como Portugal era

terra reconquistada aos mouros, a Ordem de Cristo ganhou importância e

autoridade. Funcionava como órgão canalizador dos recursos do país para os

cofres da nobreza territorial. Mas como Portugal, antes da aventura marítima,

era terra de agricultura, a importância financeira e política da ordem era

relativamente modesta (AZZI, Riolando; BROD, Benno; GRIJP,Klaus).

Observando Southey (1977), perceberemos que desde que a armada de Cabral

desembarcou em solo brasileiro, o encontro com os índios não foi dos mais amigáveis. Um

choque de cultura foi evidente por parte das duas populações e os indígenas obviamente

estranharam muito os estrangeiros ao chegarem com suas caravelas e suas “vestes estranhas”;

ao passo que os europeus também estranharam os indígenas, vivendo com toda sua

naturalidade, além de que algumas tribos praticavam a antropofagia, o que chocou os

portugueses, que consideraram inaceitável esse costume indígena.

Nesse contexto, um choque de culturas era evidente e, como já dito, o impacto desse

encontro foi irreversível para as populações indígenas, que tiveram sua história modificada para

sempre. Naquela época, algumas tribos se aproximaram com mais facilidade dos estrangeiros

enquanto outras permaneceram isoladas, sem querer estabelecer nenhum tipo de contato, como

foi o caso dos Tupinambás, considerados pelos portugueses extremamente violentos e

perigosos. De acordo com Júnior, Roncari e Maranhão:

Um dos grupos mais importantes foi o dos Tupinambás, um dos grandes

inimigos da colonização portuguesa. Espalhados por boa parte da costa

brasileira, eram encontrados, sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro,

migrando, mais tarde, para o Maranhão, o Pará e a ilha de Tupinambaranas

(Amazonas) (MENDES JR., RONCARI, MARANHÃO, 1991, p.62).

Quando os Jesuítas aqui chegaram, sob o comando do Pe. Manoel da Nóbrega, estes

seriam um dos grupos indígenas que mais dificuldade imporia ao processo da catequização;

mas seria algo a ser enfrentado, pois, como observa Assunção (2003), era objetivo de acordo

com as Constituições da Companhia de Jesus (1547), legislação que regula a Ordem, “a

conversão dos “gentios”, isto é, daqueles que professavam o paganismo, e de outros “infiéis”,

que não tinham o catolicismo como fé” (p11).

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2.3 CONFLITOS ENTRE JESUÍTAS E COLONOS

Como relatam Júnior, Roncari e Maranhão (1991), no período colonial, no Estado do

Maranhão, a região que ia do Rio Grande do Norte até o Pará, a questão da mão de obra era um

dos problemas enfrentados pelos colonos, já que os negros iam, em sua grande maioria, para as

regiões açucareiras e por isso os colonos justificavam a necessidade da mão de obra indígena,

o que ia em contramão com os jesuítas que procuravam proteger os indígenas contra a

escravidão e isso fez com que, desde 1624, quando ocorreu o primeiro levante de colonos contra

os jesuítas, chocassem-se interesses de uns e outros; repetiram-se os conflitos em 1642 e 1652.

Em 1653, para tentar apaziguar os ânimos, chegaria ao Maranhão o Pe. Antônio Vieira,

junto com mais alguns jesuítas, porém, não seriam bem recebidos, o que resultaria na expulsão

dos mesmos em 1661, inclusive o Pe. Vieira. Porém, voltando até Portugal, o Pe. Vieira acaba

por conseguir seu objetivo, pois obteve do Rei D. João IV um alvará régio de 9 de abril de 1655,

no qual a Companhia de Jesus foi declarada a única autoridade competente para tratar dos

assuntos referentes aos indígenas. Esses acontecimentos do século XVII mostram que, muitas

vezes, os ânimos acabavam por se exaltar entre Jesuítas e colonos. Muitas vezes os padres não

concordavam como a forma que os índios eram tratados pelos colonizadores europeus e se

opunham de maneira ferrenha à escravidão.

Antes mesmo do Pe. Vieira, outros padres da Companhia de Jesus se destacaram pela

defesa dos indígenas. Chegando ao Brasil, com o grupo de Jesuítas de 1553, José de Anchieta

havia nascido na Ilha de Tenerife, em 1533 e, quando chegou à América Portuguesa, tinha

apenas 19 anos e se destacaria com grandiosidade no trabalho apostólico nas terras brasileiras.

Não tinha um ótimo vigor físico e boa saúde, como podemos confirmar pelas palavras de

Larroyo (1970): “Doente, de físico frágil, de uma bondade rara, desenvolveu um apostolado de

proporções imensas por várias partes da terra recém-descoberta” (p.885).

Porém, Anchieta teve grande importância na dissolução da nova religião entre os índios

e em todo processo educacional da época em geral. Foi o primeiro missionário a elaborar a Arte

da Gramática da língua mais falada na costa do Brasil, tornando-se também o primeiro professor

do Colégio de São Paulo de Piratininga, fundado em 25 de janeiro de 1554.

2.4 CATEQUIZAÇÃO, EXPLORAÇÃO E RIQUEZA

A religião católica, sob a influência jesuítica para disseminar sua fé em território

colonial, agiu quando se trata do caso dos indígenas, principalmente das crianças, os curumins.

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Através deles os padres tinham uma maior facilidade de ação, visto que a dificuldade em

catequizar índios adultos era muito maior. Havia uma grande necessidade em substituir as

tradições indígenas de forma que os índios passassem a viver a fé católica. Para alcançar seus

objetivos, os padres se adaptaram aos costumes indígenas, pois a formação de uma população

colonial católica era objetivo primordial da Igreja e nas missões e reduções dá-se início a esse

processo. Gilberto Freyre, ao falar da influência dos padres afirma que:

Mas sobre influência dos padres da S.J. a colonização tomou rumo puritano -

ainda que menos rigidamente seguido nesta parte da América pelos cristãos

portugueses que na outra, na do norte, pelos verdadeiros Puritanos: os ingleses.

Deu, entretanto, para sufocar muito da espontaneidade nativa: os cantos

indígenas, de um tão agreste sabor, substituíram-nos os Jesuítas por outros,

compostos por eles, secos e mecânicos; cantos devotos, sem falar em amor,

apenas em Nossa Senhora e nos Santos. (FREYRE, 2003, p.168).

Faz-se importante ressaltar que para a realização de seus objetivos, os jesuítas se voltam

para a concepção mnemônica do ensino, bem como no sadismo pedagógico, pois, moldar a

mente dos habitantes da “nova terra” com um pensamento cristão e se utilizar de castigos era a

melhor forma de fazer com que se apegassem ao cristianismo. Nesse contexto, Freyre afirmava

que todos deviam participar da catequese e dos ensinamentos dos padres que, muitas vezes,

para não ficar na rotina, realizavam teatros religiosos com os curumins ao ar livre, além do

aprendizado de canto e dança. Desta forma a Igreja Católica ia se disseminando pelos costumes

e cultura indígena, onde o ato de dançar e cantar tinha para eles uma relação direta com o que

consideram sagrado.

O que podemos observar é que tivemos toda uma cultura dominada pelos preceitos da

religião Católica durante o período de 210 anos, (1549/1759). Foram mais de dois séculos de

imposição de uma cultura estrangeira sobre uma cultura ainda em processo de formação. Isso

fez com que a Igreja Católica estruturasse suas bases no território colonial, fato que irá

contribuir de maneira decisiva com a fé em Minas Gerais no século XVIII dando formação às

peculiaridades do barroco naquela região. Em relação à trajetória da Companhia de Jesus no

Brasil, fato é que, observando Larroyo (1974), este diz que a Coroa portuguesa temendo esse

crescimento extraordinário da Companhia de Jesus, depois de 210 anos de educação religiosa,

os Jesuítas são expulsos durante o reinado de D. José I, através do alvará de 28 de junho de

1759, decretado por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que foi primeiro

ministro de Portugal, de 1750 a 1777.

Religiosidade efervescente e culto aos mais diversos santos católicos foi uma práxis no

período colonial, muitas vezes, santos de devoção portuguesa passaram a ser incorporados na

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formação da identidade religiosa do Brasil, como é o caso de São Gonçalo do Amarante. Nas

próprias Minas Gerais e em vários outros locais da colônia, a festa a São Gonçalo envolvia

principalmente os homens pardos, acontecimento esse que se explica pela cor do santo,

considerado um santo pardo. Em relação a esses acontecimentos diz Bezerra (2012) que, a

questão da cor do Santo e a sua relação com a santidade foram motivo de inquietações,

polêmicas e múltiplas discussões, o que caracterizou o evento como uma verdadeira

manifestação de aclamação à cor parda, assim como uma oportunidade de os envolvidos na

polêmica tecerem negociações políticas com o intuito de alcançar inserção e respeito social.

Desta forma, São Gonçalo se tornará popular no Brasil, passando a fazer parte dos cultos

domésticos e de terreiro, fazendo parte de um catolicismo que estava mais íntimo dos fiéis e se

tornando patrono dos violeiros caipiras. Porém, não será somente dos “violeiros caipiras” que

São Gonçalo será patrono, mas de muitas outras classes sociais, as mais populares, todas

acabarão por se apegar ao culto e às festividades em homenagem ao santo. Faz-se de grande

importância lembrar que nas Minas Gerais do século XVIII a religiosidade de cunho popular

irá mesclar brancos, negros e pardos, muitas vezes dentro de grupos com afinidades próprias, a

questão da raça será algo definidor de identidades nos grupos sociais da sociedade do barroco,

pois as tradições culturais e religiosas muitas vezes se identificavam com a cor e raça do

indivíduo.

Apesar de, na sociedade colonial mineira do século XVIII, grupos pardos se

identificarem sobremodo com o santo português, quem trouxe a devoção ao culto e às tradições

de São Gonçalo ao Brasil foram os pescadores. Algo que ainda chamou a atenção é que em

Minas Gerais no século XVIII, os devotos de São Gonçalo acabavam por se associar aos

“homens pretos de Nossa Senhora do Rosário”, com o objetivo de conseguirem manter o culto

ao santo na região. Esse fato nos mostra ainda melhor o assunto que estamos discutindo

referente à religiosidade popular nas Gerais, mostrando que religião e práticas culturais sempre

estavam dentro de um contexto único.

Há um conjunto pequeno, mas expressivo de documentos, que apontam para a

presença do culto a São Gonçalo em diversas comarcas da região das Minas

Gerais, na segunda metade do século XVIII. Entre eles, requerimentos de

devotos do Santo, que unidos aos “homens preto de Nossa Senhora do

Rosário”, em mesma capela e ação, solicitavam ao Rei a liberação para pedir

esmolas por toda a capitania das Minas. Eram novos moradores, de povoados

recém-fundados e se diziam pobres. Evidentemente, este critério

é relativo, mas chama a atenção o fato de devotos de São Gonçalo se

associarem aos “homens pretos de Nossa Senhora do Rosário” para

sustentarem o culto no “novo povoado, e em sertão bravo, e de gente pouco

culta” (SANTOS, 2003, p.2).

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A tradição à fé de São Gonçalo realmente mexia com a população colonial, fazendo com

que esse se tornasse um Santo de devoção popular e os diferentes grupos sociais que eram

devotos do Santo, tanto em Portugal, quanto no Brasil sempre participavam de sua festa. O

Sermão de São Gonçalo do Pe. Antônio Vieira é um documento no qual se analisa a presença

dos grupos sociais na festa dedicada ao santo. Padre Vieira mostra grande admiração a São

Gonçalo que, para ele, já nasce com o dom divino.

Entendido assim - pois assim se deve entender - o Evangelho, parece que ele

por si mesmo nos tem já dividido o discurso em duas partes, e que, segundo

elas, devemos tratar das duas principais idades do nosso santo: a segunda, que

nos mancebos é florente, e a terceira, que nos varões é madura; sendo uma e

outra na sua perfeição, ambas foram cheias de flores e ambas de frutos, mas,

posto que assim pareça a outros, a mim, cuja é a eleição, não me parece. Não

são as excelências de S. Gonçalo tão pouco grandes que caibam em tão

estreitos limites. Quando o rio sai da madre, também as margens são rio. Não

só havemos de largar o Evangelho, senão também o número das vigias. Digo,

pois, ou determino dizer, que S. Gonçalo, não só foi santo da segunda e da

terceira vigia, senão também da primeira e da quarta, e não só da primeira, da

segunda, da terceira e da quarta, senão também da quinta. Santo, e admirável

santo, na primeira idade de menino; santo e admirável na segunda, de

mancebo; santo e admirável na terceira, de varão; santo e admirável na quarta,

de velho; e, finalmente, santo e admirável na quinta, depois de morto, em que

tem já cinco vezes tantos anos quantos teve de vida. Se o discurso for largo

facilmente se acomodará a devoção com a paciência (TRECHO DO SERMÃO

DE SÃO GONÇALO).

No princípio da exploração aurífera, os mineiros não tinham moradia fixa. Em busca do

ouro que abundava nas margens e leitos dos córregos, levavam uma vida itinerante,

acompanhando o metal onde sua extração se desse mais facilmente. Desde o princípio já

levavam consigo seus santos protetores, o que faz a religião ter presença já desde a fundação

de Minas.

Enfim, são inegáveis as diversas influências religiosas em território brasileiro, o que,

sem dúvida alguma, contribuiu de maneira essencial para a construção da identidade de nosso

povo. Desde as tradições religiosas indígenas até a diversidade das práticas religiosas africanas,

nosso país embebeu-se de crenças. Tomando por base todas as informações aqui elencadas

pode-se afirmar que a religião Católica foi, e ainda é, aquela que maior influência exerceu.

Desde a chegada dos padres jesuítas, o catolicismo encontraria no Brasil um solo fértil para

propagar sua fé.

Influência considerável da Igreja católica acontecerá em Minas Gerais, principalmente

no século XVIII, quando a mesma chegará a influenciar de maneira decisiva o campo das artes,

inaugurando o barroco mineiro. Nesse ambiente, a presença das Irmandades e Ordens Terceiras

irão condicionar um catolicismo mais popular, mais regionalista e mais próximo dos fiéis

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Nessa sociedade, o século XVIII ganha contornos de ser chamada de século do ouro na

história da Colônia. Uma época de fausto e glória para a capitania, que traz uma nova conotação

para o episódio da “conquista” portuguesa na América, pois pessoas de todos os lugares, das

mais longínquas regiões, seguirão rumo às Gerais: pobres, ricos, aventureiros, religiosos, etc.

Enfim os setecentos, como foi chamado o século XVIII formará uma sociedade dinâmica,

conflituosa, efervescente que testemunhará um dos cenários mais ricos da história do Brasil.

A maioria dos portugueses atraída para a região da mineração era pobre, mas

também vinha gente com recursos e instrução: pequenos comerciantes,

artesãos e outros profissionais, padres etc. Assim, ao aumento da população no

Brasil, e principalmente em Minas, corresponderam a ampliação e a

diversificação da vida social e das atividades econômicas. Isto levou a que o

governo português passasse a intervir mais fortemente na administração e no

controle da mineração e dos novos núcleos populacionais (LEMOS, 2008,

p.21).

Os encaminhamentos e as múltiplas dimensões que teve o século de ouro, sua vida

social, econômica e a intensa religiosidade, com uma estética barroca singular, própria dessa

sociedade, será tema de discussão do próximo capítulo deste trabalho, onde analisaremos o

processo de formação da Minas Gerais e sua vivência barroca entre 1730 e 1780.

CAPÍTULO 3 - DAS MINAS ÀS GERAIS: TRAMAS E NARRATIVAS DO BARROCO

MINEIRO

3.1 O PROCESSO DE FORMAÇÃO DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS

A busca pelo tão sonhado ouro da América encontrou seu objetivo em fins do século

XVII, quando finalmente ele foi encontrado. Em 1694, Bartolomeu Bueno de Siqueira

encontrou amostras do precioso metal na serra de Itaberaba e, mesmo com controvérsias em

relação a quem realmente foi o primeiro ou os primeiros a descobrirem o ouro nas Gerais, é

fato que era uma época em que as expedições, denominadas como “bandeiras”, estavam em

constante busca pelos minerais preciosos, entre eles o ouro, a pedra amarela.

Era esse o momento de glória que a Coroa portuguesa tanto esperava na parte que lhe

cabia da América, período esse de formação de um campo social que, posteriormente, será

objeto de muitos estudos, visto aquilo que será próprio e único da sociedade de Minas Gerais,

pois, como afirma Michel de Certeau: “Falando em geral, cada sociedade se pensa

‘historicamente’ com instrumentos que lhe são próprios” (p.78).

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É fato que em Minas Gerais uma janela se abre a partir da descoberta do ouro, que fará

da futura capitania um palco de muitos acontecimentos, com uma diversidade de grupos sociais

e suas relações com a até então desabitada terra das gerais.

Souza (1997) cita como importantes bandeiras de prospecção a de Fernão Dias Pais,

Antonio Pires de Campos e Bartolomeu Bueno da Silva. Apesar da dificuldade em se separar

as bandeiras de prospecção que buscavam minerais preciosos das de preação, que partiam para

a captura de indígenas, diz a autora que “No entanto é fato incontestado ter a bandeira de Fernão

Dias Pais constituído um grande marco na fase paulista de prospecção de metais e pedras

preciosas” (p.10).

Esses descobrimentos auríferos trazem para a até então desabitada região das minas

um consequente surto vigoroso de povoamento, que trará a composição de uma sociedade com

características ímpares. A formação de todo esse complexo que se forma nas Gerais faz parte

de um processo civilizador vivenciado na referida região, onde a constituição da capitania nos

leva a refletir sobre a formação de um novo momento histórico da colônia portuguesa.

Fato é que, como observa Klein (2000), “Para começar, deve-se dizer que a maioria

dos migrantes não desejam abandonar suas casas nem suas comunidades. Se pudessem escolher,

todos- com exceção dos poucos que anseiam por mudança ou aventura- permaneciam em seus

locais de origem” (p.13).

No caso de Minas, o crescimento pelo qual passaria a capitania é algo que realmente

chama a atenção e a migração teve suas mais diversas explicações: como relatou Klein, há

aqueles que anseiam por mudança e também os aventureiros, que fizeram vir do Reino um

número expressivo de homens para a região do ouro, além, é claro, das migrações internas que

ocorreram dentro da própria colônia, fazendo daquela região o novo polo dinamizador.

Como afirma Elias (1993), ao analisar a passagem das tradições feudais para o Estado

Moderno:

Grandes mudanças históricas exibem uma regularidade precisa que as

distingue. Frequentemente parece, à vista de estudos modernos, que formações

sociais particulares, cuja crônica constitui a história como tal, se seguiram

umas às outras aleatoriamente, como as formas de nuvens na mente de

PeerGynt: ora se parecem com um cavalo, logo depois com um urso, - num

momento a sociedade se afigura como românica ou gótica, e depois, barroca

(ELIAS, 1993, p.80).

Os escritos de Elias nos servem perfeitamente de parâmetro para a análise da formação

da sociedade mineira, pois, a passagem do século XVII para o XVIII é um momento de

mudança histórica, de constituição de uma sociedade carregada de singularidade, de tradições,

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de uma religiosidade e uma cultura artística que as tornam única. Profundas transformações são

sentidas no perfil econômico, político, social e cultural da colônia, graças à organização que se

forma em torno da atividade mineradora, transformando as Minas Gerais no polo dinâmico da

colônia, havendo aí a formação de uma identidade cultural mineira com possíveis conexões

com o Estado, no qual o enfoque local se associou à ênfase no caráter politizado, o que

transforma a vida social em Minas.

Nesse contexto, alguns aspectos importantes devem ser observados no caso do

povoamento da região das Minas, como o vigor do fluxo populacional que faz povoar a região,

como estamos observando, e com singulares características sociais que fizeram parte desse

povoamento dos quadros coloniais; tudo isso marcado pela centralidade do ouro no processo

de formação dos primeiros núcleos urbanos.

Num primeiro momento, a ausência de um Estado presente se fazia sentir na região e,

quanto maior a notícia da existência de ouro, mais a população das Gerais crescia, fazendo com

que a formação de uma sociedade de caráter conturbado começasse a aparecer, como era óbvio

que iria acontecer. A falta de órgãos do Estado fez com que o clima de instabilidade e conflito

parecessem iminentes, como aconteceu entre 1708 e 1709, no episódio que entrou para a

história com o nome de Guerra dos Emboabas, como eram chamados os invasores da região

das Gerais pelos paulistas, que por terem chegado primeiro ao local se achavam com direitos

que pertenciam somente a eles.

Analisando os fatos pertinentes sobre esse episódio da história das Gerais, diz Souza

(1997) que:

A história do confronto entre os dois grupos é ainda hoje obscura, havendo

certa confusão em torno dos incidentes. Entretanto, tudo indica ter sido um dos

motivos da rivalidade o fato de alguns forasteiros começarem a tirar grandes

lucros do comércio de abastecimento das Minas, passando em decorrência

disso, a gozar de influência crescente na região (SOUZA, 1997, p.21).

Fato é que o confronto teve fim em 1709, graças à intervenção do então governador

do Rio de Janeiro, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, sendo que, sem os privilégios

desejados, os paulistas se retiraram da região.

Enfim, o ouro das Gerais abriu espaço não só para conflitos que se sucederam nessa

região, mas também contribuiu para a transformação local de uma região que, até o século XVII,

fazia parte de um imenso espaço desabitado da colônia. As referidas expedições das bandeiras

e as entradas organizadas pela Coroa portuguesa, com o objetivo da busca dos metais preciosos,

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é que deram início ao processo de descoberta de um local que apenas fazia parte de variadas

idealizações por parte dos europeus.

O povoamento e a articulação do território das Minas Gerais dá-se de forma ímpar,

quando comparadas em relação às experiências citadinas conformadas na América portuguesa

até então. A região das Gerais assume uma feição urbana e um grande fluxo populacional passa

a povoar o local, onde diversificadas características sociais através da diversidade de ocupações

desse povoamento passam a fazer parte da dinâmica colonial.

Fazendo um pequeno regresso, ao analisar Souza (1997), ela afirma que, ainda no final

do século XVII, Artur de Sá e Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro – que na

época abrangia também a região paulista e as Minas – iniciou uma política normalizadora com

o objetivo de policiar e diminuir as incidências de crime nos arraiais, pois estes já estavam com

um grande contingente populacional.

A formação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, separada do Rio de Janeiro,

ocorre a partir do momento da nomeação de Antonio de Albuquerque como governador do Rio

de Janeiro em 1709, o qual passa no ano seguinte a dirigir a nova capitania. Ao falar sobre esses

acontecimentos, diz Souza (1997), sobre as incumbências do novo governador, que:

A carta régia que o nomeou denotava duas preocupações principais: a

necessidade de normalizar a população mineira, ordenando-a em núcleos

urbanos a serem fundados; a adoção de uma política que premiasse com

vantagens e honrarias os súditos fiéis e devotados ao serviço real (SOUZA,

1997, p.29).

As vilas que são então fundadas pelo governador correspondiam aos arraiais auríferos

mais significativos, sendo a primeira a Vila de Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, fundada

em 1711, que, posteriormente, passa a ser chamada de Mariana, ganhando a categoria de cidade

e, mais tarde, em 1745, torna-se sede do bispado. Destaca-se também a Vila Rica, que nasce da

junção dos arraiais de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, Padre Faria e Antonio Dias.

Todo esse ímpeto urbanizador que foi iniciado por Antonio de Albuquerque

prosseguiu no governo de Baltasar da Silveira, que em 1713 funda São João Del Rei e, no ano

de 1714, Vila Nova da Rainha (Caeté) e Vila do Príncipe (Serro). No ano de 1715 foram criadas

Nossa Senhora da Piedade do Pitangui e as três primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio

das Velhas e Rio das Mortes e, em 1718, já no governo de D. Pedro de Almeida, o conde de

Assumar, fundou São José Del Rei, futura Tiradentes.

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Segundo Souza (1997) “O objetivo de criação das vilas fora ordenar a população,

evitando o surgimento de novos conflitos e, caso voltassem a ocorrer, possibilitando a aplicação

das medidas punitivas mais eficientes” (p.30).

As diferenças com a questão espacial de outras economias na colônia são logo

acentuadas, mostrando assim a disparidade da região das Gerais para com as regiões de

economia rural e, consequentemente, entre as cidades dessas áreas e os núcleos que foram

formados em função do ouro, que de pronto já apresentaram certa densidade. A urbanização

torna-se um fenômeno complexo, ocorrido pelo impulso do ouro e dos diamantes.

Diferente das cidades que se formavam nas áreas litorâneas - em função

principalmente da época e do cultivo da cana de açúcar – em Minas a formação das cidades é

fruto da própria mineração, o que faz com que a reprodução da vida material no surgimento

daquelas povoações ocorra de forma praticamente indissociada dos locais do poder que

deveriam fazer marcar o domínio político naquele espaço de ocupação acelerada e espontânea.

Nossas reflexões até aqui suscitam com vigor os processos de ocupações territoriais

do século XVIII em Minas Gerais em torno da formação das “cidades mineradoras”,

envolvendo tanto a produção do urbano quanto a composição do rural, tudo ligado, em um

primeiro momento, à força da economia mineradora. As povoações formadas a partir do

impulso das descobertas auríferas trazem também a povoação da região Centro-sul do país, até

então praticamente desabitada:

[...] Em 1700, a economia brasileira – que estava relativamente estagnada na

segunda metade do século XVII – experimentou um crescimento

extremamente rápido com a descoberta, na província de Minas Gerais, das

maiores jazidas de ouro do mundo ocidental. Isso abriu o interior brasileiro a

enorme expansão e também estimulou a mudança da população para o Centro

e o Sul do país. Também resultou em novas migrações da Europa, agora que

os salários haviam mudado clara e definitivamente em favor da economia

colonial portuguesa na América [...] (KLEIN, 2000, p.19).

Em 1720, a capitania de Minas Gerais se separa de São Paulo e Vila Rica é escolhida

como capital da nova capitania independente. Segundo Lemos (2008), Vila Rica já havia

nascido com uma série de problemas e conflitos e o enriquecimento de alguns brasileiros faz

surgir na cidade elites locais, onde, mesmo sob repressão da Coroa, ainda se encontram os ideais

de democracia, que naquele momento triunfavam em vários países da Europa através do

Iluminismo e da ascensão das classes burguesas.

Na cidade observava-se uma rígida hierarquia social, a qual se baseava nos critérios

de cor da pele e pureza de sangue, no entanto, apresentava seu contraponto na mestiçagem e

nas brechas de ascensão social que conseguiam os trabalhadores do ouro, além da grande

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influência da cultura africana, pois, lutando contra a escravidão, eram os negros a grande

maioria da população.

Figura 19 - Processo de extração do ouro nas Gerais do século XVIII. Rugendas 1835

Diferente de outras regiões da própria capitania de Minas Gerais, em Vila Rica, a

presença do Estado se fará presente principalmente para evitar qualquer contrabando dos metais

preciosos ou o que viesse a prejudicar a Coroa.

Entre as iniciativas da administração colonial esteve a criação em Vila Rica de

uma Casa de Fundição, destinada a fundir todo o ouro encontrado, separar a

parte correspondente aos tributos e marcar os lingotes com o selo real. Era um

controle total. Segundo o decreto real que regulamentava o funcionamento

dessa instituição, todo o ouro deveria passar por ali, e ficando proibidos de

circular na colônia ouro em pó ou em pepitas. As pessoas que fossem pegas

com ouro sem o selo real seriam presas e julgadas, e as penas eram bastante

rigorosas (LEMOS, 2008, p.22).

Lemos (2008) relata que essas medidas por parte de Portugal fizeram com que, em

1720, eclodisse uma revolta em Vila Rica, sob a liderança do tropeiro e abastado fazendeiro

Filipe dos Santos. Os revoltosos exigiam o fim da casa de fundição e, após negociações com o

então governador, Conde de Assuar, Filipe retirou-se da vila com a promessa de redução dos

impostos, mas o governador não cumpriu sua parte e os líderes rebeldes foram deportados e

Filipe dos Santos condenado à morte.

A violência que se fazia presente na sociedade da época parece se contrapor ao

processo civilizador da análise feita por Elias, a respeito da passagem da sociedade feudal para

a constituição do Estado moderno.

Segundo Norbert Elias:

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À medida que mudava as estruturas das relações humanas, as organizações

monopolistas de força física se desenvolviam e o indivíduo se resguardava do

impacto das rixas e guerras constantes e passava a sofrer as compulsões mais

permanentes de funções pacíficas baseadas na aquisição de dinheiro ou

prestígio, a manifestação de sentimentos também foi gravitando, aos poucos,

para uma linha intermediária. As oscilações no comportamento e nos

sentimentos não desapareceram, mas se abrandaram. Os picos e vales se

tornaram menores, e menos abruptas as mudanças (ELIAS, 1993, p.200).

Analisamos o trecho escrito por Elias em O Processo Civilizador - no qual ele relata

uma mudança no comportamento dos indivíduos – para nos ater ao fato de que a constituição e

formação da capitania de Minas Gerais se fez sentir muitas vezes pela presença violenta do

Estado. É inegável que Elias fala em oscilações em relação ao comportamento violento dos

indivíduos e que alguns atributos considerados típicos do indivíduo “civilizado” resultaram de

lentas transformações, por meio das quais suas condutas, comportamentos e costumes foram

sendo condicionados socialmente, contudo, a violência se faz praticar exatamente por quem

devia, na época, procurar coibi-la: o Estado português.

Segundo Lemos (2008), a execução de Filipe foi algo extremamente violento, pois

após “ser enforcado, seu cadáver, amarrado às caudas de dois cavalos, foi estraçalhado nas

pedras do calçamento de Vila Rica” (p.23).

A questão é que, através da violência, a Coroa procurava manter a ordem a todo custo,

a fim de mostrar aos demais habitantes da capitania o que poderia acontecer com qualquer um

que fosse acusado de traição ao Estado português.

Apesar de todo esse esforço para manter a ordem, muitas vezes a Coroa encontrou

grandes dificuldades para que isso acontecesse. Uma sociedade formada por diferentes classes

sociais, em que a presença da escravidão era fator chave para o mantimento da mesma, traz

consigo também características que a diferenciam do restante da colônia. A própria escravidão

ali se faz urbana e a tarefa dos escravos não era a mesma daqueles que estavam condenados ao

trabalho nas zonas açucareiras do Nordeste. Nas Gerais, as negras escravizadas tiveram

importante papel no comércio e mesmo no contrabando do ouro.

Principalmente entre 1730 e 1780, período do auge da sociedade mineradora, se forma

na capitania do ouro uma sociedade com relações e diversidade cultural que a tornam única.

Como defende Norbert Elias (1993), mais do que pela natureza humana, o ser humano se define

por meio da relação com o outro, ou seja, ele se faz humano e se torna membro da humanidade,

necessitando das relações sociais típicas do seu grupo para se constituir, sendo dependente do

contexto cultural e social.

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Fato é que, em termos populacionais, Minas Gerais conseguiu se manter como a região

mais populosa do Brasil até a independência, com uma população masculina que era

majoritária, sendo que, após 1776, apresentou uma nova forma de crescimento, como observa

Stumpf (2017) ao dizer que: “Se analisarmos a população mineira segundo critérios de cor,

gênero e condição jurídica, também podemos observar como o crescimento após 1776 foi

qualitativamente diferente daquele verificado nas primeiras décadas dos setecentos” (p. 535,

536).

Segundo a autora, as pretas, que em 1776 formavam o grupo maioritário dentre as

mulheres, foram ultrapassadas ligeiramente pelas pardas e mulatas, cujo crescimento foi o mais

surpreendente de todos os grupos divididos por cor e sexo da população de Minas no período

considerado.

Mas o que se conclui é que a sociedade mineira continuou a ser composta

maioritariamente por homens e com predomínio dos mesmos grupos raciais: preto, pardo e

branco. É nessa sociedade que o preto, o pardo e o mulato tiveram uma oportunidade de se

impor no quadro social e mostrar suas virtudes para a arte, pois, como afirma Boschi (1988) “O

prestígio social dos profissionais se aferia pela natureza do trabalho por eles desenvolvido e

pelo valor social que a coletividade lhes imputava” (p.13).

3.2 AS PRINCIPAIS CIDADES MARCADAS PELO BARROCO

OURO PRETO

Ouro Preto é a maior referência do período colonial mineiro por ter sido palco dos

mais memoráveis acontecimentos e, é claro, do barroco mineiro. De acordo com Rivera (2002)

“Ouro Preto é uma das mais importantes cidades históricas do Brasil. Até 1711 tinha o nome

de Arraial das Minas Gerais de Ouro Preto. Em 1711 e 1712, chamou-se Vila rica de

Albuquerque. Teve a denominação de Vila Rica de 1712 à 1823” (p.23).

Ressalta-se que, a partir de 1823, a cidade era capital da Província de Minas Gerais e

depois capital do Estado até 1897, ano da inauguração de Belo Horizonte. Reconhecida pela

Unesco como Cidade Monumento Mundial, passou a fazer parte do Patrimônio Cultural da

Humanidade. A cidade é magnífica, uma cidade que respira a história de um dos períodos mais

efervescentes e gloriosos do Brasil colônia; andar pela cidade é reviver o passado, já que suas

igrejas, suas ruas, seu formato e seu jeito de ser parece nos remeter a sociedade do século XVIII

e seus acontecimentos. As obras dos grandes mestres barrocos Aleijadinho e Ataíde estão

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espalhadas pela cidade e trazem um encanto mais do que especial, tornando Ouro Preto única

em sua maneira de ser.

Como parte da pesquisa para esse trabalho fiz uma incursão à Ouro Preto, onde cheguei

no dia 5 de janeiro do ano de 2019. Era final de uma tarde de sábado e em um primeiro momento

nessa cidade histórica percebi a ênfase que teria minha viagem até essa região, onde as

montanhas das Gerais guardam a memória do século XVIII mineiro, com o barroco, sua cultura

e os contrastes de uma época. Enfim, fim de tarde com uma vista panorâmica da cidade ao redor

da igreja de São Francisco de Paula, era minha chegada à cidade.

Em minha permanência na mesma percorri suas ruas e ladeiras, fiz questão de sair logo

pela manhã da pousada onde me instalei e retornar ao início do anoitecer, pois tudo nessa cidade

encanta, é uma memória viva da história da nossa sociedade, da nossa identidade cultural.

Figura 20 - Chafariz do Museu da Inconfidência, Ouro Preto – MG. Todo constituído em pedra

sabão, representa o estilo barroco.

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Figura 21 - Vista da Igreja de São José, Ouro Preto-MG 05/01/19

Figura 22 - Frente da Igreja de Nossa Senhora das Dores, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Visitar suas igrejas, como: São Francisco de Paula; Nossa Senhora do Carmo; Nossa

Senhora das Mercês e Misericórdia, Santa Efigênia; Nossa Senhora das Dores; São Francisco

de Assis; Nossa Senhora do Rosário; Nossa Senhora da Conceição, entre outras, é entrar em

contato com obras religiosas barrocas que encantam por sua expressividade, que ainda hoje

consegue mexer com o emocional dos fiéis.

Visitar também o Museu da Inconfidência é obrigação de todo visitante de Ouro Preto,

pois as obras que lá estão dizem muito sobre nosso passado histórico; inclui-se nesse pacote as

visitas ao Museu da Ciência e da Técnica, Museu da Casa dos Contos, Museu da Arte Sacra e

Museu do Aleijadinho, o qual infelizmente não consegui visitar pelo motivo do mesmo estar

fechado para restauração, além, é claro, das visitas às antigas minas de ouro que nos remetem

a memória do penoso trabalho escravo que ocorria no entorno destas.

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Figura 23 - Frente e lateral da Igreja de São Francisco de Paula, Ouro Preto-MG 05/01/19

Percorrer Ouro Preto é transcender a memória viva das tramas e das narrativas do

barroco mineiro, o qual se encontra vivo nas terras das Gerais, através da preservação de um

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patrimônio cultural que guarda a memória de um passado não muito distante e que pulsa ainda

hoje nas festas de tradições religiosas que ocorrem na cidade, como o Reinado de Nossa

Senhora do Rosário e Santa Efigênia, tradição das irmandades leigas do século XVIII e que

buscam resistir às gerações.

É importante mencionar também que a cidade é um pólo difusor de incentivo às artes,

o que acaba por impulsionar o trabalho de artistas da região, além de ser um importante centro

de formação universitário onde se encontra a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) a

qual “foi criada no dia 21 de agosto de 1969, com a junção das centenárias e tradicionais Escola

de Farmácia e Escola de Minas. Ao longo dos anos cresceu e ampliou seu espaço físico,

ganhando novos cursos, professores e colaboradores” (https://ufop.br).

Figura 24 - Vista de Ouro Preto – MG, Janeiro de 2019.

MARIANA

Outra cidade histórica mineira, rica nos acontecimentos que marcaram o século XVIII,

teve como seu primeiro nome Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, sendo a primeira

capital da Província. Em 1745 o rei de Portugal, Dom João V, elevou a vila à categoria de

cidade, nomeada como Mariana, uma homenagem à rainha Maria Ana D’Austria, sua esposa.

Transformando-se no centro religioso do Estado, nesta mesma época a cidade passou a ser sede

do primeiro bispado mineiro.

Tirei um dia de minha incursão até a região para ir a Mariana, o município é vizinho,

localizado a leste de Ouro Preto e, por minha trajetória de ônibus até a cidade, consegui perceber

marcas da pobreza que ainda existe na região, marcas do já dito contraste do século XVIII.

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Mariana é também uma importante cidade marcada pela cultura do barroco. Diz Rivera

(2002) que a cidade “é berço de varões ilustres tais como: Cláudio Manoel da Costa, Frei José

de Santa Rita Durão, Manoel da Costa Ataíde, Pedro Aleixo” (p.43).

Figura 25 - Frente da Igreja de São Pedro dos Clérigos, Mariana-MG, 07/01/19

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Figura 26 - Frente da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Mariana-MG, 07/01/19

Mariana é uma cidade que também apresenta-se rica aos olhos de quem a visita; suas

igrejas e tradições do século XVIII deixam registradas ainda hoje as marcas de um tempo

passado. Entre as igrejas de grande destaque podemos citar: Sé Catedral, uma das mais belas

igrejas de Minas com sua construção iniciada em 1709 e concluída em 1762; Igreja do Carmo,

que teve sua construção iniciada em 1784 e apresenta uma bela portada com enfeites

harmoniosos; cita-se ainda a Igreja de São Francisco; a grandiosa São Pedro dos Clérigos; a

Igreja das Mercês e a Igreja do Rosário todas com uma arquitetura exuberante, registrando

momentos de grande opulência do barroco.

Faz-se importante mencionar ainda que em 1745 se torna uma diocese e todo ano, em

16 de julho, Dia de Minas, o Governo do Estado de Minas Gerais instala-se na cidade,

realizando cerimônia alusiva na Praça Minas Gerais que, pela harmonia e beleza plástica de

seus monumentos, é um expressivo conjunto urbano da Minas colonial.

Em minha visita à cidade pude, como em Ouro Preto, sentir um pouco das vibrações

da memória de nosso antigo passado colonial. Lá, ao visitar a Igreja de Nossa Senhora do

Carmo, de São Francisco de Assis e de São Pedro dos Clérigos, pude sentir a presença do

barroco mineiro, além, é claro, da Câmara Municipal da cidade, que nos traz seus

encantamentos de estilos passados. Fundada em 1711 é a mais antiga de Minas Gerais.

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Tanto em Ouro Preto, como em Mariana, a simplicidade de sua gente, aliada às vistas

panorâmicas das paisagens locais, nos transmitem um semblante de serenidade de lugares que

foram palcos dos mais importantes acontecimentos do século XVIII, os quais estamos

apresentando nesta pesquisa. Esse é o papel do pesquisador: não deixar apagar a memória de

uma sociedade, memória esta que continuará viva enquanto for transmitida às gerações.

Como afirma Michel de Certeau:

Fazer história é uma prática. Sob este ângulo podemos passar para uma

perspectiva mais pragmática, considerando os caminhos que se abrem sem se

prender mais à situação epistemológica que, até aqui, foi desvendado pela

sociologia da historiografia (CERTEAU, 1982, p.78).

Figura 27 - Vista de Mariana – MG, Janeiro de 2019

SABARÁ

A Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará de 1711, tornaria-se, três anos

depois, sede da extensa Comarca do Rio das Velhas, cuja jurisdição alcançava os limites de

Goiás, Pernambuco e Bahia. Em 1838 foi elevada à cidade com o nome de Sabará.

Diz Rivera (2002) “Como em todas as cidades históricas as grandes festas de Sabará

são as religiosas. Entre elas destacam-se a Semana Santa, as festas do Divino, de Corpus Christi,

de Nossa Senhora do Rosário, a Folia de Reis” (p.53).

Representando a forte religiosidade do século XVIII encontram-se em Sabará a Igreja do

Carmo, cuja construção teve início em 1763; Igreja de São Francisco, iniciada em princípios do

século XVIII; Igreja do Rosário, inacabada, teve sua construção iniciada em 1767 pela

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Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; além de outras inúmeras igrejas

e obras que ressaltam a época barroca na cidade, como a Igreja de Nossa Senhora do Ó, Matriz

de Nossa Senhora da Conceição, Igreja das Mercês, além dos monumentos civis como o Solar

do Padre Correia, antiga residência do Vigário Geral da Comarca do Rio das Velhas; além do

teatro, a antiga “Casa da Ópera” e também a casa do Aleijadinho.

Quando Antônio Francisco Lisboa firmou contrato com a Ordem do Carmo,

para os trabalhos da igreja, trouxe em sua companhia os auxiliares Joaquim

José da Silva, José Soares da Silva, Tomás José Veloso e José Rodriguês da

Silva. Onde instalaria seu atelier? A Ordem possuía uma casa situada próxima

das obras: Ali, moraram o artista e seus auxiliares durante os trabalhos.

Aleijadinho encontrava-se já muito doente. Não gostava de aparecer em

público e só mantinha entendimentos, por questões de serviço, com o frei

Clemente, da Ordem do Carmo. Uma escadinha, uma porta, três janelas, a Casa

do Aleijadinho pode ser vista na Rua do Carmo, perto da igreja (RIVERA,

2002, p. 57/59).

Encontra-se ainda em Sabará os chafarizes do Kaquende, escultura em pedras que data

de 1757 e o Rosário, sem uma data específica de sua construção, mas muito antigo, no qual há

gravados uma coroa e um escudo imperiais, em um trabalho feito de pedra e cal.

CONGONHAS

Segundo relato no site do próprio município, alguns portugueses povoaram a Vila Real

de Queluz (hoje Conselheiro Lafaiete) por volta do ano de 1700. Muitos se fixaram na Vila

Real de Queluz e outros saíram em busca de ouro, fundando novos arraiais e organizando

núcleos populacionais às margens do Rio Maranhão.

Há alguma controvérsia sobre a data da criação da Freguesia de Congonhas. Xavier

da Veiga cita sua criação por Alvará Régio de 03 de abril de 1745. Entretanto, o Cônego

Trindade menciona o ano de 1734 e, segundo ele, a Freguesia foi elevada à condição de Colativa

por Alvará de 06 de novembro de 1749. O livro de Lotação das Freguesias do Arquivo

Eclesiástico de Mariana registra informação que foi erigida por ordem do rei em 1734 e depois

pelo Ordinário em curato. Pelo Alvará de 13 de abril de 1745 foi mandado declarar natureza

colativa, em lugar da Nossa Senhora da Conceição do Ribeirão do Carmo que, pela sua elevação

à Cabeça da Diocese, passou a ser curato amovível a arbítrio do Prelado.

Diz Rivera (2002) que a cidade está num vale entre duas fieiras de montanhas. “De um

lado, o Santuário, o Hotel, os Passos e os Profetas. Do outro, a cidade anônima, com seu casario

irregular” (p.61).

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Como nas demais cidades históricas mineiras, a história e a urbanização de Congonhas

foi marcada pela construção de igrejas, dentre as quais podemos citar a de Nossa Senhora do

Rosário, construída em 1667 por escravos para uma irmandade de negros; Nossa Senhora da

Soledade, construída no distrito de Lobo Leite em 1722, e que apresenta características

barrocas, como altares em simetria e pinturas feitas em folha de ouro. Infelizmente esta foi uma

das igrejas mais saqueadas de Minas.

Mas um grande destaque é o Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, que teve sua

construção iniciada em 1758. A representação do adro do Santuário do Bom Jesus representam

a obra mais famosa, o ponto alto da escultura brasileira, tendo concepções geniais.

Falando sobre essa cidade, afirma Lemos:

Congonhas é o nome de uma planta, o Congõi, que em tupi significa “o que sustenta,

o que alimenta”. Como as demais localidades da região aurífera, teve grande

prosperidade ao longo do século XVIII, quando foram construídos igrejas e outros

edifícios importantes. A cidade se chamou inicialmente Congonhas do Campo. Mas

muitos remetentes, nas correspondências, abreviavam o nome escrevendo apenas “C.

do Campo”, levando a uma confusão com Cachoeira do Campo, localizada na mesma

região. Para evitar isso, em 1948 um decreto reduziu o nome do município para

Congonhas. Um plebiscito realizado em 31 de agosto de 2003 manteve essa decisão”

(LEMOS, 2008, p.115).

Os Passos de Congonhas são obras do Aleijadinho e completam a paisagem colonial e

atmosfera mística que envolvem a cidade.

SÃO JOÃO DEL REI

A fundação dessa cidade remete a 1704, após a descoberta do ouro na região. O

povoado surgiu ao redor da capela em devoção a Nossa Senhora do Pilar, mais tarde Arraial

Novo do Rio das Mortes, e em 1713 é elevada a vila e recebe o nome de São João del Rei.

Atualmente a cidade possui prédios modernos e inúmeras fábricas com um ativo

parque industrial, mas há aquela cidade que conserva suas características industriais com suas

igrejas, chafarizes e pontes. Permanecem como tradições entre seu povo as festas religiosas, os

hábitos, o culto a seus santos e a paixão por coisas de um passado que parece permanecer vivo

na memória de muitos.

Entre os destaques que marcam a memória de uma época podemos citar: Igreja de São

Francisco de Assis, que teve sua construção iniciada em 1773 e seu risco pertence a Aleijadinho;

Matriz de Nossa Senhora do Pilar a qual foi iniciada em 1721; Igreja de Nossa Senhora do

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Carmo, de 1732; Igreja de Nossa Senhora das Mercês, cuja construção é de 1751; Igreja de São

Gonçalo, que foi construída em substituição à primitiva capela em 1772. Além disso há

monumentos, museu, pontes e chafarizes que marcam o eterno século XVIII das Gerais.

Figura 28 - Igreja de São Francisco de Assis, São João Del Rei – MG.

TIRADENTES

A Cidade de Tiradentes foi fundada por volta de 1702, quando os paulistas

descobriram ouro nas encostas da Serra de São José, dando origem a um arraial batizado com

o nome de Santo Antônio do Rio das Mortes. O arraial posteriormente, passou a ser conhecido

como Arraial Velho, para diferenciá-lo do Arraial Novo do Rio das Mortes, a atual São João

del Rei. Em 1718 o arraial foi elevado à vila, com o nome de São José del Rei, em homenagem

ao príncipe D. José, futuro rei de Portugal, passando em 1860, à categoria de cidade. Em 1889

recebe o nome de Tiradentes, em homenagem ao grande herói da Inconfidência Mineira,

Joaquim José da Silva Xavier.

Após longos anos de esquecimento, o conjunto arquitetônico da cidade foi tombado

pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 20 de abril de

1938, sendo que hoje uma das mais importantes fontes de renda do município é o turismo. Em

Tiradentes pode-se encontrar artesanato em madeira, pedra sabão, latão, folha de flandres,

tecelagem, prata de boa qualidade e originária de toda região.

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Entre suas igrejas destacam-se a Igreja Matriz, cuja construção data do início do século

XVIII e é profusamente decorada com destaque para seu conjunto arquitetônico e para a

suntuosidade de seus altares; apresenta características do barroco jesuítico e os trabalhos da

fachada são do Aleijadinho. Destaca-se também o Santuário da Santíssima Trindade; Capela

São Francisco de Paula; Capela Nossa Senhora das Mercês; Capela Bom Jesus da Pobreza que

foi inaugurada em 1750; Capela de São João Evangelista, que foi construída a partir de 1760 e

abriga as irmandades do santo padroeiro, de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora das

Dores, além da Igreja Nossa Senhora do Rosário que, de acordo com Rivera (2002), “é

considerada a mais antiga da cidade. A primitiva capela foi erguida pela Irmandade dos Homens

Pretos, provavelmente, em 1708” (p.89).

Ainda em Tiradentes, encontra-se o Chafariz Azul, que foi construído em 1742; o

Museu do Padre Toledo que está instalado no solar onde morou o padre inconfidente Carlos

Correia de Toledo e Mello e há quem afirme que aí também morou o alferes Joaquim da Silva

Xavier; o Museu da Arte Sacra é a antiga cadeia que foi erguida por volta de 1730 e destruída

por um incêndio em 1829 sendo que, em 1984, o prédio foi transformado no Museu da Arte

Sacra, inaugurado em 1989.

DIAMANTINA

É considerada a mais jovial das cidades históricas de Minas. A formação do município

está intrinsecamente ligada à exploração do ouro e do diamante. A ocupação portuguesa do

território se deu com Jerônimo Gouvêa, que, seguindo o curso do Rio Jequitinhonha, encontrou,

nas confluências do Rio Piruruca e Rio Grande, uma grande quantidade de ouro.

Por volta de 1722, começou o surgimento do povoado, sempre seguindo as margens

dos rios que eram garimpados. A partir de 1730, ainda com uma população flutuante, o Arraial

do Tejuco foi se adensando. Por meio da expansão de pequenos arraiais ao longo dos cursos

d’água em direção ao núcleo administrativo do Tejuco, foi se formando o conjunto urbano de

Diamantina, tendo como primeiras vias a Rua do Burgalhau, a Rua Espírito Santo e o Beco das

Beatas.

Foi em 1938, que o conjunto arquitetônico do Centro Histórico da cidade foi tombado

pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, no final da década de 90, veio o

reconhecimento mundial: Diamantina recebe da Unesco o título de Patrimônio Cultural da

Humanidade, sendo uma das cidades históricas mais conhecidas e visitadas do país.

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Entre suas igrejas destacam-se a Igreja do Carmo, a qual apresenta na portada obras

de talha e, acima, um oval singelo, três janelas com sacadas.

A igreja, mandada construir pelo célebre Desembargador João Fernandes de Oliveira,

em 1758, possui um detalhe curioso: a sua torre, única aliás, foi construída na parte

de trás, quebrando, assim, a tradição de torres na fachada, geralmente seguida no

mundo inteiro. Você, surpreso, há de perguntar: por que essa torre no fundo da igreja?

Simples. Em frente, morava João Fernandes de Oliveira, o milionário, que vivia com

a fabulosa Chica da Silva. A mulata, cansada das festas na mansão, dormia até tarde

e não queria ser acordada pelos sinos do Carmo, nas missas matinais. Resultado:

constrói-se a torre nos fundos da igreja (RIVERA, 2002, p.97).

Destaca-se também a Igreja de São Francisco de Assis, construída em 1771 e onde foi

sepultada Chica da Silva; Igreja das Mercês; Igreja de Nossa Senhora da Luz; Igreja de Nossa

Senhora do Rosário que teve sua construção iniciada entre 1726 e 1727; Igreja de Nossa

Senhora do Rosário e a Igreja de Nossa Senhora do Amparo.

3.3 A ESTRADA REAL

A grande maioria das cidades que citamos até agora são cortadas pela chamada Estrada

Real. A referida estrada abrange um total de 170 municípios e seus aproximadamente 1500

quilômetros, que cortam Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, oferecem inúmeras atrações,

desde igrejas barrocas a paraísos naturais, passando por vilarejos pitorescos e fazendas

históricas.

Segundo informações presentes no site Instituto Estrada Real, a história dessa estrada

surge em meados do século XVII, quando a Coroa Portuguesa decidiu oficializar os caminhos

para o trânsito de ouro e diamantes de Minas Gerais até os portos do Rio de Janeiro. As trilhas

que foram delegadas pela realeza ganharam o nome de Estrada Real.

Estrada Real se divide em três caminhos: o "dos diamantes" - de Diamantina a Ouro

Preto, o "velho", de Ouro Preto a Parati, onde recebe o nome de caminho do ouro, e o "novo",

que começou a funcionar bem depois, numa iniciativa portuguesa para possibilitar maior

rapidez entre o Rio de Janeiro e Ouro Preto, seguindo também a Diamantina.

Observe o mapa:

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Essa estrada que marca o século XVIII, faz parte da história da colônia e está

intrinsecamente relacionada ao ciclo do ouro e da sociedade da época, ligada ao barroco e toda

a vivência de um tempo, tendo as únicas vias permitidas pela Coroa portuguesa, visto que a

circulação de pessoas, mercadorias, ouro e diamante era obrigatoriamente feita por elas,

constituindo crime de lesa-majestade a abertura de novos caminhos.

Fato é que, ao longo dos caminhos reais, espalharam-se os antigos registros, postos

fiscais de controle, alguns dos quais ainda podem ser apreciados na atualidade. Eram de

diversos tipos: registros do ouro, que fiscalizavam o transporte do metal e cobravam o quinto;

registros de entradas, que cobravam pelo tráfego de pessoas, mercadorias e animais; registros

da Demarcação Diamantina, responsáveis pelo severo policiamento do contrabando e pela

cobrança dos direitos de entrada na zona diamantífera; e contagens, que tributavam o trânsito

de animais.

As estradas reais foram, ainda, os eixos principais do intenso processo de

urbanização do centro-sul brasileiro. Ao longo do seu leito ou nas suas margens

se distribuíram as centenas de arraiais, povoados e vilas em que se organizou

a massa populacional envolvida com a economia da mineração e com as

economias a ela associadas. O povoado à beira do caminho, com o cruzeiro, a

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capela, o pelourinho, o rancho de tropas, a venda, a oficina e as casas de pau-

a-pique simbolizou, durante longo tempo, o processo de nucleação urbana do

centro-sul da colônia. Povoados e vilas típicos foram visitados e descritos pelos

viajantes europeus do século XIX, que nos deixaram páginas e páginas de notas

de viagem sobre as paisagens e os núcleos urbanos que encontraram nas suas

jornadas pelos caminhos coloniais brasileiros (http://www.tiradentes.net

Acesso em 23/01/19 às 13:52).

De extrema importância, esses caminhos deram ênfase ao século de ouro da colônia,

quando se viram percorridos por imigrantes paulistas, baianos, pernambucanos e europeus; por

tropeiros do sul e de São Paulo; por boiadeiros do rio São Francisco e do rio das Velhas; por

sertanistas da Bahia e das vilas paulistas; por escravos negros e índios; por mascates,

administradores reais, homens do fisco, soldados mercenários e milícias oficiais.

3.4 O COMÉRCIO NAS GERAIS DO SÉCULO XVIII

No referido período, o comércio, além da mineração, teve papel primordial no

desenvolvimento da capitania de Minas Gerais. Com o passar dos anos, a Coroa começaria a

ter cada vez mais dificuldade em fazer extrair o ouro da região e com isso os representantes do

governo buscavam a qualquer custo tentar cobrar os impostos do ouro, o que gerou grande

revolta entre os habitantes que se sentiam prejudicados com a atitude do governo português.

Num primeiro momento de descoberta do ouro nas Gerais há uma complexa cadeia de

acontecimentos que fugiam do controle do governo: tumultos, crimes, grandes convulsões,

carestias de alimentos e crises generalizadas de fome, o que provocou o abandono de inúmeros

arraiais. Posteriormente, o desenvolvimento das atividades comerciais é o que salvaria a

capitania de um verdadeiro colapso.

Para Souza (1997), São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, foram os principais centros

que articularam o comércio abastecedor das Minas durante todo o século XVIII. Não fosse isso,

a extração do ouro se tornaria praticamente impossível, ou melhor, não haveria o

desenvolvimento social da capitania.

[...] São Paulo fornecia milho, trigo, marmelada, frutas em geral, servindo ainda de

entreposto do gado – bois, cavalos, muares – que vinha dos campos e coxilhas do sul

da Colônia e da região platina. No Rio de Janeiro desembarcavam escravos africanos

e artigos europeus, sobretudo produtos de luxo: veludos, pelúcias, vidros, louças. De

Salvador vinham escravos provenientes da África e também das regiões açucareiras

do Nordeste [...] a Bahia enviava ainda às Minas o gado que criava nos currais do Rio

São Francisco e as mercadorias provenientes da Europa, tais como tecidos,

ferramentas, sal, ferro (SOUZA, 1997, p. 19/20).

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Ao se fazer uma análise da estrutura econômica da colônia, percebe-se que ela era

simultaneamente escravista e mercantil e em Minas isso não era diferente; lá, no entanto,

prevaleceu uma escravidão urbana, onde a grande maioria dos negros eram designados para o

penoso trabalho nas minas, que devia ser realizado nos leitos dos rios ou no interior de galerias

profundas.

As péssimas condições de trabalho provocavam doenças frequentes, o que fazia com

que a vida útil de um escravo fosse muito curta, favorecendo a importação de africanos no

século XVIII. Considerando-se as características da atividade, os mineradores davam

preferência aos escravos do sexo masculino, o que provocou forte desequilíbrio entre homens

e mulheres na região das minas.

Mas, não podemos deixar de citar que em alguns aspectos a sorte da população escrava

ainda era melhor nas minas do que nos engenhos de açúcar, pois nas zonas de mineração, por

exemplo, podia-se obter a liberdade com mais facilidade do que na rígida sociedade açucareira.

Nessa sociedade, que se desenvolveu nas Gerais do século XVIII, as mulheres, que

eram a minoria, principalmente as negras, tiveram um papel de grande importância no comércio

e também atuaram na sonegação de impostos através do comércio que realizavam em torno das

zonas de mineração.

Figueiredo (2012) em seu artigo “Mulheres nas Minas Gerais”, logo nos primeiros

parágrafos faz uma indagação ao questionar: sob esse cenário de ouro, diamantes e imaginação,

como viveram, amaram e trabalharam as mulheres?” (p.142).

Para ele, entre os ofícios que se multiplicaram pelas Minas Gerais, nos quais mulheres

tiveram pouco ou quase nenhum peso social estão os de: ferreiros, latoeiros, sapateiros,

pedreiros, carpinteiros, ourives, etc. Mas, o que não podemos deixar de reconhecer é que as

mulheres participam da vida social e econômica da colônia de modo a contribuir com a

colonização. Com a descoberta do ouro, é certo que houve grande crescimento e efervescência

na capitania de Minas Gerais e com isso o processo de urbanização mostrou-se também

fervoroso.

Uma variada gama de atividades comerciais desenvolveu-se nas Gerais, as vendas

aumentaram por todo território e estabelecimentos comerciais com as mais diversas atividades

começaram a surgir:

O destaque da presença feminina no comércio concentrava-se nas mulheres que eram

chamadas de “negras do tabuleiro”. Elas infernizaram autoridades de aquém e de

além-mar. Todos os rios de tinta despejados na legislação persecutória e punitiva não

foram capazes de diminuir seu ânimo em Minas e pelo Brasil afora (FIGUEIREDO,

2012, p.145).

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As negras de tabuleiro sem dúvida tiveram um papel de grande relevância nas Gerais

do século XVIII. Tamanho era sua influência que chegaram a ser consideradas como um perigo

na região das Minas, principalmente próximo ao leito dos rios, onde era feita a extração do

ouro.

Figura 29 - Negras de Tabuleiro, de Carlos Julião (Iconografia Biblioteca Nacional).

Segundo Figueiredo (2012), o próprio padre jesuíta Antonil, que chega no Brasil em

fins do século XVII, advertiu sobre os prejuízos que essas mulheres poderiam causar nas áreas

de mineração, pois com a venda de seus mais diversos produtos estavam sempre “aproximando

seus apetitosos tabuleiros dos locais de onde extraíam ouro e diamantes” (p.146).

Ele ainda prossegue e afirma que: “As mulheres congregavam em torno de si

segmentos variados da população pobre mineira, muitas vezes prestando solidariedade a

práticas de desvio de ouro, contrabando, prostituição e articulação com os quilombos” (p.146).

Ao mesmo tempo, essas mulheres negras, escravas, livres ou forras praticavam

atividades comerciais para o abastecimento da capitania, pois fica claro que a realização de seus

feitos, às escondidas dos senhores, possibilitou a muitas desenvolverem uma rede de relações

sociais que fugia do próprio controle das autoridades coloniais.

Nessa sociedade, a consolidação do poder real enfrentou sérias resistências,

principalmente nas primeiras décadas do século XVIII, mas a Coroa também admitia que esse

mercado clandestino fosse uma fonte de abastecimento estável para as populações mineiras,

além dos recursos que eram obtidos através da cobrança de tributos. Outra atitude por parte da

Coroa foi o emprego de medidas que procuravam fixar um horário definido para o

funcionamento das vendas, além da proibição de escravos permanecerem por muito tempo

dentro desses locais.

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Grande preocupação da Coroa, como já dito, era que as vendas se instalassem próximo

às áreas de mineração, pois era um temor constante por parte das autoridades que pudesse haver

rebeliões, o que realmente não deixou de acontecer, porém, não é de nosso interesse analisá-las

nesse momento, mas sim entender como a religiosidade se adaptou no espaço da capitania de

Minas Gerais se associando de maneira profunda ao processo de identificação e à cultura

daquela sociedade, dando origem à arte barroca mineira.

3.5 A RELIGIOSIDADE NA CAPITANIA DO OURO

Como observado no capítulo 2, a religião no Brasil colonial estava unida ao Estado

português através do padroado, no qual este mantinha relações diretas com a Igreja Católica e

na colônia para manter esse acordo. Logo que tem início a colonização, a Igreja Católica faz

questão de mandar ordens religiosas para o território recém descoberto, no qual, como vimos,

se destacaria a Ordem dos Jesuítas.

Analisando o caso de Minas Gerais, principalmente no período do auge do ciclo do

ouro, veremos que lá a religiosidade se deu de maneira diferente do restante da colônia. Seu

caráter popular traz uma religiosidade mais próxima da realidade do fiel, sendo que estamos

analisando aqui o catolicismo que se aproxima das diferentes classes sociais que formavam a

capitania, fazendo ligação direta com o processo de identificação dessa região e fazendo

florescer a cultura do barroco das Gerais, que ganha uma singularidade única.

É importante relembrarmos que em Minas Gerais a forte presença da escravidão gerou

uma sociedade formada principalmente por mulatos, isso ocorria também devido à escassez de

mulheres brancas naquela região, pois as que para a colônia se dirigiam tinham preferência pelo

litoral. Alguns desses mulatos que eram livres mostraram forte aptidão para as artes, como é o

caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o qual analisaremos posteriormente de forma

mais detalhada devido sua grande importância no barroco mineiro.

Ao falar da formação social e também artística das Gerais, afirma Mello (1983) que:

Enquanto que no litoral havia uma definida separação entre brancos e negros, a falta

de mulheres brancas motivou uma ampla miscigenação em Minas, advindo daí uma

alta porcentagem de mulatos, que se mostraram especialmente sensíveis para as artes

em geral e que teriam uma grande proeminência no desenvolvimento artístico da

região durante o século XVIII (MELLO, 1983, p.107).

Nessa sociedade que se forma nas Gerais, a vida social, tradições e organizações dos

grupos foi definida pelas Ordens Terceiras, Irmandades e Confrarias, que eram associações

religiosas leigas, visto que havia, por parte da Coroa, uma proibição da formação de grandes

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ordens religiosas em Minas, pois, o Estado português nutria certo temor de que a Igreja, ao

saber da imensa riqueza da capitania, reivindicasse parte dela, devido à união entre Estado e

Igreja, proporcionada pelo padroado.

A religiosidade, que se apresenta então a partir do espaço das irmandades nas Minas,

esteve fortemente marcada por elementos barrocos que se caracterizaram pelas exterioridades

do culto, pelo gosto por celebrações pomposas e carregadas de fausto e por um estímulo à

sociabilidade, que também se caracterizou pelas mais diversas comemorações religiosas.

Como observa Mello (1983), dentro do contexto social formado na capitania houve

uma separação entre as classes sociais dentro da esfera da religiosidade pois os mais ricos e

poderosos se reuniram em torno das duas principais Ordens Terceiras que eram a do Carmo e

de São Francisco de Assis, formada pela grande maioria da população branca e já os negros, os

mais pobres e humildes se associaram em torno das irmandades e confrarias. A escolha do santo

padroeiro também acabava seguindo o mesmo critério, pois “os mais ricos preferiam o

Santíssimo Sacramento ou as Ordens Terceiras Carmelita e Franciscana, enquanto que pardos

e negros se identificavam com Nossa Senhora das Mercês, Santa Efigênia e São Benedito”

(p.107).

Como já mencionado, houve um certo controle por parte do governo português em

relação à presença da Igreja Católica na capitania de Minas Gerais, porém, se tratando da

criação de irmandades houve até mesmo um incentivo por parte da Coroa, pois estimulavam a

criação das mesmas a fim de, por meio delas, transferir ao próprio povo os encargos que lhe

cabiam na esfera religiosa através do Padroado Régio.

Segundo Tirapeli (2005) “A Coroa apenas pagava a côngrua aos párocos – ou vigários

-, isto é, aos padres nomeados para desempenhar suas funções nas igrejas matrizes” (p.204).

A côngrua era como uma pensão paga aos párocos para o seu sustento e estes tinham

uma freguesia, ou seja, uma área administrativa da sua matriz, tendo jurisdição sob as capelas

que faziam parte da mesma. As irmandades sempre procuravam contratar um capelão para

desempenhar seus ofícios religiosos e sendo este um funcionário da irmandade que podia ser

substituído a qualquer momento, voltava-se sempre a favor dela quando surgiam questões que

lhe causasse indisposições com seus similares ou mesmo com o pároco.

De acordo com Tirapeli (2005), a hierarquia que havia nas irmandades, seu

funcionamento e sua função social eram registradas nos Livros de Compromisso que cada uma

delas possuía. Este livro trazia as inúmeras obrigações das irmandades e também do capelão

que, por exemplo, devia supervisionar as funções do sacristão, advertindo-o quando necessário.

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Vivendo uma difícil situação nas Minas colonial, os negros tinham na Igreja, que era

a organização social prioritária na época, o seu canal de expressão. É por isso que como já dito,

muitas vezes à religiosidade católica mesclaram-se cultos das tradições africanas,

principalmente o candomblé e a umbanda. Isso ocorreu devido ao fato de que, mesmo buscando

preservar suas tradições culturais e religiosas, o sincretismo se fez presente, se envolvendo com

as tradições cristãs, tão forte se fazia a influência da Igreja católica.

Para Ávila (1988), a separação do conjunto da população em diferentes irmandades de

acordo com o critério racial, estabelecia a diferenciação social que se fazia presente na

sociedade das Gerais, mas o que havia era uma organização social feita de forma quase

espontânea e natural. Essa sociedade que dá origem ao barroco mineiro e que se adapta aos

condicionamentos peculiares que em Minas são estabelecidos desde o início de seu processo

civilizatório.

Segmenta-se o conjunto da população em diferentes irmandades com o critério racial

estabelecendo a diferenciação social. Assim temos, por exemplo, os irmãos da Ordem

Terceira de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo, formadas por

elementos brancos; as irmandades das Mercês e de São José, de mulatos; e as

irmandades de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Ifigênia, de negros

(ÁVILA; GOMES, 1988, p.70).

Era nessas irmandades que o negro podia exercer de maneira legal certas atividades

que pairam acima de sua condição, ali era onde ele podia esquecer sua situação de escravo e

buscar viver como um ser humano expressando sua cultura e, muitas vezes, sua revolta com o

sistema dominante.

A religiosidade mineira era de natureza devocional e tinha grande semelhança com o

catolicismo português, como as devoções ao Espírito Santo, a Cristo e a Santíssima Trindade

até a veneração a Nossa Senhora e outros inúmeros Santos. Na capitania de Minas Gerais é

onde as práticas religiosas exterioristas, como as procissões, festas e rituais acabaram

encontrando um campo fértil à sua disseminação, aliado a todo o fausto e glória do barroco.

São esses aspectos da fé Católica que acabam por atrair mais os negros, sendo que

muitas práticas devocionais dos portugueses acabavam se assemelhando aos usos religiosos

africanos. As irmandades, dedicadas às devoções prediletas da população local, vão responder

às especificidades presentes no território mineiro, trazendo uma religiosidade de acentos

bastante próprios. É por todos esses e demais fatores que o negro das Gerais acaba encontrando

um acalanto na religiosidade católica.

As irmandades se associaram a um certo consolo aos negros através da religiosidade;

não nos esqueçamos, porém, da crueldade às quais eram submetidos, sendo eles escravos e até

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mesmo aqueles que por um motivo ou outro já haviam ganhado alforria. Muitas vezes, a

teologia da Igreja apresentava óbvia implicações conservadoras, pois o pecado do senhor podia

ser a crueldade, mas o do escravo era a revolta.

No período do auge da sociedade mineira, principalmente entre 1730 e 1780,

ocorreram os principais acontecimentos que trazem a dinâmica dessa sociedade. Sendo os

negros a maioria da população das Gerais, os brancos se esforçaram para atrair esses ao seu

mundo, pois, para uma sociedade escravista, como no caso das Minas do século XVIII, era

fundamental uma forte manutenção do controle político e social.

De igual modo, não podemos deixar de frisar que, por outro lado, como nos demonstra

Boschi (1988), para os negros, as portas da modalidade social nunca estiveram totalmente

fechadas, pois, basta lembrar que na referida capitania se praticavam várias formas de alforria,

como aquelas concedidas através de testamento; denúncia dos próprios escravos de fraudes

cometidas pelos senhores; pela retribuição pelo achamento de pepitas de ouro mais valioso,

pela alforria passada em cartório como comprovante de compra de liberdade, às vezes com o

sacrifício do próprio escravo, às vezes com a ajuda de algumas irmandades.

De qualquer maneira, era natural que em Minas houvesse um expressivo contingente

de homens livres, mesmo que se considerem como tal apenas os indivíduos de cor

branca, pois a atividade econômica inicial da Capitania permitia que pessoas de parco

ou nenhum recurso se mobilizassem para a sua exploração. Mesmo o escravo, por

forças de um significativo regime de recompensas, teve em Minas maior oportunidade

sócio-econômica, que lhe permitiu a acumulação necessária para a compra de sua

liberdade, criando-se assim para os negros forros uma efetiva possibilidade de

mobilidade social (BOSCHI, 1988, p. 12, 13).

Faz-se importante ainda comentar que na sociedade das Gerais do século XVIII, os

mestiços e pardos, principalmente, ganharam reconhecimento através do trabalho manual, fato

que gerou a valorização social do trabalho produtivo de oficiais mecânicos com destaque para

artesãos e artífices que, com o prestígio social que lhes foi dado pela sociedade da época,

mostrava o alto grau de criatividade desses artistas, os quais fizeram com que o barroco mineiro

tivesse uma espetacular singularidade, como iremos mostrar.

A evolução das irmandades ao longo dos setecentos muito pode dizer sobre a evolução

econômica e social da capitania. Assim, o quadro da arquitetura religiosa nas Gerais foi

completamente diverso das demais regiões do país; ali não prevaleceram os grandes conjuntos

de conventos e colégios das grandes ordens religiosas, mas, a rivalidade que existiu muitas

vezes entre as Ordens Terceiras e Irmandades trouxe à luz o barroco mineiro, impregnado de

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religiosidade, o que levou à construção de inúmeras igrejas e capelas que buscavam mostrar-se

as mais ricas e decoradas da época.

Outro fato inédito dessa situação é que todas as obras religiosas mineiras foram

construídas pelo patrocínio do próprio povo, sem outros auxílios ou contribuições de qualquer

origem, o que indica um outro aspecto extremamente peculiar.

3.6 AS IRMANDADES NA CAPITANIA MINEIRA

Quando passamos a analisar as condições de instalação das Igrejas em Minas Gerais,

concluímos que estas foram feitas a partir de iniciativas dos próprios fiéis. Assim, temos nas

irmandades locais, nas ordens terceiras e nas confrarias religiosas um espaço fortemente

marcado pela participação dos leigos, ou seja, para que uma confraria funcionasse, os devotos

dessas associações precisavam encontrar uma igreja que a acolhesse, ou construir a sua e ter

aprovado seu estatuto ou compromisso pelas autoridades eclesiásticas. E na busca da proteção

do divino, da manutenção de suas crenças e tradições partiam para a construção de igrejas e

imagens de santos que dão ênfase às tradições do barroco mineiro.

Também é importante nos atermos ao fato de que os diversos grupos que eram

representados nas irmandades, eram sempre marcados pela condição social dos irmãos que

delas faziam parte. Fato é que nas Gerais, as tradições, festas e rituais, encontraram um campo

fértil para sua disseminação, o que foi aliado à pompa barroca que a riqueza do ouro

proporcionou.

Segundo Ávila e Gomes (1988) as tradições religiosas que fizeram parte de Minas

Gerais no século XVIII têm suas semelhanças com a religiosidade católica portuguesa.

A religiosidade mineira, de natureza devocional, se assemelhava muito à portuguesa,

onde a relação com os santos e as formas exterioristas da crença católica têm

características medievais e se expressam por um feixe de rituais e festejos que se

sobrepõe (ÁVILA, 1988, p.70).

Sendo assim, observando o que disse a autora, podemos dizer que muitas de nossas

principais devoções foram herdadas de Portugal, “desde o culto ao Divino Espírito Santo, à

Santíssima Trindade e ao Nosso Senhor, até a veneração de Nossa Senhora em seus diversos

títulos, passando por São José, Sant’Ana, Santo Antônio e as almas do purgatório” (p.70).

Dessa forma, Reis (1991), ao fazer uma análise das irmandades, diz que cada templo

ocupava diversas irmandades e que estes templos representavam um marco fundamental de

identidade. Muitas vezes iniciando sua carreira com poucos recursos, de maneira tímida em

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altares laterais; com o tempo muitas irmandades conseguiam recursos para a construção de seus

próprios templos.

Figura 30 - Imagem da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto-MG, 08/01/19

Figura 31 - Imagem da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19

No caso de Minas Gerais, a irmandade mais antiga de que se tem notícia documental

é a irmandade do Rosário, que se disseminou rapidamente por todo o território mineiro, não se

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encontrando uma só localidade do período que não tivesse ao menos uma ermida em

homenagem à Senhora do Rosário.

Essa irmandade tinha entre seus fiéis homens negros, sendo a maioria escravos, que

viam ali uma forma de obter esperança e buscar consolo por sua condição de existência. De

acordo com Ávila (1988), “elegeram como seus santos de devoção, além de N. S. do Rosário,

os negros S. Elesbão, S. Benedito, S. Efigênia, S. Antônio de Cartigerona e S. Raimundo

Nonato” (p.72).

Nesses santos, os devotos da referida irmandade buscavam a justificativa para seus

sofrimentos na terra, pois, muitos dos referidos santos têm histórias marcadas pelo sofrimento,

martírio, açoitamentos e privações. Apesar de termos citado apenas santos negros, também

podem aparecer na lista de devoção dos negros alguns santos brancos, como S. Sebastião

(amarrado a um tronco e flechado), e S. Bárbara (que viveu presa em uma torre), ambos nas

tradições negras caracterizam- se como Oxóssi e Iansã.

Já em relação à escolha de N. S. do Rosário como protetora dos negros, ainda muitas

dúvidas persistem, existindo até mesmo muita polêmica em torno das origens da devoção.

Ávila, ao tentar desembaraçar um pouco essas dúvidas, relata que:

Segundo alguns autores, esta se liga, naturalmente, ao fundador da Ordem dominicana

– São domingos. Consta que, no início do século VII, surgiu na França uma heresia

na região de Alibi, cujos adeptos, através de armas queimam igrejas, profanam

imagens de santos e perseguem os católicos. São Domingos Gusmão foi encarregado

pelo Papa Inocêncio III para combater os heréticos. E, em uma aparição ao santo, a

Virgem Maria entrega-lhe um rosário e ensina-lhe um método de oração, garantindo

resultados maravilhosos. Acatando o conselho da Virgem, São Domingos saiu

vitorioso nessa missão e fundou, em 1216, a Ordem dos irmãos pregadores ou

Dominicanos, com o objetivo de propagar a devoção ao Rosário (ÁVILA, 1988, p.72).

Gomes e Pereira (2000) também se põem a analisar sobre a irmandade do Rosário,

segundo a qual dizem que o mito fundador da festa do Rosário relata que Nossa Senhora

apareceu nas águas do mar. “Os caboclos, que são os donos da terra, cantaram e rezaram, mas

ela ficou onde estava. Os mesmo fizeram os Marujos (brancos), e ela não os atendeu. Mas

quando os negros a louvaram, ela veio até eles” (p.15).

Conhecida como a fábula das três raças, reformulada pelos religiosos católicos para

cooptar os negros, tem um desfecho inesperado, pois, Nossa Senhora torna-se rainha do mar,

que seria outra face de Iemanjá, que faz parte das tradições africanas. O cotejo das cantigas põe

em evidência sua aproximação com a Umbanda, pois os mesmos versos são usados para louvar

santos e pretos velhos. Os autores ainda lembram que entidades, como é o caso do Caboclo

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Cobra Coral, circulam com a mesma desenvoltura, em meio aos pontos de macumba e nas

cantigas da festa do Rosário.

Não devemos esquecer que a data máxima do calendário das irmandades era

exatamente a festa do santo de devoção, quando irmãos e irmãs saíam das confrarias

ornamentados com suas vestes de gala, capas, tochas, bandeiras, andores, cruzes e insígnias em

pomposas procissões, seguidas de danças e banquetes.

Posteriormente voltaremos a uma análise mais detalhada das tradições do Rosário,

através da análise dos Arturos, que trazem um claro resgate das tradições negras africanas.

Através do Congado, a santa católica e branca do Rosário volta a assumir feições africanas.

As irmandades eram associações corporativas, no interior das quais eram tecidas

solidariedades fundadas nas hierarquias sociais. Nesse contexto, nos afirma Reis (1991) que

“havia irmandades poderosíssimas, cujos membros pertenciam à nata da elite branca colonial”

(p.51).

É fato que nessas irmandades o preconceito era vigente, pois muitas exigiam que seus

membros possuíssem bens, exigindo que os mesmos fossem alfabetizados e tivessem posses,

assim como ricos fazendeiros, sendo que algumas acabavam por proibir a entrada de

trabalhadores manuais. Geralmente as confrarias agregavam indivíduos da mesma profissão,

por exemplo, os oficiais mecânicos organizavam-se em torno das confrarias dos mesteres,

dedicada aos santos patronos de cada ofício; ferreiros, serralheiros e ocupações afins, nesse

caso na Bahia, se juntavam em torno da confraria de São Jorge; sapateiros e celeiros na de São

Crispim; carpinteiros e pedreiros na de São José.

As irmandades tinham função implícita de representar socialmente, se não

politicamente, os diversos grupos sociais, sendo que as mais prestigiadas exigiam de seus

membros, além de sucesso material, que pertencessem à raça dominante.

Apesar de terem em Minas Gerais, no século XVIII, o seu campo fértil de

desenvolvimento e instalação, não foi somente nas Gerais que houve a presença das

irmandades. Como já citamos acima, na Bahia, também encontramos a presenças destas, no que

diz Reis:

O primeiro critério de aceitação na Santa Casa de Misericórdia era ser limpo de sangue,

sem alguma raça de Mouro, ou Judeu, não somente na sua pessoa, mas também sua

mulher. A Ordem Terceira de São Domingos, fundada por bem-sucedidos imigrantes

do Porto, de Viana do Minho e de Lisboa, discriminava índios, negros, judeus e

brancos pobres. Seu compromisso de 1771 vetava o ingresso de quem não fosse

“limpo de sangue, sem alguma raça de Judeu, Mouro, Mulato ou qualquer infecta

nação”, bem como de quem “sirva ou tenha servido na República ofício vil” (REIS,

1991, p.53).

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Através da citação de Reis, podemos perceber claramente a presença veemente do

preconceito que acabava por envolver irmandades e ordens religiosas, mostrando o quanto a

separação por classe social e raça fez parte destas tradições e por isso a separação de cada

classe/raça que deveria congregar das irmandades onde todos ocupassem uma posição de

igualdade dentro da mesma.

Um fato observado por Reis e que chama a atenção é que “os brancos barravam negros

e mulatos em suas irmandades, em especial em suas ordens terceiras, mas eram aceitos pelas

irmandades de cor” (p.54).

As mais numerosas irmandades eram as dos “homens de cor” e tradicionalmente se

dividiam entre as de crioulos, que eram os pretos nascidos no Brasil e de mulatos e africanos.

Todas as irmandades tinha o cargo máximo que era exercido pelo juiz ou presidente, e deveriam

ser cargos ocupados por alguém de raça, sendo assim, as irmandades de brancos eram presididas

por brancos, de mulatos por mulatos e as de pretos por pretos.

Nessas irmandades de cor as mulheres não representavam nem 10% dos associados,

mas podiam ocupar cargos; podiam ser ao lado dos reis, rainhas dos festivais anuais, juízas,

procuradoras encarregadas de caridade aos irmãos necessitados, coletoras de esmolas e

mordomas responsáveis pela organização de festas, sendo que as irmandades negras, via de

regra, tinham uma mesa composta de mulheres e outras de homens.

E voltando a falar em festas, estas faziam parte, e eram peça essencial para manter as

tradições nas irmandades e seu representante máximo era o imperador do Divino, conhecido

também como festeiro; esse cargo geralmente era ocupado por diferentes pessoas a cada ano,

da mesma forma que outros cargos nas irmandades.

Geralmente as festas das irmandades eram realizadas com muita fartura. Ocorriam

sempre no dia do Espírito Santo, acompanhada de vinho e comida abundantes. Segundo Reis

(1991), nas ruas eram colocadas mesas para oferecer um grande jantar aos pobres da cidade, no

qual era oferecido muito vinho a estes. Pois como diziam versos do Divino, registrados por

Melo Morais e citados por Reis:

O divino Espírito Santo

É um grande folião,

Amigo de muita carne,

Muito vinho e muito pão.

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Vale destacar que os festejos realizados pelas irmandades, principalmente a de pretos,

não eram bem vistos pelas autoridades coloniais, que consideravam esse tipo de festa uma

quebra da ordem social, resultando em uma manifestação lúdica multiétnica e pluriclassista

onde os prazeres carnais se sobrepunham aos deveres devocionais.

Falando da religiosidade em Minas Gerais, Cunha (2002) diz, citando Boschi que:

A religiosidade que se conforma a partir dos espaços das irmandades em Minas esteve

fortemente marcada por elementos barrocos, caracterizados expressivamente pelas

exterioridades do culto, pelo gosto por celebrações pomposas, e por um estímulo a

sociabilidade que devia afetar mesmo a rotina de trabalho pelos excessos nos feriados

e dias santificados. A participação efetiva dos leigos na promoção do culto e o

específico da vivência religiosa que a partir daí tem lugar, insere-se um movimento de

longa duração, no qual a partir da formação das primeiras irmandades laicas a partir

do século XI, o homem comum assentaria gradativamente seu papel na promoção da

vida religiosa, resultando em não poucos conflitos com a Igreja. (apud CUNHA,

2002).

A tradição das irmandades laicas teve origem na Europa cristã, momento em que

aconteciam os movimentos cruzadistas e, em Minas, tornou-se traço marcante dessa

religiosidade o pragmatismo que esta apresentou, se tornando mais próxima do fiel que

encontrou no culto aos santos os intermediários à glória de Deus, passando estes homens das

Gerais a assumir papel preponderante na religiosidade que se formou.

Brancos, negros, pardos e mulatos, todos buscavam seguir os caminhos da fé.

Impedidos muitas vezes de frequentarem as irmandades brancas, buscaram os negros então a

formar suas próprias irmandades como estamos vendo, onde as tradições da religiosidade

africana, muitas vezes acabaram por se misturar às tradições do catolicismo.

Minas Gerais torna-se então campo privilegiado para todos esses fatores no século

XVIII, desenvolvendo-se em meio a todos esses acontecimentos, essas tramas e narrativas que

passaram a fazer parte do barroco mineiro. Para Cunha (2002), os diversos grupos que se

formaram estavam representados pelas irmandades; os dirigentes originais das povoações e

reinóis, normalmente associavam-se às confrarias do Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora

da Conceição, São Miguel e Almas, Bom Jesus dos Passos e Almas Santas; os comerciantes e

homens ricos, donos de lavras, militares, pertenciam normalmente às ordens terceiras do Carmo

e São Francisco; os escravos negros e pardos às irmandades do Rosário, São Benedito, Santa

Efigênia e Mercês.

Ainda segundo Reis (1991), as irmandades de africanos se subdividiam de acordo com

as etnias de origem, havendo, por exemplo, as de angolanos, jejes e nagôs e, com o passar do

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tempo, serviram até como espaços de alianças interétnicas, ou pelo menos como canal de

administração das diferenças étnicas na comunidade negra.

As irmandades assumiram, a princípio, salvo as críticas, as feições de manifestação e

defesa dos interesses das populações locais, de qualquer arraial e freguesia que passasse a

existir, espalhando-se então, por todas as regiões da capitania, e não somente nas áreas de maior

desenvolvimento.

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Figura 32 - Imagens internas do altar e lateral da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Ouro

Preto-MG 06/01/19

3.7 OS ARTUROS E A IRMANDADE DO ROSÁRIO

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Como dito anteriormente, buscaremos fazer uma análise rápida, mas de grande

importância para a compreensão da cultura negra e religiosa nas Gerais, através da análise das

tradições da comunidade dos Arturos em um resgate feito por Núbia Pereira de Magalhães

Gomes e Edimilson de Almeida Pereira no livro Negras Raízes Mineiras: Os Arturos.

Não podemos deixar de ressaltar que a permanência do negro na capitania de Minas

Gerais não pode ser tomada apenas como um reflexo da exploração dos minerais preciosos, vai

muito além disso, pois, através da escravidão, o negro foi a base da organização social e

econômica. Quando passamos à análise religiosa, percebemos uma assimilação dos cultos de

origem africana com o catolicismo.

Como vimos, era muito forte o apego dos negros às tradições do Rosário e manter

essas tradições é o que busca fazer a comunidade dos Arturos, que desde os tempos do período

colonial mineiro, tenta passar suas tradições de geração a geração. Para Gomes e Pereira (2000)

“Os Arturos nasceram como uma árvore, estando todos os descendentes ligados ‘ao tronco véio’

de Camilo Silvério” (p.162).

Segundo informam os autores, através de informações esparsas e incertas, tem-se a

notícia de que Silvério teria chegado a Minas Gerais como escravo, depois de meados do século

XIX, casando-se com Felisbina Rita Cândida, não havendo informação se esta era forra ou livre

à época. Essa senhora participa da memória afetiva cultivada pelos Arturos, incluindo-se entre

os antepassados que umedeceram a raiz que deu origem à comunidade.

Remontam-se então as origens dos Arturos à Camilo Silvério, a partir de seu

casamento com Felisbina Rita Cândida, que também vem a canonizar a memória cultivada pelas

tradições dos Arturos.

Mas, como relatam Gomes e Pereira (2000), “é a partir do filho Arthur Camilo Silvério

que se têm notícia mais acertada sobre a formação da comunidade dos Arturos” (p.162).

Tentando preservar as tradições e essência de seu povo, Arthur se transforma em

vivência e revivência para seus descendentes, através do canto e da dança por ele transmitido.

Tamanha foi sua importância como personalidade fundadora da comunidade dos Arturos que

seus filhos fazem questão de relatar que a transmissão dos fundamentos religiosos aprendidos

por ele estava na gênese do grupo social.

Arthur Camilo Silvério, falecido 19 de dezembro de 1956 com a idade de 76 anos,

alcançou os últimos lances da escravidão no Brasil. Embora não fosse cativo – pois é

de 28 de setembro de 1871 a Lei do Ventre Livre, que tornava libertos os filhos de

escravos nascidos no Brasil – pode-se reconstituir parcialmente a sua experiência

como filho de pai escravo (GOMES; PEREIRA, 2000, p.163).

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Ao casar-se com Carmelinda Maria da Silva (20/05/1898-04/11/1983) deu início à

segunda geração de Camilo Silvério e Felisbina Rita Cândida e à primeira geração daqueles que

se tornaram conhecidos pelo seu nome: os Arturos

Os filhos do casal, que procuram manter a trajetória iniciada pelo avô, contam com

orgulho a vida de luta e sofrimento do pai para manter vivas as tradições do Rosário, o que nos

faz perceber o quão expressiva é para eles tal tarefa.

De grande importância dentro do grupo, e fundamental à preservação dos valores é a

tradição da oralidade. É por meio dela que os mais jovens têm acesso ao patrimônio cultural

deixado como legado pelos antepassados.

[...] As crianças acompanham as guardas de Congo e Moçambique, ouvindo e

aprendendo a linguagem dos cantos. Elas dançam no ritmo dos mais velhos e sabem

que estão aprendendo a lição dos ancestrais: uma lição dançada e partilhada em

comum com aqueles que são a sua família (GOMES; PEREIRA, 2000, p.168).

A oralidade tem então papel central na transmissão de saberes e conhecimentos das

tradições dos Arturos. Chamam-se capitães da guarda os detentores de conhecimento que serão

passados em momento oportuno àqueles que se tornarem aptos para recebê-los. Para se chegar

a esse posto tão importante, que é se tornar capitão, um Arturo precisa ter aprendido os cantos

e os preceitos dos cultos.

A lembrança materna se faz presente entre os Arturos devido à importância que os

filhos atribuem àquela que se empenhou na estruturação da unidade familiar ao lado do pai

Arthur Camilo. Essa imagem se faz tão presente que nos cantos da guarda de Moçambique

ressurge a figura da mãe Carmelinda desdobrada na mãe-divina e na mãe terra de uma distante

África.

Através da memória os Arturos reconstroem os primeiros tempos da comunidade, na

qual a figura do pai Arthur Camilo Silvério, surge como a imagem daquele que luta e gera

resistência à opressão da escravidão em Minas. O sofrimento do pai toca na alma dos filhos que

veem a luta do mesmo como um sinal de tenacidade e resistência diante do fardo lançado a ele

pelos desafios do mundo.

Arthur Camilo trabalhou em serviços de fazenda sob a guarda do padrinho fazendeiro.

Em anos posteriores à Abolição foi comum que os descendentes de escravos

permanecessem agregados às terras dos antigos senhores de seus pais. A relação de

trabalho e de convivência não sofreu grandes melhorias, pois o agregado devia

obediência ao patrão que se impunha pela força e pela violência (GOMES; PEREIRA,

2000, p.171).

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É dentro de um contexto de muito sofrimento que Arthur Camilo Silvério nega a

opressão do padrinho e proprietário remetendo-se à fuga e começando a constituir sua família

em 1917, quando se casa com Carmelinda em Contagem.

A partir desse momento a manutenção do núcleo familiar torna-se seu principal

objetivo de vida, onde o respeito e obediência seriam fortes marcas do vínculo que os filhos

estabeleceriam com o patriarca, jamais questionando sua autoridade.

Dentro desse contexto, o dever sagrado de festejar o Rosário devia ser cumprido, ainda

que as forças dos jovens puxassem para as alegrias da vida cotidiana.

A importância das tradições do Rosário são por si só algo a ser respeitado de maneira

sagrada. Diz Ávila (1988) que “a presença da irmandade e da Capela do Rosário foi

característica da paisagem social e urbana dos primitivos núcleos mineradores” (p72).

Manter essas tradições mineiras que remontam a história da capitania no período

colonial é o que buscam fazer os Arturos através desse legado deixado por Arthur Camilo aos

filhos.

Dentro desse contexto são fortes em Minas Gerais, principalmente nas cidades do

interior, as tradições do Congado, onde se reproduz a coroação do Rei do Congado e as

homenagens prestadas a ele, tudo com muita dança e música. As bandeiras que são levadas em

mastros mostram a tradição que é mantida a cada ano além da realização da procissão. O rei,

mantendo a hierarquia real, tem lugar de destaque com ricas indumentárias, seguido por sua

rainha. Somente depois é que irá aparecer o resto da corte e a celebração prossegue ao som de

caxambus, pandeiros, marimbas e ganzás, instrumentos típicos da época e que ainda são

utilizados nas tradições religiosas.

O Congado então faz parte das tradições das Gerais no século XVIII, quando a

religiosidade tinha caráter expressivo na cultura daquela sociedade; era uma tradição de louvor

aos santos, à Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia.

Voltando para análise dos Arturos dentro da tradição do Congado, percebemos a

perseverança de Arthur Camilo em manter e passar às gerações essa cultura, pois, mesmo

quando adoeceu ele ainda fazia questão de manter as festividades em honra à Senhora do

Rosário, como podemos observar no relato de duas de suas filhas.

Na casa paterna estão registrados os últimos dias de Arthur Camilo Silvério entre os

seus filhos:

“Ele adoeceu no dia treze de maio, que ele adoeceu, foi uma gripe forte. E essa gripe

nada conseguiu a melhora dele. Pelejamo, pelejamo demais com ele. Mas num teve

jeito. Eu acho que era o destino dele mesmo.”

Izaíra Maria da Silva (Tita)

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“Era maio. Frio. E ele saiu no Congado. Ele foi até depois que ele tava ruim, que nós

num queria que ele tava assim sem corage de fazê o Congado. Ele pediu pra fazê. Ele

tava assim magrinho e sem força. E nós ia fazê a festa. Iá todo mundo em Contagem.

Nós fomo fazê a festa, ele magrinho, chegava na janela, recebia as guarda toda. Deu

conta de recebê as guarda toda”.

Conceição Natalícia da Silva (Tetane) (GOMES; PEREIRA, p.177).

Toda essa história de luta de Arthur Camilo Silvério acaba por inserir-se no contexto

dos descendentes de uma sociedade escravista, que teve de lutar para encontrar esperança em

novos caminhos e superar o domínio e o mando exercido pelo patronato rural.

Inseridos na história do município de Contagem, a comunidade dos Arturos busca

preservar tradições dentro de uma realidade social que tem por moldura a realidade de um

passado étnico, histórico e social que lhe permite projetar uma imagem reveladora de si mesma.

Buscando a preservação de seus valores étnicos, a relação dos Arturos com Contagem

consiste em buscar certa resistência perante o fato da cidade ser próxima a Belo Horizonte e ter

tido uma expansão do parque industrial, o que reforça as características da cidade como polo

aglutinador.

Assim, Gomes e Pereira (2000) falam de uma ambiguidade ao fazer uma análise de

um modelo microeconômico, no qual se inserem os Arturos; para um melhor esclarecimento,

citam uma passagem de Queiroz (1984) ao dizer que este vê nos Arturos um “grupo familiar

que vive em Contagem, trabalhando em agricultura e pecuária para a sobrevivência e liderando

as festas de Congado na região” (p.185).

Mesmo com as mudanças ocorridas com a chegada da industrialização, a solidariedade

grupal e o espírito de vizinhança tentam se manter entre os Arturos. Apesar da resistência, a

pecuária e a agricultura, que eram a princípio a base da economia, passam a ser legados em

segundo plano, devido à urbanização que acaba por fazer os membros da comunidade serem

atraídos às fábricas e empresas de prestação de serviço.

O emprego em atividades produtivas variou acentuadamente de 1965 para 1987, na

medida em que a indústria ocupou o lugar da agricultura como principal geradora de

recursos para o município. Inteirando-se dessas mudanças, os Arturos adaptaram-se a

elas como forma de atualizar a sua participação e influência no meio social (GOMES;

PEREIRA, 2000, p.187).

É importante ressaltarmos que a saída para o emprego externo não significou o

rompimento dos laços com a grande família dos Arturos. Apesar de alguns morarem em bairros

de Contagem, que fica fora da comunidade, isso não significa que estão distantes das tradições

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do Congado, pois sempre que ocorre a época dos festejos retornam ao espaço onde se fixaram

as raízes negras da família.

Dentro da comunidade mulheres e crianças têm grande importância, pois, desde

tempos remotos as mulheres desempenham importante papel na sustentação do equilíbrio

familiar, sendo que a época em que predominava o serviço agrícola, era ela que auxiliava o

homem nas diversas fases da cultura. Já as crianças são a esperança da resistência, que têm nos

pais a lembrança dos antepassados e o espelho onde mirar-se.

Como já vimos, foram tradicionais no século XVIII as Ordens Terceiras e Irmandades

em Minas Gerais, sendo que as Irmandades de leigos influenciaram em muitos aspectos a

religiosidade dos negros nas Gerais.

No caso dos Arturos, estes mantiveram suas ligações com a Irmandade de Nossa

Senhora do Rosário, vinculada ao contexto da escravidão negra.

Em tempos de República, a ligação dos Arturos com a Irmandade se dá por força da

tradição, sendo um prolongamento da união dos negros com a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosário. Mas também temos de entender que não são somente os Arturos os associados da

Irmandade do Rosário.

Torna-se necessário entender a diferença existente entre ser um membro da

Comunidade dos Arturos e um associado da Irmandade. Arturos são os descendentes

de Arthur Camilo Silvério, o grupo familiar que se amplia com os casamentos e a

formação de novos núcleos oriundos daquele antepassado. São irmãos do Rosário as

pessoas filiadas à Irmandade (GOMES; PEREIRA, 2000, p.205).

O que deixamos claro é que as irmandades do Rosário eram tradicionalmente voltadas

aos irmãos negros que viam nela um espaço de súplica tentando se libertar das aflições e dos

flagelos vividos em sociedade.

3.8 VIVÊNCIA DO SAGRADO

A importância da festa do Congado em homenagem à virgem do Rosário refere-se ao

retorno desta às origens, agregando em si a força dos antepassados, resgatando a memória de

um passado e reintegrando-o temporariamente no cotidiano.

Para Gomes e Pereira (2000) a festa dos Arturos é o traço básico de sua característica

enquanto grupo e o laço que une os membros da comunidade é a fé na senhora do Rosário: cada

um deles é um elo na corrente de Maria.

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Dentro da festa, o canto e a dança têm total significância, envolvendo-se com o sagrado

em um respeito que se dá entre todos aqueles que se envolvem nas tradições. Confirmam os

autores que dançar cantando é falar a Grande Linguagem, o signo do corpo e do som, quando

os movimentos, a palavra, o toque dos tambores, o bater das gungas – tudo codifica a angústia

do homem que indaga ao Criador sobre seu destino.

No contexto das festas, existem aquelas que são fixas com datas marcadas e também

as festas da comunidade, geralmente familiares, como a ocorrência de festas nos batuques. Há

também as festas de cortejo que simbolizam a volta ao Grande Espaço, para recriação do

sagrado.

É por tudo isso que as igrejas construídas pelas próprias irmandades representavam

toda a exuberância e forma da arte barroca mineira; o dom nas mãos de grandes artistas, em sua

grande maioria negros e mulatos, que foram a essência da arte barroca e transformaram a

paisagem do espaço urbano das Gerais, como foi o caso de Antônio Francisco Lisboa, o

Aleijadinho, um dos maiores, senão o maior representante do barroco mineiro.

Estamos aqui analisando a comunidade dos Arturos e sua influência no contexto

sagrado nas tradições do Rosário na região de Contagem, porém, se faz de grande importância

sempre relembrarmos e ter em mente que as irmandades do Rosário ocuparam várias cidades

mineiras, como é o caso de Ouro Preto.

Na histórica Ouro Preto as comemorações do Reinado à Nossa Senhora do Rosário e

Santa Efigênia também mantém uma tradição buscando reviver a memória dos antepassados

que sofreram durante a época da escravidão mas também viveram intensamente as glórias da

religiosidade agregados em suas irmandades dos irmãos negros. Contemplados com toda a

beleza e pompa que o barroco das Gerais ofereceu puderam buscar nas igrejas uma resposta à

sua vida terrena.

Através da realização da festa a Nossa Senhora do Rosário, além daquela realizada

pelos Arturos, podemos perceber o quanto esta é importante ainda hoje no catolicismo nas

Minas Gerais na busca, principalmente, dos negros em manter viva as tradições de uma época

de sofrimento, mas, ao mesmo tempo, de glória e esperança.

Relembra-nos Avila (1988) que “A Irmandade do Rosário dos Pretos da antiga Vila

Rica, foi ereta no ano de 1715, tendo seus estatutos aprovados e confirmados pelo bispo do Rio

de Janeiro. D. Frei de São Jerônimo, as quais desapareceram” (p.73).

É importante lembrarmos que todas essas festividades que estamos analisando na

tradição dos Arturos vêm sendo mantidas em Minas desde o período barroco. Nessa época

destacavam-se já as famosas festas e procissões, das quais o triunfo Eucarístico se destacava.

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A Irmandade do Rosário foi uma das promotoras das festividades de transladação do Santíssimo

até a matriz do Pilar. Para a passagem da procissão, os próprios irmãos do Rosário construíram

a Rua Nova do Sacramento e em troca receberam do Senado da Câmara a concessão de um

terreno para a construção de uma igreja próxima à capela primitiva. Neste terreno se encontra

hoje a igreja principal.

Enfim, os festejos dos Arturos, buscam manter a tradição do século XVIII, da época

religiosa barroca. Começando com as festas de cortejo eles realizam várias tradições, sobre as

quais não cabe fazer uma análise minuciosa neste trabalho, para não fugir de seu objeto

principal.

O que procuramos demonstrar nessas páginas dedicadas a um trabalho prestado por

Núbia Gomes e Edmilson Pereira é confirmar a existência de um grupo que mantém tradições

da forte religiosidade mineira do século XVIII, onde encontramos uma sociedade que engloba

a síntese da colônia naquela época.

Não há barroco sem religiosidade, não há Minas Gerais sem a religiosidade. As

práticas religiosas estavam inseridas naquele cotidiano diversificado das Gerais, onde brancos,

mulatos e negros, escravizados e forros foram os responsáveis por um dos períodos mais ricos

da história do Brasil.

Estudar a origem dos Arturos é estudar as tradições, um estilo de vida que perpassou

o tempo e chegou às atuais geração de Arturos. Da oralidade às práticas festivas, o congado dos

Arturos é a memória viva daquela Minas Gerais urbanizada, rica, sofrida e também desigual.

3.9 O BARROCO MINEIRO

Vamos adentrar agora a um dos períodos de maior glória e opulência da cultura e da

arte no Brasil, que se realizou em Minas Gerais no século XVIII, período de glória do ouro e

de uma sociedade diversificada que formou o estilo barroco mineiro.

O discurso e a história que se ligam através de laços indissociáveis mantém viva na

memória aquela sociedade dos anos setecentos, que através do discurso implícito busca revelar

a identidade de uma época.

Até aqui pudemos perceber o quão presente foi a religiosidade voltada a um

catolicismo popular nas Gerais. Desde seu processo de urbanização com a descoberta do ouro,

a presença de ordens terceiras e irmandades foi um fator significativo para o desenvolvimento

cultural e artístico daquela região, visto também as relações da Coroa portuguesa com a religião

católica.

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A partir de agora vamos analisar como se procedeu o desenvolvimento do barroco na

capitania do ouro, quem foram seus principais representantes e quais as cidades que mais foram

influenciadas por todo esse movimento artístico, que adquiriu no Brasil, e principalmente nas

Minas Gerais, características singulares que chamam a atenção por sua beleza e forma única de

ser.

Dentro de uma sociedade baseada no modo de produção escravista, na qual negros e

mulatos viviam explorados e à margem da civilização, não é de se estranhar que, por parte deles,

tenham se desenvolvido os principais ofícios artesanais. Um dos maiores, se não o maior

representante do barroco mineiro foi Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho; mulato e

posteriormente deformado, é símbolo da arte barroca mineira, sobre a qual não é possível falar

sem fazer uma análise desse grande artista.

Perceberemos como os signos barrocos exibem um espaço social em que o fausto e a

opulência são formas de argumentação para a adesão das ideias religiosas.

O barroco mineiro se solidificará em meio a um catolicismo popular que levou seus

artistas a se adaptarem de forma veemente a essa religiosidade local.

Como observou Tirapeli (2005), ao citar Fritz Teixeira Salles:

Ao contrário do litoral, onde havia congregações religiosas de grandes ordens para a

propagação da religião, como a dos jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos,

em Minas Gerais não as houve, por intermédio régio. A Coroa estimulou, nas Minas

Gerais, a criação de irmandades a fim de, por meio delas, transferir ao próprio povo

os dispendiosos encargos que lhe cabiam na esfera religiosa: “Todos os complexos e

caros cerimoniais do culto religioso eram, desta forma, transferidos à população. Em

virtude disso, tanto à Coroa como ao Clero interessava muito o desenvolvimento das

ordens terceiras e confrarias” (apud TIRAPELI, 2005, p.203).

Nessa sociedade, como observa Boschi (1988), a hierarquização e a estratificação

social não foram baseadas nos referenciais de riqueza e capacidade dos indivíduos, mas sim, na

distinção que aquela sociedade conferiu às pessoas através das atividades por elas

desenvolvidas. O autor lembra que é importante ater-se também ao fato de o colonizador branco

não ter superado, em Minas Gerais, a ibérica aversão pelo trabalho manual, atitude que, se por

um lado abriu espaço para a atuação dos mestiços, mais precisamente de mulatos, por outro

gerou a valorização social do trabalho produtivo de oficiais mecânicos, especialmente de

artesãos e artífices.

É então pela via da produção das atividades manuais e artísticas que o mulato e o pardo

conseguem impor-se no quadro social das Gerais no século XVIII. É o caso de Aleijadinho,

pardo, filho de um arquiteto português com sua escrava.

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Grande personagem do barroco mineiro, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, era

mestiço. Para nos atermos com mais atenção à trajetória desse grande personagem faz-se

importante ter consciência de que o próprio caráter do barroco mineiro não dava realce ao autor,

mas sim à obra. Além do que, por ser mestiço, o artista não podia ascender aos níveis da

sociedade mineira da época.

Lembra-nos Lemos (2008) que, apesar das desigualdades presente nas Minas Gerais,

é fator significante que ali as instituições do Estado português não agiram com tanto rigor, o

que fez com que a mobilidade social fosse maior.

A rígida hierarquia social, baseada nos critérios de cor de pele e da “pureza de sangue”,

tinha seu contraponto na mestiçagem, nas brechas de ascensão social permitida aos

trabalhadores do ouro, no peso da influência cultural africana e da luta dos negros, que

eram maioria da população, contra a escravidão (LEMOS, 2008, p.22).

Mas, Antônio Francisco Lisboa não teve uma vida condenada à escravidão, nascido

em Bom Sucesso, localidade de Vila Rica, em 29 de agosto de 1730, era filho do já conhecido

em Minas, Manuel Francisco Lisboa e de Izabel, negra que era sua escrava. Apesar de alguns

historiadores questionarem qual seria ao certo a data de seu nascimento é fato que Antônio

Francisco ficou livre da escravidão, quando no seu batismo o próprio pai o declarava liberto,

juntamente com a mãe.

Para Lemos (2008) a data é controversa devido ao fato de que o nome do pai de

Aleijadinho aparece com base no registro de batismo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição

com o nome de Manuel Francisco da Costa. Enfim, esse fato não tem importância significativa

em nosso trabalho, mas sim a tem, o Aleijadinho, por tudo que seu nome representa no barroco

mineiro, graças a seu dom e sua arte que transformaram o barroco das gerais.

Seu pai, Manuel Francisco Lisboa era um rico comerciante e Antônio Francisco foi

criado entre a casa da mãe, ambiente doméstico com a presença de hábitos e costumes de origem

africana, e a do pai, onde tinha contato com os irmãos brancos e as elites da cidade. É desde

muito cedo que ele frequentava também a oficina de seu pai, as irmandades e as igrejas.

Como já dito, em Minas havia uma distinção conferida aos indivíduos através das

atividades por eles desenvolvidas. O prestígio social dos profissionais se aferia pela natureza

do trabalho por eles desenvolvido e pelo valor social que a coletividade lhes imputava. Apesar

do artesanato não dar aos artistas e artífices da época a condição de homens de qualidade para

a sociedade, ao menos também não foram marginalizados socialmente.

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Pudemos perceber que a vida religiosa nas Minas Gerais do século XVIII foi marcada

pela forte presença das Ordens Terceiras e Irmandades. Na atual Ouro Preto, à época Vila Rica,

onde nasceu e viveu Aleijadinho, a vida social era marcada por um longo calendário de festas

religiosas, onde se juntavam diversas camadas sociais e segundo Lemos (2008) acontecia tudo

“num clima festivo em que a religião extrapolava seu sentido espiritual para tornar-se um

espetáculo de arte e fé” (p.70).

Foi dentro desse contexto que se desenvolveram as aptidões artísticas de Antônio

Francisco Lisboa. Já na infância ele começou a trabalhar com entalhamento de retábulos, o que

era praticamente toda a produção artística da época.

Merecendo veemência na sociedade da época, os oficiais mecânicos tinham como

particularidade ser livre para trabalhar e para vender o seu produto ou mesmo sua própria força

de trabalho.

Observa Boschi que:

Não estava ele submetido a instituições, pessoas, regras ou regulamentos, senão as

flutuações e às injunções do mercado consumidor de sua arte, ao qual tinha acesso

direto, sem intermediários. Somente a ele cabia determinar a dinâmica do processo

produtivo: produto e processo de trabalho se punham assim, sob seu controle exclusivo

(BOSCHI, 1988, p.16).

O profissional a que Boschi faz referência é aquele que exercia seu ofício por conta

própria, em sociedade ou por delegação, a pintura, a escultura, a talha e a arquitetura. É o caso

de pintores, entalhadores, carpinteiros, marceneiros, carapinas e pedreiros.

É esse grupo de artistas que deu ênfase ao barroco mineiro, transformando-o em

símbolo do fausto e da opulência. Em meio a esses artistas, como já nos referimos, Antônio

Francisco foi um dos destaques. Após o início do trabalho com entalhamento de retábulos,

quando adolescente ele passa a trabalhar na oficina do pai com desenho, arquitetura, ornamento

e imagens.

Relata Lemos (2008) que “A oficina é movimentada, escravos, oficiais e aprendizes

não param um instante. Clientes e intermediários religiosos, autoridades, responsáveis pelas

irmandades, mecenas, todos passam por ali” (p.71).

Foi nesse ambiente que o jovem Antônio Francisco foi desenvolvendo suas aptidões

para a arte e, em torno de seus 30 anos, já era um artista com métodos reconhecidos, com

número considerável de trabalhos produzidos.

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A religiosidade mineira também exerceu influência significante em sua vida fazendo

com que Aleijadinho ingressasse, no ano de 1772, na Irmandade São José de Vila Rica, do

patrono dos carpinteiros e composta por homens pardos.

Um mistério sobre Aleijadinho é em relação a um suposto filho do artista que teria

nascido no Rio de Janeiro em 1775, ao qual ele teria dado o nome de seu pai. Isso está registrado

em um censo realizado em Vila Rica no ano de 1804, que arrolou os dependentes de

Aleijadinho.

[...] Tudo o que diz respeito a esse filho é cercado de mistério, a começar pela mãe,

uma ex-escrava chamada Narcisa Rodriguês da Conceição. Foi ela que batizou o

menino em 1783, e na ocasião declarou que ele nascera em 1777, talvez tentando

reduzir o atraso da cerimônia. Foi esse documento que Manuel apresentou quando se

casou com Joana – suposta fonte da biografia de Bretãs – em 29 de novembro de 1800,

na Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica. Desse casamento nasceu, em 1803,

um menino chamado Francisco de Paula (LEMOS, 2008, p.78).

Se essa história é verídica ou não, a mesma não acomete a essência do artista que foi

Antônio Francisco Lisboa, o famoso Aleijadinho, que recebeu esse apelido devido à doença

que deformou seus membros, da qual ele começa a sentir os primeiros sintomas por volta de

seus 40 anos.

Alguns estudiosos relacionam a maturidade e o início da doença, com uma arte mais

sombria, mais reflexiva, voltada para os aspectos existenciais da religião. É o momento que

Aleijadinho vive seu maior esplendor como artista, demonstrando grande vigor e capacidade

criativa.

Em uma sociedade escravocrata como a que Aleijadinho viveu, muitos escravos

ajudavam seus senhores nas atividades artesanais e artísticas, como relata Boschi (1988) ao

dizer que “é de supor que um não reduzido número de escravos desenvolveu ou exercitou seus

dotes artísticos ou ainda aprendeu com seus amos determinados ofícios, ajudando-os em suas

atividades” (p.32, 33).

Auxiliando-o em seus afazeres, o próprio Aleijadinho também teve seus escravos,

sobre os quais Boschi, citando Bretas, diz que os mais conhecidos eram Agostinho e Maurício.

[...] Agostinho, que, segundo Rodrigo José Ferreira Bretas, o primeiro biógrafo de

Antônio Francisco Lisboa, era entalhador, e Maurício, o mais conhecido, que

exercendo o mesmo ofício do primeiro, no dizer do referido biógrafo, “era sempre

meeiro com Aleijadinho nos salários que este recebia por seus trabalho”, tendo

participado das obras de escultura dos Profetas de Congonhas do Campo, durante as

quais veio a falecer. Como a irreversível doença que lhe atribuiu o cognome se

manifestou desde seus 39 anos e tendo ele falecido aos 76, pode-se perceber o quanto

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o Aleijadinho teve que se valer de seus escravos como auxiliares de ofícios (BOSCHI,

1988, p.33).

A produção artística em Minas Gerais foi algo extremamente relevante devido à forte

religiosidade local, o público consumidor da arte religiosa mineira era composto principalmente

pelas irmandades e confrarias que ocupavam a qualificada mão de obra da região.

Artista nato, Aleijadinho foi muito requisitado para a construção das obras barrocas

em Minas Gerais. Vale lembrar também que, por outro lado, a arte barroca, mais visual e cênica,

era considerada de menor valor com relação ao gosto da burguesia.

Estamos falando de uma sociedade em que o preconceito contra negros, mulatos e

pardos se fazia presente. Os principais intelectuais e pensadores da época de Aleijadinho

estavam buscando novas referências para o país, já que pretendiam ser reconhecidos como

possuidores de verdades acerca da política, da nação, das culturas e da arte. Nesse contexto,

consideravam a obra de Aleijadinho desqualificada, por ser barroca, e portanto ligada ao

absolutismo, sendo considerada apenas trabalho mecânico, como uma cópia menor do barroco

europeu.

Mas enfim, o que nos interessa é mostrar que Aleijadinho foi sim um grande artista,

marcando as cidades mineiras por onde passou, principalmente Ouro Preto e Congonhas do

Campo. Na primeira, as marcas deixadas pelo barroco mineiro estão presentes por todos os

cantos da cidade.

Ouro Preto é um centro universitário e de formação e incentivo às artes. Diversas

instituições, entre elas uma dinâmica Escola de Arte ligada ao governo do Estado,

impulsionam o trabalho dos artistas da região. A combinação de turismo, atividade

criativa e presença estudantil, além de incrementar a economia, dá a Ouro Preto um

certo clima de cenário (LEMOS, 2008, p.111).

Nessa histórica cidade encontramos, principalmente em suas igrejas, as mais belas

obras realizadas por Aleijadinho. Só para citar algumas delas podemos falar das seguintes: São

Francisco de Assis, igreja onde fez o risco geral do edifício, as esculturas da portada, o risco da

tribuna do altar-mor e dos altares laterais, as esculturas dos púlpitos, do retábulo e da capela

mor. Na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto num altar da capela mor fez a

imagem de Nossa Senhora do Rosário; na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo

encontram-se inúmeras obras de Aleijadinho, como os púlpitos e os altares; na Igreja das

Mercês e Misericórdia, logo ao entrar, o pórtico de pedra-sabão que representa a Virgem de

braços abertos e com um manto protetor, mais uma atribuição ao Aleijadinho.

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Entre as demais obras de sua autoria espalhadas pela cidade podemos citar: as

esculturas da sobreporta e do lavatório da sacristia, da tarja do arco-cruzeiro, os altares laterais

de São João Batista e de Nossa Senhora da Piedade na igreja de Nossa Senhora do Carmo; o

risco da capela – mor, as imagens de São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato na Igreja das

Mercês de Baixo, além de inúmeras outras realizações encontradas em Ouro Preto.

Figura 33 - Leões de Essa, madeira de cedro-Aleijadinho 1787, Igreja de São Francisco de

Assis, Ouro Preto - MG

É importante sabermos que Aleijadinho, além de ter vivido em Ouro Preto, também

morou em Congonhas, onde sua presença também foi marcada por esculturas que

representavam a forte religiosidade mineira. Como as demais cidades, a história e urbanização

de Congonhas também foi marcada pela construção de igrejas. Diz Lemos (2008) que “A

primeira foi Nossa Senhora do Rosário, construída em 1667 por escravos para uma irmandade

de negros, utilizando um padrão de construção em que os sinos eram colocados do lado de fora

da igreja” (p.115).

Foi somente mais tarde que os sinos passaram a ser colocados nas torres, seguindo o

estilo jesuítico. É em Congonhas que encontramos na Quinta Capela dos Passos, obras

magníficas feitas por Aleijadinho, como a escultura Cristo com a Cruz, representando o

momento da crucificação, além de um bobo da corte e soldados romanos.

Realmente não há barroco mineiro sem Aleijadinho, na Estrada Real, nas

proximidades de Congonhas se encontram suas mais belas realizações. É no Santuário de Bom

Jesus de Matosinhos, onde os dozes profetas esculpidos em tamanho real em pedra-sabão são

uma das obras-primas desse grande mestre barroco.

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A obra desse santuário da segunda metade do século XVIII é composta pela Igreja do

Bom Jesus de Congonhas, as doze esculturas de Aleijadinho e seis capelas que retratam os

passos da Paixão de Cristo. Dentro das capelas encontramos aproximadamente sessenta

esculturas em madeira, retratando os momentos finais de Cristo. Toda essa essência deixada

por Antônio Francisco Lisboa em Congonhas mostra toda a subjetividade e vigor desse mestre

que elevou o barroco mineiro entre as artes mais nobres encontradas no Brasil e no mundo.

Figura 34 - Réplica em gesso da imagem do Profeta Daniel, Museu da Inconfidência. A

escultura original feita por Aleijadinho está em Congonhas no Santuário Bom Jesus de

Matosinhos.

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Figura 35 - Imagem de São Jorge, atribuída a Aleijadinho. Museu da Inconfidência

Outro grande nome representante do barroco mineiro na pintura, e que aliás tem seus

trabalhos de policromia realizados no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, é Manuel da

Costa Ataíde, o mestre Ataíde, nascido em Mariana em 1762. Como a grande maioria dos

pintores da época do barroco mineiro, ele seguia os cânones da Igreja Católica. Sua arte

compreendeu principalmente o douramento e encarnação de imagens, trabalhos em talha,

pintura sobre painéis, pinturas de forros de igreja, empregando sempre cores vivas. Suas obras

encontram-se espalhadas por diversas cidades mineiras, tendo sido mestre Ataíde um grande

colaborador do Aleijadinho.

Em 1801 ele inicia os trabalhos na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis,

em Ouro Preto, realizando a pintura de seis painéis imitando azulejos que representavam cenas

da vida de Abraão e decoravam as paredes da capela mor, onde a figura central do teto da nave,

a representação de “Assunção de Nossa Senhora” recebe traços mulatos. Destaca-se também

em 1806 a realização da pintura do forro da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio, na

cidade de Santa Bárbara, onde retrata a Ascensão de Cristo.

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Figura 36 - Pintura no teto da Igreja de São Francisco de Assis, atribuída a Mestre Ataíde, Ouro

Preto-MG

Não há dúvidas de que a presença da religiosidade marcou o estilo barroco no Brasil,

principalmente em Minas, onde os fiéis não mediam esforços para mostrar todo seu ímpeto

religioso. Para Boschi (1988) “a sua vaidade e o exibicionismo de sua generosidade faziam dele

um contribuinte permanente das receitas financeiras das irmandades” (p.36).

Quem agradece por todo esse “espírito” religioso são nossos artistas, que tiveram a

possibilidade de mostrar seu trabalho e de certa maneira ascender socialmente, pois nas Gerais

do século XVIII não houve limites para as encomendas de construção, pinturas e esculturas,

que cresceram de maneira significativa durante o auge do barroco mineiro.

Para finalizar nossa análise de Manuel da Costa Ataíde, em 1823 o artista inicia a

pintura do forro da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio, em Itaverava, uma autêntica

obra barroca, onde se destaca “A coroação da Virgem pela Santíssima Trindade”. Foi em 1828,

que mestre Ataíde concluiu “A última ceia”, para o colégio e Santuário de Caraça.

Mestre Ataíde fez parte da chamada Escola de Mariana, onde se juntou a outros

pintores como João Batista de Figueiredo, Antônio Martins da Silveira, entre outros. Ele

influenciou vários artistas através de seu método de elaboração da pintura de perspectivas das

abóbadas dos templos religiosos pela harmonia cromática de suas pinturas e pelo desenho

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expressivo de santos, anjos e virgens, o que põe o artista entre os mais importantes mestres

barrocos da pintura em sua época. Ele faleceu em Mariana em 2 de fevereiro de 1830.

Manuel da Costa Ataíde e Antônio Francisco Lisboa não foram os únicos, mas, posso

dizer, estão entre os maiores destaques do barroco mineiro; toda glória e características

singulares do trabalho desses artistas resgatam ainda hoje a memória da antiga Capitania de

Minas Gerais no século XVIII, nos remetendo a um passado que parece ainda estar em vivência

naquele local.

Apesar de em torno dos seus 40 anos ele começar a sentir os primeiros sintomas de

lepra ou sífilis e do sofrimento causado por essa doença e também pelo preconceito que sofria,

principalmente por ser mestiço, Aleijadinho quebrou todas as suas barreiras e sua genialidade

o consagrou como escultor e admirável projetista. Ele faleceu em Ouro Preto em 18 de

novembro de 1814 e seu corpo foi sepultado na Matriz de Nossa Senhora da Conceição do

bairro de Antônio Dias, junto ao altar da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte. Suas

marcas, porém, continuam vivas, mostrando todo o esplendor e a glória da sociedade da época.

O barroco mineiro no século XVIII foi tão efervescente que, mesmo com a diminuição

do ouro na região, suas obras se mantiveram em alta e, por incrível que pareça, sua produção

até se elevou, mostrando que a sociedade do ouro mantinha um certo recurso para a produção

das obras.

[...] Por conseguinte, o mercado de arte religiosa na Minas Colonial não sofreu solução

de continuidade; o ritmo das construções cresceu com o passar dos anos, e é

importante assinalar que se manteve regular e estável – em certa dimensão até

aumentou – na segunda metade da centúria, época a qual a exploração aurífera

apresentou irrecuperáveis índices de descenso, em inequívoca evidência de que não

era aquele o único sustentáculo da economia local. O ritmo não diminuiu com a queda

da produção aurífera, antes se intensificou e já então com custos mais elevados, dados

o grau de exigência e a maior durabilidade do material empregado nas obras. Isso é

sinal de que havia recursos acumulados e disponíveis, ou seja, um excedente

econômico disponível para investimento em construção, arte e artesanato (BOSCHI,

1988, p.36, 37).

As palavras de Boschi nos fazem perceber quão forte se fazia o impulso pela realização

das obras religiosas. O viver daquela sociedade estava imbuído dentro da essência cristã que

formou a base cultural das Gerais dos setecentos. As obras realizadas pelos artistas barrocos

não ficaram concentradas apenas nos principais núcleos urbanos, mas sim se espalharam por

longínquas regiões do mercado consumidor das artes.

Todos os campos culturais foram impregnados pela religiosidade. Segundo Boschi

(1988), basta nos atentarmos para o fausto das procissões, relembrar o luxo e a riqueza dos

rituais, a magnificência dos templos, e se poderá, então, compreender que se está diante da

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realidade social onde as artes plásticas e os ofícios artesanais a ela relacionados tiveram especial

relevo e destaque, onde o tempo e as mudanças sociais foram se encarregando de refinar o gosto

das pessoas, existindo por parte dos artistas permanente apuração ou renovação das formas

estéticas.

Nessa sociedade havia um grande espírito de competitividade entre as associações.

Essas rivalidades podem ser vistas como algo positivo, pois levavam cada grupo a procurar

transformar a grandiosidade e a beleza de suas obras em um fator de prestígio, autoafirmação e

destaque. Tudo isso levou a um aprimoramento, tanto do senso estético como do nível de

exigência dos consumidores e do próprio público em geral.

Segundo Machado (1991), se encararmos essa presença da arte do ponto de vista dos

elementos transpostos, conceberemos os modelos e padrões trazidos do exterior e que deveriam

atender aos valores estéticos da classe dominante da maneira que se encontravam na

consciência da elite formada lá fora, que para cá devia ser transposta.

Afirma Machado que “o dinamismo local assediou por todos os lados, a célula

transplantada e, correspondentemente, o modelo artístico, que se suporia fixo e imodificável

conheceu as mais variadas transições” (p.169).

É certo que todas essas transformações das artes que formaram o barroco mineiro

devem sua adaptação às limitações materiais do lugar, o que faz o barroco adquirir conotações

próprias em Minas Gerais, onde, muitas vezes, a modificação imposta pelos novos materiais e

pelas maneiras de dominá-los constituiu elemento propulsor das novas concepções plásticas.

Em Minas, foi criada uma capacidade de assimilar inteiramente os padrões europeus e

reelaborá-los, formulando seus próprios valores, o que gerou a especificidade do barroco

mineiro, que junto a pujança criadora dos artistas mineiros, afirmou-se, em sua plenitude, em

uma sublime concepção de gênio inventivo que residiu em obras de absoluta pureza

expressional.

Uma sociedade marcada pela ambivalência, pela escravidão e exploração dos negros,

pelas diferenças entre brancos e africanos, mas também formada por uma fusão cultural sem

limites, que acabou por formar nas Minas Gerais uma sociedade sem igual na colônia. Toda a

dinâmica dessa época das luzes do período colonial, marcada por uma forte religiosidade

popular, trouxe um movimento artístico e cultural único, diferente de qualquer parte do mundo.

Essa foi as Gerais do século XVIII, palco do momento de maior glória da sociedade colonial

brasileira.

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3.10 PALAVRAS FINAIS

Por fim, é fundamental salientar a importância que teve essa pesquisa, a qual buscou

contribuir para desbravar ainda mais o século XVIII em nosso país, ou seja, o século do ouro

na colônia; momento de formação das Gerais, de uma sociedade complexa e dinâmica, que nos

trouxe uma formação cultural única. Mas também buscou resgatar as transformações pelas

quais passou o denominado movimento barroco, desde seu surgimento na Europa à sua chegada

no Brasil colônia, além, é claro, de toda a religiosidade que acompanhou esse movimento.

A mistura de pretos, brancos, pardos, pessoas das mais diversas localidades da colônia

e do Reino, juntamente com a religião católica, formam nas Minas Gerais uma sociedade que

inigualável. A arquitetura jesuítica dos padres jesuítas e logo depois as igrejas barromínicas,

principalmente das Gerais, trouxeram uma notável erudição que contextualizaram as

manifestações artísticas do barroco mineiro.

Não há como falar em colônia sem falar em religião; ela era a base da formação social

e educacional e, como vimos na Capitania de Minas Gerais, uma religiosidade de cunho mais

popular e mais próxima dos fiéis, com a presença das Ordens Terceiras e Irmandades

transformou a arte barroca, algo que mexe com as emoções e o interior de qualquer fiel ou até

mesmo daqueles que nenhuma crença tinham.

Boschi (1988) ao observar esse mercado da arte religiosa disse que ele “existiu desde

os primeiros tempos. Cada povoado que se constituía tinha templo próprio. Embora simples em

sua arquitetura, as primitivas capelas foram os núcleos e o eixo vital dos arraiais [...]” (p.35).

A observação feita por Casimiro (2010), diz que:

Em qualquer formação social observamos homologia entre os elementos culturais nela

presentes. No caso do Brasil colonial, esta homologia comparece em uma

convergência fortíssima, mormente entre a religião e a educação, geralmente, mediada

pelas manifestações artísticas barrocas. Explicar este fenômeno ajuda a conhecer um

pouco mais a realidade colonial em seus modos de organização material, social e nas

formas de pensamento dos seus sujeitos, prevalentemente, a tríade religião, educação

e arte. Institucionalmente, essas relações se oficializavam mediante o Padroado Régio.

Pelas prerrogativas do Padroado, o Rei era a maior autoridade da Igreja, no território

português e em suas colônias, e tinha direitos e deveres religiosos que, muitas vezes,

se confundiam (CASIMIRO, 2010, p.55).

Como observamos, a religião estava intimamente subordinada ao Estado português,

porém, vimos que na Capitania de Minas Gerais, essa maior delegação aos fiéis para cuidar das

questões religiosas acabou por tornar o catolicismo diferente daquele que era pregado no litoral.

As Ordens Terceiras e Irmandades que abrigavam pretos, pardos e brancos, cada qual com a

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sua acabou por formar uma sociedade marcada por tradições religiosas, na qual os negros

puderam se expressar e adaptar as próprias entidades da cultura afro ao catolicismo.

Enfim, Minas Gerais ainda hoje é um Estado único por suas características adquiridas

no século do ouro. Toda a vivência daquela sociedade do século XVIII parece ainda estar viva

em suas cidades históricas. Entre as montanhas das Gerais o reviver de uma época é constante

e em suas cidades históricas ainda permanece viva na memória de seus habitantes toda a

opulência do período de maior glória da história da colônia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tratarmos de um tema com tantas perspectivas como a cultura do barroco

surgem acontecimentos que sintetizam sua formação como algo inovador na cultura e na arte.

Desde seu surgimento na Europa até sua chegada em terras brasileiras, falando especificamente

no campo artístico, o barroco adquiriu conotações que o tornaram único, sendo em nosso país

considerado como uma primeira grande cristalização artística de uma autêntica cultura

brasileira.

Sobre suas origens sabemos que é na Europa que teve formação esse movimento, mas

delimitar um período específico de seu nascimento no velho mundo é algo um pouco complexo,

como observamos no início deste trabalho, porém, vimos que a Itália está entre os berços de

sua origem. Sempre colocado à margem por apresentar uma arte considerada irregular,

extravagante e bizarra, nas palavras de Mello (1983), o barroco se espalha rapidamente pela

Europa, situando-se principalmente no momento histórico da Contrarreforma Católica, que

buscou rebater a Reforma Protestante de 1517.

Nesse contexto, a arte barroca estará intimamente ligada ao catolicismo e já adentra

no Brasil dominada pelo viés católico, pois, embora a igreja estivesse submissa ao poder do rei,

cumpriu de maneira rígida seu papel de formação da cultura brasileira.

Observa Tirapeli que:

A chegada das ordens religiosas ao Brasil, primeiramente com os jesuítas, inicia o

processo de educação formal no país. Animados pela fé católica e dotados de espírito

organizador e militaresco, atiram-se resolutos à tarefa de construção de seu domínio

em terras de Santa Cruz. Fala-se de um estilo barroco jesuítico, severo e sóbrio, que

espalhou-se por todo o mundo dentro de uma mesma disciplina padronizadora. Apesar

do termo impreciso, poder-se-ia dizer que será esse amaneiramento o primeiro estilo

artístico a aportar no Brasil (TIRAPELI, 2005, p.149).

Quando passamos à análise do barroco mineiro vamos perceber que este ganhará

características próprias. Uma religiosidade que se voltou à formação de confrarias que se

dividiram em Ordens Terceiras e Irmandades fez florescer nas Minas Gerais do século XVIII

uma cultura religiosa diferente de qualquer lugar do mundo. Estamos falando da época de

formação da capitania das Gerais, época do ouro e de grande riqueza na colônia, onde uma

sociedade com a mais diversificada população e características econômicas e sociais se formou.

A capitania cresceu de maneira rápida e, respondendo às perguntas de Klein (2000)

“Por que as pessoas migram?”, em Minas podemos dizer que os motivos foram os mais

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diversos, mas o elemento norteador de tudo isso é claro, foi a descoberta do ouro e dos

diamantes, o que fez com que a povoação do interior da colônia acontecesse de forma espantosa.

A partir de então, as mais diversas formas de exploração por parte da Coroa portuguesa

recaíram sobre a nova capitania, explorando de maneira cruel os negros, muitos dos quais

acabavam morrendo no penoso trabalho nas minas. Pareciam estar condenados mesmo ao

purgatório pois aqueles que sobreviviam ao penoso trajeto dos navios negreiros eram

submetidos a crueldade do trabalho na mineração; ainda assim esses negros tinham a esperança

de sua alforria em determinada época de sua vida, visto que o confisco escondido aos olhos da

administração portuguesa e o desenvolvimento do trabalho nas artes permitiram isso. Com a

mesma sorte não contava o escravo das zonas açucareiras.

O estreito vínculo existente entre o ímpeto urbanizador e o estabelecimento do fisco é

comprovado pelo fato de ter sido Antonio de Albuquerque o primeiro fundados de

vilas e o primeiro administrador a lançar impostos sobre o ouro. Determinou ele que

o quinto da produção aurífera – que, pela lei, cabia à Coroa – fosse cobrado por bateia,

o que significa que cada escravo que trabalhasse nas Minas deveria pagar uma

determinada quantia ao fisco, perfazendo, desta forma, a quantia correspondente ao

quinto. Esta prática suscitou um sem-número de protestos, pois pagavam igualmente

os que achavam ouro e os que não o encontravam. Albuquerque adotou então novo

sistema, segundo o qual o quinto era extraído quando o ouro deixava a capitania

(SOUZA, 1997, p.33).

Nessa sociedade, formada principalmente por negros e pardos, a escravidão nas minas

se fez então sentir cruel, mas foi também neste mesmo local de tanta exploração que puderam,

principalmente os pardos, mostrar todo o dom que possuíam para as atividades artísticas, as

quais, voltadas para a religiosidade local, formaram o barroco mineiro.

É indiscutível a importância das Ordens Terceiras e Irmandades formadas

basicamente por leigos e, sendo um dos principais veículos do catolicismo popular, onde um

sincretismo com as religiões africanas, candomblé e umbanda, principalmente, trouxeram à

tona algo mais próximo das tradições afro dentro do próprio catolicismo. Nesse contexto,

tradições como o Reinado e o Congado também se fizeram presentes, mantendo-se vivas ainda

nos dias atuais, como é o caso das tradições do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e Santa

Efigênia, que ainda existem, principalmente nas atuais cidades históricas de Minas.

Uma capitania diferente de todas as outras, um local onde as tradições e cultura afro

deram luz ao maior campo da arte barroca na colônia. Onde as mulheres, negras e mulatas,

mostram a importância do papel que tiveram no comércio, citando ainda as negras de tabuleiro

que chegaram a ser consideradas pela Coroa portuguesa como um “perigo” na região das minas.

Falando nessa arte barroca tão expressiva que se desenvolveu na colônia, é impossível

não citar a importância que tiveram os mulatos, principalmente o maior gênio da arquitetura e

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escultura barroca, Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que, segundo Lemos (2008),

“nasceu em Bom Sucesso, localidade de Vila Rica, no dia 29 de agosto de 1730, da relação

entre o já então conhecido arquiteto Manuel Francisco Lisboa com Izabel, negra africana ou

descendente de africanos, que era escrava dele” (p.63).

Entre discussões que se afloram a respeito da real data do nascimento de Aleijadinho,

o que importa é o tão relevante legado desse artista que transformou o barroco mineiro.

Trabalhando a serviço principalmente das irmandades católicas, ele produziu obras de arte que

apelam para a emoção e o sentimento de qualquer expectador, através de uma arte feita

principalmente em pedra-sabão. Mesmo com a doença que adquiriu por volta de seus 40 anos,

Aleijadinho nunca deixou de produzir, pelo contrário, trabalhou ainda com mais ímpeto para

mostrar sua magnífica capacidade de fazer arte.

Outro nome que também se destacou foi o de Manuel da Costa Ataíde, o Mestre

Ataíde, grande pintor e decorador que mostrou o dom de sua arte no período do barroco mineiro.

Nascido na cidade de Mariana, em 1762, Mestre Ataíde obteve destaque na pintura de tetos das

igrejas, principalmente em trabalhos de perspectiva, sendo que, em uma sociedade dominada

pela cultura da religiosidade católica, seu trabalho se destaca pelas pinturas ligadas aos temas

religiosos.

Por fim, o que esse trabalho buscou apresentar foi a dimensão que teve a cultura

religiosa no campo das artes. Desde seu aparecimento na Europa, o denominado “Barroco” veio

ligado de forma veemente à religiosidade católica. No Brasil e em Minas Gerais no século

XVIII, o barroco adquire feições próprias e encontra um campo fértil ao seu desenvolvimento,

em uma época de glória e opulência do período colonial.

Não há como separar a formação da Província de Minas Gerais do ímpeto produzido

pela busca do ouro e diamantes e da forte religiosidade católica e popular que se desenvolveu

em uma sociedade tão complexa como se tornou as Gerais.

Viajar hoje pelas cidades históricas do atual Estado de Minas Gerais é reviver o século

XVIII, é sentir viva a memória de uma época de muito sofrimento, mas também de muito luxo

e glória no campo da cultura artística. Andar pelas ruas destas cidades é sentir as emoções de

um período único em nossa história, o qual deixou suas marcas que, enquanto preservadas,

ficarão para sempre na memória da nação brasileira. Pude confirmar tudo isso em minha viagem

pessoal à Minas Gerais em janeiro de 2019.

Chegando em Ouro Preto, no final da tarde de sábado, dia 5 de janeiro de 2019, senti-

me encantado pela beleza do lugar, começando pelo terminal rodoviário da cidade que preserva

as características de tempos passados e de lá é possível observar, quase que do lado, a

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encantadora Igreja de São Francisco de Paula e andando alguns passos mais à frente, é possível

ter uma vista magnífica da cidade.

Ouro Preto me encantou com suas ruas e ladeiras que trazem à tona as memórias do

nosso passado colonial, onde as narrativas de uma época continuam no emaranhado das tramas

do barroco mineiro.

Nascida no século XVIII, a capitania de Minas Gerais já surgiu forte e com um brilho

que foi somente seu. Palco de acontecimentos que marcaram o nosso passado colonial, como o

sofrimento do povo africano nas minas, mas, ao mesmo tempo lugar da esperança para aqueles

que sonhavam com sua liberdade. Lugar de visão edênica, que povoou o imaginário de muitos

que foram até essas paragens buscar o paraíso terrestre e se decepcionaram, mas também de

muitos que não desistiram de encontrar ali os mitos e sonhos que buscavam.

Foi nessas terras que negros, pardos e principalmente mulatos nos mostraram toda sua

aptidão para as artes, fazendo florescer o barroco mineiro. Mas não é apenas isso, junto aos

brancos, mesmo que separados cada um ao seu canto, mostram sua fé católica ao lado de suas

tradições afro e nessa mesma religião católica que fazia distinção de cor e raça encontraram o

acalanto para sua sofreguidão. Constituíam suas próprias irmandades e expressavam sua fé em

um lugar tão distante de suas origens. Foi um pouco dessa Gerais que essa pesquisa buscou

resgatar, para manter vivo na memória do homem de hoje, quem foram os homens que se

fizeram protagonistas do memorável século XVIII das Minas Gerais.

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ANEXOS

Figura 37 - Antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência, Ouro Preto-

MG 06/01/19

Figura 38 - Nossa Senhora do Rosário-madeira de cedro policromada e dourada. Procedência

Paracatu-MG. Museu da Inconfidência

.

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Figura 39 - Imagem do altar da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Figura 40 - Imagem do altar da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Figura 41 - Pinturas no teto da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Figura 42 - Imagens laterais da Igreja de Santa Efigênia, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Figura 43 - Imagens do altar da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto-MG, 08/01/19

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Figura 44 - Altar da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto-MG, 08/01/19