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 An tón io Man uel He spa nha CULTURA JURÍDICA EUROPEIA   Síntese de um milénio

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  • Antnio Manuel Hespanha

    CULTURA JURDICA EUROPEIA

    Sntese de um milnio

  • A cultura jurdica europia apresentada pelo autor a partir de uma aprofundada e estimulante reflexo sobre qual deva ser o objeto de uma histria do direito e das instituies polticas que, ao mesmo tempo, se integre numa formao jurdica aberta aos ambientes do direito e, tambm por isso, permita aos historiadores no juristas entender melhor os impactos sociais do direito.

    ANTNIO MANUEL HESPANHA, Professor Catedrtico de Histria do Direito na Universidade Nova de Lisboa, foi Presidente da Comisso para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses, docente em vrias Faculdades portuguesas, de Direito, Histria e Cincias Sociais, e docente convidado nas Universidades de Totilpuse, Madri, Messina, Macau, Yale e Pablo O lavide' de Sevilha, e na cole de s Hautes tudes en Sciences Sociales, em Paris. Fundou e dirigiu a revista Penlope. Fazer e desfazer a histria e a revista Themis, da

  • "Creio que o verdadeiro trabalho poltico, numa sociedade como a nossa, o de criticar o funcionamento de instituies que parecem neutrais e independentes: critic-las de modo que a violncia poltica que sempre se exerceu, obscuramente, por meio delas seja desmascarada e possa ser combatida."

    Michel Foucault Human nature: justice versus power

    (debate with Noam Chomsky)

  • n d ic e

    Prefcio /1 71. A histria do direito na formao dos juristas/21

    1.1. A histria do direito como discurso legitimador/ 221.2. A histria critica do direito/33

    1.2.1. A percepo dos poderes "perifricos" / 351.2.2. O direito como um produto social/ 381.2.3. Contra a teleologia/41

    2. A importncia da histriajurdico-institucional como discurso histrico/4 53. Linhas de fora de uma novahistria poltica e institucional / 49

    3.1. O objecto da histria poltico-institucional.A pr-compreenso do "poltico" / 493.1.1. A crise poltica do estadualismo/ 493.1.2. A pr-comprenso ps-moderna do poder/523.1.3. Contra uma histria

    poltico-institucional actualizante / 543.1.3.1. A poltica implcita da ideia

    de "continuidade" (Kontinuittsdenken) / 543.1.3.2. A crtica do atemporalismo/ 56

    3.1.4. A descoberta do pluralismo poltico/623.2. Uma leitura densa das fontes/ 69

    3.2.1. Respeitar a lgica das fontes/ 703.2.2. A literatura tico-jurdica, como fonte

    de uma antropologia polticada poca pr-Contempornea / 75

  • 3.2.3. "Clculos pragmticos" conflituaise apropriaes sociais dos discursos / 82

    3.2.4. Texto e contexto. Modelos polticos e condicionalismos prticos.A sociologia histrica das formas polticas/85

    3.2.5. Interpretao densa dos discursos, histria dos dogmas e histria das ideias / 88

    3.3. Uma nota sobre "relativismo metodolgico" e "relativismo moral" e sobre o papel dos juristas, neste contexto/89

    4. O imaginrio da sociedade e do p od er/994.1. Imaginrios polticos/ 994.2. A concepo corporativa da sociedade/101

    4.2.1. Ordem e criao/1014.2.2. Ordem oculta, ordem aparente/1044.2.3. Ordem e vontade/1054.2.4. Ordem e desigualdade /1084.2.5. Ordem e "estados" /1114.2.6. Ordem e pluralismo poltico/114

    4.3. A dissoluo do corporativismoe o advento do paradigma individualista/116

    5. A formao do "direito comum" /1215.1. Factores de unificao dos direitos europeus/123

    5.1.1. A tradio romanistica /1235.1.1.1. Direito romano clssico,

    direito bizantino e direito romano vulgar /1235.1.1.1.1. Smula das pocas

    histricas do direito romano /1275.1.1.1.2. Sistematizao e mtodo

    de citao do Corpus luris Civilis/1295.1.1.1.3. Sistematizao e mtodo

    de citao do Corpus luris Canonicis /131

  • 5.1.1.1.4. Os estudos romansticos no quadro da formao dos juristas /132

    5.1.1.1.5. Smula cronolgica da evoluo do direito romano/139

    5.1.1.2. O direito romano na histria do direito portugus/140

    5.1.1.3. A recepo do direito romano/1415.1.1.4. A influncia do direito romano

    na prpria legislao local /1475.2. A tradio canonstica/148

    5.2.1. O lugar do direito cannico no seio do direito comum/152

    5.2.2. O direito cannico como limitede validade dos direitos temporais /153

    5.2.3. O direito cannico na histria do direito portugus /155

    5.2.4. Direito recebido e direito tradicional/1585.3. Resultado: uma ordem jurdica pluralista /160

    5.3.1. Uma constelao de ordens normativas/1635.3.2. Direito cannico e direito civil/1665.3.3. Direito comum e direitos dos reinos/1665.3.4. Direitos dos reinos

    e direitos dos corpos inferiores /1685.3.5. Direito comum e privilgios/1715.3.6. Direito anterior e direito posterior /1725.3.7. Normas de conflito de "geometria varivel" /1735.3.8. Uma ordem jurdica flexvel /174

    5.3.8.1. Flexibilidade por meio da graa/1755.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade/179

    5.4. Direito do reino em Portugal.pocas medieval e moderna /1835.4.1. Direito visigtico/183

  • 5.4.2. Feudalismo e direito feudal/1835.4.2.1. Bibliografia/189

    5.4.3. O costume/1895.4.4. A legislao/190

    5.4.4.1. Bibliografia/1965.5. A unificao pela "cientificizao".

    As escolas da tradio jurdica medieval /1975.5.1. A Escola dos Glosadores/1975.5.2. A Escola dos Comentadores/ 209

    5.6. O modelo discursivo do direito comum europeu/2205.6.1. Gnese do modelo do

    discurso jurdico medieval / 2205.6.1.1. Factores filosficos / 2225.6.1.2. Factores ligados natureza

    do sistema medieval das fontes de direito/ 2265.6.1.3. Factores institucionais/ 228

    5.6.2. A estrutura discursiva/2295.6.2.1. A oposio do "esprito" "letra" da lei/2305.6.2.2. A interpretao lgica/2315.6.2.3. A utilizao da dialctica aristotlico-

    escolstica e, especialmente, da tpica / 2335.6.2.4. Concluso/242

    . A crise do sculo XVI e asorientaes metodolgicas subsequentes/ 2456.1. Uma nova realidade normativa/ 2456.2. O desenvolvimento interno

    do sistema do saber jurdico / 2516.3. As escolas jurdicas tardo-medievais e modernas/255

    6.3.1. Escola culta, humanista ou "mos gallicus iura docendi" / 255

    6.3.2. Escola do "usus modernus Pandectarum" / 259

  • 6.4. Ius commune e common law/ 2626.5. A cultura jurdica popular / 2706.6. A doutrina em Portugal

    (pocas medieval e moderna) / 2796.6.1. Bibliografia/ 286

    7. As escolas jurdicas seiscentistas e setecentistas:jusnaturalismo, jusracionalismo,individualismo e contratualismo / 2897.1. Os jusnaturalismos / 289

    7.1.1. O jusnaturalismo da escolstica tomista / 2897.1.1.1. A Escola Ibrica de Direito Natural/291

    7.1.2. O jusnaturalismo racionalista (jusracionalismo) / 293

    7.1.3. O jusracionalismo moderno/ 2967.2. Algumas escolas jusnaturalistas / 297

    7.2.1. Os jusnaturalismos individualistas/ 3017.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos/3067.2.1.2. Voluntarismo/3107.2.1.3. Cientificizao/ 318

    7.2.2. A tradio do jusnaturalismo objectivista/ 3207.2.3. A cincia de polcia/3257.2.4. A ideia de codificao/329

    7.3. A prtica jurdica / 3327.4. O direito racionalista e as suas repercusses / 3367.5. O direito racionalista em Portugal/338

    7.5.1. Bibliografia / 3398. O direito na poca Contempornea / 341

    8.1. O contexto poltico/3418.2. Entre vontade e razo/ 345

    8.2.1. Democracia representativa e legalismo/ 3458.2.I.I. "Razo jurdica" vs. "razopopular"/351

  • 8.2.1.2. Tradio/3538.2.1.3. Direitos individuais / 3568.2.1.4. Elitismo social/ 3628.2.1.5. Estadualismo e "direito igual"/3658.2.1.6. O "mtodo jurdico"/3668.2.1.7. "Positivismoconceitual"

    e "Estado constitucional"/3698.2.2. Positivismo e cientismo/ 373

    8.3. As escolas clssicas do sculo XIX/3768.3.1. A Escola da Exegese. A origem do legalismo/ 3768.3.2. A Escola Histrica Alem.

    A vertente organicista e tradicionalista / 3838.3.2.1. A cultura jurdica portuguesa

    da primeira metade do sc. XIX/ 3888.3.3. A Escola Histrica Alem. A vertente

    formalista ou conceitualista. A jurisprudncia dos conceitos (Begriffsjurisprucknz)ou Pandectstica (Pandektemvissenscluift) / 3918.3.3.1. Os dogmas do conceitualismo/ 3998.3.3.2. O conceitualismo em Portugal/400

    8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas. Naturalismo, vitalismo e organicismo / 4028.4.1. A jurisprudncia teleolgica/ 4058.4.2. A Escola do Direito Livre/4068.4.3. A jurisprudncia dos interesses/ 408

    8.4.3.1. A jurisprudnciados interesses em Portugal / 410

    8.4.4. O positivismo sociolgico e o institucionalismo / 4118.4.4.1. Positivismo sociolgico

    e institucionalismo em Portugal/ 427

  • 8.4.5. A reaco anti-naturalista.Valores e realidade/4328.4.6. O apogeu do formalismo.

    A Teoria pura do direito / 4358.4.6.1. A reaco

    anti-sociologista em Portugal/4378.5. As escolas crticas / 442

    8.5.1. O sociologismo marxista clssico no domnio do direito / 443

    8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta/4498.5.3. A "crtica do direito"/4518.5.4. O "uso alternativo do direito"/453

    8.5.4.1. As correntes crticas em Portugal/4628.6. As escolas anti-legalistas / 466

    8.6.1. Sentidos gerais do anti-legalismo contemporneo / 467

    8.6.2. Em busca de uma "justia material" / 4698.6.3. Os jusnaturalismos cristos / 479

    8.6.3.1. O jusnaturalismo em Portugal/4848.6.4. O ps-modernismo jurdico / 486

    8.6.4.1. Direito do quotidiano/4928.6.4.2. O direito como universo simblico/4968.6.4.3. Um direito flexvel/4998.6.4.4. O pluralismo jurdico/ 5028.6.4.5. Construtivismo auto-referencial/507

    9. Bibliografia/513

  • P r e f c io

    O texto que agora lhes apresento tem sido utilizado, em sucessivas verses provisrias, nos meus cursos de Histria do Direito e, nessas mesmas verses, tem circulado entre pessoas prximas. Depois destes vrios anos de curso provisrio, em que foi crescendo e sendo posto prova, parece que passou os testes mnimos e que pode ser editado.

    Decidir editar mais um manual de histria do direito carece de uma boa razo. Creio que posso apresentar algumas para justificar a edio deste.

    , em primeiro lugar, um texto que me parece inverter a tendncia comum de privilegiar, na histria do direito, as pocas mais recuadas, com sacrifcio das mais recentes. Neste texto, pelo contrrio, os sculos XIX e XX ocupam quase metade do texto. Podendo, por outro lado, dizer-se que os ltimos captulos tratam exclusivamente do presente, para no dizer que tratam do futuro.

    Isto porque, tendo eu muito gosto e muito respeito pela histria - minha profisso e minha devoo - neste livro estou menos interessado em invocar antiqualhas do que em despertar os leitores para uma reflexo sobre o direito de hoje e sobre os seus problemas. Neste sentido, como explico na introduo, este livro , sua maneira, mais uma obra de propedutica jurdica do que um simples manual de histria. E, se no me engano, esta uma segunda boa razo para o editar.

    Finalmente, o texto est concebido como uma introduo histrica ao direito da Europa. Na verdade, de uma certa Europa. Por um lado, est dele excluda a Europa de Leste, subsidiria de uma comum matriz romanista, mas marcada por uma ciso, ao mesmo tempo lingustica, poltica e religiosa, que lhe conferiu um perfil histrico absolutamente distinto do Ocidente. Depois, o mundo anglo-saxnico ainda mal tocado, embora, na

  • 18 Antnio Manuel Hespanha

    descrio dos fundamentos polticos do direito contemporneo, o legado ingls (e norte-americano) seja necessariamente referido. Por fim, o mundo do Sul da Europa (incluindo a Ibria, a Itlia e, parcialmente, a Frana) ganha, na economia desta exposio, um relevo muito pronunciado; no se esquecendo, todavia, o peso importantssimo que tem tido, nas suas configuraesjurdicas mais recentes, o contributo da doutrina alem do direito e do Estado.

    A opo por uma descrio "europeia" - e no "nacional" - da histria do direito no se deveu, por certo, a preocupaes editoriais de rentabilizar o investimento, nem, to pouco, ao modismo europesta. Pelo contrrio, tem a ver mesmo com o objecto de estudo. Como se ver, em quase toda a sua histria, o direito desta Europa foi um direito comum, em que alguns estilos e especificidades locais apenas se destacavam sobre um esmagador fundo de caractersticas partilhadas. Encerrar a histria do direito da Europa nas fronteiras dos Estados , por isso, um artificialismo e uma fonte de apreciaes erradas.

    Alguns colegas e amigos leram este livro e trabalharam com ele. A sua actual verso pde beneficiar muito das suas sugestes. Entre eles esto, naturalmente, os colegas que, h vrios anos, colaboram nos meus cursos: a Ana Cristina Nogueira da Silva, o Lus Nuno Rodrigues, a Maria Carla Arajo, a Maria Catarina Madeira Santos, a Joana Estorninho. Mais recentemente, o Zhang Yong Chun, que tambm ajudou na preparao da verso chinesa deste texto. Em Espanha, os Professores Carlos Petit (Huelva) e Antnio Serrano Gonzlez (Barcelona) testaram- no com os seus alunos e deram-me sugestes importantes, tendo este ltimo preparado, com todo o saber e pacincia que tem, a edio castelhana. E, em Itlia, o mesmo fizeram vrios colegas, dos quais destaco, pelo labor de reviso da traduo italiana, o Prof. Aldo Mazzacane. Fico-lhes muito grato por isso. Agradeo tambm ao Francisco Lyon de Castro a afectuosa insistncia na edio deste livro.

    Finalmente, aos meus futuros leitores - temo que quase todos meus futuros alunos - peo que no responsabilizem esta mo cheia de bons amigos pelos enfados que o livro vos puder trazer.

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    As necessidades de adaptao provocadas pela preparao das edies chinesa, italiana e espanhola deste livro, levaram a empreender revises do seu texto, de resto tambm sugeridas pela experincia de quase cinco anos de uso acadmico.

    Nesta segunda edio portuguesa, foram inseridas, no fim de cada grande seco, referncias mais directas histria jurdica portuguesa, dispensveis em edies internacionais.

    Algumas seces foram revistas e actualizadas, nomeadamente no plano bibliogrfico. Outras foram introduzidas de novo, mesmo em relao s recentssimas edio espanhola e 3a ed. italiana. Sempre que possvel, as formulaes foram clarificadas. Alguns captulos foram amigamente lidos por colegas, a quem agradeo a colaborao, e a quem se devem muitos aperfeioamentos.

    Dedico esta edio do livro ao Prof. Nuno Espinosa Gomes da Silva, um dos mais sbios historiadores do direito que Portugal tem tido. Como no partilhamos exactamente dos mesmos gostos historiogrficos'nem escrevemos, no nosso mister, coisas muito aparentadas, logo se v que estas linhas que escrevo para ele se explicam por coisas - relativas maneira serena, discreta e elegante de ser e de viver a vida acadmica - muito mais profundas e decisivas do que as meras maneiras e modas de escrever a histria.

    Lisboa, Janeiro de 2003.

  • 1. A HISTRIA DO DIREITO NA FORMAO DOS JURISTAS

    Muito se tem escrito sobre a importncia da histria do direito na formao dos juristas. Que ela serve para a interpretao do direito actual; que permite a identificao de valores jurdicos que duram no tempo (ou, talvez mesmo, valores jurdicos de sempre, naturais); que desenvolve a sensibilidade jurdica; que alarga os horizontes culturais dos juristas. Para alm disso, a vida de todos os dias ensina-nos que os exemplos histricos do um certo brilho argumentao dos juristas e, nesse sentido, podem aumentar o seu poder de persuaso, nomeadamente perante uma audincia forense...

    Frequentemente, toda esta discusso acerca do interesse pedaggico da histria jurdica limita-se simples afirmao de que ela , para os futuros juristas, uma disciplina formativa. Mas raramente se diz exactamente porqu.

    A opinio adopta:da neste curso a de que a histria do direito , de facto, um saber formativo; mas de uma maneira que diferente daquela em que o so a maioria das disciplinas dogmticas que constituem os cursos jurdicos.

    Enquanto que as ltimas visam criar certezas acerca do direito vigente, a misso da histria do direito antes a de proble- matizar o pressuposto implcito e acrtico das disciplinas dogmticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias o racional, o necessrio, o definitivo. A histria do direito realiza esta misso sublinhando que o direito existe sempre "em sociedade" (situado, localizado) e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relaes com os contextos sociais (simblicos, polticos, econmicos, etc.), as solues jurdicas so sempre contingentes em relao a um dado envolvimento (ou ambiente). So, neste sentido, sempre locais.

    Esta funo crtica pode ser seguramente assumida por outras disciplinas, no mbito da formao dos juristas. A sociolo-

  • 22 Antnio Manuel Hespargia ou a antropologia jurdica ou certa teoria do direito (mesmo a semitica ou a informtica jurdicas) podem, seguramente, desempenh-la. No entanto, o conservadorismo da maior parte das Faculdades de Direito oferece uma resistncia muito sensvel - que tambm pode ser explicada sociologicamente (cf. Bour-dieu, 1986) - incluso destas disciplinas, uma vez que elas poriam em risco essa natureza implicitamente apologtica que os estudos jurdicos ainda tm. Alm de que - no dizer dos juristas mais convencionais - dissolveriam o estudo das normas, de que o jurista se deveria exclusivamente ocupar, no estudo de factos sociais, que constitui o tecido dos saberes sociais empricos, como a sociologia e a antropologia. Uma vez que a ideia de rigorosa separao (Trennungsdenken) entre os factos (Sein) e as normas (Sollen), provinda da teoria jurdica do sculo passado (cf. 8.3.3.1), continua a formar o ncleo da ideologia espontnea dos juristas (Bourdieu, 1986), esta intromisso de conhecimento social emprico no mundo dos valores jurdicos ainda largamente inaceitvel.

    Por tudo isto que, de um ponto de vista tctico, a histria do direito, que constitui uma disciplina tradicional nos currculos jurdicos, pode preencher - talvez com algumas vantagens adicionais - o papel que aquelas disciplinas indesejadas iriam desempenhar.

    Naturalmente que, para desempenar este papel, a histria do direito no pode ser feita de qualquer maneira. Pois, sem que se afine adequadamente a sua metodologia, a histria jurdica pode sustentar - e tem sustentado - diferentes discursos sobre o direito.

    .i. A histria do direito como discurso legitimador

    Realmente, a histria do direito pode desempenhar um papel oposto quele que se descreveu, ou seja, pode contribuir para legitimar o direito estabelecido.

    O direito, em si mesmo, j um sistema de legitimao, i.e., um sistema que fomenta a obedincia daqueles cuja liberdade

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    vai ser limitada pelas normas. Na verdade, o direito faz parte de um vasto leque de mecanismos votados a construir o consenso acerca da disciplina social.

    Porm, o prprio direito necessita de ser legitimado, ou seja, necessita de que se construa um consenso social sobre o fundamento da sua obrigatoriedade, sobre a necessidade de se lhe obedecer. Como se sabe desde Max Weber (1864-1920), a legitimao dos poderes polticos - ou seja, a resposta pergunta "porque que o poder legtimo ?" - pode ser obtida a partir de vrios complexos de crenas ("estruturas de legitimao"), organizadas em torno de valores como a tradio, o carisma, a racionalizao (Weber, 1956) - ou seja, "porque est estabelecido h muito", "porque inspirado por Deus", "porque racional ou eficiente". No mbito do mundo jurdico, alguns destes processos de legitimao - nomeadamente, a legitimao "tradicional" - dependem muito de argumentos de carcter histrico 1.

    A histria do direito desempenhou este papel legitimador durante um longo perodo da histria jurdica europeia, como se poder ver neste livro. No Antigo Regime, prevalecia uma matriz cultural tradicionalista, segundo a qual "o que era antigo era bom". Neste contexto, o direito justo era identificado com o direito estabelecido e longamente praticado - como o eram oscostumes estabelecidos ("prescritos"), a opinio comummente aceite pelos especialistas (opinio communis doctorum, opinio comum dos doutores), as prticas judiciais rotinadas (styli ciiriae, "estilos do tribunal"), o direito recebido (usu receptum, usu fir- matum), os direitos adquiridos ("iura radicata, enraizados), o contedo habitual dos contratos (natura contractus). Ento, a histria do direito (o "argumento histrico") desempenhava um papel decisivo de legitimao das solues jurdicas, pois era por meio da histria que essa durabilidade das normas podia ser

    1 Outros sistemas de legitimao da ordem so: a religio (o que Deus [os deuses] quis), a tradio (os "bons velhos tempos"), a natureza (o que tem que ser), a rotina (o que sempre se faz), o contrato (a "palavra dada").

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    comprovada. Mas permitia ainda a identificao das normas tradicionais e, logo, legtimas, pois era a histria que permitia determinar a sua antiguidade. O mesmo se diga em relao aos direitos que se deviam considerar como adquiridos, qualidade que s o tempo - e, logo, a histria - podia certificar. Os primeiros estudos de histria do direito - como os de Hermann Con- ring, De origine iuris gennanici [sobre a origem do direito alemo], 1643 (v., adiante, 6.3.2.) (cf. Fasold, 1987) - tinham claramente como objectivo resolver questes dogmticas, como a de determinar se certas normas jurdicas tinham tido aplicao anterior e, logo, se estavam vigentes no presente, a de interpretar o seu contedo, a de estabelecer hierarquias entre elas, a de determi-. nar a existncia de certos direitos particulares, etc..

    Um uso da histria deste tipo foi corrente at ao sc. XIX. Mesmo hoje, podemos encontrar propostas semelhantes sobre o interesse da histria jurdica. Nomeadamente, quando se dizque ela pode ajudar a definir o contedo da constituio - como pretendeu uma boa parte do constitucionalismo dos incios do sec. XIX2 a identidade (ou o "esprito") jurdica ou poltica de uma nao.

    O ncleo da filosofia jurdica da Escola Histrica Alem, no incio do sculo XIX (cf. 8.3.2.), era precisamente constitudo por esta ideia de que o direito surge do prprio esprito da Nao (Volksgeist), depositado nas suas tradies culturais e jurdicas. Por isso, a histria jurdica devia desempenhar um papel dogmtico fundamental, tanto ao revelar o direito tradicional, como ao proteger o direito contemporneo contra as inovaes (nomeadamente, legislativas) arbitrrias ("anti-naturais", "anti- nacionais"). Nos anos '30 e '40 deste sculo, estes tpicos voltaram a ser recuperados pelo pensamento jurdico conservador, ao reagir contra os princpios liberais em nome de valores nacionais imorredoiros ou de conceitos tambm nacionais de justia e de bem estar (cf. infra, 8.6.1.).

    2 Por exemplo, em Portugal, os primeiros constitucionalistas buscaram na histria os modelos para a constituio a fazer (ou a restaurar, a "regenerar''); cf. Hespanha, 1982a.

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    Nos nossos dias, com o impacto da ideia de "progresso", a tradio deixou de ser a principal estrutura de legitimao e, por isso, a histria do direito perdeu uma boa parte dos seus crditos como orculo do esprito nacional. Pelo menos no Ocidente, pois no Oriente - desde o Iro at Singapura ou China - a busca de uma teoria do direito liberta de categorias ocidentais, culturalmente estranhas, tende a atribuir histria um importante papel na revelao daquilo que se considera especificamente nacional. -

    Encarar a histria como uma via para a revelao do "esprito nacional" - se tal coisa de facto existisse3 - levantaria problemas metodolgicos muito srios. Na verdade, a conscincia metodolgica est hoje bem consciente de que a histria, mais do que descrever, cria (cf., infra, 1.2.3. ). Ou seja, aquilo que o historiador cr encontrar como "alma de um povo", na verdade ele - com as suas crenas e preconceitos - que o l pe. A prova a partir da histria - sobretudo, a prova histrica de entidades to evanescentes como o esprito nacional ou a cultura jurdico-poltica nacional - constitui uma construo intelectual que, portanto, diz mais sobre os historiadores seus autores do que sobre as crenas e as culturas do passado que se supe estarem a ser descritas.

    De qualquer modo, o argumento histrico no abandonou totalmente os terrenos do raciocnio jurdico, j que ele pode ser inserido noutras estratgias discursivas dos juristas.

    Por um lado, a histria tem podido ser usada para provar que certa categoria do discurso jurdico - v.g., "Estado", "direito pblico e privado", "pessoa jurdica" - ou uma soluo jurdica - v.g., a proteco legal do feto ou o princpio de que os contratos devem ser cumpridos ponto por ponto - pertencem "natureza das coisas" ou decorrem de categorias eternas da justia ou da razo jurdica. Aqui, a histria pode servir para mostrar

    3 Sobre a difcil sustentabilidade da ideia de "esprito nacional" perante o evidente pluralismo de valores das sociedades, nomeadamente das de hoje, v. infra, 8.6.4.4.

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    que, por exemplo, at j os juristas romanos ou os grandes doutores medievais teriam estado conscientes destas categorias e lhes teriam dado uma certa formulao.

    Numa perspectiva j um tanto diferente - e com uma diferente genealogia ideolgica - a histria poderia demonstrar, pelo menos, que se foram firmando consensos sobre certos valores ou sobre certas normas, e que esses consensos deveriam ser respeitados no presente. Era a isto que os juristas romanos se referiam quando definiam o costume como mores maiorum" (costumes dos antigos, continuamente ratificado por uma espcie de plebiscito tcito (tacita civium conventio)) (D.1,3,32-36) e lhe atribuam, por isso, um valor de norma. A histria seria, assim, o frum de um contnuo plebiscito, em que os presentes participariam, embora numa posio enfraquecida pela soma de "votos" j acumulada pelos passados. De alguma forma, esta ideia de um contnuo plebiscito verificvel pela histria subjaz tambm ideia, a que nos referiremos abaixo, de ela pode documentar o esprito de um povo.

    Como se depreender de seguida, esta ideia de plebescito pressuporia que, passados e presentes, estariam a abedecer ao que est estabelecido pelas mesmas razes; ou seja, que dariam o mesmo sentido aos seus "votos". Se isto no puder ser provado, no se pode falar de "consenso".

    Embora muitos conceitos ou princpios jurdicos sejam muito mais modernos do que geralmente se supe, verdade que h outros que parecem existir, com o seu valor facial (i.e., referidos com as mesmas palavras ou como frases), desde h muito tempo. Realmente, conceitos como pessoa, liberdade, democracia, famlia, obrigao, contrato, propriedade, roubo, homicdio, so conhecidos como construes jurdicas desde os incios da histria do direito europeu. Contudo, se avanarmos um pouco na sua interpretao, logo veremos que, por baixo da superfcie da sua continuidade terminolgica, existem rupturas decisivas no seu significado semntico. O significado da mesma palavra, nas suas diferentes ocorrncias histricas, est intimamente ligado aos diferentes contextos, sociais ou textuais, de cada

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    ocorrncia. Ou seja, o sentido eminentemente relacional 'ou local. Os conceitos interagem em campos semnticos diferentemente estruturados, recebem influncias e conotaes de outros nveis da linguagem (linguagem corrente, linguagem religiosa, etc.), so diferentemente apropriados em conjunturas sociais ou em debates ideolgicos. Por detrs da continuidade aparente na superfcie das palavras est escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido. E esta descontinuidade semntica frustra por completo essa pretenso de uma validade intemporal dos conceitos embebidos nas palavras, mesmo que estas permaneam.

    Alguns exemplos desta falsa continuidade. O conceito de fnmin, embora use o mesmo suporte vocabular desde o direito romano (familia), abrangia, no apenas parentelas muito mais vastas, mas tambm no parentes (como os criados ou os escravos \famuli]) e at os bens da "casa" 5. O conceito de obrigao como "vnculo jurdico" aparece com o direito romano; mas era entendido num sentido materialstico, como uma vinculao do corpo do devedor dvida, o que explicava que, em caso de no cumprimento, as consequncias cassem sobre o corpo do devedor ou sobre a sua liberdade (priso por dvidas). O conceito de "liberdade" comeou, na Grcia clssica, designar a no escravido, no mbito da comunidade domstica, distinguindo os fi- lhos-famlia dos escravos; mais tarde, na Roma republicana, designa, a no dependncia de outro privado, no mbito da comunidade poltica (na polis, respublica); em seguida, com o cristianismo, designa, a exclusiva dependncia da f em Deus, sendo compatvel, ento, com a dependncia temporal, mesmo com a escravatura; s muito mais tarde, incorpora a ideia de direito de auto-determinao, de liberdade de agir politicamente; ou

    4 /.e., relacionado com o de outros conceitos prximos que ocorram numa certa poca da histria do discurso (v.g., "liberdade" com "escravido", ou com "despotismo", ou com "anarquia"; "dem ocracia", ou com "m onarquia", ou com "aristocracia", ou com "ditadura", ou com "anarquia", ou com "totalitarismo").

    5 Cf. Hespanha, 1984b.

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    mesmo, ainda mais tarde, de receber do Estado o apoio necessrio (econmico, cultural, sanitrio) para exercer, de facto, essa virtual auto-determinao 6. A palavra "Estado" (status) era utilizada em relao aos detentores do poder (status rei romanae, status regni); mas no continha em si as caractersticas conceituais do Estado (exclusivismo, soberania plena, extensos privilgios "de imprio" relativamente aos particulares [jurisdio especial, irresponsabilidade civil, privilgio de execuo prvia])7 tal como ns o entendemos. A propriedade j foi definida pelos romanos como uma faculdade de "usar e abusar das coisas"; mas a prpria ideia de "abuso" leva consigo esta outra de que existe um uso normal e devido das coisas, que se impe ao proprietrio, o que exclui a plena liberdade de disposio que caracterizou, mais tarde, a propriedade capitalista 8.

    Assim, essa alegada continuidade das categorias jurdicas actuais - que parecia poder ser demonstrada pela histria - acaba por no se poder comprovar. E, cada esta continuidade, cai tambm o ponto que ela pretendia provar, o do carcter natural dessas categorias. Afinal, o que se estava a levar a cabo era a to comum operao intelectual de considerar como natural aquilo que nos familiar (naturalizao da cultura).

    Mas a histria jurdica pode ser integrada numa estratgia de legitimao ligeiramente diferente. De facto, h quem julgue ser possvel usar a histria para provar a linearidade do progresso (neste caso, do progresso jurdico).

    Partamos de um modelo histrico evolucionista. Ou seja, de um modelo que conceba a histria como uma acumulao progressiva de conhecimento, de sabedoria, de sensibilidade. Nesta perspectiva, tambm o direito teria tido a sua fase juvenil de rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as descobertas de geraes sucessivas de grandes juristas teriam

    6Barberis, 1999.7 Cia vero, 1982.8 Cf. Grossi, 1992.

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    feito progredir o direito, progressivamente, para o estado em que hoje se encontra; estado que, nessa perspectiva da histria, representaria um apogeu. Nesta histria progressiva, o elemento legitimador o contraste entre o direito histrico, rude e imperfeito, e o direito dos nossos dias, produto de um imenso trabalho agregativo de aperfeioamento, levado a cabo por uma cadeia de juristas memorveis.

    Esta teoria do progresso linear resulta frequentemente de o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que acabou por acontecer. Deste ponto de vista, sempre possvel encontrar prenncios e antecipaes para o que se veio a verificar (cf., infra, 1.2.3.). Mas normalmente perde-se de vista tanto todas as outras virtualidades de desenvolvimento, bem como as perdas originadas pela evoluo que se veio a verificar. Por exemplo, a perspectiva de evoluo tecnolgica e de sentido individualista que marca as sociedades contemporneas ocidentais tende a valorizar a histria do progresso cientfico-tcnico da cultura europeia, bem como as aquisies poltico-sociais no sentido da libertao do indivduo. Deste ponto de vista, a evoluo da cultura europeia deixa ler-se como uma epopeia de progresso e a sua histria pode converter-se numa celebrao disto mesmo. Mas o que se perde a noo daquilo que, por causa deste progresso, se fechou como oportunidade de evoluo ou que se perdeu. Como, por exemplo, o equilbrio do ambiente, os sentimentos de solidariedade social.

    Enfim, a histria progressista promove uma sacralizao do presente, glorificado como meta, como o nico horizonte possvel da evoluo humana e tem inspirado a chamada "teoria da modernizao", a qual prope uma poltica do direito baseada num padro de evoluo artificialmente considerado como universal. Neste padro, o modelo de organizao poltica e jurdica das sociedades do Ocidente (direito legislativo, codificao, justia estadual, democracia representativa, etc.) proposto como um objectivo universal de evoluo scio-poltica, paralelo abertura do mercado no plano das polticas econmicas (Wehler, 1975; Baumann, 1993,2001; cf., tambm, infra, 8.6.4.4).

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    Estas duas ltimas estratgias - a "naturazadora" e a "progressista" - de sacralizao do direito actual por meio da utilizao da histria repousam numa certa forma de a contar. De facto, as matrias histricas relevantes so identificadas a partir do leque dos conceitos e problemas jurdicos contemporneos. Isto leva a uma perspectiva deformada do campo histrico, em que os objectos e as questes so recortados a partir do modo de ver e conceber o direito nos dias de hoje. Assim, o presente imposto ao passado; mas, para alm disso, o passado lido a partir (e tornado prisioneiro) das categorias, problemticas e angstias do presente, perdendo a sua prpria espessura e especificidade, a sua maneira de imaginar a sociedade, de arrumar os temas, de pr as questes e de as resolver.

    Esta ignorncia da autonomia do passado leva, pelo menos, a perplexidades bem conhecidas da investigao histrica: como a grelha de interrogao das fontes a dos nossos dias, frequente que estas no possam responder s nossas (anacrnicas) questes. Por exemplo, para aqueles que no estejam conscientes de que uma boa parte da teoria constitucional do Antigo Regime tem que ser buscada na teoria da justia e da jurisdio, as fontes jurdicas doutrinais das pocas medieval e moderna podem parecer mudas sobre a problemtica do poder poltico supremo. O mesmo se diga da teoria da administrao, que no poder ser encontrada nessas fontes doutrinais, a no ser que se procure ou na teoria do judicium (i.e., na teoria da organizao judicial) ou na teoria (moral) do governo domstico (oeconomia) (cf., v.g., Cardim, 2000). tambm na tratadstica moral sobre as virtudes (como a beneficentia, a gratitudo ou a misericrdia) que podem ser encontrados os fundamentos da teoria das obrigaes, da usura ou, mesmo, do direito bancrio (cf., v.g., Clavero, 1991).

    Contudo, a vinculao do passado ao imaginrio contemporneo pode levar a consequncia ainda mais srias. Possivelmente, a uma total incompreenso do direito histrico, sempre que a sua prpria lgica for subvertida pelo olhar do historiador. Por exemplo, isto acontece quando se lem as cartas rgias que, na Idade Mdia, protegiam a inviolabilidade do domiclio

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    (enquanto expresso territorial do poder domstico) como antecipaes das modernas garantias constitucionais de proteco da privacidade individual. Na verdade, o que ento estava em jogo era a autonomia da esfera domstica frente esfera poltica da respublica, no mbito de uma constituio poltica pluralista, em que os poderes perifricos competiam com o poder central. Bem pelo contrrio, nada estava mais fora de causa do que a ideia de proteger direitos individuais, os quais eram ento completamente sacrificados no prprio seio da ordem domstica. Outra ilustrao do mesmo erro seria uma leitura "representativa" (no sentido de hoje) das antigas instituies parlamentares (as "cortes" ibricas ou os parlamentos franceses de Antigo Regime); embora se tratasse de assembleias que "representavam" o reino, a ideia de representao que aqui domina , no a actualmente corrente na linguagem poltica, mas antes a corrente hoje na linguagem do teatro - os actores tornam visveis (apresentam publicamente) os personagens, mas no so seus delegados, seus mandatrios, no exprimem a sua vontade; do mesmo modo, os parlamentos visualizam o corpo poltico (mstico e, por isso, de outro modo invisvel) do reino. Tambm o vincar a sistematizao contempornea do direito civil (parte geral, obrigaes, direitos reais, direito da famlia, direito das sucesses) na descrio do direito antigo impe a este relaes sistemticas que no eram ento perceptveis: v.g., as matrias de famlia no se liam como separadas das matrias sucessrias. Num plano ainda mais fundamental, o direito hoje dito "civil" no se distinguia fundamentalmente do direito hoje dito "pblico", porque - nos sistemas jurdicos de Antigo Regime - o prncipe no tinha, em geral, as prerrogativas jurdicas especiais que depois foram atribudas ao Estado (nomeadamente, a podia ser chamado por um particular perante a jurisdio ordinria, no podia, em geral, impor unilateralmente o sacrifcio de um direito particular); em suma, era, para a generalidade dos efeitos, um particular, cujas relaes com os sbditos eram regidas pelo direito comum (civil). Num plano ainda superior, seria completamente absurdo projectar sobre o passado as ac-

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    tuais fronteiras disciplinares entre direito, moral, teologia e filosofia, procurando, por exemplo, isolar o direito dos restantes complexos normativos.

    Deve anotar-se que a questo da submisso da narrativa do historiador aos conceitos e representaes do presente tem sido muito discutida desde o sculo passado. H quem, com razo, (i) considere que esta situao inevitvel, j que o historiador nunca se consegue libertar das imagens, preconceitos (pr-com- preenses) do presente. E h tambm quem - nomeadamente no domnio da histria do direito - (ii) considere que esta leitura "actualizante" (present min approach) da histria a condio para que os factos histricos nos digam algo, sejam inteligveis, permitam tirar lies9. A primeira posio (i) aponta a impossibilidade radical de um conhecimento histrico objectivo, que subjaz tambm, de forma muito sensvel, a esta nossa introduo metodolgica. S que, do nosso ponto de vista, isto uma limitao e no uma vantagem do conhecimento histrico. A segunda questo (ii), porm, suscita todas as objeces referidas no texto. Que podem ser resumidas nesta: o alegado "dilogo histrico" que se obtm por uma perspectiva actualista , de facto, um monlogo entre o historiador e uns sujeitos histricos desprovidos de autonomia, uns bonecos de ventrloquo em que ele transforma os actores do passado, dando-lhes voz, emprestando-lhe palavras e impondo-lhe pensamentos.

    Uma ltima estratgia legitimadora nos usos da histria do direito segue um caminho diferente. O que nesta est em jogo j no a legitimao directa do direito, mas a da corporao dos juristas que o suportam, nomeadamente dos juristas acadmicos.

    Na verdade, os juristas tm uma interveno diria na adjudicao social de faculdades ou de bens. Isto confere-lhes uma papel central na poltica quotidiana, embora com o inerente preo de uma exposio permanente crtica social. Uma estrat

    9 Cf. Grossi, 1998, 274, referindo-se a uma obra clssica de Emlio Betti, Diritto romano e dogmatica odiema, 1927, hoje publicada em Betti, 1991.

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    gia de defesa deste grupo a de desdramatizar ("eufemizar", Bourdieu, 1986) a natureza poltica de cada deciso jurdica e, por isso, o seu carcter "poltico" ("arbitrrio", no sentido de que depende de escolhas de quem decide e no de leis ou princpios imperativos). Ora, uma forma de "despolitizar" ("despotenciar", "eufemiziar") a interveno dos juristas apresentar o veredicto jurdico como uma opo puramente tcnica ou cientfica, distanciada dos conflitos sociais subjacentes.

    Esta operao de neutralizao poltica da deciso jurdica tornar-se- mais fcil se se construir uma imagem dos juristas como acadmicos distantes e neutrais, cujas preocupaes so meramente tericas, abstractas e eruditas. Uma histria jurdica formalista, erudita, alheia s questes sociais, polticas e ideolgicas e apenas ocupada de eras remotas, promove seguramente uma imagem das Faculdades de Direito como templos da cincia, onde seriam formadas tais criaturas incorpreas. A onda de medievismo que dominou a historiografia jurdica continental at aos anos '60 - contempornea do manifesto de Hans Kelsen no sentido de "purificar" a cincia jurdica de ingredientes polticos (cf. infra, 8.4.6.) - teve esse efeito de legitimao pela cincia, justamente numa poca de fortssimos conflitos poltico-ideol- gicos em que os juristas tiveram que desempenhar uma importante funo "arbitrai" 10.

    1.2. A histria crtica do direito

    Os objectivos gerais de uma histria crtica do direito foram evocados antes. Tratar-se- agora da questo das estratgias cientficas e das vias metodolgicas mais convenientes (Scholz, 1985; Hespanha, 1986a, 1986b).

    A primeira estratgia deve ser a de instigar uma forte conscincia metodolgica nos historiadores, problematizando a concepo ingnua segundo a qual a narrativa histrica no seno o

    10 V., sobre isto, para Portugal, Hespanha, 1981.

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    simples relato daquilo que "realmente aconteceu". que, de facto, os acontecimentos histricos no esto a, independentes do olhar do historiador, disponveis para serem descritos. Pelo contrrio, eles so criados pelo trabalho do historiador, o qual selecciona a perspectiva, constri objectos que no tm uma existncia emprica (como curvas de natalidade, tradies literrias, sensibilidades ou mentalidades) ou cria esquemas mentais para organizar os eventos, como quando usa os conceitos de "causalidade", de "genealogia", de "influncia", de "efeito de retorno"(feedback). A nica coisa que o historiador pode verificar so sequncias meramente cronolgicas entre acontecimentos; tudo o resto so inferncia suas (v.g., transformar uma relao de pre- cedente-consequente numa relao de causalidade [post ergo propter] ou de genelogia-influncia [prior ergo origo]). Os historiadores devem estar conscientes (i) deste artificialismo da "realidade" historiogrfica por eles criada, (ii) da forma como os seus processos mentais modelam a "realidade" histrica, ou seja, do carcter "poitico" (criador) da sua actividade intelectual e (iii) das razes social e culturalmente embebidas deste processo de criao.

    Esta estratgia leva naturalmente a uma crise de ideais como o de "verdade histrica", a ponto de alguns autores no hesitarem em classificar a histria como um gnero literrio, embora (tal como os outros gneros) dotado de uma organizao discursiva especfica, ou seja, de regras que permitem validar os seus resultados (White, 1978,1987; Hespanha, 1990a). por esta ltima razo que a classificao do saber histrico como um gnero literrio no significa que o ele repouse na arbitrariedade; significa, antes, que o rigor histrico reside mais numa coerncia interna do discurso - numa observncia de "regras de arte" convencionais - do que numa adequao "realidade" histrica. Afinal, esta proposta no representa mais do que a aplicao prpria histria jurdica do mesmo mtodo - de desvendar as razes sociais e culturais das prticas discursivas - que ela pretende aplicar ao discurso que forma o seu objecto - no nosso caso, o discurso jurdico.

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    A segunda estratgia a de eleger como objecto da histria jurdica o direito em sociedade.

    Esta linha de evoluo, que domina a historiografia contempornea a partir da cole des Annales (com a sua ideia cie uma "histria total") leva a unia histria do direito intimamente ligada histria dos diversos contextos (cultura, tradies literrias, estruturas sociais, convices religiosas) com os quais (e nos quais) o direito funciona.

    Este projecto - que no pe em causa, como alguns parece temerem - a especificidade da histria jurdica, como se ver - pode ser decomposto numa srie de linhas de orientao.

    1.2.1. A percepo dos poderes perifricos

    Antes de mais, as normas jurdicas apenas podem ser entendidas se integradas nos complexos normativos que organizam a vida social. Neste sentido, o direito tem um sentido meramente relacional (ou contextuai). O papel da regulao jurdica no depende das caractersticas intrnsecas das normas do direito, mas do papel que lhes assignado por outros sistemas normativos que formam o seu contexto. Estes sistemas so inmeros - da moral rotina, da disciplina domstica organizao do trabalho, dos esquemas de classificar e de hierarquizar s artes de seduo. O modo como eles se combinam na construo da disciplina social tambm infinitamente varivel.

    Algumas das mais importantes correntes da reflexo poltica contempornea ocupam-se justamente com estas formas minimais, persuasivas, invisveis, "doces", de disciplinar (Fou- cault, 1978,1980,1997; Bourdieu, 1979; Santos, 1980b, 1989,1995; Hespanha, 1983; Serrano Gonzlez, 1987a, 1987b; Levi, 1989; Boltanski, 1991; Thvenot, 1992; Cardim, 2000). Muitas destas formas no pertencem aos cumes da poltica, vivendo antes ao mais baixo nvel (au ras du sol, Jacques Revel) das relaes quotidianas (famlia, crculos de amigos, rotinas do dia a dia, intimidade, usos lingusticos). N esse sentido, estes mecanismos de normao podem ser vistos "direitos do quotidiano" (cf. infra,

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    8.6.4.1; Sarat, 1993), gerado por poderes "moleculares" (Felix Guattari), "microfsicos" (Michel Foucault), dispersos por todos os nichos das relaes sociais. Contudo, estes poderes e estes direitos manifestam uma resistncia que falta generalidade das normas e instituies do direito oficial.

    Esta imagem da sociedade como auto-organizada num esquema pluralstico de ordens jurdicas no novo. Nasceu - se considerarmos apenas a poca contempornea - no sculo XIX, pois foi ento que apareceu a ideia de que a sociabilidade humana estava organizada objectivamente em instituies imanentes e necessrias perante as quais a ordem do Estado era quase impotente (cf. infra, 8.2.1.3 e 8.4.4.). Estes pontos de vista tinham sido antes preparados pelo pensamento reaccionrio do sculo XIX, que continuava temticas da teoria poltica do Antigo Regime (cf. infra, 4.2.). J no nosso sculo, tanto as correntes anti- liberais e anti-democrticas (. Lousse, O. Brunner, J. Evola), como as correntes liberais, deixaram tambm a sua marca neste pensamento poltico anti-estatalista.

    Embora bebendo de outras fontes e inspiraes, a teoria poltica mais recente volta a este imaginrio pluralista da ordem poltica e consequente tendncia para descentrar o direito oficial no seio de uma constelao inorgnica de mecanismos de disciplina, sublinhando, em contrapartida, o papel conformador de humildes e discretos mecanismos normativos da vida quotidiana.

    A "teoria crtica" da Escola de Frankfurt problematizou a ideologia da neutralidade poltica e insistiu em que qualquer actividade humana tem uma componente poltica e disciplina- dora, nomeadamente, as do nvel cultural e simblico. Nesta mesma linha, M. Foucault referiu-se ao carcter molecular do poder, sua omnipresena na sociedade ("pan-politizao") e necessidade de a teoria poltica se assumir, para captar o poder em toda a sua extenso, como uma "micro-fsica" do poder (Foucault, 1978). Da antropologia jurdica, chegou a ideia de "pluralismo", da coexistncia de diferentes ordens jurdicas, legais ou costumeiras, no mesmo espao social (Hooker, 1975;

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    Geertz, 1963,1983; Chiba, 1986; cf. infra, 8.6.4.4). Finalmente, o ps-modernismo trouxe uma nova sensibilidade em relao s formas implcitas, informais e quotidianas de poder (Toffler, 1990; Hespanha, 1992a; Santos, 1994,1995; Sarat, 1993; Bauman, 1993; cf. infra, 8.6.4.), tendo chamado tambm a ateno para a forma como o Estado - a grande criao da "modernidade" - procurou desarticular essas formas ou, pelo menos, tomar invisvel essa dimenso micro da poltica (Bauman, 2001: pginas de antologia, 26 ss.). por isso que se pode dizer que a historiografia jurdica dos nossos dias se apoia tanto em temas provindos da mais acadmica reflexo terica como numa pr-compre- enso do mundo com razes na mais recente cultura contempornea.

    Foi daqui que resultou a sensvel tendncia actual dos historiadores do direito para alargarem o seu campo de pesquisa para alm do mbito do direito oficial, integrando nele todos os fenmenos de normao social, independentemente das suas habituais etiquetas. Desde as normas religiosas, aos costumes, desde as regras de organizao (management) s formas mais evanescente e difusas da ordem. Embora esta vaga esteja a chegar aos estudos de histria jurdica contempornea - em que a ideia de pluralismo jurdico desafia cada vez mais ousadamente a antiga ideia de que o direito se reduzia constituio, ao cdigo e lei do Estado -, a mais profcua massa de estudos continua a incidir sobre a sociedade e poltica de Antigo Regime: o direito informal, o direito das comunidades rsticas e camponesas, o amor e a amizade como sentimentos polticos (Clanchy, 1993; Hespanha, 1983, 1993b; Clavero, 1993; Cardim, 2000), a organizao d.o saber (Avellini, 1990; Petit, 1992), a organizao do discurso (Grossi, 1992; Costa, 1969, 1986; Beneduce, 1996; Petit, 2000), a disciplina domstica (Frigo, 1985a), a caridade e a assistncia (Serrano Gonzlez, 1992) n.

    11 Sobre esta evoluo, cf. De Benedictis, 1990; Schaub, 1995.

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    Contudo, o direito em sociedade no consiste apenas em considerar o papel do direito no seio de processos sociais (como o da instaurao da disciplina social), mas tambm em considerar que a prpria produo do direito (dos valores jurdicos, dos textos jurdicos) , ela mesma, um processo social. Ou seja, algo que no depende apenas da capacidade de cada jurista para pensar, imaginar e inventar, mas de um complexo que envolve, no limite, toda a sociedade, desde a organizao da escola, aos sistemas de comunicao intelectual, organizao da justia, sensibilidade jurdica dominante e muito mais.

    Este tpico obriga a que se considere o processo social de produo do prprio direito na explicao do direito. Sublinhmos "prprio" para destacar que no estamos a aderir a modelos de explicao muito globais, desses que relacionam qualquer fenmeno social com um nico centro de causalidade social (v.g., a estrutura econmica, como do determinismo economicista de um certo marxismo, ou o subconsciente individual, como do determinismo psicanaltico de Freud) (cf. Bourdieu, 1984).

    Na verdade, parecem muito mais produtivos modelos de explicao sociolgica de muito mais curto alcance, que relacionam os efeitos (culturais, discursivos) com a dinmica especfica do espao (ou nvel, instncia) social particular em que eles so produzidos. No nosso presente caso, a ideia a de relacionar o direito com os espaos sociais ("campos", para usar a terminologia de Bourdieu 12, "prticas discursivas" ou "dispositi-

    1.2.2. O direito como um produto social

    12 Resumindo grosseiramente, Pierre Bourdieu relaciona cada prtica de produo de sentido ("prticas simblicas") com os seus contextos sociais de produo (a que chama "cam pos") e com as lutas e conflitos entre os agentes de produo que se desenvolvem em cada camo (cf. aplicao ao direito, Bourdieu, 1986). "Le pouvoir symbolique est un pouvoir qui est en mesure de se faire reconnatre, d'obtenir la reconnaissance ; c'est--dire un pouvoir (conomique, politique, culturel ou autre) qui a le pouvoir de se faire mconnatre dans sa vrit de pouvoir, de violence et d'arbitraire. L'efficacit propre de ce pouvoir s'exerce non dans l'ordre de la force physique, mais dans l'ordre

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    vos", para utilizar a de M. Foucault)13, explicando a partir da os efeitos (jurdicos) produzidos.

    du sens de la connaissance. Par exemple, le noble, le latin le dit, est un no- bilis , un homme "con n u ", "reco n n u "", "D voiler les ressorts du pouvoir", ininterventions Science sociale et action politique, Agone, 2002, pp.173- 176) ; Dans un champ, les agents et les institutions luttent, suivant les rgularits et les rgles constitutives de cet espace de jeu (et, dans certaines conjonctures, propos de ces rgles m m es), avec des degrs divers de force et par l, des possibilits diverses de succs, pour s'approprier les profits spcifiques qui sont en jeu dans le jeu. Ceux qui dom inent dans un cham p donn sont en position de le faire fonctionner leur avantage, mais ils doivent toujours com pter avec la rsistance, la contestation, les revendications, les prtentions, "politiques" ou non, des dom ins." (Rponses, Seuil, 1992, p .78); "C ontre l'illusion de l'"intellectuel sans attaches ni racin es", qui est en quelque sorte l'idologie professionnelle des intellectuels, je rappelle [...] que l'appartenance au champ intellectuel implique des intrts spcifiques, n o n seu lem en t, Paris co m m e M oscou, des postes d'acadm icien ou des contrats d'dition, des com ptes-rendus ou des postes universitaires, mais aussi des signes de reconnaissance et des gratifications souvent insaisissables pour qui n 'est pas mem bre de l'univers mais p ar lesquelles on donne prise toutes sortes de contraintes et de censures.", (Questions de sociologie, Minuit, 1984, p .70). (Sobre Bourdieu, coin dos bio-bibliogrficos, textos e um glossrio elem entar: h t t p : / / w w w .hom m e- m o d ern e .o rg /so cie te /socio /b o u rd ieu / [2002-08-15].

    13E m term os muito genricos, M. Foucault considera que cada discurso tem as suas regras de form ao (a sua "ord em ") e que esta no depende do autor mas do prprio processo de escrita, sendo que este est relacionado com condies materiais e objectivas ("dispositivos") da escrita (da "criao "), aqui se com preendendo as tradies literrias em que o discurso se desenvolve, o modelo de diviso do trabalho intelectual dom inantes nesse m om ento, os objectos que surgem com o m aterial de observao, etc.. A este estudo do discurso como confluncia de determ inaes externas ao autor cham a Foucault "arqueologia" (modelo de estudo que ele ope, tanto ao modelo biogrfico, centrado no autor, e ao estudo genealgico, centrado na "in flu n cia". O livro fundam ental de Fou cault, sobre este tem a, L'archologie du savoir, 1969. Traduo portuguesa de alguns textos im portantes de Foucault (nom eadam ente, para os efeitos presentes, "A ordem do discurso" e "O m nes etsingulatin - para um crtica da razo poltica", em h ttp ://w w w .foucault.hpg.ig.com .br/biblio.htnil [2002-08-15].

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    Por isso, a histria do direito ser a histria do "cam po jurdico", das "prticas discursivas dos juristas", dos "dispositivos do direito", pois todas estas expresses so algo equivalentes. A primeira, sublinhando as lutas entre os agentes para hegemonizar um campo particular; a segunda e terceira dando nfase fora estruturante de entidades objectivas, como o prprio processo de escrita (o "texto") ou a organizao das prticas. Seja como for, a ideia comum a qualquer delas a da autonomia do direito em relao aos momentos no jurdicos das relaes sociais. A que acrescentaramos mesmo - para realar o aspecto conformador que o discurso jurdico tem sobre outros discursos (mais numas pocas do que noutras) - a ideia ainda mais forte de que o imaginrio jurdico - produzido pelas condies especficas dos discursos e rituais do direito - pode mesmo modelar imaginrios sociais mais abrangentes, bem como as prticas sociais que deles decorram.

    Esta ltima ideia ainda mais decisiva se considerarmos que os valores jurdicos perduram no tempo. So produzidos uma vez, mas so continuamente (re)lidos (ou recebidos). De acordo com a "teoria da recepo" (Holub, 1989), receber um texto (tomada a palavra no seu sentido m ais vasto) (re)produzi-lo, dando-lhe um novo significado, de acordo com a nova maneira como ele integrado no universo intelectual (e emocional) do leitor. Como os textos jurdicos participam desta abertura a novos contextos, a histria do direito tem que evitar a reificao do significado dos valores, categorias ou conceitos, j que estes - por dependerem menos das intenes dos seus autores do que das expectativas dos seus leitores - sofrem permanentes modificaes do seu sentido (contextuai).

    Mas - neste processo de contnuas re-leituras - alguma coisa de permanente resiste a estas sucessivas re-apropriaes; da o peso da tradio jurdica, com a fora das palavras e dos conceitos do passado sobre os seus usos no presente. Da a importncia que, em contrapartida, deve tambm ser atribuda ao ha-

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    bitus14 inculcado pela tradio literria em que o leitor se formou (e em que o prprio texto est integrado) (v., j a seguir, "Contra a teleologia.").

    E por isso que h uma certa circularidade na hermenutica histrica dos textos. Eles so apropriados por um leitor formado por uma tradio textual de que os mesmos textos fazem parte (contexto inter-textual). Porm, existe tambm um momento dinmico neste crculo, pois a nova leitura tambm conformada por outros factores contextuais que esto fora desta tradio textual (momentos extra-textuais), empurrando o leitor para outras paisagens intelectuais (outros discursos ou tradies literrias, outros imaginrios culturais, outras expectativas sociais, outros interesses).

    1.2.3. Contra a teleologia

    A terceira estratgia de uma histria crtica do direito a de insistir no facto de que a histria jurdica (como a histria em geral) no constitui um desenvolvimento linear, necessrio, progressivo, escatolgico.

    Isto significa, em primeiro lugar, que na histria h des- continuidade e ruptura - ideia bastante consensual entre os his

    14 O conceito , de novo, de P. Bourdieu: "Estrutura estrurante que organiza as prticas e a percepo das prticas ; o habitus tambm uma estatura estruturada : o princpio de diviso em classes lgicas que organiza a percepo do mundo social , ele prprio, o produto da incorporao da diviso em classes sociais", (La Distinction, Minuit, 1979, p.191); "Os condicionamentos associados a uma classe particular de condies de existncia produzem hbitos, sistemas de disposies durveis e transmissveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princpios geradores e organizadores de prticas e de representaes que podem ser objectivamente adaptadas os seus fins sem supor a orientao consciente para esses fins e o domnio expresso das condies necessrias para os atingir, objectivamente "reguladas" e "regulares" sem serem, de forma alguma, o produto de obedincia a regras e sendo tudo isto colectivamente orquestrado sem ser o produto de uma aco organizadora de um m aestro", (Le sens pratique, Minuit, 1980, p.88).

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    toriadores. Mas os juristas (e os historiadores do direito) tendem a crer que o direito constitui uma antiga tradio agregativa, em que as novas solues se somam s mais antigas, aperfeioando-as ou actualizando-as.

    Se se destacar a ideia de descontinuidade, o papel da tradio - que sempre foi tido como to importante em direito - precisa de ser clarificado. Na verdade, na ideia de ruptura j estava implcito aquilo que acabmos de dizer acerca da natureza contextuai do sentido. Se os sentidos (ou os valores) so relacionais, estando sempre ligados com os seus contextos, qualquer mudana no contexto do direito corta-o da tradio prvia. A histria do direito ser assim constituda por uma sucesso de sistemas jurdicos sincrnicos, fechados uns em relao aos outros. O sentido de cada instituto ou de cada princpio deve ser avaliado pela sua integrao no contexto dos outros institutos e princpios que com ele convivem contemporaneamente; e no nos institutos ou princpios que o antecederam (na sua "genealogia" histrica). Ou seja, o direito recompem-se continuamente e, ao recompor-se, recompe a leitura da sua prpria histria, da sua prpria tradio, actualizando-as.

    Mas, por sua vez, a tradio tambm um factor de construo do direito actual. Porque, se o direito actual recompe (rel) a tradio, o certo que com os instrumentos (intelectuais, normativos, rituais, valorativos) que uma certa tradio intelectual lega ao presente, que o direito d o presente pensado. Neste sentido, a tradio parece estar muito presente no direito, e sob diversas formas - tradies literrias, casos decididos, leis que se mantm no tempo, costumes que continuam vigentes, cerimnias e rituais herdados do passado. E o trabalho de produo de novos efeitos jurdicos (novas normas, novos valores, novos dogmas) levado a cabo com ferramentas recebidas da tradio: ferramentas institucionais (instituies, papis sociais), ferramentas discursivas (linguagem tcnica, tpicos, modelos de argumentao e de prova, conceitos e dogmas), ferramentas co- municacionais (bibliotecas, redes acadmicas ou intelectuais). desta forma que o passado modela o presente. No pela impo

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    sio directa de valores e de normas, mas pela disponibilizao de uma grande parte da utensilagem social e intelectual com que se produzem novos valores e novas normas (ou seja, la Fou- cault, como fornecedor de componentes dos "dispositivos" da criao actual do saber jurdico).

    Estabelecida esta ideia - com a crtica que ela traz implcita ideia de progresso linear, de genealogia e de influncia -, o presente deixa de ser o apogeu do passado, o ltimo estdio de uma evoluo que podia ser de h muito prevista. Pelo contrrio, o presente no seno mais um arranjo aleatrio, dos muitos qu e a bricolage dos elementos herdados podia ter produzido.

    Contudo, a ideia de descontinuidade, se nos d uma perspectiva sobre o presente, tambm influencia o nosso modo de observar o passado. Este deixa de ser um precursor do presente, um ensaiador de solues que vieram a ter um completo desenvolvimento no presente. E, com isto, deixa de ter que ser lido na perspectiva do que veio depois. O passado libertado do presente. A sua lgica e as suas categorias ganham espessura e autonomia. A sua diferena emerge majestosamente. Esta emergncia da diferena, dessa estranha experincia que nos vem do passado, refora decisivamente o olhar distanciado e crtico sobre os nossos dias (ou, no nosso caso, sobre o direito positivo), treinado-nos, alm disso, para ver coisas diferentes na aparente monotonia do nosso tempo.

  • 2 . A IMPORTNCIA DA HISTRIAJU RD ICO -IN STITU C IO N A L COMO DISCURSO H ISTRICO

    Como disciplina histrica, a histria jurdica e institucional est hoje a recuperar do ostracismo a que tinha sido condenada pela primeira gerao da cole desAnnales 15. A evoluo da teoria e metodologia da histria institucional - que implicou um redesenho do seu objecto (cf, antes, "A percepo dos poderes "perifricos".")- desempenhou aqui um papel muito importante. Contudo, tambm os historiadores gerais esto hoje, passada a vaga de economicismo que dominou at aos anos '70, cada vez mais conscientes da centralidade e omnipresena do poder e da poltica.

    Se isto verdade na sociedade dos nossos dias, -o mais evidentemente ainda na sociedade de Antigo Regime que, como diremos (cf., infra, "A concepo corporativa da sociedade."), se via e descrevia a si mesma de acordo com imagens e evocaes importadas do mundo do direito e onde a estrutura social se expressava nas distines e hierarquias do direito 16. Na sua obra clssica Das deutsche Genossenschaftsrecht (O direito alem das corporaes, 1868-1913) 17, Otto Gierke (1841-1921) mostrou como a teoria poltica medieval e moderna basicamente expressa com recurso aos termos da teoria jurdica. Mais recentemente, o medievista russo Abraham Gurevich destacou que este tom jurdico da imaginao social ("uma sociedade construda sobre o direito") estava difundido por todos os grupos sociais. Pormeio de tpicos e clichs, a ideia de que a sociedade e a prpria vida eram construes jurdicas tinha embebido at a cultura

    15 Cf. Hespanha, 1986c, 211.16 Cf., como sntese do estado das questes quanto historiografia sobre o

    Antigo Regime, Hespanha, 1984b; Benedictis, 1990; Schaub, 1995.17 Traduo parcial inglesa, Maitland, 1938.

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    popular. Se, entre os letrados, a teoria social e poltica estava contida na teoria da jurisdio e da justia 18, para os leigos, a mais visvel expresso da ordem social e do poder era a administrao da justia nos tribunais. Por isso, o processo judicial e a parafernlia dos tribunais (rituais, cerimnias, frmulas) eram tidos como constituindo o modelo mais fiel do exerccio do poder poltico. A prpria vida era tambm expressa na metfora do processo judicial, culminando num acto tipicamente forense, o Juzo Final19. As situaes sociais - patrimoniais, mas tambm pessoais ou mesmo simblicas, tal como a hierarquia, o ttulo, a precedncia - eram reguladas juridicamente (como iura quaesita ou iura radicata, direitos adquiridos ou enraizados) e podiam ser objecto de reclamao judicial. Por isso, o formalismo documental e a litigiosidade constituem um fenmeno muito visvel, a ponto de j ter sido descrito como um trao cultural distintivo desta sociedade que j foi descrita como "a civilizao do papel selado" [civilt delia carta bollata] (F. Chabod).

    Esta centralidade do direito pode ser explicada pela estreita relao que existia entre a ordem jurdica e as outras ordens normativas, muito diferentemente do que se passa hoje.

    O primeiro destes sistemas normativos quase jurdicos era a religio. O direito divino (ius divinum) - que decorria directamente da Revelao - estava to intimamente embebido no direito secular (ius civile) que o ltimo no podia contrariar no essencial os comandos do primeiro. Daqui decorriam as limitaes tico-religiosas do direito secular (v. infra, 5.2.2., "O direito cannico como limite de validade dos direitos temporais."), a fundamental indistino entre crime e pecado 20, a competncia indistinta de ambas as ordens para dar com certas situaes, bem com o o seu apoio mtuo (cf., infra, 5.3.2. "Direito cannico direito civil.)21.

    18Muito mais do que nos escritos polticos, como a Poltica de Aristteles.19 Cf. Hespanha, 199c.20Cf. Toms y Valiente, 1990.21 A religio legitimando o direito secular; o ltimo protegendo a primeira e

    impondo deveres religiosos, Bianchini, 1989; sobre o tema, cf. 5 .2 .2 ..

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    O direito mantinha uma relao tambm muito estreita com a moral. No apenas a moral religiosa, mas tambm com a tica secularizada que regulava as virtudes, nomeadamente as virtudes sociais, como a beneficncia, a liberalidade ou a gratido. Dar podia, nesta perspectiva, ser uma quase-obrigao jurdica (qunsi debitum), em termos de criar um quase-direito a favor dos beneficirios da oferta. Tal era o caso da esmola, que nascia da virtude da caridade e que era frequentemente considerada como devida ao pobre 22. O mesmo ocorria com o dever de compensar servios, provindo da gratido (gratitudo), ou com o dever de generosidade ou de magnificncia, provenientes da liberalidade, liberalitas, ou da magnificentia, que impendiam sobre os ricos e poderosos 23.

    Mas - acima de tudo - o direito incorporava ainda ideias muito mais profundamente enraizadas quanto ao modo de organizar e controlar as relaes sociais. Isto acontecia, por exemplo, com o chamado direito natural (ius naturale), um direito que decorreria da prpria "natureza das coisas", i.e., de imagens ento evidentes acerca da sociedade e da humanidade. Todas estas imagens, profundamente presentes na conscincia social, eram evocadas quando os juristas se referiam s caractersticas naturais (naturalia) de diferentes papis sociais (o rei, o pai, a mulher) ou instituies (como os diversos contratos ou a propriedade). Ou quando elegiam a "boa e recta razo" (bona vel recta ratio) como critrio supremo para avaliar a justia de uma situao. Recta ratio, tanto como aequitas (cf., infra, 5.3.8.2Flexibilidade por meio da equidade."), eram um equivalente do que hoje chamamos seixso comum, do sentido comum sobre a boa ordem e a justia.

    Contudo, o direito e a doutrina jurdica no se limitavam a receber o senso comum e ideias difusas. Uma vez recebidos, desenvolviam e elaboravam estes materiais "brutos" (ruda aequitas, equidade rude) numa teoria harmnica e argumentada24. De

    22Cf. Serrano Gonzlez, 1992.23Cf. Pissavino, 1988; Hespanha, 1993d; Clavero, 1991; Cardim, 2000..24 Vallejo, 1992.

  • 48 Antnio Manuel Hespanha

    certo modo, os juristas tornavam explcito aquilo que a vida quotidiana mantinha implcito, se bem que activo. Tal como os psico-analistas, que revelam em discursos explicados o inconsciente individual, eles explicitavam em teorias o inconsciente social. E, feito isto, devolviam-no sociedade sob a forma de uma ideologia articulada que se convertia em norma de aco, reforando ainda o primitivo imaginrio espontneo. Muitas vezes, fazem isto sob a forma de uma literatura altamente sofisticada; outras vezes, apenas por meio de ditos soltos (brocarda), de mnemnicas, de formulrios documentais ou de ritos processuais. De uma forma ou de outra, eles desempenham um papel importantssimo na reproduo de padres culturais e na construo de esquemas mentais que permanecero activos, durante sculos, na cultura europeia. E por isto que a histria do direito no pode ser ignorada sempre que se tenha em vista a compreenso, global ou sectorial, da antiga sociedade europeia2S.

    25 Sobre a importncia da histria do direito para a compreenso da sociedade de Antigo regime, v. Schaub, 1995; 1996.

  • 3- L in h a s d e f o r a d e u m a n o v a

    H IST RIA POLTICA E INSTITUCIONAL

    3 .1 . O objecto da histria poltico-institucional.A pr-compreenso do poltico

    Nunca foi fcil nem unnime definir o que fosse o poder ou mesmo as instituies. No entanto, passando por cima das inquietaes e dvidas sempre latentes em correntes menos conformistas, a teoria poltica liberal tinha, de mos dadas com o positivismo jurdico, estabelecido um conceito segundo o qual o poder poltico tinha a ver com o "Estado", sendo relevantesdo ponto de vista da histria e da cincia poltica apenas as instituies/ os mecanismos e organizaes institudos por ele 26.

    Tudo isso parece estar, hoje, de novo em causa. E as consequncias no plano da definio do objecto da histria poltica e institucional no podem deixar de se fazer sentir. este o tema dos prximos nmeros.

    3.1.1. A crise poltica do estadualismo

    H alguns anos, o malogrado historiador italiano R. Ruffilli27 relacionava as temticas (e tambm as perplexidades) da histria poltica (no sentido de histria do poder) dos nossos dias com aquilo que ele chamava a crise das instituies do Estado liberal representativo, nomeadamente em Itlia.

    Para os que assistem dissoluo das formas estabelecidas do exerccio do poder dito oficial, seja na ordem interna, seja na ordem internacional, falar de crise seguramente um eufemis-

    26 Cf. Chevalier, 1978.27 Ruffilli, 1979. Ruffilli - que, alm de prestigiado historiador, se empenhou

    num corajoso combate pela reforma e dignificao da vida poltica italiana - morreu s mos das Brigade rosse.

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    mo. Debaixo dos nossos olhos, a instituio Estado, tal como tinha sido construda pela teoria poltica liberal, dissolve-se e desaparece. E, com ela, uma srie de modelos exemplares de viver a poltica ou de ter contacto com o poder (o sufrgio, os partidos, a lei, a justia oficial) 2S. Mesmo o imaginrio ligado ao paradigma Estado est em crise: a igualdade, como objectivo poltico, v-se confrontada com as pretenses de garantia da diferena; o interesse geral tende a ceder perante as pretenses corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com todas as espcies de regionalismo; o imprio da lei atacado, tanto em nome da irredutibilidad de cada caso e da liberdade de apreciao do juiz a isso ligada, como em nome das ideias de concertao e de negociao, que fazem com a lei seja, cada vez mais, um contrato pactado entre o Estados e grupos particulares; a inteno "racionalizadora" capitula diante das pretenses liberais mais radicais 29. O prprio Estado, a braos com crises de eficincia e de legitimidade, parece que no pode, no carece de, e no quer, manter a sua misso ordenadora30. Em suma, o Estado abandona progressivamente o imaginrio poltico.

    Este modelo Estado tinha sido desenhado de acordo com uma arquitectura precisa 31, que previa:

    (i) a separao rigorosa entre a "sociedade poltica" (a polis, i.e., o Estado e as suas instituies munidas de impe- riurti) e a "sociedade civil" (o quotidiano e os seus arranjos "privados", contratuais, de poder);

    28 Cf. Hespanha, 1992a, 1993a.29 Cf. Zagrebelsky, 1992, 20-38 (sobre as caractersticas fundamentais do Esta

    do de direito liberal); 4-8; 39-47 (em geral, sobre a dissoluo da soberania, como caracterstica do Estado liberal e do seu direito);. Trata-se de uma brilhante sntese sobre o tema, no mbito de um livro, que j se tom ou clssico, sobre as transformaes mais recentes da natureza do direito actual na Europa ocidental.-

    Bauman, 1995 ,138 ss..31 V., sobre o desenho liberal do Estado, Chevalier, 1978 ou Zagrebelsky, 1992,

    citado antes.

  • Cultura Jurdica Europeia 51

    (ii) distino da natureza dos poderes, consoante se trata de poderes de que o Estado titular (poderes pblicos) ou poderes na titularidade dos particulares (poderes privados);

    (iii) a instituio de uma srie de mecanismos de mediao, fundados no conceito de "representao" (concebido como um produto da vontade, institudo por contrato [mandato]), por meio dos quais os cidados, vivendo na sociedade civil, participavam na sociedade poltica;

    (iv) a identificao do direito com a lei, concebida como exprimindo a vontade geral dos cidados, cuja corpori- zao era o Estado;

    (v) a instituio da justia oficial, como a nica instncia de resoluo de conflitos.

    Do ponto de vista da poltica, este modelo, com as consequncias polticas que ele comporta, suscita cada vez menos entusiasmo.

    Critica-se o gigantismo e impessoalidade da poltica ao nvel do Estado 32; considera-se que ela toma impossvel a participao dos cidados. Rejeita-se a ideia de representao, reco- nhecendo-se os cidados cada vez menos nos seus representantes eleitos. A absteno eleitoral cresce, manifestando a falta de adeso aos modelos representativos. Desconhece-se a lei, defrauda-se a sua letra, contestam-se as suas imposies em nome de interesses particulares e procura-se substitu-la por pactos (con- certao) entre o Estado e os grupos sociais (mais fortes). Suspeita-se da justeza da justia oficial, propondo-se a sua substituio por outras formas de composio.

    Por outro lado, a um nvel superior ao do Estado, criam-se instncias supra-estaduais de regulao - ONU, Unio Europeia, Mercosul -, organismos oficiais que condicionam decisivamente as polticas estaduais - FMI, entre outros - ou at formas su

    32Sobre a oposio entre a personalizao dos laos comunitrios e a impessoalidade dos laos estaduais, caractersticos da modernidade, cf., Bauman, 2001, brilhante anlise de toda o contexto ideolgico desta oposio.

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    pranacionais de punio - como o Tribunal Penal Internacional. Aos condicionamentos oficiais das polticas estaduais acrescem os condicionamentos pelas grandes empresas ou grupos econmicos multi-nacionais 33.

    Mas, ao mesmo tempo que o imaginrio estatalista do liberalismo recua, descobre-se que, finalmente, no se tratava, na verdade, de muito mais do que de um imaginrio, por detrs do qual fervilhavam mecanismos mltiplos de organizao e de disciplina sociais - a educao dos sentimentos (a moral), o senso comum, as rotinas, a organizao do trabalho, a famlia, os crculos de amigos, enfim, a "comunidade". Pela intimidade dos amores, pelos mecanismos viscosos da rotina, pela aco do discurso, pelos jogos da evidncia e da verdade, pelos constrangimentos da domesticidade e da amizade, a sociedade continua to firme e espontaneamente organizada como antes. E, por longe que estejam dos cumes da poltica, os homens a as mulheres tm, todos os dias, os seus momentos de poder. Enfim, afinal faz- se poltica como se respira.

    3.1.2. A pr-comprenso ps-moderna do poder

    Esta nova descoberta de uma "poltica ao nvel do solo" (J. Revel, 1989) - ou, se se preferir Lenine, de uma poltica ao alcance da porteira - pode ser relacionada com uma temtica terica tipicamente ps-modema: horror ao gigantismo e atraco pela pequena escala, desconfiana dos modelos globais, das tecnologias pesadas e das grandes organizaes, revalorizao das componentes pessoais e da vida quotidiana, preferncia por uma tica do prazer em vez de uma tica da responsabilidade. Esta antipatia em relao s formas "macro" do modelo poltico liberal tem uma genealogia bastante longa, na qual se podem encontrar, quer Karl Marx, quer Cari Schmitt, antes de chegar s

    33Sobre o seu impacto sobre as polticas estaduais, cf. o testemunho de um insider em Soros, 2000, 2002; Ferrrese, 2000, 2002.

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    anlises micro-fsicas de Michel Foucault ou aos diagnsticos sobre a mudana das fontes, dos nveis e das tecnologias do poder e da organizao nas sociedades omni-comunicativas, descritas por Alvin Toffler.

    Quaisquer que sejam as genealogias, o que interessa que o diagnstico ou o anncio do fim do Estado como modelo deorganizao poltica se tomaram usuais na teoria poltica mais recente

    por isso que a evoluo mais recente da historiografia do direito e das instituies no pode ser separada, quer da evoluo dos movimentos da sensibilidade poltica antes descritos, quer das ltimas novidades da teoria poltica. Uns e outras criam interesses existenciais que dirigem o conhecimento (Erkenntnis- leitende Interessen) ou, para escolher uma outra formulao, que modelam uma pr-compreenso (Voruerstandniss) do poltico, a qual antecipa os resultados da actividade historiogrfica.

    No entanto, no se pode dizer que, nos finais dos anos sessenta, quando o movimento de contestao da historiografia ju- rdico-poltica tradicional comeou a tomar forma, estes sinais de dissoluo das formas contemporneas de normao e de disciplina j fossem abertamente visveis.

    E, sobretudo, no se pode de forma alguma dizer que fossem eles que estavam na origem do mal-estar da ento mais inovadora historiografia jurdica.

    M Limitando-me a exemplos dos ltimos anos, vindos de cantos opostos da reflexo sobre a poltica: P. Legendre, no mbito de uma j longa reflexo sobre a forma estatal (desde L'amour du censeur, 1974, at Les enfants du texte. tude sur la fonction parentale des tats, 1992, at ao Trsor historique de l'tat en France. L'administration classique, 1992), prognostica "a sua dissoluo do interior, deixando lugar a outra coisa" (Trsor..., 13). Do lado das teorias do management - cujo papel dogmtico (i.e., legitimador das relaes polticas estabelecidas) colocado por P. Legendre ao lado do direito dos Estados contemporneos - , tomamos o exemplo de A. Toffler (Toffler, 1990) que v nas actuais deslocaes do poder (pozvershift) o sinal do advento de uma nova poca civilizacional, dominada por formas moles e flexveis de organizao (flex-organisations).

  • O qu e ento d esem pen hou um p a p e l determ inante fo crtica da fam iliaridade" com a qual a historiografia estabe cida lidava com o passado.

    3.1.3. Contra uma histria politico-institucional actualizante.

    3 .1 .3 .1. A poltica implcita da ideia de continuidade (Kontinuitatsdenken)

    Para aqueles que tinham tido contacto com a historiogra fia geral mais moderna, nomeadamente com o movimento do Annales, a falta de distanciamento histrico era naturalmente chocante.

    Mas tomava-se ainda mais, quando se analisava a poltic implcita nesta historiografia "da continuidade". Com efeito,, ideia de uma continuidade, de uma genealogia, entre o direit histrico e o direito do presente era tudo menos inocente, do ponto de vista das suas consequncias no plano da poltica do saber (jurdico).

    A continuidade dos dogmas (dos conceitos, das classifica es, dos princpios) jurdicos constitui, de facto, a via real para a naturalizao do direito e dos modelos estabelecidos de podei para a aceitao de um direito natural, de uma organizao poltica racional, fundados no primado de um esprito humam trans-temporal, que permitiria o dilogo dogmtico entre os ju ristas do presente e os do passado. A histria teria, ento, un papel essencialmente dogmtico. Como saber que lida com < tempo, ela teria a funo de permitir a comunicao trans-tem poral, tornando possvel o dilogo espiritual entre os de hoje 1 os de ontem. Nesse dilogo, o presente enriquecia-se mas, so bretudo, justificava-se. Porque o passado, ao ser lido (e, portan to, apreendido) atravs das categorias do presente, tornava-si numa prova muito convincente do carcter intemporal - e, por tanto, racional - dessas mesmas categorias. "Estado", "represen tao poltica", "pessoa jurdica", "pblico/privado", "direit( subjectivo", eram - lendo a histria desta maneira - encontra

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  • Cultura Jurdica Europeia 55

    das por todo o lado na histria. No podiam, por isso, deixar de ser formas contnuas e necessrias da razo jurdica e poltica. Que esta continuidade fosse o prprio produto do prprio olhar do historiador era questo de que no se parecia estar consciente.

    Mas, alm de poder ser lida neste registo da "permanncia", a continuidade tambm pode ser lida no registo da "evoluo". Neste caso, trata-se de assistir ao nascimento e secular aperfeioamento de um conceito ou de um instituto. A "continuidade" concebida como a continuidade dos seres vivos, que crescem e desabrocham, em flores e, finalmente, em frutos. A sabedoria poltico-jurdico da Humanidade, justamente porque continuaria o passado e no perderia os seus ensinamentos, aperfeioar-se-ia - i.e., progrediria linearmente por acumulao. A partir desta ideia, institui-se uma viso progressista da histria do poder e do direito, que transforma a organizao institucional actual num mega da civilizao poltica e jurdica. O Estado liberal-representativo e o direito legislado (ou, melhor ainda, codificado) constituiriam o fim da histria, o termo ltimo de todos os processos de "modernizao".

    A viso histrica, ainda aqui, servia para documentar essa saga, essa contnua luta pelo direito (Kampfum Recht). Os dogmas do direito histrico no so j, como no caso anterior, testemunhos da justeza dos do presente. Mas testemunhos da actividade de libertao da Razo jurdica em relao fora, aos preconceitos e s doenas infantis 3S.

    Pressuposto deste uso legitimador da histria era, num caso ou noutro, a ideia de continuidade. Ou seja, a ideia de que o saber do presente se enraizava no saber do passado e que recebia deste as categorias fundamentais sobre as quais trabalhava. De facto, a chave do sucesso da tradio romanstica, desde os glo- sadores at pandectstica alem, foi sempre o mascarar do carcter inovador da "recepo", o facto de esta repousar sempre sobre uma duplex interpretatio.

    Com efeito, ficcionava-se que o sentido pelo qual se tomavam

    35 Abordei esta temtica em Hespanha, 1986c.

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    os conceitos ou as normas herdadas do passado era o sentido cunhado pelos seus autores ou o ligado aos seus contextos originais. Nem os prprios textos, nem as condies da sua produo e apropriao, disporiam de espessura suficiente para provocar refraces no seu sentido. Pelo contrrio, a limpidez cristalina e a plena disponibilidade dos textos deixariam reinar, soberano, o nico contexto que seria preciso ter em conta, o contexto intemporal - e, portanto, comum ao passado e ao presente - da Razo jurdica. Esta crena na intemporalidade do sentido e na possibilidade de uma hermenutica sem limites conduzia a um achatamento ou a uma negao da profundidade histrica e a um sentido de familiaridade com o passado que, por sua vez, levavam a uma trivializao da "diferena" deposta nos textos jurdicos histricos.

    3 .1 .3 .2 . A crtica do atemporalismo

    No se pode dizer que a questo das rupturas, nomeadamente das rupturas dogmticas, fosse desconhecida dos historiadores do direito. Nos anos '20 e '30, alguns romanistas, reagindo justamente contra a apropriao actualizante do direito romano, operada pela pandectstica, tinham denunciado o erro que seria o ignorar do trabalho criativo, poitico, das diversas recepes dos textos romansticos (duplex interpretatio), o seu progressivo distanciamento em relao aos sentidos originais. Desta denncia, do carcter ilusrio das aparentes continuida- des terminolgicas decorria a ilegitimidade de aplicar, no trabalho histrico, as categorias jurdicas actuais.36

    Mas a crtica da ideia da "continuidade" (da "familiaridade") mais decisiva para os desenvolvimentos recentes da histo

    36 O preo pago por esta orientao foi uma inevitvel "historicizao" das correntes romansticas e a sua perda de peso nas Faculdades de Direito. Por isso, alguns sectores romanistas propuseram um estudo "jurdico" (actualizante) do direito romano, reactivando as intenes dogmticas da pandectstica (zurck zu Savigny, zu dem heutigen System des rmischen Rechts). V., neste ltimo sentido, o "manifesto" de Cruz, 1989b, 113-124. Para a crtica, v. infra, 5 .I.I .I.4 .

  • Cultura Jurdica Europeia 57

    riografia jurdico-institucional veio mais tarde, no decurso dos anos '70. Apesar da diversssima identidade ideolgica dos actores, no parece muito arriscado dizer-se que se tratou de um movimento de crtica do triunfalismo da poltica estabelecida - o Estado liberal-representativo e o seu direito legislado -, queamarrara a histria institucional e jurdica ao seu carro de triunfo 37. O que, de vrios lados, se tentou fazer, foi desamarrar da opassado, mostrando como ele, se o deixassem falar a sua prpria linguagem, se dessolidarizaria das formas estabelecidas do presente e exprimiria a inenarrvel mobilidade das coisas humanas.

    No domnio da histria poltico institucional, esta misso foi preparada pelos trabalhos pioneiros de Otto Brunner38 - que, tal como Otto v. Gierke, mile Lousse ou Julius Evola, pertencia aos grupos tradicionalistas, crticos da "situao poltica" -, ao destacar a alteridade das representaes de Antigo Regime sobre o poder e a sociedade 39. A influncia de Brunner, combinada com sugestes anteriores e disseminada por esta nova historiografia, provocou um movimento historiogrfico, hoje muito amplo, de problematizao da justeza de aplicar categorias e pr- compreenses contemporneas histria do poder das pocas Medieval e M oderna40.

    No domnio da histria do direito, a crtica da continuidade prometia maiores dificuldades, de tal modo esta era essencial, no apenas manuteno da ideia de uma ratio iuris intemporal, mas

    37 V., no mesmo sentido, embora com diferente argumentao, Levi, 1998.38 Indicaes bibliogrficas, avaliao global e nota sobre os precursores, Hes-

    panha, 1984b, 31 ss.39 A fortuna que este autor veio a ter na historiografia da poca moderna (scs.

    XV-XVIII) deve bastante sua recepo pela historiografia poltico-institu- cional crtica (mas, desta vez, "de esquerda") italiana dos anos '70 e ao destaque que dado sua obra nos prefcios de duas antologias que ento estiveram muito em voga, a de Schiera-Rottelli e a de A. Musi (Rottelli, 1971; Musi, 1979). O mesmo destaque lhe foi dado por mim, em Hespanha, 1984b.

    40 V. Blockmans, 1993.

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    ainda defesa da razoabilidade de dispositivos tcnicos como "regra do precedente" ou a "interpretao histrica" 41.

    Foi justamente o culto da "continuidade" que explica as tenses que acompanharam o aparecimento, em 1977, de uir nmero da revista lus commune, publicao institucional de urr dos templos da historiografia jurdica alem, o Max-Planck-lns- titut fr europische Rechtsgeschichte, de Frankfurt/Main, coordenado por um investigador do Instituto, Johannes-Michael Scholz, e subordinado ao tema Vorstudien zur Rechtshistorik42. Js o ttulo era tudo menos inocente, ao jogar no contraste provocador entre a designao clssica da disciplina - Rechtsgeschichte - e o neologismo francisante - Rechtshistorik. A inteno iconoclasta estava abertamente explicada no estudo de abertura de J.-M Scholz ("Historische Rechtshistorie. Reflexionen anhand franzsischen Historik" [Uma histria histrica do direito. Reflexes a propsito da historiografia {historicizante} francesa], 1-175). Tratar-se-ia justamente de "historicizar a histria do direito", importando para a disciplina as sugestes metodolgicas da Escola dos Annales, nomeadamente a de promover a observao do direito no seu contexto social e a de introduzir a, com toda a sua imponente majestade, a conscincia da dimenso temporal, de