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Cultura e Tecnologia: A Literatura Clássica e o Desenvolvimento da Análise
Crítica da racionalidade técnica entre Estudantes de Cursos Superiores de
Tecnologia na Área da saúde da UNIFESP.
Resumo
Tendo em vista o debate sobre a formação humanística e a crítica da racionalidade
técnica como fator desumanizador na área da saúde, neste trabalho apresentamos
resultados parciais de pesquisa de doutorado ainda em andamento. Nosso projeto
objetiva propor uma experiência de educação humanística partindo da leitura e
discussão de clássicos da literatura em uma disciplina optativa chamada “Laboratório
de Humanidades e Tecnologia”, oferecida entre o primeiro semestre de 2015 e 2016, a
estudantes dos cursos de graduação em Tecnologias em Saúde, a saber: tecnologia
oftálmica, radiologia e informática em saúde, da Universidade Federal de São Paulo.
Nosso objetivo é investigar o potencial de uma experiência estética e reflexiva, com
base na literatura, como meio de fomentar uma crítica da “racionalidade técnica”. A
disciplina funciona em 3 momentos: Histórias de leitura, onde os estudantes colocam
suas impressões iniciais sobre o texto; Itinerário de Discussão, onde o moderador do
curso administra os temas a serem discutidos com base nos aspectos e
problematizações levantadas pelos participantes e, por fim, Histórias de Convivência,
onde os participantes compartilham sobre a experiência em grupo e seu significado
particular. Entre as obras discutidas temos: “Frankenstein”, de Mary Shelley. “1984”,
de George Orwell. “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Hamlet, de
William Shakespeare. A Máquina do Tempo, de H.G. Wells e “O Sonho de Um
Homem Ridículo”, de Fiódor Dostoiévski. Para coleta e análise dos dados, adotamos
metodologias de cunho qualitativo envolvendo Observação Participante, História Oral
de Vida e Fenomenologia Hermenêutica. Nossas conclusões preliminares apontam
para o efetivo potencial da metodologia aplicada na disciplina como meio didático de
fomentar críticas filosóficas quanto à ciência e tecnologia por meio de clássicos da
literatura universal. A experiência estética proporcionada pela literatura aparece como
fator fundamental para uma formação humanística e crítica dos participantes.
INTRODUÇÃO
A Literatura Clássica e a Problematização da Tecnologia
“Como ousas brincar assim com a vida? ” (Shelley, 2001, p. 115). Perguntou a
criatura de Victor Frankenstein ao seu criador diante do asco revelado por este frente
a sua criação. A tão conhecida história de Mary Shelley tem muito a nos dizer sobre o
imaginário moderno quanto as possibilidades e os riscos da ciência. Na história, o
nobre doutor, levado pelo apogeu do espirito cientifico de seu tempo, tinha uma
inquietação, a saber, resolver o problema da morte, como afirma: “A saúde era um
assunto vulgar, mas que glória não envolveria a descoberta se eu pudesse banir para
sempre a doença do ser humano e tornasse o homem imune a tudo que não fosse a
morte violenta”. (Shelley, 2001, p. 45).
De certo que após o renascimento e o advento do iluminismo, a cosmovisão
humana ocidental sobre o significado da vida e seu domínio tende a ser transferida de
Deus para a ciência. Momento chamado por alguns de “período cientificista”, nos é
posto um novo paradigma sobre a humanidade, pois agora a ciência é capaz de
solucionar todas as inquietações humanas (Morais, 2012, p. 25).
Neste sentido, nos vale lembrar de Prometeu, o deus que, ao doar o fogo aos
humanos é castigado por Zeus (ou Júpter), o rei dos deuses. Sofrendo as amarguras do
seu castigo, Prometeu anuncia:
[...] Embora orgulhoso, Júpter será humilhado um dia... tal o futuro
do enlace que ele deseja, e que será a causa da ruína de seu trono, e de
seu poderio. [...] Neste dia, em vão ele se porá do alto das nuvens,
agitando nas mãos os seus dardos inflamados: nada o salvará de uma
queda ignominiosa. Eu vejo como ele próprio está criando o seu
inimigo, o prodigioso atleta, difícil de vencer, que lançará fogos mais
ardentes que o raio, fará rumores mais fortes que o trovão, [...]
(Ésquilo. s/d, p. 132).
Prevendo o fim do reinado de Zeus (ou Júpter) na luta contra o ser humano,
Prometeu anuncia o primado da razão e da técnica na humanidade. Como nos sugere
o filosofo Umberto Galimbert: “Talvez por isso Platão interpreta que a palavra téchne
deriva de héxis noû, que significa ‘ser patrão da própria mente’ (Galimberti, 2006, p.
42).
Podemos ver, em diversas obras literárias, o imaginário a respeito do novo
axioma humano sobre a existência, resultado da racionalidade promovida pela
técnica. Essas obras podem nos representar mais do que mero entretenimento, antes,
proporcionar profundas reflexões filosóficas sobre a influência da ciência e da
tecnologia sobre a cultura e a existência humana.
Aldous Huxley, por exemplo, em seu “Admirável Mundo Novo” (Huxley,
1982), nos mostra um possível mundo onde, aparentemente, a tecnologia resolveu
problemas humanos como o sofrimento e a dor. Mas com a presença do “selvagem”
muitas questões profundas sobre a existência humana, que ultrapassam questões
técnicas, voltam a incomodar alguns personagens. A racionalidade técnica nos sugere
que por meio da ciência e da tecnologia é possível aperfeiçoar e facilitar a existência.
Porém, como nos sugere o filósofo alemão Jürgen Habermas:
Mas na mesma medida em que os problemas de ordem técnica são
solucionados cientificamente, eles se transformam em tantos outros
problemas de vida; pois os controles científicos dos processos sociais e
naturais – em uma palavra: as tecnologias – não dispensam o homem da
ação (Habermas, 2014, p. 142).
Se as tecnologias não dispensam o “homem da ação”, devemos nos perguntar
onde ele se localiza nesta relação. O filósofo francês Pierre Lévy, considerando que a
tecnologia é fruto da sociedade e da cultura, defenderá que não existe um impacto das
tecnologias na vida humana, como diz:
As verdadeiras relações, portanto, não são criadas entre ‘a’ tecnologia
(que seria da ordem da causa) e ‘a’ cultura (que sofreria os efeitos),
mas sim entre um grande número de atores humanos que inventam,
produzem, utilizam e interpretam de diferentes formas as técnicas
(Lévy, 1999, p. 23).
Entretanto, essa “relação” pode resultar na dominação humana de outros
humanos, ou justificação da mesa, a partir do momento em que a cultura passa a
reproduzir certa lógica tecnológica na sociedade. Como coloca Herbert Marcuse:
A sociedade reproduz a si mesma em um crescente ordenamento
técnico de coisas e relações que inclui a utilização técnica dos homens
– em outras palavras, a luta pela existência e a exploração do homem e
da natureza se tornaram ainda mais cientificas e racionais (Marcuse,
2015, p. 155).
Neste sentido, lembramos agora de “1984” do escritor inglês, George Orwell,
que narra uma sociedade também tecnocrática, onde: “[...] o progresso tecnológico só
se verifica quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para
limitar a liberdade humana”. (Orwell, 1991, p. 181).
Creio que já nos é possível perceber como a literatura pode colaborar para
uma análise crítica da tecnologia e da racionalidade. Como nos sugere Antoine
Compagnon:
Ela permite acessar uma experiência sensível e um conhecimento
moral que seria difícil, até mesmo impossível, de se adquirir nos
tratados dos filósofos. Ela contribui, portanto, de maneira
insubstituível, tanto para ética prática como para a ética especulativa
(Compagnon, 2009, p. 470).
Se já nos é possível perceber como a racionalidade técnica pode resinificar o
trabalho e as relações sociais. Nos é possível também perceber como a literatura
clássica é capaz de auxiliar na reflexão sobre a tecnologia e as mais diversas formas
de compreensão de sua relação com a cultura e a sociedade.
É neste sentido que procuraremos sugerir, neste trabalho, a literatura como
potencial fonte de análise crítica e filosófica da tecnologia, podendo proporcionar, de
um ponto de vista humanístico, uma experiência formativa.
Laboratório de Humanidades e Tecnologia
O “Laboratório de Humanidades e Tecnologia” é uma extensão do
“Laboratório de Humanidades” (LabHum) do Centro de História e Filosofia das
Ciências da Saúde (CeHFi) da UNIFESP, que nasceu por iniciativa dos próprios
alunos do curso de “História da Medicina” da Escola Paulista de Medicina, como
atividade extra curricular, com a finalidade de discutir textos de história e filosofia.
Com o tempo e amadurecimento das discussões e das ideias, chegou-se à leitura de
textos clássicos da literatura.
Seguindo orientações básicas de organização, a atividade funciona de forma
bem simples. Os livros a serem lidos são sugeridos pelos coordenadores antes do
início do semestre. Geralmente são dois livros por semestre, seguindo uma sequência
de cerca de sete encontros, em média, de discussões sobre cada livro.
No primeiro encontro, a dinâmica é explicada pelo coordenador do curso. No
segundo encontro, chamado de “histórias de leitura”, o leitor expõe suas primeiras
impressões, sensações, sentimentos, etc. a respeito da leitura. Neste momento
começam a aparecer efetivamente os temas suscitados pela leitura. Esses assuntos
principais indicam o caminho a ser percorrido, com o que chamamos de “itinerários
de discussões”, porém, não de forma fixa, já que novos temas podem surgir
constantemente. De acordo com o desenvolvimento da leitura muitas questões
surgem, uma diversidade de ideias e sensações que somam às perspectivas dos outros
participantes, gerando novas impressões e processos dialéticos de assimilação e
acomodação de novas informações, que pode gerar, por sua vez, crises e identificação
em outros participantes. Configura-se um ambiente de liberdade reflexiva, sem a
necessidade de desenvolver teses sobre o texto, resultando em compartilhamento de
saberes pessoais, que enriquecem visões de si mesmo, do outro e do mundo,
resultando em crescimento e somando à formação pessoal. (Silva; Gallian; Schor,
2016).
Por fim, no último encontro de cada “ciclo”, ou seja, ao fim da leitura de cada
livro, ouvimos as “histórias de convivência”, quando os participantes têm a
oportunidade de mostrar como foram afetados, como a convivência no grupo mudou,
influenciou de todas as formas a sua formação pessoal. (Bittar; Gallian; Sousa, 2013).
Aos alunos dos cursos de tecnologia em saúde da UNIFESP, a atividade foi
oferecida do primeiro semestre de 2015 ao primeiro semestre de 2016, onde foram
lidos e discutidos, nesta ordem, seis livros, a saber: “Frankenstein”, de Mary Shelley.
“1984”, de George Orwell. “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Hamlet, de
William Shakespeare. A Máquina do Tempo, de H.G. Wells e “O Sonho de Um
Homem Ridículo”, de Fiódor Dostoiévski.
É nesse ambiente que investigamos como a experiência do Laboratório de
Humanidades e Tecnologia pôde ser considerada como um caminho de formação
humanística entre estudantes dos cursos de graduação em tecnologias em saúde.
METODOLOGIA
A coleta de dados é feita a partir de três fontes metodológicas: Observação
Participante (Geertz, 2009), entrevistas obtidas de acordo com a abordagem da
História Oral de Vida (Meihy; Holanda, 2007) e relatórios entregues pelos
participantes ao final do curso. A análise dos resultados é feita com base na
Fenomenologia Hermenêutica (Borkan, 1999).
Observação Participante
Buscamos, inicialmente, nos ater à experiência coletiva antes da particular,
pois, em grupo, a experiência pessoal pode ser extremamente enriquecida e adquirir
significado e sentido. Por esse motivo, optamos pela Observação Participante como
forma de alcançar essas falas e procuramos observar o fenômeno em si, de forma tal
que a fala dos envolvidos constituísse a fonte primária de produção de sentido. Como
sugerido por Geertz:
[...] trata-se de como introduzir um autor testemunha ocular numa
história de retrato deles. Comprometer-se com uma concepção
essencialmente biográfica do Estar Lá, em vez de uma concepção
reflexiva, aventureira ou observacional, é comprometer-se com uma
abordagem confessional da construção do texto. (Geertz, 2009, p.112).
As etapas técnicas adotadas foram as seguintes:
Todas as reuniões foram registradas por meio de gravador digital. Esses
registros sonoros estão em processo de transcrição parcial para análise.
Além das gravações, nos baseamos nas anotações do caderno de campo feito
durante as reuniões. Essas anotações serão fundamentais para a recordação posterior
de percepções que emergiram no momento.
Tanto as gravações quanto o caderno de campo são utilizados como fontes e
não como material de descrição etnográfica, como feito geralmente em estudos
puramente antropológicos.
História Oral de Vida (HOV)
Diante da necessidade do testemunho pessoal de determinados participantes
para compreensão da experiência estética do LabHum, optamos pela investigação da
fonte oral, por meio da História Oral de Vida (Meihy; Holanda, 2007). Dessa forma,
os participantes voluntários – colaboradores em se tratando desta abordagem – foram
entrevistados e tiveram a oportunidade de expor suas experiências de forma mais
profunda, relacionando-a a outras esferas da sua vida. Isso nos proporcionará uma
visão mais abrangente do ocorrido.
Dos nove participantes regulares da atividade oito foram entrevistados,
considerando que uma das alunas não quis colaborar com a entrevista.
As seguintes etapas são seguidas para o completo cumprimento metodológico
da HOV:
Entrevista: os colaboradores que aceitaram ser entrevistados após terem sido
inteirados acerca do projeto de pesquisa e da metodologia da História Oral de vida,
assinarão o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), como exigido pelo
comitê de ética e pesquisa. As entrevistas foram gravadas digitalmente.
Transcrição: ocasião em que as entrevistas são transcritas integralmente.
Textualização: processo intermediário entre a transcrição e a transcriação, em que o
texto começa a tomar forma de discurso em primeira pessoa e as falas dos
colaboradores passam a ser elemento único no texto.
Transcriação: momento metodológico mais importante em História Oral, pois “a
transcriação nos aproxima do sentido e da intenção original que o colaborador quer
comunicar” (Meihy; Holanda, 2007, p. 135). Na transcriação, a entrevista passa a ser
definitivamente somente a fala do colaborador, transformando-se em uma narrativa
pessoal. É um “[...] ato de recriação para comunicar melhor o sentido e a intenção do
que foi registrado” (Meihy; Holanda, 2007, p. 136).
Conferência e aprovação do texto final: após a redação do texto transcriado, os
textos serão enviados para os colaboradores para serem conferidos e revistos e,
finalmente, aprovados pelo colaborador. Este será informado de ter completa
autonomia para alterar ou sugerir mudanças no texto caso houvesse informações que
não desejasse expor ou que de fato não fossem coerentes com seus interesses e
intenções.
Devolução: momento em que, após as devidas correções, o colaborador receberá
novamente o texto. Após as conferências por parte dos colabores estarem concluídas,
serão solicitadas as assinaturas da documentação pertinente à parte ética da pesquisa.
Relatórios
Os relatórios são exigência para avaliação e validação de créditos para os
alunos. Além disso, tratar-se de material de pesquisa. O objetivo é que se expressem
com liberdade a respeito da sua experiência, pois a possibilidade de liberdade na
escrita do relatório também é vista como momento de reflexão e de experiência de
produção de afetos. Não sabemos a quantidade de relatórios a serem analisados em
função de não sabermos a quantidade de alunos que teremos.
Interpretação de dados
Os textos produzidos são interpretados por meio do estilo de organização
denominado imersão/cristalização, o qual é inspirado na Fenomenologia
Hermenêutica (Borkan, 1999). No processo de imersão examinamos alguns dos dados
detalhadamente. A cristalização é o processo de suspender o exame dos dados a fim
de identificar e articular padrões ou temas observados durante a imersão. De acordo
com a concepção interpretativa-hermenêutica, analisamos os dados fragmentando e
reorganizando os fragmentos. As falas dos colaboradores são, assim, divididas de
forma a possibilitar um procedimento minucioso de interpretação de seus
significados, articulando-as entre si para poder formular hipóteses explicativas do
universo estudado (Duarte, 2004). Assim, a partir da análise profunda e exaustiva das
falas resultantes dos métodos de coleta, buscamos responder à questão fundamental
deste estudo, ou seja, se a experiência da arte pode ou não humanizar, à luz da
experiência pessoal com foco na dimensão da afetividade.
RESULTADOS PARCIAIS
Apresentaremos, nesta seção, alguns resultados preliminares que podem
indicar para uma efetiva relevância da literatura clássica como fonte de crítica da
tecnologia. Como base de dados para tal, usaremos de transcrições parciais das
gravações dos encontros e alguns trechos de entrevistas já realizadas, como indicado
na metodologia.
A maior dificuldade que encontramos em relação a realização da atividade que
fundamenta a pesquisa é em relação a adesão de alunos. Isso ocorre em função de
alguns fatores estruturais do curso. As optativas não são comuns na cultura acadêmica
dos estudantes. Além disso, o curso tem alto nível de evasão, o que afeta no interesse
dos alunos por atividades complementares.
Além disso, existe o fator de que os alunos não estão habituados a serem
motivados por esse tipo de leitura, pois o foco do curso é, evidentemente, atrelado à
estudos técnicos onde atividades de cunho humanístico são vistas, às vezes, com
estranhamento.
Entretanto, essa dificuldade inicial propõe, ainda, mais um aspecto positivo de
nossa atividade em relação à motivação pela leitura e reflexões, que configuram em
um déficit formativo na área em questão. Ou seja, ao passo em que os alunos tomam
ciência da atividade e os próprios colegas compartilham entre si suas experiências,
outros alunos mostraram interesse pela atividade. Tendo em vista as características
estruturais do curso e o perfil acadêmico dos quais os alunos estão habituados,
consideramos que nosso índice de adesão não pode ser considerado baixo ou ruim.
No primeiro semestre começamos com apenas 3 participantes. No segundo
nosso número subiu para 4, com participação eventual de alguns alunos que ficaram
interessados, mas não tinham tempo devido a outras atividades. Já no terceiro
semestre conseguimos alcançar, principalmente devido a divulgação dos próprios
alunos, o número de 10 participantes efetivos.
Apesar de poucos alunos, nossa metodologia justifica a não necessidade de
grande número de pessoas para fundamentar os resultados, tendo em vista que esses
são valorizados em sua individualidade.
O primeiro ponto importante a ser levantado é o fato de que os alunos
participantes no primeiro semestre continuaram até o fim das atividades, lendo e
discutindo todos os livros. Isso fortalece os resultados alcançados e possibilita melhor
acompanhamento dos aspectos pertinentes de acordo com nossas hipóteses.
Apontamentos dos alunos sobre a literatura e a reflexão sobre a tecnologia.
Em suas histórias de convivência, que em nossa metodologia se configura o
momento final de cada ciclo, onde os alunos compartilham a experiência que tiveram
em grupo, foi apontado a importância da metodologia da atividade no que se refere à
uma experiência mais profunda da leitura, por ser compartilhada em grupo.
Uma das alunas afirma, em sua história de convivência sobre o livro
“Frankenstein”:
[...] o que eu achei interessante é que tem a questão da tecnologia
nesse livro, né? É uma coisa assim, é a abordagem do cientista com
relação à sua obra. E é uma coisa bastante discutida, uma vez que a
gente está na universidade, né? O que é o fazer cientifico. Então, por
acaso, a gente tem algumas disciplinas que falam bastante sobre isso
também. E a gente acaba fazendo o link com o livro, né? Com o que
fazer, que relação com qualquer criação cientifica que você for fazer, é
a sua criatura. Aquilo que você fez vai ter uma vida própria depois.
Seja uma publicação que você fez, aquilo vai se propagar.”
Depois a aluna conclui:
Não termina por aí, né? Aquilo vai ter continuidade. Outras pessoas
vão ter acesso aquilo. Então, o fato de você poder pensar nisso, pra ter
mais consciência daquilo que você ta criando, é, veio a partir de uma
discussão que a gente fez com relação a história do livro. Então acho
que, nesse ponto, para mim foi uma coisa que acrescentou bastante.
Quando da discussão do “Hamlet”, um dos alunos fez o seguinte
depoimento:
Eu falei isso no começo da semana. Eu falei assim “uma das formas
de tentar compensar as mazelas desse sistema que a gente vive, que é
um país que ta doente, por N fatores, uma das formas de tentar
compensar é através da tecnologia”. Eu lembro que falei isso na
segunda feira. Todo mundo fica tentando achar alguma forma, uma
solução pra alguma coisa que te atrapalha. Aí você pode colocar o
rótulo que você quiser. De vingança, de justiça, de ajudar as pessoas,
pelo bem de quem, para quem, com qual objetivo, para qual escopo.
Eu não sei realmente se só a tecnologia ajuda ou precisaria de outros
fatores, ou outros fatores combinados também geram tecnologia.
Precisa de pessoas, porque tem muita técnica mas não tem gente.
Agora não sei se falei certo nesse momento.
Alguns aspectos são interessantes para entender a fala deste aluno. Ele
trabalha com tecnologia assistiva e oferece palestras sobre o tema. Levando em
consideração ainda que o conteúdo da obra lida não trata de tecnologia, porém, a
discussão levantada pelo livro a respeito da maldade humana, vingança, etc, o levou
a considerar que a tecnologia não seria suficiente para resolver os problemas
humanos, mesmo os que se tratam de ordem técnica. O significado para o termo
“gente” no final de sua afirmação é localizado no próprio contexto do debate, quando
o termo toma o sentido de “mais humano” ou “puramente humano”. Em certo
momento o aluno diz: “Eu não sei se diria isso novamente”. Se referindo a afirmação
de que a tecnologia poderia compensar de forma satisfatória nossas questões e
problemas existenciais, tanto da ordem técnica quanto pessoal. Desta forma, a
discussão levou o aluno a questionar a racionalidade técnica como caminho
suficiente para resolver questões da vida humana.
Em entrevista, após termino da realização da atividade, ao serem perguntados
se de alguma forma a disciplina influenciou na concepção de tecnologia,
encontramos alguns dados interessantes. A maioria dos alunos disseram nunca terem
refletindo, pelo menos não de forma tão profunda, sobre a questão. Neste sentido um
dos alunos diz:
É difícil pensar se teve uma influência ou não, né? Isso já responde a
pergunta, porque antes eu acho que nunca tinha pensado tão
criticamente a relação com a tecnologia. Essa é uma problematização
que eu não me lembro de ter feito antes do laboratório, ou pelo menos
de uma forma sistematizada.
Este aspecto é muito interessante, pois, das 9 entrevistas realizadas (levando
em consideração que uma das participantes não quis colaborar com a entrevista),
apenas um aluno disse já ter tido uma relação de reflexão sobre a tecnologia. Todos
os outros entrevistados afirmaram que, mesmo em relação à escolha de um curso de
graduação em tecnologias em saúde, nunca tinham refletido sobre, ou mesmo tido
interesse, sobre tecnologia. A motivação para a escolha do curso aparece como,
majoritariamente, por motivos profissionais. E mesmo depois te terem entrado no
curso, somente com a nossa atividade foi levado a refletir sobre.
Sobre a metodologia utilizada na atividade
Os alunos também apontam que nossa metodologia os levou a encarar a
literatura de uma outra forma, fazendo assim com que a experiência da leitura fosse
mais profunda e relevante aos temas que os afetam em vários âmbitos de suas vidas
pessoais. Esta característica convém ao nosso objetivo de fazer da leitura em grupo
uma real experiência estética e formativa, como proposto por nossos referenciais
teóricos e resultados anteriores de outras pesquisas envolvendo a mesma metodologia.
(Silva; Gallian; Schor, 2016).
Em sua história de convivência da discussão do “Frankenstein”, um dos
alunos se posiciona:
“Falando sério, primeiro eu queria, inclusive, te agradecer. Porque foi
uma experiência muito boa, nova, e que foi muito interessante. Nunca
tinha participado de uma discussão de um livro, uma leitura dessa
forma assim. E foi muito prazeroso, além de tudo. E foi muito
diferente. Eu não imaginava isso de um livro relativamente simples.
Pouco se espera de ler um livro sobre terror, né? Porque você vai
discutir Frankenstein? E deu pra perceber o quanto profundo pode ser
uma leitura. Como a discussão aprofunda e aumenta a forma de você
perceber um livro, né? Até a forma de ler. Depois que você já fez uma
primeira discussão, já começou a discutir o livro; inclusive a forma de
ler um livro, muda. Você já procura no livro uma outra visão, uma
outra análise, às vezes, não necessariamente mais profunda, mas de
outra forma. Porque você vai discutir com outras pessoas, então você
já faz uma leitura que tem um outro formato, né? Isso foi muito
interessante.”
Uma aluna completa:
E discutir um livro junto com outras pessoas é bem diferente de ler
sozinha, porque você realmente agrega as experiências mesmo. E a
impressão que dá é que também você passa a ler com um pouco mais
de atenção, uma vez que você vai ter que contar essa experiência de
estar lendo o livro também. Então já não é uma leitura tão... novela,
né? Ah, to lendo porquê... pra passar o tempo. Não, você vai ter que
extrair dali coisas que você vai ter que contar pra outras pessoas.
Então isso faz diferença. Não é a mesma coisa de ler sozinho em casa
na cama não.
Cada livro lido e discutido pelo grupo apresenta suas peculiaridades e temas
que devem ser minuciosamente abordados, e é clara a relação do enredo dos livros e o
levantando das questões que apareceram nos itinerários de leitura com aspectos da
vida cotidiana.
Sobre este aspecto, uma aluna coloca:
Então, é... E sem querer acontece também de os professores realmente
mencionarem, assim, eu acho que ouvi os professores se referindo ao
Frankenstein, assim, umas 5 vezes, em disciplinas diferentes, em
temas diferentes. Era a professora que tava falando sobre o próprio
trabalho que a gente não podia fazer uma colagem de varias coisas que
a gente encontra se não ia virar um monstro, né? Olha, ela ta falando
do Frankenstein (risos). Ou então a gente olha esses artigos né. Ah, a
minha perna ta doendo, troca! (risos). Sempre a gente ta lembrando do
livro. (risos). E ai, agora, fora, parece que tudo que você faz acaba
girando em torno daquilo que você ta lendo.
A relação entre tecnologia e cultura é evidente, porém, para além da forma
como é apresentada pela literatura. Os alunos apontam que a metodologia da
atividade fortalece essa percepção, o que sugere sentidos de leitura mais relevantes
para a vida. Os temas abordados e suscitados em grupo pela leitura são relacionados
com a vida, e neste caso, inclusive, com o tema da tecnologia e da produção
cientifica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa ainda está em andamento e não podemos explorar com
precisão e amplitude todos os aspectos observados, pois ainda não terminamos a
análise dos dados colhidos. Entretanto, com o posto pelos participantes, tanto nos
encontros como nas entrevistas realizadas, podemos ter uma dimensão do potencial
formativo da literatura com base em nossa metodologia.
Podemos perceber como a leitura de um livro pode resignificar o conceito de
tecnologia e do fazer cientifico. Sendo assim, relevante tanto profissionalmente
quanto pessoalmente em razão da riquesa conceitual dos debates. A experiência da
literatura, não por sí mesma, mas acompanhada do debate e das percepções dos outros
participantes, proporcionam certa ampliação das perspectivas particulares.
Outra questão verificada é que os alunos não estão habituados a fazerem
reflexões de cunho conceitual sobre a tecnologia e que a literatura pode proporcionar
um pensamento ao mesmo tempo critico e prazero em função das próprias
características das obras e da metodologia empregada na atividade.
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